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@MOLUSCOMIX 2021 EDIÇÃO: LOBO PREPARAÇÃO: FABIO PINTO REVISÃO: CLARISSE CINTRA E SANTIAGO FONTOURA CAPA: COLLAB ENTRE A BEM BOLADO BRASIL E A MOLUSCOMIX DESIGN GRÁFICO: SAMANZUCA E GANP ILUSTRAÇÕES DA CAPA: DOUGLAS RIBEIRO, ARIADNE MATHIAS E BEM BOLADO BRASIL ILUSTRAÇÕES DO MIOLO: SAMANZUCA E GANP [email protected] DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP, BRASIL) CASTANHEIRO, MAÍRA DIÁRIO DE UMA MÃECONHEIRA / MAÍRA CASTANHEIRO. -- PORTO ALEGRE : MOLUSCOMIX, 2021. ISBN 978-65-00-21239-6 1. CASTANHEIRO, MAÍRA 2. DIÁRIOS 3. MEMÓRIAS AUTOBIOGRÁFICAS 4. MULHERES - AUTOBIOGRAFIA I. TÍTULO. 21-63131 CDD-920.72 ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO: 1. MULHERES : MEMÓRIAS AUTOBIOGRÁFICAS 920.72 CIBELE MARIA DIAS - BIBLIOTECÁRIA - CRB-8/9427 6
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PREFÁCIO Lembrei de pegar o livro pra ler na viagem. Dei o último trago, entrei no avião, me acomodei. Ritualizo no meu peito e, entre nuvens, leio o primeiro1 de Maíra. Que ela deu um jeito de mandar entregar na minha casa. __________ É naquela fresta de interesse e disposição que os milagres acontecem. Te adianto, temos em mãos uama obra descompromissada com parâmetros ou exigências literárias. Uma narrativa instigante e subversiva que, se encontrar espaço em você, residirá pra te lembrar que há beleza na sinceridade. Resi- dindo, te colocará periodicamente em zonas de desconforto, bem amparadas por novas perspectivas. Tenho pra mim que a cura mora nos desabafos da gente. Como quando escrevo o primeiro verso da minha nova canção e isso me nutre por dias, as linhas desse diário mudam meu flow, me ativam pro- priedades medicinais. À vontade e com vontade, acompanho o que me parece um processo autêntico de desenvolvimento estético, de desafogos, alívios e aventuras; reflexões fundamentadas em lugares em que eu gosto de estar. Também chamadas de brisas, aprecio porque tem cheiro, som, gosto, algu- mas psicodelias e oito anos de uma maternidade corajosa, livre, responsável e inspiradora, independente das dores e amores. Todas políticas, como somos. Todas milagres. Se puder, retire por um momento as lentes que te fazem ou já te fizeram julgar o comportamento das mães, principalmente se você não for uma. Mes- mo que não expostos, tente eliminar os julgamentos de seu pensamento e, ainda, peço que retire suas expectativas românticas comumente associadas à maternidade. Se antes de parir já existimos e vivemos histórias tão diversas quanto todas as criaturas que botamos nesse mundo, depois de parir ressigni- ficamos todas, mas nunca as apagamos. Sinto que nesse caminho de aprender a ser mãe, questionar a lógica de autoanulação em prol da cria e optar por relações honestas, com trocas de afeto, conversações e cuidados, tem a ver com romper padrões da mãe boa, pura e imaculada na nossa sociedade. Tem a ver com defender a nossa vitalidade. 1 O primeiro livro publicado por Maíra Castanheiro, Cartas para Maria Alice, é uma homenagem a sua filha. 9
Enquanto escrevo, minha filha chora e pede para brincar. Penso que nin- guém nos ensina a lidar com tanto. Guiar a pessoa mais importante da nossa vida, sendo a pessoa mais importante da vida dela. Educar e inspirar novas respostas; com honestidade. Abro o Diário de uma mãeconheira e instantaneamente me sinto lá, inserida nos diálogos e contextos. Muito pela forma como Maíra escreve e texturiza as situações, mesclando o dito e o não dito entre conversas espontâneas e re- flexões mais apuradas. Também pelas minhas identificações pessoais, que me fazem imaginar e recriar detalhes. Suas referências intelectuais, seu acúmulo político, militante, materno, cannabico, musical, de rua, de diferentes lugares do mundo, somados aos deslizes, choros, perreios e tocos. A gente tentando não ser e sentir o que lutamos pra que nenhuma mulher seja e sinta. Pauso pra absorver. Tô inserida, gosto como ela expressa. Lembro de Lua e de re- pente amo Mariaalice. Inconformada, mas não surpresa, sei que Maíra Castanheiro, mulher, es- critora, professora, historiadora, tradutora, mestranda, autora dessa obra autêntica e necessária que você está prestes a ler, maconheira e mãe, há oito anos, de uma criança saudável física e emocionalmente, tem constantemente suas verdades questionadas, sua