E quem irá dizer que não existe razão? — Trecho da música Eduardo e Mônica, grupo Legião Urbana.OCORAÇÃO, no senso comum, na cultura popular, nas artes, na literatura, na música, nas culturas ancestrais, na mitolo-gia, na vida religiosa e nas medicinas não convencionais, é consi-derado o órgão central da vida humana, tanto da vida corpórea,quanto da vida de sentimentos. Adquire, assim, a conotação deorganismo sensório da alma, além da atuação essencial na manu-tenção da vida biológica. É conhecido como o órgão da coragem eo portador dos sentimentos humanos mais nobres. É apontadocomo sede da amizade, dos diferentes tipos de amor, do êxtase, dapaixão, da saudade. É no coração que a felicidade e a alegria sãosentidas, e também a dor, a tristeza, a angústia e a solidão. Nodito popular, é tido como o órgão mais democrático, pois nãoexiste aquele, rico ou pobre, que nunca tenha experimentado ador de um coração partido por amor não correspondido. Na sístole,ele se contrai. Na diástole, ele relaxa e se expande, movimentan-do-se ritmicamente entre dois movimentos opostos. Em um com-passo diferente, também se movimenta a nossa alma entre os maisvariados sentimentos que pulsam em nosso interior. Um texto sobre PSF poderia abordar incontáveis aspectos,tais como as primeiras experiências brasileiras, as ideias que im-pulsionam o modelo, as ações executadas, o impacto e os resulta-dos obtidos. Também poderia ser uma análise e crítica ao desen-volvimento do processo, aos papéis dos membros da equipe. Maseste texto, em especial, fala sobre meus sentimentos, sobre os ca-minhos que meu coração percorreu ao longo desses quatro anos,no contato intenso com uma realidade tão diversa da minha. Poristo o denominei “Pelos Caminhos do Coração”, pois esta temsido uma viagem por momentos de contração, de expansão e demomentânea paz, naquelas frações de segundo de repouso. 49
O começo do caminho Passou por várias margens Diversas mais além Naquelas várias viagens Que todo rio tem (Fernando Pessoa)A minha trajetória até chegar à medicina comunitária e ao PSFtem muito desse rio cheio de margens e viagens, pois veio a acon-tecer de forma quase imprevista, apenas quatro anos após minhagraduação em Medicina pela Universidade Federal de MinasGerais, a UFMG, em 1992. Durante todo o curso, eu sempresenti grande afinidade pelas atividades ligadas à cirurgia e, quan-do eu iniciei a residência em Cirurgia Geral, logo após formar--me, eu já me havia dedicado ao seu aprendizado desde o quintoperíodo da escola. Mas em 1996, eu deixara para trás os quatrolongos e árduos anos de formação em cirurgia, um pouco desen-cantada com a realidade cotidiana da vida de jovem cirurgiã: lon-gas jornadas de plantão na urgência para conseguir o meu susten-to, alto nível de responsabilidade e estresse, poucas oportunidadespara tomar decisões livres dentro de uma equipe cirúrgica e, porfim, conflitos com as posturas e condutas de colegas. O ideal queeu alimentara anteriormente — o de que a cirurgia possibilitariaa melhora rápida e definitiva para quase todos os problemas desaúde — havia-se desmoronado e eu buscava um novo caminhodentro da medicina. A resposta veio de uma direção completa-mente oposta: em 1992, eu havia conhecido a Homeopatia e aMedicina Antropossófica, como paciente, enquanto buscava so-lução para uma rinite alérgica resistente ao tratamento alopático.Fiquei tão satisfeita com os resultados do tratamento alternativoque comecei a estudar ambas as medicinas não convencionais si-multaneamente, enquanto fazia a minha residência médica. No 50
início, era um hobby, algo que me trazia relaxamento e insightsmas, aos poucos, uma nova concepção médica foi se formando emmeu interior, chegando um dia a exigir espaço em minha vidaprofissional. Considero que o encontro com essas diferentes tradiçõesmédicas foi um dos fatos mais importantes em minha trajetóriapessoal e profissional, tendo desencadeado muitas transforma-ções em minha visão de mundo e, inevitavelmente, influenciado aminha crise com a Cirurgia Geral. Representou, na verdade, umreencontro com a medicina humanizadora (antimecanicista, anti-tecnicista) que eu idealizava quando queria ser médica, ainda naadolescência. E assim, após uma grande reorientação de minhaprática médica, comecei a atender consultas em Homeopatia eMedicina Antropossófica em meu consultório particular em BeloHorizonte. Contudo, ainda me faltava algo: o contato com a gente sim-ples e calorosa que havia sido minha referência de paciente nostempos de graduação na UFMG e, posteriormente, nos ambu-latórios do Hospital da Baleia, onde fiz a residência médica. Abusca pelo atendimento ambulatorial em Clínica Médica aca-bou trazendo-me até Vespasiano, a um pequeno centro de saúdelocalizado na região periférica da cidade, antes da implantaçãodo PSF. Nessa nova reorientação de minha prática médica, sur-giram, pois, dois caminhos: as medicinas não convencionais noconsultório e a medicina comunitária no SUS. Para mim, ambasas práticas sempre foram indissociáveis, complementares, nutri-doras uma da outra. Essa combinação pode parecer um poucoexótica, mas eu asseguro que eu as vivencio enquanto equilíbriouma da outra. Embora esse texto traga estórias que aconteceramdo lado de cá, da medicina comunitária, o meu olhar é muitomarcado pelo lado de lá, isto é, da medicina que busca ver o tododo ser humano. 51
Chegando a um mundo novo É que quando eu cheguei por aqui Eu nada entendi. Da dura poesia concreta de suas esquinas Da deselegância discreta de suas meninas. [. . .] Quando eu te encarei frente a frente E não vi o meu rosto, Chamei de mau gosto o que vi, De mau gosto, mau gosto É que Narciso acha feio o que não é espelho. [. . .] E foste um difícil começo Afasto o que não conheço E quem vem de outro sonho feliz de cidade Aprende depressa a chamar-te de realidade. Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas Da força da grana que ergue e destrói coisas belas Da feia fumaça que sobe apagando as estrelas Eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços. [. . .] Alguma coisa acontece no meu coração Que só quando cruzo a Ipiranga e a Avenida São João. (Sampa, Caetano Veloso)Embora a motivação inicial que me trouxe até o ambulatório pe-riférico fosse de natureza mais impulsiva, emocional, a busca pelatroca calorosa e gratificante experimentada pelos profissionais desaúde quando assistem às comunidades carentes, mais tarde, des-pertou-se o sentido de ação política envolvido nessa minha atua-ção profissional dentro de uma nova estratégia de saúde pública 52
que se expandia no Brasil. A crítica veio bem depois do começodo caminho, mas veio a tempo. Como o currículo da UFMG éfortemente voltado para a formação do médico generalista, nãoencontrei dificuldades em assumir a vaga disponível. Na unidadede saúde Vila Esportiva, onde comecei, eu trabalhava como clínicageral de adultos, no modelo convencional: atendendo às consultasmarcadas na portaria da unidade. Ali eu fui surpreendida pelapluralidade de situações novas, pela grande heterogeneidade dapopulação, pela surpreendente diversidade, pelas múltiplas e dife-rentes necessidades de cada um. Os usuários eram, na maioria,operários, camelôs, encanadores, pedreiros, marceneiros, motoristas,domésticas, diaristas: empregados e desempregados. Havia aindaos jovens e os idosos, geralmente excluídos do mercado de trabalho.Havia os que moravam em casas de dois pavimentos e tinhamcarro e os que não tinham casa, morando em barracos de lona,num acampamento provisório para desabrigados das chuvas, loca-lizado em frente ao posto de saúde. Havia gente vinda da roça(região rural) e gente vinda de outras cidades, até de outras capitais.Gente moderna e gente antiga. Enfim, gente de todo jeito. Osesquemas que eu havia aprendido nos ambulatórios da universida-de não abraçavam aquele mosaico humano. Eram limitados demais.A vida, ali na periferia, era muito mais rica e vinha até mim semfiltros, sem etapas de seleção. Isto era muito diferente da minhaexperiência anterior, inserida nos ambulatórios de grandes institui-ções. Ao deparar com os limites da medicina que eu tinha a oferecerdiante dessa vida tão exuberante e intensa, tão diferente da minhaprópria vida — de classe média, urbana, universitária, médica,etc. — senti uma imensa necessidade de adentrar aquele mundo,de conhecê-lo mais profundamente. Foi aí que comecei a ouvircom muito interesse as diferentes estórias. No início eu ouvia casosmédicos. Com o passar do tempo, o ouvido foi-se apurando e eucomecei a ouvir também os casos de vida, para além das anamneses. Em 1997, quando a primeira equipe de Saúde da Famíliaem Vespasiano foi montada, fui convidada a integrá-la na condição 53
de médica de família. Embora parecesse algo novo, na verdade ha-via uma semelhança com o trabalho que eu já havia iniciado demaneira independente, na unidade de saúde anterior, principal-mente no que se refere às visitas a algumas famílias locais emsituação crítica. Mas as atividades previstas e os desafios específi-cos desse modelo eram vários outros: cuidar da saúde de mil fa-mílias no precário bairro Nova Pampulha — quase todas em si-tuação crítica — implementar ações educativas, de prevenção epromoção para todas as faixas etárias, montar grupos operativospara doenças crônicas, tais como Diabetes e Hipertensão Arterial,trabalhar em uma equipe com diferentes níveis profissionais, traba-lhar com os indicadores do Ministério da Saúde e, por fim, con-viver mais profundamente com a questões da população. Entretodos os desafios, este último era o que mais me estimulava. Àmedida que eu penetrava mais e mais na dura realidade do bairrocom aspecto de favela, subindo suas ladeiras esburacadas, empoei-radas e sem calçamento, a bordo de uma Kombi, acompanhadapelas primeiras agentes comunitárias (todas nós, bastante inexpe-rientes), mais eu passava a admirar a força daquelas pessoas, comsuas inúmeras estratégias de sobrevivência e busca pela fruição davida. Eu escalava com dificuldade os becos sinuosos e imaginavacomo eles conseguiam transportar latas de água nos ombros, vá-rias vezes ao dia, subindo e descendo agilmente. O encantamento por aquele mundo e suas pessoas (a favela, aperiferia) foi crescendo gradativamente. A estranheza inicial foisendo substituída por uma grande vontade de entender como éque a vida acontecia ali. Eu não queria entender apenas as doen-ças, seus mecanismos e possibilidades de tratamento. Tambémnão era mais suficiente entender o SUS e seus caminhos de cons-trução. Eu queria entender aquele contexto novo como um todo:a vida na favela, a vida das pessoas do lugar. Eu queria decifraraquele organismo vivo em permanente movimento a partir dedentro, do seu miolo. Mais uma vez, a medicina que eu traziapronta tinha poucas respostas para tantas perguntas. Minhas ferra- 54
