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3. Cescon

Published by Arnaldo Martins Hidalgo Junior, 2017-11-16 16:25:40

Description: 3. Cescon

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l(arin HeUen l(ep[er Wondracek ( or'g.1lO futuro e a l[usão Um embate com Freud sobre psicanálise e religião Oskar Pfister e autores contemporâneos \"'EDITORA y VOZES Petrópolis 2003

A 1 [usão de um futuro Um embate amigável com o prof. Dr. S1 gn1und Freud* Pfíster * ' Caro professor, Com a amabilidade com que me acostumou nestes dezenove anosde trabalho conjunto, o senhor declarou que seria desejável que euapresentasse ao público meus argumentos contra seu livreto O futurode uma ilusão, e com uma liberalidade que é natural para sua forma depensar, colocou à minha disposição para esta finalidade um dos perió­dicos editados pelo senhor. Agradeço-lhe afetuosamente por esta* Revista Imago, vol. XIV, 1928, caderno 2/3, p. 149-184.Tradução de Karin Hellen Kepler Wondracek e DitmarJunge.Revisão do alemão de Wemer Fuchs.** Oskar lfrster (1873-1956), pastor e psicanalista, amigo de Freud e seu principal in­terlocutor sobre questões de psicanálise e reiigião. Pastor da Igreja Reformada Suíçaem Zurique, foi um dos primeiros analistas não-médicos. Foi o pioneiro em levar osachados da psicanálise para a pedagogia e para a cura de almas e também a estendero tratamento analítico a crianças e adolescentes e a pessoas \"não doentes no senti­do médico\", como costumava dizer. Membro fundador da Sociedade PsicanalíticaSuíça, colaborador na revista Imago e no Zentralblattfiir Psychoanalyse.Durante 30 anos manteve afetuosa correspondência com Freud, que foi traduzida aoportuguês em 1998, e já está na terceira edição. São as Cartas entre Freud & Pfister: umdiálogo entre a psicanálise e afé cristã, pela editora Ultimato.Seus principais livros são: Diepsychana/ytische Methode (1913/1924, com prefácio deFreud), E/ psicoanálisis y la educación (1943), Christianity andfear (1944) e mais 200publicações entre livros e artigos em revistas de psicanálise, pedagogia e teologia.Em 1973, centenário da sua morte, a Associação Psiquiátrica Americana criou oPrêmio Oskar Pfister, conferido aos que se destacam em pesquisas sobre psicanálisee religião. Foram agraciados, entre outros, Viktor Frank!, Peter Gay, Hans Küng eAna-Maria Rizzutto.

nova prova de amizade, que não me surpreendeu de modo algum.Desde o princípio o senhor não fez nenhum segredo a mim e a todomundo acerca da sua decidida incredulidade, de modo que sua profe­cia atual de um futuro sem religião não traz nenhuma novidade. E o se­nhor há de sorrir diante do fato de que considero o método psicanalí­tico criado pelo senhor um meio grandioso para depurar e desenvol­ver a religião, assim como o senhor sorriu no tempo da carestia, quan­do caminhávamos em meio às nevadas pelas trilhas de Beethoven nosaltos de Viena e mais uma vez não conseguíamos convencer um ao ou­tro neste ponto, como já em anos anteriores, por mais prontamenteque em outras ocasiões eu sentasse a seus pés, repleto dos tesouros ebênçãos de sua riqueza de espírito. Seu livro significou para o senhor uma necessidade íntima, umato de honestidade e de coragem confessional. A titânica obra da suavida teria sido impossível sem destroçar as imagens de ídolos, mes­mo que estivessem situadas em universidades ou átrios de igrejas.Cada pessoa que desfruta da felicidade de estar próxima do senhorsabe que pessoalmente o senhor serve à ciência com veneração e fer­vor, pelo que seu gabinete é elevado a templo. Dito francamente: te­nho a firme suspeita de que o senhor combate a religião - a partir dareligião. Schiller lhe estende calorosamente a mão fraterna; será queo senhor a recusará? Ainda mais do ponto de vista da fé, não vejo nenhum motivo paraconcordar com a gritaria de alguns vigilantes de Sião. Afinal, quem lu­tou de modo tão gigantesco pela verdade e brigou tão heroicamentepela redenção do amor, este é, quer queira sê-lo ou não, segundo osparâmetros do evangelho, um fiel servo de Deus. E não está longe doreino de Deus quem, pela criação da psicanálise, elaborou o instru­mento pelo qual são serradas as cadeias das almas sofredoras e sãoabertas as portas do cárcere. Desse modo podem correr à terra ensola­rada de uma fé vivificante. Jesus conta uma bela parábola de dois fi­lhos, dos quais um, prometendo obedientemente ir à vinha do pai, nãomantém a palavra, e o outro, rejeitando obstinadamente a ordem arbi­trária do pai, ainda assim cumpre o mandamento (Mt 21,28ss). O se­nhor sabe com quanta alegria o fundador da religião cristã prefere oúltimo. O senhor guardará rancor de mim pelo fato de que, apesar de