intelectualidade deslegitimada, sua mater- nidade desajuizada. Juízos construídos com base em versões inatingíveis, que não fazem parte de suas metas — e nem das minhas. Por isso estou aqui, te preparando para deslizar nesse diário de sinceridades poéticas corriqueiras, de contemplações, revoltas e brisas de uma \"mama\" em movimento revolu- cionário. Um diário com baseado e fatos reais. Não sei o que virá à frente, mas estou ali, pronta pra acompanhar o próxi- mo carnaval. Se você já foi guiada por alguém que te fez parecer saber dançar, vai entender do que eu tô falando. Talvez você dance uma e precise parar e se recompor, talvez só pare de dançar quando a música acabar. Talvez você nem dance. Então sugiro que sinta a música e, se for do seu agrado, bole mais um. Marina Peralta. Cantora, compositora e mama @originalmarinaperalta 10
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APRESENTAÇÃO Querido diário, finalmente você virou livro. Risos. Era pra ser só um desabafo. Era pra ser só um diário. Era pra ser só um exercício de escrita de si escrita criativa curativa. Mas, a gente cresceu, na real ainda estamos crescendo, né?! Risos. Cre-sendo e se desenvolvendo. E este diário, ou esta escrita de si escrita criativa curativa, tem sido, junto com a maconha e o LSD, meus principais instrumentos de autoconhecimento. Desde criança que eu escrevo diário. Mas, somente após me separar co- mecei a tornar meu diário público. O ano era 2015. Eu estava voltando a morar no Brasil depois de quatro anos e meio vivendo no México, onde pari Mariaalice. Cheguei no Brasil no meu lar: Salvador, Bahia, lugar onde nasci e nutro laços fortíssimos. Cheguei com meu companheiro e nossa filha. Cheguei que- rendo abraçar o verão, o carnaval, comer acarajé, me esquentar no mar. Em dez dias na minha Salva-dor eu me separei. Mas isso é outra história, que se um dia eu tiver coragem eu conto. Risos. É, caro diário, confesso que ainda preciso de muita coragem. Ainda que pareça que eu seja corajosa, tem coisas que por alguma razão do coração a gente deixa pra depois. <quando penso em nós três fica pra outra vez>. O fato é que, quando me vi mãe com uma filha de dois anos e meio, eu sem pai e sem marido, família longe e com poucas condições de me ajudar, eu senti que o bagulho é loko e pesado. Foi quando de fato senti o machismo entrando na minha casa, na minha vida, mexendo com todas as minhas estru- turas, causando muitas feridas. Eu fiz o que sempre fiz: escrevi. Desabafei. E joguei meu desabafo pro mundo. Escrevi e escrevo a noite inteira <pra desfazer a dor e refazê-la>. Teve gente que acolheu meu desabafo e gente que quis abafar-me ainda mais. Mas, fiquei e fico com o lado que acolhe: é por aí que fui e vou amolando minhas palavras, e deixa de ser um simples desabafo no muro das lamenta- ções pra ser um desabafo político. Esta mulher que vos escreve é uma mulher que gosta muito de sexo, drogas e rock and roll, conhece os prazeres de sua carne and karma quando se deita na cama e sua com quem ama. Eu, Maíra Castanheiro, trinta e muitos anos, drogada, mãe, professora e es- critora. De tanto questionarem tudo isso que soul eu mesma já quis sair dessa, 13
afinal, quando me vi professora sem aula pra dar, escritora sem livro, mãe sem filha, pouco sexo, drogas e rock and errou, eu me questionei e quase surtei. Foi quando decidi lançar meu livro independente, Para Maria Alice, em novembro de 2019. É justo que meu primeiro livro seja Para Maria Alice. A maternidade me trouxe a urgência de ser quem eu soul: mulher, mãe, profes- sora, escritora, intelectual. <isso de querer ser exatamente aquilo que se é ainda vai nos levar além>. Estou indo além, ainda não cheguei, até porque só acaba quando termina. Mas, publicar este diário para além de my dark side of the word, para além das redes virtuais, publicar este diário em carne e osso, ou papel, faz parte do meu show. Trago nas minhas experiências cotidianas todos os amores que cabem nessa vida. Os corres pra conseguir uns trocados pra dar garantia. As dro- gas, com as quais me relaciono muito bem e muito contribuem para o meu autoconhecimento, para o meu divertimento e muitas coisas, são muitas as possibilidades. Trago na minha narrativa minhas reflexões, queixas e lamentações. É osso assinar o diário como mãeconheira, com nome e