mentas pareciam muito pobres diante da diversidade à minhafrente. Caminhar pelo bairro observando a rotina, os hábitos lo-cais, os atores sociais; conviver com as pessoas na sua jornada diária,entrando na intimidade de suas casas (exercício que é facilmenteobtido por um profissional de saúde, especialmente médicos, poissão sempre muito bem-vindos nessas situações); ouvir o que ha-via para ser contado. Tudo isso tornou-se a minha nova ferramen-ta nessa busca por conhecer e, também, um alimento para meucoração. Eu me nutria com as ricas imagens, belas ou não, trazidasà tona: “Maria, que casou com Pedro, que teve nove filhos, umdeles casado com a menina de Sinhá, que tem três crianças, umaque morreu sufocada na cama deles à noite”, etc. Enquanto ouvia,eu montava um quebra-cabeças internamente. Cada história eraúnica e pessoal, mas também era representativa, ilustrativa de umuniverso de outras histórias semelhantes e abria o leque para acompreensão de todo um grupo familiar ou redondeza. O preen-chimento dos cadastros dos moradores era uma tarefa destinadaàs agentes comunitárias e elas sempre se admiravam como é queeu sabia que Joana era irmã de Clemência e tia de Rosiane, vizi-nha de Neuza, que tem um filho surdo. Eu o sabia através demeu “método” de conhecer a população da área: conversando na-turalmente com as pessoas, uma prosa sem compromisso. Um outro começo para este meu caminho na medicina co-munitária poderia remontar à minha infância, ao convívio commeus avós paternos, que me inspiraram em muitos aspectos daminha vida. A minha avó Iracema — também conhecida comomestra Iracema pelos seus conterrâneos — era professora primá-ria, educadora e líder comunitária nata, na cidade de Rubim, nonordeste de Minas. Ficaram impressas para sempre as lembrançasdo seu cuidado e carinho com todos os que batiam à sua porta diae noite, em especial os menos favorecidos, os quais vestia, alimen-tava, orientava, ouvia com dedicação e até medicava, no caso demoléstias corriqueiras e ferimentos simples, perfazendo um ca-minho de vivência profunda dos ensinamentos do cristianismo. 55
Por diversas vezes, auxiliou no trabalho de parto das mulheres po-bres da beira do rio, muitas delas retirantes da seca do vale do Je-quitinhonha. Por causa desse ofício de parteira, dizem, é que nuncatinha lençóis sobrando em seus armários. Benedito, meu avô,embora sentisse um pouco de ciúmes da dedicação social de suaCema, a apoiava e auxiliava em sua incansável tarefa. Ele próprioassumira um grande encargo: regularmente lavava, vestia e barbeavaos “doidos” da cidade. Era, por natureza, um contador de históriase grande sábio. Comprazia-se em ouvir os casos contados no balcãoda sua loja — a Casa Mineira — ou na janela da sua casa. Ao fi-nal da vida, os dois fizeram votos de pobreza, decidindo-se a nãoacumularem bens materiais. Queriam acumular apenas aquilo quelevariam consigo para sempre. Com eles aprendemos a amar e acuidar das pessoas que habitualmente são desprezadas na vida social. O contexto: Vespasiano, o bairro Célvia e seu PSFNesses quatro anos em que venho trabalhando como médica co-munitária em Vespasiano, ouvi muitas histórias marcantes. Noentanto, só mais recentemente passei a registrar esses “casos”, es-crevendo as crônicas, gravando conversas, fotografando. Eu des-cobri que a nossa memória pode ser muito traiçoeira, fazendoque certas preciosidades dessa arqueologia humana viva fiquemperdidas para sempre. As histórias que relato aqui aconteceramno ambiente do “PSF Célvia”. Esse é o nosso contexto. Vespasiano é uma cidade jovem, aproximadamente cinquentaanos de fundação, situada a trinta quilômetros de Belo Horizon-te, capital do estado de Minas Gerais, e tem, aproximadamente,sessenta mil habitantes. Sua economia gira, principalmente, emtorno das indústrias de cimento, metalurgia, cosméticos e mate-riais de limpeza. O nascimento do parque industrial foi o grandemotivador do desenvolvimento da cidade. Apesar da proximidadecom Belo Horizonte, é uma cidade com identidade própria, de 56
que fazem parte as famílias fundadoras, os fazendeiros da região,o povo migrado da região rural próxima, os primeiros estabeleci-mentos comerciais, o formato urbano inicial (atualmente, o cen-tro da cidade), as tradições culturais e religiosas, tais como o “Boida Manta” e a festa da padroeira, Nossa Senhora de Lurdes. Todaa região urbana, centro e periferia, é bem servida por escolas epostos de saúde públicos. O processo de municipalização do SUStem-se desenvolvido de maneira contínua e sólida. Além das po-liclínicas, dos postos de saúde, das nove equipes de PSF e de umpronto-atendimento municipal, a cidade conta com um hospitalmunicipal administrado pela iniciativa privada, várias clínicas deMedicina privada, laboratórios de patologia clínica, um grandenúmero de estabelecimentos comerciais e serviços. Mais recente-mente, tem apresentado um crescimento desproporcional em suaregião periférica, constituído pela favelização crescente ao longodas margens da estrada que a liga a Belo Horizonte, a MG-10. O bairro Célvia é uma das regiões mais antigas da cidade etem sua formação coincidindo com o início da urbanização. Estálocalizado próximo ao centro do município, e muitos de seus ha-bitantes migraram da região rural próxima, da Serra do Cipó e deJaboticatubas. O bairro, com aproximadamente doze mil habi-tantes, em sua maior parte é servido por asfalto, luz, água, esgoto,transporte coletivo, coleta de lixo regular; é composto, no geral,por moradias modestas, mas bem estruturadas. Há um grandenúmero de estabelecimentos comerciais, várias igrejas, duas esco-las públicas, de ensino fundamental e médio, uma escola técnicae diversas associações civis. De excepcional, possui uma região depobreza extrema, conhecida como a “favelinha do Bodé”, ondehabitam cerca de quinhentas famílias. Uma favela com proble-mas idênticos aos das favelas de grandes áreas urbanas. O bairro,excluindo sua favela, tem aspecto semelhante às demais periferiasdas cidades da região metropolitana de Belo Horizonte. A unidade do bairro Célvia foi inaugurada em outubro de1998, sendo a quinta a ser montada em Vespasiano. Podemos 57
dizer que, na época da montagem do PSF Célvia, já havia umamaturidade no trabalho do grupo à frente da Secretaria Municipalde Saúde e, baseando-se em erros e acertos prévios, foi possívelorganizar um serviço bastante estruturado e operativo. O PSFnão era algo completamente novo. Havia também a oportunidadede capacitação para todos os níveis profissionais envolvidos. Para-lelamente, ocorria uma grande reestruturação do SUS municipal,que permitiu a distribuição regular de uma considerável variedadede medicamentos, materiais e insumos, ampliação do sistema dereferência e da oferta de métodos diagnósticos. Em todo esse pro-cesso, é marcante a limitada participação da população nas deci-sões da Secretaria Municipal, e isso se deve à longa tradição depassividade e relação paternalista com os órgãos públicos. Uma pequena casa para sediar o PSF foi alugada no centroda área a ser atendida, a poucos metros de um salão comunitário,que logo passou a ser utilizado para reuniões de grupos, amplian-do nossa área física. A casa está muito próxima também do postode saúde convencional, presente na região há muitos anos. O tra-balho deveria ser integrado à rede de saúde pública já existente,como nas outras unidades. O PSF passou a cobrir uma área deaproximadamente mil e duzentas famílias, tendo como foco deatuação, as famílias da favela e das proximidades. A instalação doprograma na casinha permitiu uma integração muito positiva eprofunda com a comunidade atendida, que tinha aquela comosendo “a sua própria casa”. A atmosfera de lar é bem marcantenessa unidade. A distribuição dos cômodos da casa veio a favore-cer a convivência integrada de ambientes e áreas de trabalho dis-tintas, unindo naturalmente os espaços dos saberes científico, téc-nico, popular e doméstico: varanda, sala de recepção, sala das agentescomunitárias e mapas de situação geográfica e epidemiológica,pré-consulta e espera, sala de enfermagem, sala de curativos, salade observação e medicações parenterais, sala de vacinas, consultó-rio médico. Além desses espaços, a casa oferece um banheiro, umvasto quintal, e uma simpática cozinha. 58
Também o processo de seleção dos profissionais para PSF jáhavia sido aprimorado em 1998, chegando-se a um critério do“perfil” ideal das pessoas com habilidades para trabalhar com saú-de comunitária. Assim, houve uma confluência de recursos hu-manos e materiais, o que nos levou muitas vezes a chamar aquelaunidade de “PSF cinco estrelas”. Na sala de mapas e situaçãoepidemiológica é possível acompanhar o trabalho com indicado-res, tais como o Siab (Sistema de Informação da Atenção Básica— obrigatório pelo Ministério da Saúde), Takeda, mortalidadepor causas, diarreias e doenças de notificação obrigatória, especial-mente Tuberculose (TBC) e Hanseníase. Esse recurso permiteque cada unidade tenha uma visão global do diagnóstico de saúdedo município como um todo, mas especialmente da sua área, eassim possa planejar as estratégias de intervenção local. A equipe central é composta por seis agentes comunitáriasde saúde — cada uma delas responsável por uma microárea comduzentas famílias — duas auxiliares de enfermagem, uma enfer-meira, uma médica, dois funcionários dos serviços gerais e umarecepcionista. Duas vezes por semana, contamos com o apoio deum carro oficial (uma Kombi) com motorista. A minha experiênciana primeira equipe de PSF em Vespasiano possibilitou a assimi-lação imediata das tarefas “técnicas” implicadas no programa e odesenvolvimento de um cronograma que possibilitasse a realiza-ção de todas as atividades previstas para o médico no programa:puericultura, pré-natal, consultas regulares em medicina geral deadultos e crianças, atendimento das urgências, tratamento de TBCe Hanseníase, visitas domiciliares, acompanhamento de curativos,acompanhamento de hipertensos e diabéticos, atendimento deidosos, etc. Essa experiência possibilitou-me ainda amadureceruma forma de trabalho em equipe que consiste, basicamente, emtentar trabalhar “em círculo”, buscando uma atuação conjuntapara os problemas a serem abordados: cada profissional com o seusaber. E essa forma de trabalho, eu ampliei, na medida do possí-vel, para os trabalhos em grupo, envolvendo os usuários, tais como 59
os grupos de cuidados com a pressão arterial e os diabéticos. Tor-naram-se instrumentos essenciais nesta busca por uma relaçãomais igualitária no espaço de trabalho e com a população: o res-peito intrínseco pela pessoa do outro — seja ele trabalhador dasaúde ou usuário, o saber ouvir e a flexibilidade para trabalhar emconjunto, abrindo mão de um resultado predeterminado perfec-cionista, para alcançar algo que reflita a participação de todos. Nessa equipe, vim a conviver com seis das melhores agentesde saúde do mundo! Como gosto de dizer. Valéria, Fátima Geral-da, Samira, Sandra, Anaílde e Claudineia, todas elas naturais deVespasiano. Nasceram em famílias humildes e esforçaram-se muitopara estudar e alcançar uma vida melhor. Dedicadas, inteligentes,sábias e altruístas, elas adotaram uma legião de crianças, mulhe-res, idosos, loucos, bêbados, doentes, favelados e discriminados.Tomaram suas dores e suas causas como as de seus próprios fi-lhos, e venceram muitas vezes. Ignoraram os inúmeros limites edificuldades existentes e puseram-se a trabalhar pela consolida-ção das ações do PSF e pela saúde dos seus “protegidos” com muitacoragem e sem vantagens pessoais. Elas recebem um salário me-nor, R$ 180,00 ao mês, mas estão lá diariamente, sempre felizes ebem-dispostas, faça sol ou faça chuva. Ao time de agentes somaram-se a simpatia e gentileza daIlza, na recepção; a competência e habilidade da Simone, nossaenfermeira; a excelente formação profissional da Fátima e daLionete, auxiliares de enfermagem; o compromisso e dedicaçãoda Bete e “seu” Zé Maria, responsáveis pelos serviços gerais. Betee “seu Zé Maria” também cozinham para nós e acabaram cons-truindo duas grandes hortas nos fundos da casa do PSF e doantigo posto de saúde. A intenção era dar o mote para participa-ção popular, tentando chegar a uma horta comunitária. Mas esteainda é um sonho da equipe. Como em muitas outras experiências de PSF, não deixamosde vivenciar inúmeros conflitos e atritos. Eles aconteceram noâmbito da equipe e também, por diversas vezes, no convívio com 60