sua pretensa descrença, eu o veja figuradamente mais próximo do tro­no de Deus - o senhor, que colheu tão maravilhosos raios da luz eter­na e se desgastou na luta pela verdade e pelo amor aos homens - doque a muito clérigo murmurador de orações e realizador de cerimônias,cujo coração nunca ardeu pelo conhecimento e bem-estar humano? E,como para os cristãos orientados no evangelho tudo o que importa éfazer a vontade divina e não o dizer \"Senhor, Senhor\", compreende osenhor que também eu queira invejá-lo? Não obstante, volto-me com toda a determinação contra sua apre­ciação da religião. Faço-o com a modéstia conveniente ao inferior, mastambém com o contentamento com que se defende uma causa santa eamada, e com o rigor da verdade, que foi fomentado por sua austeraescola. Contudo, faço-o também na esperança de que alguns, que fica­ram refratários à psicanálise com a rejeição da fé religiosa pelo senhor,voltem a contrair amizade com essa ciência, como método e síntese dereconhecimentos empíricos. Por conseqüência, não viso a escrever contra, mas a favor do se­nhor, pois quem vai para as barricadas em favor da psicanálise lutapelo senhor. Entretanto luto igualmente a seu lado; pois não há nadamais firme em seu coração, como no meu, do que derrotar a ilusãoatravés da verdade. Um tribunal superior decidirá se o senhor com seuOfuturo de uma ilusão, ou eu com A ilusão de umfitturo chegamos maisperto do ideal. Nós dois não nos cingimos com o manto de profeta,mas nos contentamos com o papel mais humilde do meteorologista;embora também meteorologistas possam se enganar. Com afetuosas saudações, seu PfisterA crítica de Freud à religiãoAs acusações Em seu livro O futuro de uma ilusão Freud define o conceito de ilu­são de maneira diferente da usual. No uso corriqueiro o conceito trazconsigo as conotações do engano e da invalidade. Freud, porém, res-

salta: \"Uma ilusão não é a mesma coisa que um erro: tampouco é ne­cessariamente um erro\" (43). \"Podemos, portanto, chamar uma crençade ilusão quando uma realização de desejo constitui fator proeminen­te em sua motivação e, assim procedendo, desprezamos suas relaçõescom a realidade, tal como a própria ilusão não dá valor à verificação\"(44). Em outro contexto Freud se nega a tomar posição, em sua obra,quanto à veracidade das doutrinas religiosas (46). De acordo com isto poderíamos contar com a possibilidade de queainda é concedida validade à religião. Demonstra-o o exemplo de Freudreferente à ilusão de Colombo para encontrar uma nova rota para asÍndias (3). Pois ainda que o descobridor da América não tenha alcança­do a Índia, outros o fizeram no caminho por ele aberto. O genovêsigualmente evoca que na ilusão pode estar investido muito raciocíniorealista excelente. Sem a constatação da superffcie encurvada do mare da conseqüente forma cilíndrica da terra não teria sido empreendidaa ousada viagem para Oeste. Desde já chamo a atenção para o íntimoentrelaçamento do pensamento de desejo e do pensamento realista, evejo surgir a pergunta, se haveria na religião, como em grande parteda ciência, uma dissociação clara, ou se, de modo amplo, em ambas asáreas o pensamento realista se esforçaria em vão para dissecar a obje­tividade pura além do desejo ou de seu resultado. Mas um momento!Não quero revelar um segredo e de forma alguma pretendo compro­meter-me com o que segue. A esperança de que Freud tenha deixado valer para a religião umaltar, em cujos chifres ela se possa refugiar1 , não perdura por muitotempo, pois logo somos informados de que a religião é comparável auma neurose infantil, e o psicólogo é suficientemente otimista parapresumir que a fase neurótica será superada. Entretanto não há garan­tia total disso, porém a esperança é expressa claramente (67). A neuro­se representada pela religião é descrita com mais precisão como a \"neu­rose obsessiva universal da humanidade\" e, assim como a da criançavem do complexo de Édipo, esta deriva da relação com o pai (57). Aessa visão Freud alia o prognóstico: \"A ser correta esta conceituação, o1. N.T. Expressão que remete a Ex 30,1 O; Lv 8, 15; Ez 43,20, que designava um localde refúgio junto ao altar do templo.