sobrenome. Nascida e criada por poetas marginais. Minha formação literária e de vida é beat. Como leitora, li pouquíssimas mulheres (e as poucas que li foi por ago- ra, já depois dos 30) que escrevem suas histórias de sexo, drogas e rock and errou. Li muitos homens que sem nenhum pudor narram suas experiências sobre sexo, drogas e rock and errou e não são julgados, ao contrário, isso lhes fez/faz geniais. Eu sempre quis escrever um livro assim, em primeira pessoa, sobre uma mulher que conta suas aventuras sexuais, suas viagens e seus usos de drogas. Pois bem, querido diário, não achei que esse livro fosse ser você, risos. Mas, quando me dei conta, esse livro que eu sempre quis escrever já estava/está sendo escrito. Vivido. Sentido. Eu tô feliz pra caralho. Sou mãe, professora, escritora, intelectual. Uau! Eu não ando só. Tem muitas outras mãeconheiras por aí e eu através deste diário conheci várias, me conectei com várias. Por essas e outras defendo que publiquemos nossas narrativas sob nossas perspectivas. A publicação tece conversações entre leitores e au- tores, construindo pontes e sentidos. As vozes ecoam. As histórias ressoam. Quando uma mulher mãe narra e assina sua própria história, ela assina sua sentença. Desde que publico o Diário de uma mãeconheira, 2015, há várias tretas e queixas. Minha maternidade é questionada e limitada. Como profes- sora, nunca questionaram meu conhecimento, mas o fato de eu ser mãeco- 14
nheira fez com que muitas escolas me fechassem as portas. Eu insisti para existir. Foi preciso resistir. E apesar dos pesares a pesar, cá estou. Apresento neste Diário de uma mãeconheira histórias de uma mulher mãe bem comum. Ela trabalha, estuda, malha, corre, alonga, usa drogas, trepa, se ilude, se decepciona, luta pela guarda da filha na justiça, trabalha do que for preciso pra pagar conta. Eu sou só mais uma mãeconheira latino-americana sem dinheiro no bolso. É melhor vocês irem se acostumando: as mães também usam drogas e trepam. Apesar de vocês, eu falo. Maíra Castanheiro Floripa, 12 de fevereiro de 2021 3h19 ouvindo “Nocturne” de Chopin. 15
Ficção é a vida melhorada. — Charles Bukowski 16
Querido diário, o domingo acabou. O circo acabou. As crianças dormem. A panela de molho. As roupas de molho. Outras pra dobrar e guardar. Praça bonita, com muito verde. Com palhaços, malabaristas e artistas. Famílias fazendo piquenique. Muitas cores. Bolhas de sabão. Amigos. Reencontros. Gerações. Céu azul. Sol fresco. Sombra e água de coco. Quase um woodstock. Todos sorriem. Muitas crianças. Muitas crianças brancas. É o canto delas, sem glúten, sem lácteos. Com verde e palhaços. Com uma praça bonita para chamar de nosso canto, nosso piquenique, nosso pão e circo. Verde que te quero. Quanto mais grana mais grama. E ali pisamos, deitamos e rolamos. Não estava proibido pisar na grama. Mas é tudo deles e nada nosso. E ainda assim foi um lindo domingo. Daqueles de cansar, de amar, de aliviar. Daqueles de companhia. De alegria. Daqueles de passar o chapéu e dizer, boa noite. As crianças dormem. Umma- gumma bate forte pedindo ummagumma, no sentido literal de 1969. Um chá verde, um fumo verde. Respirar. Salvador, 5 de julho de 2015. Querido diário, o domingo acabou e uma segunda começa. Eu devia ter feito uma prova de con- curso. Mas não fiz. Fiquei a acalmar os soluços e choros de minha pequena. Quando ela acorda, acorda pra realidade. E a realidade é dura. Os abraços afa- gam. Deixe a ira no mar, minha pequena. Que o mar e o céu são imensidão. Ne- les cabem. Não cabem em nós. Desatamos desde a garganta. Perco a hora, perco a prova do concurso, mas não te perco. E perdoai-me quando peco. O que de dentro de mim se fez e saiu, de dentro de mim está. Fomos ver saltimbancos. E 17