a população. Cada membro vivenciou individualmente suas pró-prias crises, embora apenas alguns as externassem. O contato muitofrequente e intenso dos membros entre si e de todos com a popu-lação, a heterogeneidade das categorias profissionais e a grandepressão por produzir são fatores que desencadeiam os atritos einsatisfações frequentes. Mas no caso do PSF Célvia, viemos adescobrir, no dia a dia de trabalho, uma grande afinidade de valo-res entre os membros da equipe central. Essa afinidade existiaprincipalmente na postura gentil e respeitosa diante das pessoas,na disposição incansável para o trabalho, na busca pelo bem co-mum e na grande criatividade no desenvolvimento das tarefas.Eu quase poderia dizer de uma ética comum, a despeito de todasas diferenças existentes. Essa postura, ou ética comum, possibili-tou a superação dos conflitos e uma vivência do cotidiano comamizade, alegria e compartilhamento, independente do grau deinstrução ou do poder aquisitivo. Embora a equipe tenha sofridoalgumas substituições iniciais, depois caminhou de maneira maisestável, vindo a estabilizar-se em torno deste grupo acima. Em torno a nós, o mosaico vivo: o bairro Célvia, com seus habitantes Santa Maria passou por aqui, Seu cavalinho comendo capim...Pic. . . pac. . . pic. . . pac. . . pic. . . O som do verso cantado noritmo da enxada que bate no chão entra pela janela e invade meuconsultório na manhã quente de janeiro. Junto com ele, vem ocheiro da fumaça do fogão a lenha da nossa vizinha dona Carmelitae o som metálico da fábrica de móveis tubulares no quarteirão debaixo. O rádio de outra vizinha toca alto o sucesso Morango doNordeste, e ela faz coro com o cantor: 61
Estava tão sozinho quando ela apareceu [. . .] Tudo estremeceu [. . .] Meus amigos dizem que eu sou demais, Mas é somente ela que me satisfaz [. . .] Aaaaaaah, é o amooooooooor, Aaaaaaaaaah, é o amooooor. A janela dá para a horta no fundo da casa. Como o matocresceu muito com a estação das chuvas e o Zé Maria sozinhonão conseguiria fazer o serviço, foram chamados homens do ser-viço de capina de ruas, servidores da prefeitura, para fazer a lim-peza. São onze horas da manhã e os sons de fora vêm a mimem fragmentos, enquanto avalio os resultados de um hemogra-ma. À minha frente, a dona do mais normal dos exames pare-ce decepcionada: sente um cansaço, um desânimo, uma angústiapor dentro. Algo que só pode estar no sangue, em sua opinião. Aporta do consultório abre-se vezes seguidas para diferentes de-mandas e os sons da sala de espera misturam-se aos de fora: ummurmurinho de conversas sobre cotidiano e os motivos do por-quê cada um está ali, além do choro das crianças. Lá fora, o traba-lho continua: Santa Maria passou por aqui, Seu cavalinho comendo capim. . . . . . isso é marido que num tá dando mais nada em casa. . . Respeita, sô! Uma enxadada na cabeça dói, que só ela! Êh, Jão. . . Quem mais fala é quem menos faz! Vai ver quenem tá dando conta da (mulher) dele, fica dizendo que tem maisde duas. Mas se comê catuaba, arresorve rapidinho, fica novo. . . Êh, gente, óia o servição que tem pra fazer e essa conversafiada d’ocês! 62
Santa Maria passou por aqui, Seu cavalinho comendo capim. . . Pic. . . pac. . . pic. . . pac. . . pic. . . As enxadas batem ochão quente, Dona Carmelita frita a linguiça, a fábrica para parao almoço, a música mudou e eu medito sobre o cansaço e a angús-tia que o hemograma não confirma. Luciano, um artistaLuciano, o filho de Amparo, tem dezoito anos e “não deu para aescola” — expressão que popularmente é dita referindo-se a criançascom alguma deficiência intelectual —. É alegre, comunicativo ecomparece mensalmente com sua mãe ao “grupo da pressão”, comoacompanhante. “Não deu para escola”, mas sabe fazer de tudo oresto. Está cadastrado no nosso serviço na pasta que recebe o no-bre título, o rótulo, de DME (Deficiências mentais). Sigla quediscrimina normais de anormais. Mas Luciano cozinha, desenhae canta. Ele canta alegre como um passarinho e adora louvar oSenhor. Depois do Senhor Deus, é ao Cruzeiro (time de futebolmineiro) que ele ama mais. E depois, ama sua mãe, seu pai, seuirmão e a Valéria, sua agente de saúde. Luciano entrou, recente-mente, junto com sua mãe, para uma igreja pentecostal. A pastoralhes garantiu que não havia proibição, por eles serem católicosapostólicos, batizados e devotos de Nossa Senhora da Conceição.O importante é louvar ao Senhor. Levar uma vida direita. Fazer obem. A igreja tem um grupo de jovens que se reúne aos fins de se-mana para jogar futebol. Luciano é capitão do time. Capitão etambém regente do coral da sua nova igreja. Sua mãe nos contaque aos domingos ele se ajoelha no chão com fervor e ora comtoda a sua fé, com toda a força de suas palavras. Em sua oração elepede por nós,seus amigos do posto. Especialmente Valéria.E Lucianocanta alegre e extremamente afinado para nós, o hino evangélico: 63
Quando fecho os olhos, Sinto lágrima rolar, Quando o Espírito Santo Vem me iluminar. Quando começo a orar, O fogo vem me queimar É fogo para todo lado, Sem ter hora de acabar. É fogo santo, é fogo do altar É fogo puro que está neste lugar. Quando eu fecho os olhos, Sinto lágrima rolar. . . É fogo para todo lado, Sem ter hora de acabar! ALELUIA!!! ALELUIA!!!! ALELUIA!!! Eu gravo essa música e algumas outras no gravador. Ao fi-nal, ele ouve sua própria voz e me diz: – Aí está, dotora Iracema! Em casa a senhora fica ouvindo,para a senhora se lembrar de mim. E sábado vou fazer uma can-jica pró cês! Vem lá em casa, viu, gente. ALELUIA!!! E conto a vocês que a canjica do Luciano e do Xumbica, seupai e marido de Amparo, é das mais gostosas que já comi. Fomoslá algumas vezes, aos sábados pela manhã, em visita informal. OXumbica é daquelas pessoas com que se pode conversar por ho-ras, sem se cansar.Teve uma vida muito rica de experiências. Quan-do era moço, já foi palhaço de circo, jogador de futebol e atéacompanhou manada de cigano. Já morreu uma vez, quando pu-lou de uma ponte para nadar no rio. Tinha então doze anos. Nomeio do velório, ressuscitou. Fez a mãe, os irmãos e demais pre-sentes saírem correndo, apavorados com a assombração. Não fezde brincadeira, não. Morreu de verdade mesmo e depois ressusci-tou. Sabe fazer benzeção de todo jeito: sarar chiado, fazer descer 64
a “misturação” (menstruação), arrumar marido. Ensinou para astrês solteiras do grupo — eu, Fátima Geralda e Claudineia umaboa simpatia para acabar com esse mal, a solteirice: ferver, na água,rosa branca e vermelha e tomar banho por três sextas-feiras segui-das. E não secar com toalha depois. Se secar, acaba o poder. Minha margarida querida— “Tchau, tchau, pequetita, tchau, tchau! Cuida bem da mamãe pramim. Tchau, tchau, pequetita, tchau, tchau. . .” Esperança, minha margarida querida, chega à unidade. Vemalegre e brejeira, cantando, sorrindo e saudando a todos. Nas mãos,uma primavera de flores que colheu nos jardins do caminho, des-cendo o morro. Traz-me ainda ameixas silvestres — colhidas noseu quintal, logo antes de sair e vários recortes de jornais. — Olha aqui, tia, tudo pra você! Ela me abraça forte, cheia de afeto e entusiasmo. — Tia! Mas que blusa bonita ocê tá usando hoje! Ô tia,quando eu ganhar dinheiro, vou lá em Belo Horizonte compraruma blusa bem bonita pró cê, florida, de butão assim, ó. . . Vimpassar o dia com ocês hoje, o Antônio já foi trabalhar e eu tavasozinha e então eu vim. O doido do menino da dona Maria tájogando m. . . (excrementos) lá em casa. Eu num tô aguentandomais esse povo! Vou sentar aqui, pode, tia? Vou ajudar ocês. Tchau,tchau, pequetita, tchau, tchau. . . Esperança canta e roda pela sala, alegre e pura em seu vesti-do estampado. Parece uma menina de nove anos em sua alegria eespontaneidade, mas na verdade tem quase cinquenta anos e éportadora de problemas mentais: esquizofrenia. Tem um únicofilho, de vinte e cinco anos, com quem mora. — Esperança, que bom que você está aqui! Estou feliz emvê-la. Olhe, agora eu estou atendendo essas crianças. Você sentaaqui e me aguarda. 65
— Sabe, tia, minha barriga tá crescendo, tá grande. Lá na-quele hospital que me internaram da última vez, um enfermeiroveio mexer comigo. Eu não queria, mas não teve jeito. A senhoraacha que tô esperando neném? Esperança nos cativou desde o primeiro momento. Virouuma espécie de filha adotiva de todos nós, mais especialmente daagente Anaílde. Sempre nos surpreendeu com seus comentáriosperspicazes e engraçados. Roubou-nos várias horas de preocupa-ção: seu filho trabalha e estuda, numa jornada extremamentepuxada, e ela passa o dia sozinha em um barraco muito modesto.Nossa preocupação principal era o uso correto da medicaçãoneuroléptica e também o receio de acidentes com o gás de cozinha,etc., pois tinha de se cuidar sozinha. Contava com pouca ajuda esimpatia dos vizinhos. Tínhamos medo de que lhe acontecessealguma coisa. Quando sumia por muito tempo, Anaílde ia atrás.Um dia, descobriu-a completamente desidratada. Estava há diassem comer, com diarreia. Foi levada à unidade de saúde, hidratadae medicada diariamente, tipo “clínica-dia”, até recuperar-se. Semprefoi muito difícil saber se usava ou não a medicação corretamente.Um dia, veio com essa história de que podia estar grávida. . . Fi-camos divididos entre a pouca probabilidade e a real possibilida-de. Fosse ou não fantasia, tinha de ser investigado. Para alívio detodos, os resultados vieram negativos. Vigilância redobrada. Há algumas semanas, fiquei muito triste. Esperança “des-compensou”. Ia diariamente à unidade muito agitada. Cantandoalto, falando muito, com várias sacolas de roupas, que trocava ve-zes seguidas.Tomava banho, horas cantando no banheiro. Os outrosusuários olhavam-na consternados. Tentamos, por alguns dias,sedação na unidade, em ritmo ambulatorial, sob orientação dopsiquiatra. Não adiantou. — Ai, ai, tia, não me fura mais, não. A senhora já me furouquatro vezes hoje. . . Eu vou ficar quetinha. . . Pede pra esse pes-soal aí falar mais baixo que aqui não é feira, não! Aqui é lugar derepouso! Eu quero comer! Pede pra Anaílde me trazer morango? 66