afastamento da religião está fadado a ocorrer com a fatal inevitabilida­de de um processo de crescimento, e nos encontramos exatamentenessajunção, no meio dessa fase de desenvolvimento\" {57)2.o ápice desta crítica nos é dado pela frase: \"Se, por um lado, a reli­gião traz consigo restrições obsessivas, exatamente como, num indiví­duo, faz a neurose obsessiva, por outro, ela abrange um sistema de ilu­sões plenas de desejo juntamente com um repúdio da realidade, talcomo não encontramos, em forma isolada, em parte alguma senão naamência, num estado de confüsão alucinatória beatífica\" (58). Finalmente, a religião é apreciada como uma proteção cultural(56), mas nesse sentido refutada de modo insuficiente, visto que atra­vés dela as pessoas tampouco encontram a desejada felicidade e a res­trição moral.Analisemos mais de perto estas acusações.A religião como obsessão neurótica Começamos examinando o caráter obsessivo neurótico atribuído àreligião. Sem dúvida Freud tem toda a razão, e com esta descoberta al­cançou um grande mérito na psicologia da religião, visto que muitasexpressões da vida religiosa estão imbuídas desse caráter. As obses­sões são inconfundíveis em várias religiões primitivas, que ainda nãoconhecem nenhuma constituição eclesiástica, e também em todas asortodoxias. Do mesmo modo sabemos que esta fatalidade foi introdu­zida no nascedouro da religião como efeito do recalcamento das pul­sões, uma exigência tornada necessária pelo progresso ético-biológi­co da humanidade. Afinal, constitui uma nefasta fatalidade de nossaespécie que o simples e o adequado, na maioria das vezes, sejam des­cobertos apenas ao longo do desvio das bizarrias monstruosas. A his­tória das línguas e das concepções morais demonstra-o tão claramentecomo o desenvolvimento das religiões.2. N.T. Tradução livre: \"Segundo esta concepção seria de supor que o afastamentoda religião se processa imperiosamente como um destino inexorável ao longo de umprocesso de crescimento, de sorte que agora nos encontramosjustamente no meiodesta fase de desenvolvimento\" (70s).