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POSFÁCIO Diane di Prima Camilla Brisa Ana, Letrux Marília, Milena, Sheyla Patti Smith Minha mãe Eliza e Juliana Évila, Leidy Karen e Paula Greice, Edna Sarah, Cynthia, Carol Fernanda, Duda Bruna Thaís Fleabag Maria Isadora Maíra Tudo o que eu sou como mãe é um retalho de alguém. A maternidade, assim como o bebê, são gestados constantemente, mas tudo está sempre em- baixo d’água. A comunicação entre mulheres eu sinto assim, fluida e turbu- lenta, profunda, imersiva. Misteriosa, por não dizer tudo, mas franca. Com os homens é diferente, sempre se tem o receio de ser atravessada, e isso mais cedo ou mais tarde acontece. Precisei iniciar o texto com o nome de tantas que me nortearam no ser mulher e ser mãe. É um poema grande e costura- do, como aquele romance feito pelas mãos de Mary Shelley. Ser mulher-mãe é um grande monstro de retalhos que a gente “cose pacientemente como a rede de nossa milenar resistência”. Escrevo agora porque me aperta o cora- ção ver chegando os dias finais do prazo do Catarse da Maíra e ela ainda não ter atingido a meta.1 Uma campanha tudo ou nada, e ela apostou tudo. Da ma- ternidade à profissão, para se assumir como mãeconheira. Cada mulher que 1 Este texto foi escrito no dia 05/04/2021, quando o sucesso da campanha de financiamento coletivo ainda era uma incógnita. Naquele momento, 48% da meta havia sido alcançada. Na última semana, houve uma reviravolta e a campanha ultrapassou a meta, atingindo 107%. 219
se enrosca nas louças da pia é um pouco desse monstro que se desestabiliza. A minha adolescência foi inspirada pelos beatniks, só que eles ofuscaram suas mulheres. Eu me apaixonei pelo Kerouac, mas que delícia teria sido ouvir Lu Anne e Carolyn. A mãe de Kerouac. Delícia não, dolorido. Porque a gente sabe, mas ignorou o que rolou por trás da penumbra. O que importa, o que sempre importou, é que os homens estavam queimando, e nós mantivemos o fogo aceso e costuramos o grande monstro. Achei a Diane na boca de uma mulher que sumiu no vento, descobri a morte da di Prima no ano passado e me vie- ram lágrimas, as mesmas que me correm agora. Os nossos livros são boico- tados antes por nós mesmas, nossa inspiração se derrama nos diários ou nas histórias que contamos aos nossos filhos antes de dormir e desvanecem no ar. O cansaço tem sido o segundo boicote, uma grande névoa em nossa história. Escrevo agora por conta do Catarse da Maíra, que expira o prazo. Queria comprar o livro, queria sentir as palavras dela nas minhas mãos, queria poder sublinhar, queria colorir as frases como fiz com o livro da di Prima. Ela, Maíra, mãeconheira, beatnik, viva, brasileira, vivenciando uma pandemia aqui, tão próxima. Ela, impedida de ser mãe, professora, escritora, como tantas de nós. Escrevo e me exponho agora por um chacoalhão que recebi da Maíra em um de seus textos, quando ela se confidenciava com um diário. Ela deu a descarga elétrica que meu monstro precisava pra chutar a porta do laboratório. Queria que a Maíra chegasse a tantas outras, eu queria que os monstros de retalhos quebrassem as portas por aí. A gente sabe que a revolução vem daí porque o monstro é forte. A gente sabe… E ver uma mana chutar a porta e botar um livro no mundo, custe o que custar... veja bem, Maíra tem o direito de ser tudo o que é questionado e, ainda assim, ela insiste em ser. Se dizer mãeconheira lhe custou a maternidade e a profissão, muitas vezes é negado a ela até o direito de ser mulher. Os homens não nos assumem assim, devemos seguir na penumbra, sem conseguirmos nos apoiar porque o auxílio emergencial é curto, as pensões são baixíssimas, não dá pra amparar a mana que rompe a porta do laboratório porque temos de sustentar as nossas crias. E os homens seguem. Nós seguimos. Sou mulher, mãe, escritora, artista, estudante, trabalhadora. Mas sou es- critora há muito mais tempo que a maioria dessas características, e quase ninguém sabe, porque a única obra que eu considerei realmente perfeita para vir ao mundo foi a Helena. Os textos que a Maíra publicou são a voz que se encaixa perfeitamente no meu silêncio quando, depois de um dia rotineiro, desligo o computador e 220
coloco minha filha para dormir. Helena ultimamente tem medo, e eu tenho também. Colei imagens de grandes mulheres ao lado da cama dela e dizemos o nome de cada uma antes de dormir. Virou bordão: “Elas tiveram medo, fi- lha, mas tiveram muito mais coragem”. Victoria Silveira Escritora e mama documentosemnome.medium.com @ _victoriasd 221
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Este livro foi germinado entre 2015 e 2021. Entrou em traba- lho de parto nas dependências da Edelbra Gráfica, no outono de 2021. O Diário de uma Mãeco- nheira veio ao mundo com 155 x 230mm e cerca de 300 g. Publica- do em capa dura e miolo impres- so em Pantone VERDEVERDADE sobre papel Pólen Soft 70g.
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