O pedido surrealista de morango, uma fruta rara e cara poraqui, fez-me rir. Ela virou-se de bruços, resignada, para recebermais um sedativo. Até que, no quarto dia, Antônio nos procuroudesesperado, chorando. Desabafou: — Olha, desse jeito, eu quero morrer! Uma vida dessas, nãoquero viver! Eu tenho de trabalhar, emprego tá difícil. Lá na fir-ma, tão mandando embora por qualquer coisa. Essa semana eufalhei todo dia. O encarregado já não quer nem saber. Eu estudoaté tarde e chego em casa e ela não me deixa dormir. Eu precisodormir! Ela fica falando direto em meu ouvido, andando pelacasa. Os remédios da senhora acabam o efeito à noite. Parece queo corpo já acostumou com eles. Às vezes, sai pra rua no meio danoite e vai caçar bar, movimento de gente. E eu tenho que ir atrás.Ah, não, não dá! Assim não dá para viver! Eu me esforço paracomprar tudo que ela gosta, as frutas, o iogurte. Só coisa cara.Não deixo faltar nada. Mas não tem jeito. As pessoas falam praeu casar e ter filhos. Mas como? Com uma cruz dessas? Só mor-rendo que dá jeito! Eu quero é morrer. Eu tô doente há dias enem posso me consultar, só trazendo ela. — Você está doente? — É, com sinusite. Uma dor forte na testa e catarro nonariz. Tô tossindo de noite também. — Bem, Antônio, eu não gosto mesmo de internação psi-quiátrica. Faço o possível para contornar sem a internação, masagora a gente tem de admitir que não está dando. Posso pedir ainternação da sua mãe? [. . .] E com relação a você, a gente temde tratar logo esta sua sinusite e você deve voltar aqui para con-versarmos com calma sobre os outros problemas. Nós todos aquiadmiramos muito você, com todo o seu esforço. A gente o com-preende. Aqui está o pedido de raio X de urgência, e os medica-mentos para começar. Acho que você está precisando dormir umpouco, alimentar-se. . . Agora que sua mãe vai descansar na clíni-ca uns dias, dá para você recuperar-se. Vejo você quando o raio Xestiver pronto. Boa sorte e Coragem! 67
Há alguns dias, Esperança recebeu alta e voltou para casa;nossa margarida não era mais a mesma, no entanto. Choques,altas doses de medicamentos, isolamento. De alma menina pas-sou a parecer-se com uma velha parkinsoniana. Não trazia maisflores. Vinha raramente ao posto. Dormia várias horas por dia.Anaílde ficou muito triste e me disse: — Ah, doutora, eu preferia ela do outro jeito! E eu também, pensei. O frio de AmsterdamMárcia tem dezessete anos e uma aparência muito graciosa: éalta, pele morena, cabelos longos, sedosos e cacheados. O sorrisoenfeita a face de pêssego. Destacar-se-ia em qualquer ambiente,pela sua beleza. Mais ainda ali. Veste-se com simplicidade. Ex-cessiva simplicidade: quase nada é tampado pela minissaia eminiblusa. Quer dizer alguma coisa importante, mas não diz. Olhaseguidas vezes para a porta do consultório e enrola dizendo sinto-mas sem sentido. Eu me levanto e tranco a porta. Então ela meconta que está com sangramento vaginal há seis meses, desde quechegou de Amsterdam. Para não assustá-la e interromper a difícil confissão, ouvi apalavra Amsterdam como se ouvisse Betim, Caetanópolis, Con-ceição do Mato Dentro. Ela continuou dizendo uma história da-quelas que se lê nos jornais todos os dias e não se acredita. Márcia,que é a sexta dos nove filhos de uma família muito pobre, conhe-ceu, um dia, um homem que lhe prometeu tudo: casa, joias, roupas,carro, empregados, filhos e viagens. Começariam viajando para aHolanda, onde ele tinha negócios. Lá se casariam, na igreja e nopapel. Despediu-se das amigas sentindo-se princesa encontrada,ex-gata borralheira. Mas no frio e úmido inverno holandês, o queMárcia encontrou foi o descaminho. Coagida a se prostituir pelopríncipe que virou cafetão, acabou engravidando de um cliente. 68
Para tornar a coisa mais complicada, ele era usuário de drogas. Aca-baram presos. Foi obrigada a abortar. Abortada e deportada. Ecomo que para não se esquecer da árdua experiência, restara o san-gramento. Festa de AniversárioMaria é mãe de Lídia e é juntada com Sinval, um véio que achoudepois que enviuvou do pai de Lídia. Maria porta uma próteseocular bastante evidente, suja, torta e mal colocada à esquerda,tampando muito vagamente o estrago causado em uma briga comLídia, que lhe feriu o olho com uma faca. Mas isso aconteceu hámuito tempo. Hoje, já fizeram as pazes. Maria até ajuda a filha acuidar das crianças. Lídia frequenta o serviço devido à desnutri-ção de suas quatro crianças e não aceitou participar do planeja-mento familiar, pois o marido é pregador de uma igreja que nãopermite evitar filhos. Tem de ter quantos Deus mandar. Ela podesair à rua com as crianças para pedir esmola — coisa que fazregularmente — que isso não é pecado. Lídia, seu marido, suascrianças, o véio de Maria e Maria moram em uma vila na regiãoalta do bairro. Na vila moram também Aparecida, Manoela, Joa-quim, Célia, Carlos e seus vários filhos — todos parentes, de umamaneira ou de outra. Vila é uma palavra muito usada na região periférica paradesignar pequenas aglomerações que ocupam terrenos menores,geralmente lotes residenciais. Essa nossa pequena vila está ladeadapor residências melhores, cujos proprietários ignoram sua existênciae a de seus moradores. As casas da vila são de papelão, lata, madei-ra de caixotes, lona, tecidos, plásticos, carpetes e um pouco de al-venaria e telhas: materiais ganhados, achados, catados, recicladose, às vezes, até comprados, quando é possível fazer um bico (ex-pressão que define trabalho temporário) ou vender alguns litrosde desinfetante de fabricação doméstica. As casas formam ummeio círculo, com um pátio de terra no centro, que invariavelmente 69
está ocupado pelas crianças, pelos cachorros e por varais de roupaque cruzam o ar: é o playground e a área de serviços do humildecondomínio. Um portão de madeira, instalado em uma cerca muitobamba, dá a noção de limite com a rua — bem ou mal, como sediz. Poderíamos até dizer que a economia de vila gira em torno dafabriqueta clandestina de desinfetantes, cujo saturado aroma depinho confere ao ambiente uma paradoxal atmosfera de frescor enos faz pensar que tudo é azulejo branco, brilhando de limpo,como nas propagandas da TV. A fabriqueta está instalada em ummetro cúbico bastante lodoso e caótico e é comandada por Dioneia,uma senhora corpulenta, de temperamento forte e decidido. A agente comunitária responsável pela vila levou-me até ládiversas vezes. Ela queria que eu visse com meus próprios olhos oestado (de pobreza e sujeira) em que viviam, seus hábitos e costu-mes. Em sua opinião, a pessoa pode ser pobre, mas não precisa serdesleixada, preguiçosa, suja. Ela queria mudar aquela situação: ia àvila semanalmente e tentava orientar as mães a vestir roupas ecalçar sapatos nas crianças, a não as deixar brincar próximas àsfezes de animais, a lavar adequadamente os alimentos antes decomê-los e a lavar as mãos antes e depois de evacuarem e urina-rem. Em resumo: noções básicas de higiene e cuidados pessoais.Cadastrou todos e tentou encaixá-los nas diversas atividades ofere-cidas pelo PSF. Conseguiu apenas que as mães levassem as crian-ças menores de um ano para a puericultura. Por diversas vezes,manifestou sua frustração com os pequenos resultados obtidos.Eu deveria ir lá, em sua opinião, e ensinar para ver se ouvindo-mefalar eles aprendiam. Fizemos muitas visitas, durante as quais euobservava o ambiente, prestava atendimentos domiciliares, medi-cava e, após, conversava com a agente sobre minhas impressões.Em minha opinião, a vila precisava de um trabalho mais profun-do que meras orientações sanitárias e tratamentos focais. Decidimos que faríamos visitas regulares de apoio. Com asvisitas, pretendíamos, aos poucos, construir a confiança e, atravésda confiança, conhecer melhor a vila e seus moradores. Esse era o 70
começo. A partir daí, poderíamos perceber quais seriam os cami-nhos que deveríamos trilhar com eles. Em uma dessas visitas de apoio a Maria e Sinval, encontra-mos a casa de chão batido cheia de pessoas novas. Oito ou novepessoas, além do casal, circulavam naturalmente pela casa. Algu-mas crianças brincavam alegremente, correndo pelo espaço poucoreduzido. Quem eram? Responderam vagamente que era a irmãde Sinval e uns sobrinhos de ambos, com seus respectivos filhos.E o que faziam ali? Ah, vieram apenas passear e acabaram per-noitando. Exceto por isso, era uma manhã como todas as outras,na vila. Se a nós parecia estranho que a humilde casa recebessehóspedes, a eles parecia muito natural. O feijão cozinhava lentosobre um fogão de barro que enfumaçava as paredes da cozinha.Alguns poucos mantimentos estavam guardados na estante, jun-tamente com panelas e utensílios de cozinha, em um canto: ar-roz, café, fubá, feijão, macarrão, açúcar, alguns limões e algumascebolas e batatas. Havia uma ordem em tudo, embora fosse difícilcompreendê-la, embora não fosse a ordem que queríamos ver.Sinval, muito magrinho, grisalho e simplório, sorria tímido paranós: a casa, agora, estava mesmo boa! Tanta gente! Êta coisa boa,sô! Ofereceu o braço, todo satisfeito, para que fosse medida a pres-são arterial, arregaçando a manga da camisa larga, amarrotada epuída. Depois ofereceu café e água, mas ninguém da equipe acei-tou. Aquilo pareceu constrangedor, mas a atenção foi desviadapela conversa longa e queixosa de Serafina, a irmã de Sinval, quequeixava-se de tudo em seu velho corpo. Sentia um conjuntointerminável de dores, em diferentes lugares, de intensidades va-riadas. Havia dor de todo jeito, cada uma surgida em uma situa-ção, que queria detalhar. Sinval aproxima-se novamente. Chega perto e pergunta seera possível aposentar-se. Indago-lhe quantos anos tem, qual asua idade correta. Pensou, pensou e consultou a carteira de iden-tidade, guardada no bolso da camisa. Inseguro, passou-a a mim,para que eu mesma lesse os dados. 71
Sinval, você tem sessenta e sete anos. Você nasceu em 5 dejunho de 1932, correto? Mas. . . Sinval, hoje, são cinco de junho!Hoje é seu aniversário. . . Parabéns! Ele olhou sorridente para mim. Não disse nada. Então euentendi. Estavam todos ali para festejar com Sinval seus anos bemsobrevividos, ainda que nós considerássemos os copos mal lavados. Lena (Bilhete da auxiliar de enfermagem colocado sobre a mesade consulta antes de entrar a paciente.) “Doutora, esta paciente que vai entrar agora está magra as-sim por causa do marido, que faz sexo com ela vinte e quatrohoras por dia, e ela não aguenta mais! A vizinha é quem disse.”Lena entrou, sentou-se com o rosto vazio de expressão e disseapenas que queria umas vitaminas, pois estava fraca. Pergunteicomo estavam as coisas. Não disse nada. “Bem”. E em casa? “Bem”.E esta fraqueza, o que você acha que está faltando? “Muito servi-ço em casa”. Prescrevi um “polivitamínico” e marcamos retorno.Era preciso construir uma possibilidade de continuar a aborda-gem. O medicamento era esse “gancho”. No retorno, Lena mantinha seu silêncio e sua resignação.Fácies cadavérica e triste. Com vinte e cinco anos, parecia tercinquenta. Pediu apenas que queria ser submetida à “perinha”(perineoplastia). Foi examinada pelo ginecologista e encaminha-da à cirurgia. No pós-operatório imediato, a agente comunitária échamada pela vizinha, pois está “sangrando e doendo muito”.Telefonamos para o hospital e marcamos o retorno com o cirur-gião imediatamente. A ajuda da equipe não foi aceita. O marido“posado” na porta diz que está tudo bem e olha para ela largadano fundo do sofá, “não é, bem”? Lena balança a cabeça afirmati-vamente. Há boatos de que ele a forçou a manter relações sexuais 72