No entanto, se esta carga de obsessões é tão difícil de negar já noprimeiro estágio da religião, cabe perguntar se ela faz parte da essên­cia. Será que este traço neurótico coletivo não poderia ser descartadosem prejuízo, sim, até para beneficio do todo, à semelhança dos giri­nos, que sacrificam a cauda para, como sapos, saltar com tanto maioragilidade pelo mundo? Renúncias às pulsões precedem a religião. Não é esse o caso em to­das as culturas? Quem se exaure no nível primário não guarda energiasuficiente para realizações culturais. Se imaginarmos uma existênciameramente pulsional, o que, aliás, já é impedido pela sábia escassezda natureza, freqüentemente também pela ressaca de quarta-feira decinzas da natureza humana, não duvidaremos em nenhum momentoque isto corresponde à natureza da maioria dos animais, mas não à hu­mana. O conceito natureza é apreendido deforma unilateral e totalmente in­suficiente, quando imaginado \"naturalisticamente\". Nada justifica a asser­ção de que um vegetar animalesco corresponderia melhor à essênciahumana do que o crescimento e a atividade em termos culturais. Pois éa própria natureza circundante que torna a ascensão intelectual neces­sária. A cultura sempre é o produto de duas naturezas: a extra e a in­tra-humana. A própria cultura é apenas natureza humana desenvolvi­da, assim como também constituem efeitos da natureza as aflições eas renúncias que a engendram. Quem liberta o conceito da naturezade seu falso estreitamento constata no desenvolvimento da cultura amesma sintonia mútua entre a pessoa e o restante do mundo, o quenos comprova a teoria do conhecimento para o processo cognitivo. Não estou de acordo com a indicação anterior de Freud, de que osurgimento da religião tem por base a renúncia à expressão de pulsõesdo eu, enquanto a neurose pressupõe o recalcamento exclusivamentede funções sexuais3• Justamente a história da orientação edípica evi­dencia que a sexualidade constitui uma parte integradora das pulsõesdo eu e vice-versa. A seleção de pulsões isoladas deve ser feita apenascomo abstração. Tão logo se pensa as pulsões (excluídas suas moçõesmais primitivas) realmente em separado, incorre-se em engano sobreengano. Este \"ponto de vista orgânico\", como chamo o modo correto3. Atos obsessivos e práticas religiosas. ln: Obras completas. Vol. X. 1908, p. 21 O.

de apreciação, é imprescindível para a compreensão da gênese da reli­gião. Não creio que nesse ponto atualmente haja ainda diferença en­tre Freud e mim, visto que agora ele apresenta a ligação negativacom o pai como o determinante principal da religião, também deixavaler as forças libidinais. Creio que se deva procurar num círculo mui­to amplo as recusas pulsionais que conduzem à religião, como, poroutro lado, também as trilhas que são seguidas na elaboração da reli­gião apresentam uma diversidade extraordinária. Na base do cultototémico situam-se bem outros complexos de determinantes do que,p. ex., no monoteísmo ético-social dos profetas clássicos de Israel,assim como na base da crença da inércia estética e pacifista de Akhi­neton está algo bem diferente do que a devoção dos conquistadoresespanhóis. Mas recusas pulsionais, que produzem recalcamentos maisou menos amplos e profundos, devem logicamente contribuir em todaelaboração de religião. Contudo, será necessário que formações obsessivas sejam sempreinerentes à religião? Creio que, pelo contrário, as mais sublimes elabora­ções religiosasjustamente suspendem a obsessão4• Pensemos no cristianis­mo genuíno. Jesus contrapõe seu \"mandamento\" do amor ao nomis­mo neurótico obsessivo-compulsivo, que impõe um pesado jugo atra­vés das crenças ao pé da letra e do meticuloso cerimonialismo. \"Vocêssabem, foi dito aos antigos- mas eu digo a vocês\" (Mt 5,21 )- Está aí apoderosa ação redentora. E ela não acontece por força da demanda deum novo vínculo, mas graças à autoridade da liberdade conquistadapor um amor vitorioso e pelo reconhecimento da verdade. Segundo osbons parâmetros psicanalíticos,Jesus venceu a neurose coletiva de seupovo introduzindo no centro da vida o amor que, na verdade, é moral­mente purificado. Na sua concepção de pai, totalmente purificada dastoxinas da ligação edípica, constatamos que foram totalmente venci­dos a heteronomia e todo o constrangimento das amarras. O que seexige das pessoas não é outra coisa senão aquilo que corresponde àsua essência e sua vocação verdadeira, o que favorece o bem comum e- para também dar lugar ao ponto de vista biológico - uma saúde má-4. NT. O original Zwa11g refere-se tanto a pensamentos quanto a ações, sendo porisso traduzido por obsessão - quando se refere a pensamentos-, e por compulsão -quando se refere a ações.