no pós-operatório, logo ao voltar para casa. Sandra, a agente desaúde responsável, sente-se indignada. Todos estão penalizados.Fátima apenas comenta: — Dói tanto esta cirurgia! É mesmo um animal, esse ho-mem. O que a gente faz, doutora? — Não faz nada. Mas ficaremos atentas ao dia em que Lena resolver falar. Força para morrerRoberto pede para falar com a médica da unidade. Há muitaspessoas aguardando para serem atendidas, e eu mando perguntarse é urgente, o que é. Então recebo a resposta “é caso de vida oumorte”. Peço para entrar. Ele está aflito, semblante constrito. — Olha, dotora, é sobre o Geraldo; um cumpadre lá doslados de Baldim. . . Ele tá em minha casa, mas à beira da morte.Câncer de esôfago. Já nem come mais. Não tem força nem defazer a cirurgia de alimentação. Coisa triste de se ver. Não aguen-ta nem morrer. Os médicos já disseram que é só esperar a morte.Mais nada a fazer. — E então, Roberto, como eu poderia ajudá-lo? Em quelhe posso ser útil? Sabe, doutora. . . É mais uma coisa bem simples, queriamesmo só fazer uma pergunta. O povo antigo diz que, quandoalguém tá sem força até para morrer, que a gente dá leite de peitoe a pessoa aguenta ir. Eu queria saber sua opinião: se eu der o leitede peito pro Geraldo e ele morrer, a senhora acha que eu tômatando ele? Eu pensei naquele homem esquelético e moribundo, aguar-dando a passagem para o outro lado, arfante. A morte. A últimaexpiração. A diástole final. A imaterialidade. A evaporação. Osque o acompanhavam também viviam o processo. E depois? A 73
morte sempre nos faz parar. E pensando no Geraldo, a turbulên-cia da manhã desapareceu. O conflito do Roberto era tudo, na-quele momento. Eutanásia? Ele aguardava atento, minha rumi-nação. O momento convidava à filosofia. . . — Bem, Roberto, para mim, essa é uma hora muito sagrada— a da morte. Tão importante como o nascimento. . . E eu acre-dito que, assim como ninguém nasce por acaso, também nin-guém vai embora antes da hora. Todos nós chegaremos lá um dia.Eu penso que tudo o que vocês fizerem para apoiá-lo e confortá--lo, será muito valioso. O leite de peito é mesmo muito especial,muito nutritivo. Eu vejo que vocês estão querendo ajudá-lo, enão entendo isto como um crime. Vá em frente, dê o leite depeito e também outros líquidos, se ele tolerar. A hora dele vaichegar naturalmente. Se precisarem, estou por aqui. — Então, estou mais tranquilo. O resto, a gente vai ter deter paciência mesmo. Muito obrigado. Esmeralda e MiúdaEsmeralda vai morrer em breve. O câncer avança implacável. Damama para o abdome, daí para o reto numa feia fístula. Emagrecida,caquexiada, consumida. Mas os olhos vivos e brilhantes estão aten-tos ao mundo. Pode-se ver ali uma clara consciência de tudo,embora o corpo esteja decompondo-se em vida. Ousei as primei-ras palavras: — E aí, como vai? — Ai, minha filha, estou morrendo. Deus está me levandoaos poucos. Deus sabe o que faz! Está em Vespasiano para o tratamento, mas já chegou tarde.A filha, Bila, mora num barraco muito pequeno e precário, nomeio de uma íngreme encosta, num beco escorregadio por esgotoe fezes (humanas, caninas, felinas, e outras piores). É muito difí-cil descer, não temos onde apoiar as mãos carregadas de objetos. 74
Os pés deslizam nos tijolos sinuosos. Lugar perigoso. Marginais.Só com o “sinal livre” deles é que podemos descer. O pequenoportão de madeira remendada está fechado. Um cachorro pesti-lento late atrevido. As crianças estão sentadas no chão com roupasmínimas amarrotadas, sujas e cheirando a urina. Ao redor, suasfezes se misturam às fezes dos cães. Duas mulheres jovens estão acozinhar e tossem por causa de tanta fumaça de um fogão delenha improvisado no chão. A amiga veio morar na casa, com afilha adolescente, Miúda. Não se entende por quê. O banheiro éum caixa de madeira com um cano no alto, o chuveiro. Panos,papelões e plásticos forram as paredes. Comem mingaus suspei-tos. No quarto único para cinco adultos e três crianças, há umacama de casal e um beliche. Esmeralda está deitada na cama decasal, moribunda. Numa pequena estante, os objetos pessoais eroupas de todos. Retratos dos familiares, recortes de revista comfaces de artistas colados nas paredes, pequenos bibelôs, bichos depelúcia fazem a decoração. Limpos e sujos. Tudo no chão, espar-ramado, o que não coube na estante. Em meio à sujeira, brilhamos olhos de Esmeralda e a juventude de sua enfermeira dedicada,a Miúda. Miúda é cândida e suave. Passou a namorar o neto deEsmeralda e tomou-a como avó. Na segunda visita, encontramos o ambiente completamentetransformado. É sempre assim. Nunca ousamos falar que façamisto ou não façam aquilo. Na maioria dos casos, em situações crí-ticas como esta, notamos que nossa visita funciona como apoio eestímulo. Sentiram-se valorizados. Miúda e o namorado muda-ram os móveis de lugar, forraram um grande pano nas paredes,com imagens de bonsais japoneses. Aquela orientalidade repenti-na no grande painel trazia uma harmonia imensa ao ambiente. Aestante estava arrumada e o quintal sem excrementos. Ainda amesma pobreza, mas, ao contar com nosso apoio, sentiram cora-gem e vontade para fazer algo diferente. Queriam partilhar conoscoo que também têm de bom. Ajudamos Esperança a sentar-se nacama. Ela vê uma prancheta em minhas mãos e pergunta se pode 75
escrever. Os cabelos grisalhos arrumados em um coque no alto dacabeça lhe dão um aspecto de nobreza e dignidade. Ela toma acaneta em suas mãos trêmulas e escreve, em grandes letras “Espe-rança Batista”. Comenta algo sobre seu tempo de menina na es-cola. A letra é trêmula, mas muito bonita. Repete “Batista”. Olhapara nós e sorri. Ao seu lado, a dedicada enfermeira nos contasobre a alimentação. As ricas e saborosas sopas que prepara para asua paciente. Está orgulhosa de seu trabalho. Miúda brilha emsua pureza e bondade. Quinze anos. Conta-nos que a menstruaçãoatrasou, acha que está grávida. Olho para o seu ventre sob o vesti-do e uma barriguinha se avoluma. Ela está feliz e sente-se maismadura ainda. Tem seu homem, e agora, um filho desse homem.Os dois jovens começam, finalmente, a ter algo de si mesmos. Umfilho. Ali mesmo, no leito de morte da sogra-avó, começamos oseu pré-natal ao preenchermos os pedidos de exames. Agora faz quatro meses que Esmeralda faleceu. Miúda com-parece regularmente para as consultas de pré-natal. Disse-me queo bebê vai nascer cabeludo, pois tem tido muita queimação noestômago. Ofereci-me para prescrever-lhe um antiácido, mas nãoaceitou. Se tomar, dizem, o bebê nascerá careca. E não precisaremédio, que não incomoda tanto. . . Gil entre crisântemos amarelos e brancosGilson está deitado sereno entre crisântemos amarelos e brancos.Há uma súbita perfeição na combinação das cores das flores quedecoram o corpo no caixão e as cores do barraco: paredes impeca-velmente brancas, portas e janelas amarelas. Luzia está arrumadae maquiada, e, apesar da singeleza, posta-se elegante e responsávelao lado do esposo morto. Está um pouco aérea, sorrindo. Felizque tanta gente veio ao velório. Tudo aconteceu rápido demais.Lá fora, nos becos, gente em pé encostada nos muros, ou agachados,conversando as conversas de sempre dos velórios. No pequeno e 76
único quarto da casa, as crianças pulam sobre a cama. O maisvelho está lá fora ao lado do seu cãozinho, o Titã, que dormedentro do forno de um fogão velho, que serve de casinha. Gil sefoi. O pastor faz sua última preleção, as últimas palavras antes daterra macia. A seguir, o grupo carismático reza e canta. Ecumênico.Nós estamos lá e nos emocionamos. Impossível não se sentir torcidapor dentro. Doída. Gil era mesmo bom. Mas o álcool foi maisforte. Depois veio a hipertensão maligna e, por final, os rins falha-ram. Como fora em vida, tranquilo e silencioso, se vai. Um velhosujo, meio aleijado e malcuidado entra na modesta sala e passa amão pelo rosto do homem no caixão. Sua face se contorce. Suaexpressão é de dor, de pena, de tristeza. Aquela face simbolizatodos nós ali. A rádio capetaBituca ouve vozes. Chama-me no canto e diz que a rádio Capetafica enviando mensagens do mal a toda hora para sua cabeça. Fala--lhe no ouvido. — É verdade, dotora! Uma caixa preta, escondida na casado vizinho, é a antena que recebe as mensagens da rádio Capeta.O mal, dotora. O MAL! Acredita, dotora? Mas Jesus tem meucoração. Quanto mais alto a rádio fala, mais alto eu rezo. Elesquerem me pegar, mas Jesus não deixa. — Eu acredito, Bituca. Já lhe disse que acredito. Eu querosaber o que é que eu vou fazer com essa sua glicemia: 500!!! — A insulina, dotora. É difícil no fim de semana. O postotá fechado. Tem de ir lá em baixo, no centro. Eu manco destaperna (aponta a coxa esquerda, já me contara o caso mais de trintavezes) a senhora sabe, já te contei. Quebrei ela há muuuuuitotempo, oh, faz mais de quinnze anos. Foi. . . (e inicia um outrocaso). Eles botaram parafuso, mas ficou mais curta e agora dói. Asenhora tem de passar os cumprimidos de insulina pra eu tomarno fim de semana, que a mulher não consegue aplicar nemim, 77
não. Viu, dotora, os cumprimidos de insulina resolve, adianta sim.Eu já usei deles, Dr. Juvenal passava. Não sei o que é agora que elatá subindo tanto. Eu num como nada. Nada mesmo. Perguntapra mulher. É um tiquinho só de comida. Eu num tô entenden-do. É coisa do capeta. Eles fica falando no meu ouvido e a glicosesobe. Pois eu num era assim! — Bituca, os comprimidos são fracos quando a glicose tátão alta! Só serve a insulina. Não tem outra maneira de tratar, não.Vamos ter de dar um jeitinho para o fim de semana, temos deaplicar a injeção de insulina. Após um ano de seguimento, tendo-o sempre sob nossosolhos, conseguimos mais vitórias que derrotas. Chegamos a 138(!!!) de glicemia, com recaídas para 200. O quadro de delíriomelhorou com as visitas frequentes à psiquiatria, embora a caixapreta captando mensagens interplanetárias do demônio o acom-panhasse sempre. Estava sempre ali, na sala de pré-consulta, aguar-dando-me. Chegava cedinho em jejum, fazia sua glicemia e to-mava a insulina. Comunicava-me o resultado, diariamente,interpretava as altas e baixas e decidia como seria o seu dia. “Hojeeu vou lá em Lagoa Santa buscar uns papéis, que fulano, etc.”Um dia, por engano, o Bituca pediu esmola à Simone, nossa en-fermeira, que mora em Lagoa Santa. Ao reconhecê-la, descul-pou-se e fugiu envergonhado. Numa segunda–feira, chego ao posto e noto uma tristezano ar. Falta algo. Então me contam que Bituca se foi. Bituca nãoestá mais entre nós. Infarto. De mansinho, na calada da noite. Noalto e no baixo. No alto e no baixo, com sua marcha torta, seucorpo pequenino. Sinto saudades de sua verborragia delirante diá-ria. De sua rádio Capeta. Ficaram para trás Maria, os dois meni-nos e Lúcia. A horta de Bituca secou. A vaquinha vai ser vendidacom o bezerro novo. Ainda tem o pé de urucum carregado, espe-rando coragem para fazer o corante. Lúcia sente muita falta dopai, mas, no universo infantil, encontra suas explicações e vai le-vando alegre a vida. Sobe em árvores, faz capitão de barro para 78
brincar, enfeita sua penteadeira com pequenos objetos e bijute-rias. Fica brava quando o irmão a transforma em secretária, pe-dindo que lhe leve a meia, o sapato. Bituca ainda está todo lá,disperso pelo ambiente, embora tudo esteja murcho, seco. E o seucachorro está com uma feia “peleira”, na qual estão passando óleoqueimado. Adeus, Bituca! Vá em paz. Maria Pequena ri de rachar os bicos “Maria Pequena foi encontrada em casa ontem com vários me-dicamentos e uma garrafa de álcool ao seu lado, colocando sangue pelaboca. Foi levada para o PA (Pronto-Atendimento da cidade) e depoistransferida para o “João XXIII”, de Venda Nova, com o marido e afilha Etilene. Teve alta às 0:00h. Zica, a outra filha diz que nãochegaram em casa até agora. Foi procurar e não achou. Acha que eles seperderam no centro de Belo Horizonte” (Bilhete de uma das agentescomunitárias no início da manhã, sobre minha mesa).Eu conhecia bem Maria Pequena, sua vida precária e sofrida. Doeupor dentro a notícia inicial, embora não me surpreendesse. A ruaSanta Cecília, especialmente o beco “35”, não nos surpreenderiacom suas tragédias, pois se tornaram frequentes. Acostumamo--nos com os acontecimentos ruidosos. Era comum que as mulhe-res fossem beber pinga juntas, à tarde, e largassem as crianças semserem alimentadas e cuidadas. Lixo, sujeira, drogas, produtos deroubo, brigas passionais. Uma pequena vila em “L”, nos fundosda lavanderia e da escola do bairro. É lá que Maria Pequena moracom seu marido e os quatro filhos. Era muito conhecida por to-dos no serviço devido à pressão arterial muito elevada. Levava osmedicamentos para casa e não tomava, para não misturar com apinga. Um dia algo muito grave aconteceu. Alcoolismo agudo,crise hipertensiva, AVC. Maria Pequena foi transferida de hospi-tal para hospital e levou muito tempo para que achássemos onde 79
havia sido internada. Foram vários contatos telefônicos. Agoraestava sem fala, sem movimentos nos membros, espástica. Pneu-monias. Prolongamento da internação. Alta, finalmente. A filhaEtilene, de dezenove anos, nos procura imediatamente. Maria Pe-quena chega em casa paraparética, membros inferiores encolhidosjunto ao tronco, rígidos, com escaras sacrais e trocantéricas, demagreza assustadora e com enorme labilidade emocional. Gritavae chorava por qualquer coisa. Chorou muito e se agitou ao nos verchegar, deitada em seu pequeno catre. A situação, olhada comoum todo, ou nos detalhes, era (e é ainda) extremamente dramática.Justo com emprego temporário, salário miserável, sujeito a demissãopor falhas frequentes e alcoolismo. A equipe visita a casa, temero-sa. Na entrada está Zil, o filho de dezessete anos, “chapado”. Énítido que está fumando um cigarro de maconha. Seu vício prefe-rencial é por craque, me informa Etilene. São apenas dez horas damanhã. Ele acumula pilhas de processos por roubo, tráfico e ou-tras coisas mais, segundo nos informa o pai. Diversas internaçõesna Febem, seguidas por fugas. A polícia está sempre por lá captu-rando-o, e ele sempre fugindo e cometendo novos delitos. Vence-mos o medo de encontrá-lo como porteiro e entramos. É umacasa de dois cômodos com apenas três camas para todos. A sujeirae a desorganização da casa são assustadoras. Entre roupas sujas elimpas emboladas por todos os lados, estão medicamentos, copos,alimentos preparados ou ainda em suas embalagens, sapatos, cober-tores, talheres. Uma velha televisão está entre as duas camas noquarto do casal. Sobre ela, material de curativo usado ou novo,entre tubos de pomada e prendedores de cabelo, comprimidos,restos do café da manhã. Contrastando com tudo o resto, na paredeao lado da cama estão coladas declarações de amor pelo dia dasmães. Nós te amamos, mamãe. Sare logo! Maria pequena não podelê-las, mas sente-se aquecida e estimulada ao saber que estão ali. Após este acontecimento, nós passamos a visitar Maria Pe-quena com muita frequência. Etilene, a Tila, de dezesseis anos,assumiu a liderança da casa, o cuidado dos irmãos e foi treinada 80
por nós nos cuidados com acamados, tornando-se uma excelenteenfermeira. As escaras começaram a sarar e, com os carinhos eestímulos dos filhos, Maria Pequena volta aos poucos a balbuciaralgumas palavras. Começou, recentemente, a ser levada para ses-sões de fisioterapia. As agentes de saúde mobilizaram várias pes-soas para contribuírem com alimentos e bens de consumo, atravésda rádio comunitária. E agora Maria Pequena mostra-se alegrequando a visitamos. Outro dia, diz Tila, pediu um real. Balbu-ciou que queria tomar pinga. . . Tila e as outras crianças riem ecomentam “Mãe, nem doente, larga a pinga”. Recentemente elesa levaram na nova cadeira de rodas para nos visitar. Subiram aíngreme ladeira felizes, mimando a mãe. Um luxo de passeio! Enovamente vi Maria Pequena rir de rachar os bicos. Nem a misériaesconderia o brilho daquele sorriso. O terrível ácaroClarinda recebeu uma receita enorme, extremamente bem escri-ta, contendo toda a medicação a ser usada e as medidas ambientaisa serem seguidas. Uma lista meticulosa de tudo o que ela deveriatirar de casa. A sua criança, habitualmente atendida no PSF, ha-via precisado de atendimento no final de semana e o pediatra daurgência o fez. Por acaso, era um profissional especializado emasma, que entrava sempre em conflito com os médicos de PSFpor considerar nossa abordagem muito superficial. Desenhou umácaro no alto da página e circulou-o para Clarinda entender me-lhor o bicho; e disse que aquele era o causador da chieira, terrívelinimigo. No dia seguinte, Clarinda me espera contrariada, na portada unidade. Está extremamente preocupada com sua filhinha edesapontada comigo, porque nunca expliquei a ela que aquelebicho era o culpado; além do mais, não podia tirar de casa tudo oque a outra doutora mandou, afinal, não tem aquelas coisas detapete, cortina, bicho de pelúcia, etc. O sabão em pó também, 81
não tem jeito de trocar. Os gatos e os cães são dos vizinhos eentram e saem do barraco quando querem; não há cerca ou portãosem buracos na favela. A família está entre as famílias de riscoque acompanho. Marido e esposa são alcoólicos e estão desem-pregados há meses. O esposo foi atendido recentemente com sus-peita de hanseníase, após investigação para esclarecer uma neuritedo braço direito. Eles têm três crianças menores de cinco anos emacompanhamento devido à desnutrição de terceiro grau persis-tente. Descobrimos que trocavam o leite, distribuído pelo pro-grama governamental de combate à desnutrição, e a farinhaenriquecida por cachaça e cigarros. Moram numa habitação pre-cária de dois cômodos e puxam a luz de uma vizinha, um vulgo“gato”, numa área das mais perigosas da favela, onde a agente co-munitária recebe o sinal se pode entrar ou não para visitas. . .Clarinda, que já estava em uso de um antidepressivo e um an-siolítico, agora tem dificuldades para dormir. Não consegue pararde pensar no terrível ácaro que lhe infecta a casa e ameaça a saúdedos seus pequenos. . . Para esquecer, é melhor tomar uma dose. A PoetisaMaria das Dores Moura perdeu a mãe, dramaticamente, aos noveanos. Relata que moravam e trabalhavam “na roça” quando a mãecomeçou a sentir-se mal. Sua mãe era solteira quando a teve. Nãopôde casar-se. Os pais do noivo não queriam uma noiva de meiaperna, o aleijão que ela tinha. Expulsa de casa, rumou para a roça,teve Maria e passou a trabalhar “como homem”, em serviço pesa-do. No dia de sua morte, ao começar a sentir-se mal, preparou afilha para a viagem: iriam buscar auxílio na cidade. Já era tardenas ermas chapadas mineiras daqueles idos de quarenta e a noitecaiu escura, espessa e silenciosa sobre elas. Caiu morta sua mãe aoseu lado, de repente. Maria postou-se ali horas a fio, ajoelhada,com o rosto da mãe no seu colo. Pensou que a mãe dormia e 82
vigiou seu sono de morte na fria escuridão. Um cavaleiro passouno pasto ao longe e ela gritou. Veio acudir a menina com a mãemorta em seus braços. Maria chora ao contar e recontar partes desua vida. Depois cresceu, amou, casou-se, teve filhos, que tam-bém se casaram, e agora tem netos. Ficou viúva de um casamentomuito feliz. Chora novamente. A gente também chora. E depoisri, pois ela mesma se encarrega de contar uma passagem alegre doseu livro imaginário de memórias. Ela escreve suas lembranças epoemas em diários, que sonha um dia publicar como livro. Estu-dou muito pouco, três ou quatro anos apenas. Nos encontros,sempre nos emociona com suas palavras tão tocantes. Três dosseus cadernos ficaram comigo meses a fio, a surpreender-me. Se-lecionar “o melhor” de Dores é difícil. Escolhi a primeira poesiasua que li, e uma das que mais gosto até hoje. Onde está o que procuro? A vida é tão curta. Por que estou assim? Não sei o que procuro. Meus anseios são tão grandes Que não sei o que procuro. Procurar o quê? Não sei responder! Procurar a vida A vida daqueles Tirada por fatalidade Ou daqueles que Teriam que partir. Eu procuro a esperança Dos que perderam. Procuro o amor de quem não tem. Procuro a fé, a esperança e a paz Que ficam tão longe, 83
Que não consigo alcançar. Procuro no vento que voa Para longe, no silêncio da noite Uma resposta Para tanto sofrimento E tantas violências. Se Deus plantou o amor, Por que não o cultivamos? (Maria das Dores Moura) Curtas e Belas“Minha idade quase ninguém vai alcançar, que os tempo tão muitodifícil. Enterrei minha dona dia sete de março. Chorei demais.Quase setenta anos juntos: nove filho, vinte neto e cinco bisneto.Era bom demais viver com ela. Era uma amiguinha que eu tinha,carinhosa. Tudo pra ela tava bom. Fiquei muito triste. Isso aí lá iame derrubando. A tal de solidão” (Albertino). O PSF que fazemos e aquele que queremos Uma parte de mim É permanente Outra parte Se sabe de repente. [. . .] Traduzir uma parte Na outra parte Que é uma questão De vida ou morte — Ou será arte? (Trechos do poema Traduzir-se, de Ferreira Gullar) 84
Quando o PSF ainda era muito artesanal e pouco normativo,eu encontrei muito espaço para experiências criativas, como o “pas-seio” informal pela comunidade para conhecer a região e as pes-soas, as cirandas, as reuniões comunitárias, o uso de medicamen-tos naturais e o plantio das ervas medicinais mais utilizadas, emconjunto com a população. Com o crescente desenvolvimento deprotocolos e exigências técnicas para o PSF, essas experiênciasmais soltas perderam espaço para atividades mais convencionais,como o atendimento médico tradicional, na unidade. Tenho as-sistido, especialmente nos últimos dois anos, a uma progressivaorganização das ações desenvolvidas pelo PSF. Essa organizaçãofortalece o programa enquanto ele é difundido pelo país e favore-ce a atuação clínica e epidemiológica em muitos aspectos. Poroutro lado, acarreta considerável burocratização e rigidez dotrabalho, além de uma verticalização das decisões. As agentes co-munitárias estão a cada dia mais envolvidas com aspectos técnicosdo programa e da unidade, e menos presentes no contato vivocom a população. Em muitos momentos, essa atuação é marca-da pela influência sanitarista, cobradora de resultados higiênicose de saúde. Poderíamos perguntar-nos se, ao pensarmos o papeldo agente comunitário como educador popular, estaríamos cul-tivando o anacronismo. Ou seria uma postura corajosa diantedo futuro? Um dos efeitos colaterais mais evidentes dessa excessiva nor-matização do PSF tem sido a perpetuação da exclusão de algunsgrupos familiares dos serviços de saúde. Famílias em situação crí-tica, como a de Maria Pequena, Sinval, Clarinda e Miúda, porexemplo, precisariam de uma estratégia especial em sua aborda-gem e acompanhamento. Precisariam de tempo, disponibilidade,conhecimento específico e grande flexibilidade para que fossemajudados sem serem agredidos. Não há como encaixá-los nas roti-nas. E na rotina do PSF não há espaço para eles. Um outro aspecto que considero importante abordar nessasconsiderações finais é a propaganda sobre PSF nos meios de co- 85
municação. Ultimamente temos assistido a uma maciça veiculaçãodo PSF na mídia, celebrando a imagem do médico em casa — ummédico particular, exclusivo daquela família, completamente dis-ponível para atender às suas mínimas necessidades, da dipironaao marca-passo. A distância entre a imagem veiculada e a reali-dade é geradora de conflitos e pressões. As equipes de PSF estão,prioritariamente, instaladas em áreas carentes, com grande de-manda de atendimentos. O elevado número de famílias cadastra-das por equipe acarreta o estrangulamento do serviço em todos osníveis: das consultas na unidade aos exames especializados. Quan-do procuram por atendimento na unidade e encontram uma ne-gativa, vão embora indignados, sentindo-se enganados e traídos.As famílias não atendidas pelo programa sentem-se excluídas deum serviço público ao qual deveriam ter acesso. Enfim, a conso-lidação dessa estratégia tem trazido consigo grandes desafios. Sem querer parecer romântica, bucólica, ou conservadora,eu considero que a construção mais informal do PSF permitiaprincipalmente uma vivência artística da minha atuação médica.Uma verdadeira viagem por sons, cores, aromas, formas, estampas,telhados, gravuras, expressões faciais e de linguagem, sentimen-tos. Um mergulho antropológico e cultural. Isso possibilitavamaior compreensão das situações à minha frente e, portanto, umaatuação também mais dialógica e completa, como, por exemplo, oatendimento do pré-natal de uma mãe com quatro crianças, abor-dando a saúde de todos ali presentes. Também era possível cons-truir vínculos mais espontâneos e naturais com a população, mes-clando as ações médicas com as rotinas da comunidade. A isto euchamei “ir além da técnica”, tentando transformar técnicas eprotocolos em meios para alcançarmos um fim maior, no qual oincentivo à autonomia esteja em primeiro lugar. Esse espaço fica,cada dia, mais reduzido. Um importante marco na minha tra-jetória foi o encontro com Eymard Mourão Vasconcelos, naPrimeira Mostra Nacional sobre PSF, promovida pelo Minis-tério da Saúde, em Brasília-DF, em 1999. Por intermédio dele, 86
conheci a Educação Popular em Saúde. Há uma grande sinto-nia entre a melodia que procuro tocar no PSF e a música queembala o movimento da Educação Popular em Saúde. Estamostocando juntos. Atualmente moro em Vespasiano com a Sissa e oThor, meus dois cães. Aqui temos espaço no quintal para o solbater de dia e podemos ver a lua brilhar no céu à noite. E temosmuitos amigos. E para terminar. . . Ainda que eu falasse a língua dos homens, Que falasse a língua dos anjos, Sem amor, eu nada seria (Adaptação de Renato Russo sobre a carta de Paulo aos Coríntios, Bíblia Sagrada)Na sabedoria oriental, o ínfimo momento que separa os doismovimentos polares do coração é reverenciado como o ponto deencontro com a Divindade. Acho que foi aí que encontrei Geralda,bem no meio do meu coração. Não só Geralda, mas tambémJovelina, Maria Senhora, Esperança, Esmeralda, Maria das Do-res, Xumbica, Luciano, Bituca e muitos outros. Talvez um dosprincipais frutos do meu trabalho com PSF é ter descoberto quantabeleza, força e sabedoria estão escondidas por trás da fachada poucoatraente das periferias. Há muito ouro na favela. Às vezes, é pre-ciso atravessar a superfície empoeirada e feia, para achá-lo emara-nhado aos dramas de uma vida sujeita a tantos altos e baixos. *** Eu vou ensinar primeiro a benzeção de quebranto e mau-olhado, viu? Depois vem a de espinhela caída, a de cobreiro e a decarne-quebrada, tá? 87
E Geralda pega minha mão entre as dela e começa a en-sinar. . . O que faz Pedro Sentar na pedra fria Curando dor de cabeça, Quebranto e mau-olhado Com três raminho verde e água fria, Ave Maria Cheia de Graça Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus Em nome do Pai, Barquinha de Maria Virgem, Embarca essa espinhela Para ela chegar no lugar Tá caída e não tá, Com Deus Pai, E Deus filho E Deus Espírito Santo Três vezes Pescoço, carne-quebrada, Osso rangido, Nervo encoído, Veia arrebentada, Pelo poder do Espírito Santo E de Nossa Senhora Aparecida três vezes, Que sara Do filho, do Espírito Santo. . . Segundo Geralda, o cobreiro é mais complicado, pois eletem rabo e cabeça, assim a gente tem de pegar uma faca ou outraferramenta que corta e colocar em cima do cobreiro e dizer, àmedida que corta o cobreiro fora: Meio, rabo, cabeça. . . 88
AGRADECIMENTO: Ao nosso lado, durante todo este tempode PSF, estiveram sempre presentes, a Dr.a Hérica Soraya TeixeiraAlbano, nossa coordenadora e amiga — pessoa de fibra e excelen-te médica, a quem muito admiro — e o Dr. Silmar Paulo MoreiraRates, que, com sua gentileza e paciência, conduz, com clareza eeficiência, a Secretaria Municipal de Saúde de Vespasiano desdejaneiro de 1997. 89
“Conversão à pobreza”, um conceito fundamental para compreender a formação de muitos educadores populares Victor Vincent Valla* [Este foi o último texto produzido por Victor Valla. Revela bem o estilo instigante de suas reflexões. Sua ex-orientanda Eveline Algebaile muito o ajudou a transformar suas ideias nesse texto, pois Valla já estava com muitas limitações físi- cas consequentes a um AVC sofrido anos antes. Esse texto foi apresentado na 30.ª Reunião Nacional da Anped (As- sociação Nacional de Pesquisa em Educação), em 20071]AO LONGO DE TANTOS ANOS participando do movimento e dos debates da Educação Popular, compreendo que o obje-to de conhecimento e de ação desse campo do conhecimento é asituação de exploração e subordinação das classes populares, suaapartação dos direitos já naturalizados para as classes médias e * Victor faleceu em 2009. Era doutor em História Social. Fez pós-doutoradona University of California — Berkeley, Estados Unidos. Trabalhava como pesquisadortitular da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), e professor do Programade Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. Para maioresinformações sobre ele, veja a entrevista em E. M. Vasconcelos. Entrevista: VictorValla. Trabalho, Saúde e Educação, Rio de Janeiro, vol. 3, n.o 1, pp. 227-38, mar. 2005. 1 Vasconcelos et al. A contribuição de Victor Valla ao pensamento da EducaçãoPopular: diferentes olhares. In: Reunião Nacional da Anped, 30, 2007. Anais,Caxambu: Anped, 2007. CD-ROM. 90
altas. Em torno desse objeto de conhecimento e de ação, temosconstruído concepções, práticas e propostas permanentementepostas à prova, em termos do seu alcance efetivo, bem como desua capacidade de indicar caminhos e de resultar em soluçõespara os problemas identificados. Por isso, nossa participação nessecampo deve também se dar no sentido de contribuirmos para adiscussão e reconstrução dessas concepções e práticas, para quepossamos avançar na identificação desses caminhos e na constru-ção de novas condições a partir das quais seja possível produzirsoluções verdadeiras. Nessa perspectiva, uma das minhas maiores tentativas decontribuição nesse campo são meus estudos sobre religiosidadepopular. Primeiro, porque entendo que o exercício da religiosidadeé, em um país marcado por tantas desigualdades, como o nosso,uma experiência central na organização da vida das classes po-pulares, uma espécie de experiência síntese, a partir da qual asclasses populares têm elaborado uma parte importante das suasrelações com os sofrimentos que atingem suas vidas, sofrimentosmaterializados nos desafios de sobrevivência, como os relaciona-dos às questões da moradia, da saúde, da educação escolar, daviolência e da participação política. Segundo, porque esse é um tema sem prestígio nos debatessobre os enfrentamentos políticos do problema da pobreza, e oenfrentamento da pobreza exige que nos ocupemos dos temassem prestígio, para podermos conhecer o que não conhecemos, aspráticas, ações e relações que costumamos achar que “não têmsentido”, e que, no entanto, são referências sem as quais não pode-mos pensar em profundidade o mundo e as suas mudanças possí-veis. A compreensão da centralidade da religiosidade popular éum caminho muito importante para avançarmos na compreensãodas classes populares e de suas lutas. Por isso me dedico a ele. Areligiosidade popular é um campo vasto. Envolve uma mul-tiplicidade de práticas e grande variedade de estudos, realizados 91
por pesquisadores de diferentes áreas, a partir de diferentes meto-dologias, destacando-se estudos nos campos da sociologia e daantropologia que abordam as práticas de religiosidade sob a óticada cultura. Mas o entendimento da religiosidade como experiên-cia articuladora das demais práticas e relações das classes popula-res, no meu entender, exige, mais que metodologia de pesquisa,uma postura de imersão na realidade de vida a partir da qual areligiosidade adquire essa centralidade. Minha opção por estudar o pentecostalismo decorre do en-tendimento de que é nesse movimento religioso que a centralidadeda pobreza se dá de forma mais radical. Por isso, inclusive, o fortefluxo de adesão dos pobres, especialmente os muito pobres, a essareligião. Isso me dá garantias de me aproximar de um núcleo depráticas das classes populares onde significativas experiências dospobres se evidenciam mais intensamente, o que permite o apro-fundamento de questões que atravessam meus trabalhos há muitotempo, mas que ganharam uma de suas formas mais claras nadiscussão que tentei empreender sobre a “crise da compreensão”,que, para mim, permanece como um desafio intelectual e umdesafio histórico. É desse entendimento que também decorre meu interesseem discutir o termo conversão. Há cerca de cinco décadas atrás, Richard Schaull, um pastorpresbiteriano que atuou em países latino-americanos como mis-sionário e professor, propôs que seminaristas, comumente da classemédia, convivessem com as classes populares, no seu lugar de mo-radia, a fim de melhor entenderem as formas de compreensão eação daqueles para os quais se dirigiam as atividades missionárias.Para Schaull, esse ato de conviver com as classes populares em seulugar de moradia seria uma forma de incorporar seu olhar para omundo, e esta seria uma condição essencial para uma atuação ver-dadeiramente envolvida com o enfrentamento da situação de pro-funda desigualdade e sofrimento que marcava o problema da po-breza nesses países. O termo usado por Schaull (César & Schaull, 92
2001) para fazer referência a essa forma de ação foi “conversão”,mas segundo um significado não convencional. Em geral, o termo conversão é compreendido como passa-gem de uma crença para outra, de uma doutrina para outra. Tam-bém é comum entender-se que a conversão é a aceitação de umamissão indicada por Deus, a aceitação de um chamado divino.Schaull, porém, não entendia a conversão nesse sentido. Para ele,em sentido pleno, a conversão não pressupunha a crença em umDeus, nem o atendimento a um chamado divino, mas a adoção deum novo lugar a partir de onde se poderia compreender em pro-fundidade os principais problemas para os quais buscamos so-luções. Nesse sentido, Schaull indicou que, no mundo em quevivemos, a conversão, em sentido pleno, seria exclusivamente aconversão à questão da pobreza, ponto central para a discussão eenfrentamento de todos os demais problemas que, hoje e no fu-turo, nos desafiariam. Acredito que a discussão do termo conversão, a partir dessaperspectiva, contribui de uma forma especial para a problemati-zação dos nossos desafios de pensamento e de ação no campo daEducação Popular, no sentido de nos aproximarmos mais dos re-sultados históricos que desejamos. Em um sentido convencional, ao longo da história, a ideiade conversão pode ser identificada, com sentidos diversos, em inú-meras propostas de ação nos campos religioso e político. No cam-po religioso, a ideia de conversão aos pobres aparece, por exemplo,com bastante nitidez, na religião católica, na fundação da OrdemFranciscana, destacando-se, porém, nesse caso, um sentido de re-núncia ao mundo de opulência e riqueza. No campo político,também é possível identificar o princípio da conversão nas práticasde inserção de membros de organizações políticas nos espaços devida e trabalho das massas populares. A ideia de conversão aí pre-sente, porém, não pressupõe renúncia nem imersão na experiên-cia de vida dos pobres, mas, na verdade, uma inserção popular demilitantes políticos que, por meio de contatos cotidianos, tentam 93
operar a conversão dos pobres a um projeto político elaborado foradaquele meio. São militantes que entram nos meios popularesnão para se modificarem, mas para modificarem os outros. A ideia de Schaull, na qual me referencio, e que, de modo ge-ral, é constituída dos mesmos princípios que orientaram a Teologiada Libertação, tem um elemento novo fundamental, implicadocom questões não apenas políticas, mas também epistemológicas,de grande importância para o campo da Educação Popular: a ideiade que a conversão éum movimento de descentramento, uma mu-dança fundamental em termos do conjunto de experiências a par-tir do qual olhamos e entendemos o mundo, as possibilidades deação no mundo e a construção de um mundo possível para todos. Esse, como se vê, não é um movimento a ser esperado dasclasses populares, mas das classes médias, habituadas a entende-rem sua experiência como central, e a deduzir, disso, de um lado,sua autoridade e capacidade para dispor sobre os problemas domundo, e, de outro, a permanente minoridade política e culturaldas classes populares para disporem sobre as questões que afetamsuas vidas. Tudo se passa como se o padrão de vida e de direitosdas classes médias fossem extensíveis, sem mediações, para as classespopulares, quando, na verdade, esses padrões resultam de formashistóricas de utilização privilegiada de meios e recursos. Acho importante lembrar aqui a discussão de Milton Santos(Santos, 1996) sobre o conjunto de saberes práticos e valores pro-duzidos às margens dos padrões de vida das classes médias, pelosimensos segmentos da população submetidos à experiência da es-cassez. Com todos os problemas e degradações impostos aos po-bres, os espaços de vida das classes populares têm sido o lugar deconstrução de uma experiência humana de repartição, comparti-lhamento e solidariedade, capaz de indicar caminhos válidos paraa transformação do mundo, incluindo-se, aqui, a urgência de en-frentamento de uma cultura de apropriação particularista e deesgotamento de todos os recursos naturais, econômicos e huma-nos, que não é suficientemente problematizada em nosso meio. 94
Sob essa ótica, a conversão — como movimento de confron-tação de nossa experiência a partir do nosso submetimento à cen-tralidade da experiência do outro, da tomada da experiência dooutro como referência para se pensar o mundo — propicia, tam-bém, uma conversão dos sentidos que estamos habituados a atri-buir às coisas. Se a experiência a partir da qual penso o mundo éa experiência constituída nos contextos de escassez, noções já natu-ralizadas de direitos, urbanização, escolarização, justiça, moderni-zação, iniciativa, conhecimento, adquirem, inevitavelmente, no-vos delineamentos. Não é o caso, certamente, de propormos a convivência comas classes populares na mesma forma proposta por Schaull. Sabe-mos das diferenças entre a prática profissional e a prática missio-nária. Mas devemos ter o máximo de atenção à construção depráticas que garantam uma relação profunda com a vida das clas-ses populares, de forma a compreendermos o que é preciso fazerpara que a Educação Popular não seja uma, dentre outras formas,de dizer ao outro o que fazer, a partir de uma experiência históri-ca e de condições que lhes são estranhas. ReferênciasCESAR, W. & SHAULL, R. Pentecostalismo e futuro das igrejas cristãs: promessas e desafios. Petrópolis: Vozes, 1999.SANTOS, M. O espaço do cidadão. São Paulo: Studio Nobel, 1996. 95
Victor Valla, um educador que incorporou a educação popular como atitude de vida: homenagem ao grande mestre da Educação Popular em Saúde Eymard Mourão Vasconcelos*ESTE TEXTO destina-se a contar parte da história do mestre Victor Valla, semeador que, com seu jeito de ser gente, aju-dou a dar sentido e poesia ao processo de organização do movi-mento de educação popular em saúde no Brasil, do qual foi per-sonagem central. Em sua vida, esse movimento também tornou-secentral. Seus militantes e suas lideranças eram a principal turmacom quem Valla convivia profissionalmente e para quem dedica-va boa parte de sua energia criativa, inaugurando olhares e expli-cações muito esclarecedoras para a prática da educação em saúdebrasileira. Na década de 1960, a Educação Popular se constituiu e seexpandiu, na América Latina, como movimento político e pedagó-gico e cultural, sendo Paulo Freire o pioneiro em sua sistematiza- * Médico mineiro que, em uma experiência de trabalho comunitário organizadopelo movimento estudantil em 1974, descobriu o sentido e a motivação para seutrabalho através da educação popular. Veio para o Nordeste trabalhar e aprender,com a Igreja Católica, os difíceis e fascinantes caminhos da ação educativa voltadapara a emancipação. Por acaso, virou professor universitário e novamente foi a educaçãopopular que lhe ensinou o caminho de uma formação profissional mais integral. Hojeestá aposentado, mas não deixou seu trabalho. Conheceu Victor Valla em 1984. 96
ção teórica. Inicia-se no campo da alfabetização de adultos, maslogo passa a ser aplicada em outros campos de prática social. VictorValla chegou ao Brasil em 1964 e, logo, começou a participardesse movimento cultural, político e pedagógico. Pessoas e gru-pos ligados ao movimento fizeram parte da comunidade de aco-lhimento no Brasil. Toda a produção profissional de Victor Valla está marcada,de um lado, pelo gigantesco vínculo que criou com a pobreza noBrasil e, de outro, por seu estranhamento, como estrangeiro, inte-lectual e trabalhador social, com os modos de viver presentes en-tre os pobres. Forte vínculo e estranhamento geraram intensainquietude e pesquisa. Ele queria entender o que estranhava e,para isto, buscava estudar e refletir. A Educação Popular foi eixoorientador de seu engajamento. Em entrevista publicada na revista Trabalho, Educação eSaúde (Vasconcelos, 2005), Valla afirmou que, quando chegouao Brasil, como missionário católico, em 1964, ficou extrema-mente abismado com a pobreza. “Acreditava que, se eu não podiafazer nada, podia, pelo menos, conviver com o problema (Vas-concelos, 2005, pp. 228-9)”. Mobilizado com a pobreza, e delase aproximando muito, começou, aos poucos, a aproximar-se tam-bém de pessoas da esquerda e de instituições públicas, assistenciaise acadêmicas destinadas à questão social. Com seu olhar de es-trangeiro, estranhou também como o universo popular era poucocompreendido pelas instituições e pessoas que dele diziam cui-dar. Passou a investir na busca de esclarecimentos de facetas dasfrequentes incompreensões com que se deparava entre intelectuaise trabalhadores sociais a respeito da vida dos pobres, principalmen-te, dos que viviam na periferia dos grandes centros urbanos. No setor saúde, a Educação Popular só chegou de formasignificativa na década de 1970. Nessa época, muitos profissio-nais de saúde se envolveram no movimento de luta contra a dita-dura militar, implantada no Brasil em 1964. Sem espaço de tra-balho criativo e crítico nas instituições oficiais de saúde, públicas 97
ou privadas, centenas deles passaram a se dirigir para as periferiasurbanas e rurais, engajando-se em trabalhos sociais voltados paraa organização e educação da população, com a perspectiva de cria-ção de um movimento de resistência às opressões políticas e eco-nômicas que sempre marcaram a sociedade brasileira, mas queestavam enormemente ampliadas naquele momento. As igrejascristãs, com suas pastorais e atividades sociais, foram muito im-portantes no acolhimento e na orientação desses profissionais desaúde. A maior parte das outras instituições que atuava criticamentejunto às classes populares havia sido destruída ou esvaziada pelarepressão política da ditadura. Até mesmo profissionais de saúdeateus e de diferentes religiões se integraram nas atividades pasto-rais dessas igrejas em que a perspectiva da teologia da libertaçãoera dominante. Nessas atividades pastorais, a Educação Popularera uma referência central. Dessa forma, muitos profissionais desaúde se aproximaram e se aperfeiçoaram em Educação Popular. Em vários recantos do Brasil, começaram a surgir inúmerasexperiências de saúde comunitária orientadas pela Educação Po-pular. Inicialmente, essas experiências estavam mais voltadas parao fortalecimento do movimento político e cultural de resistênciacontra a opressão política e econômica exacerbada pela ditaduramilitar. A discussão e enfrentamento dos problemas de saúde eramvistos principalmente como estratégias de organização popularpara esta luta mais política. Entretanto, os profissionais de saúdepassaram a se encantar também com a potência e criatividade daspráticas de saúde que foram construídas de forma dialogada coma população, inaugurando falas e ações de Educação Popular emSaúde. Começaram a surgir modos de enfrentamento dos pro-blemas de saúde que mostravam uma surpreendente capacidadede promover a saúde de uma maneira ainda não conhecida natradição da saúde pública e das várias profissões de saúde. Atéentão, a visão imperante entre os profissionais e instituições desaúde que lidavam com as classes populares era de que se tratavade uma massa de carentes que precisava ser ensinada e transfor- 98
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