xima do indivíduo e da coletividade. Constitui um grave mal-entendi­do compreender o mandamento básico de Cristo - \"Amarás a Deus detodo teu coração e a teu próximo como a ti mesmo!\" (Mt 22,37ss) -como um mandamento no espírito do mosaísmo. A forma do imperati­vo é conservada, mas quem não notaria a sutil ironia com a qual o con­teúdo, o amor, enquanto realização que pode ser espontânea, anula ocaráter de lei? Já expus em outra oportunidade (Analytische Seelsorge. Gottingen,1927, p. 20-24) de que forma excelenteJesus exerce a psicanálise 1900anos antes de Freud - obviamente não se pode entender a expressãoestritamente demais. Recordo que ele não apenas sugestionou ao pa­ralítico o desaparecimento do sintoma, mas se inseriu no conflito reli­gioso-moral subjacente, apaziguando-o, vencendo assim a paralisia apartir de dentro. Sua crença nos demônios deve soar-nos estranhacorno metafisica, porém a reconhecemos como neurologia. A direçãohistórico-psicológica em queJesus examina a autoridade coercitiva bi­blicista recebe plena aprovação do analista (p. ex., Mt 19,8: o manda­mento de Moisés referente à carta de divórcio foi legado por causa dadureza do coração humano). Merece a admiração de todos os alunosde Freud o tratamento dado à transferência, que é acolhida comoamor, mas conduzida para realizações ideais absolutas, como tambéma suspensão da fixação paterna gerada pela obsessão através da rendi­ção ao Pai absoluto, que é amor. Não é assim que defenderíamos queJesus foi o primeiro psicanalistapredecessor a Freud, como talvez alguns \"abelhudos\" inexperientesgostariam de fazê-lo! Mas, nos traços fundamentais, seu pastoreio re­dentor remete tão decididamente à análise que os cristãos deveriam en­vergonhar-se de ter deixado a um não-cristão o aproveitamento destaspegadas luminosas. Sem dúvida a razão está em que a deturpação pelaneurose obsessivo-compulsiva, que ameaça a religião, bem como todasas criações do espírito humano, soterrou também esta maravilhosa pis­ta, assim como ocorreu no materialismo da psiquiatria antiga. Poderíamos seguir ainda mais a remoção da compulsão, feita porJesus, bem como a revogação de sua determinação. Poderíamos pro­var como sua idéia de Pai é livre de todos os sintomas relativos ao ódioedípico - Deus não deve ser aplacado com sacrifícios, mas amado no

irmão. Poderíamos recordar que o amor fraterno perfaz, no sentidomais amplo e profundo, a marca e a estrela da doutrina cristã. Podería­mos recordar que o alvo e o bem supremo de toda busca e anseio nãoresidem na satisfação pessoal, mas no reino dos céus, isto é, na sobe­rania do amor, da verdade e da justiça, tanto no indivíduo como na co­munidade universal, e assim por diante. No entanto, estaríamos nosdesviando demais. E, não poderia ser dito algo análogo sobre a religião de Akhineton,e num certo sentido até sobre Buda? Será que no princípio do protes­tantismo, com sua liberdade de crença e consciência, mas tambémcom sua exigência de amor, não reside um poderoso princípio reden­tor, não apenas no sentido da libertação da compulsão religiosa, mastambém no da cura geral das obsessões e compulsões? É uma pena que Freud deixe de lado justamente as mais sublimesexpressões da religião. Do ponto de vista histórico não é fato que a re­ligião crie compulsões e prenda as pessoas na neurose. Pelo contrário,é a vida pré-religiosa que cria compulsões neuróticas, que então condu­zem a concepções religiosas e rituais correspondentes. A magia prece­dente à religião ainda não é religião. Justamente dentro do maior de­senvolvimento religioso, o israelita-cristão, surge sempre e sempre denovo uma inspiração religiosa (revelação), avivada por uma visão supe­rior, ética, e por isso também sociobiológica, a qual busca anular a com­pulsão e criar a libertação, até que, debaixo de condições que ninguémcompreende melhor que o analista, sempre de novo sejam forjadosnovos laços pelas aflições da vida, os quais uma posterior concepçãoreligiosa é vocacionada a romper. Não se pode negar que a esta luta re­ligiosa pela redenção corresponde um processo de humanização. As­sim sucedem-se o animismo e naturismo pré-israelita, o mosaísmo, obaalismo, o profetismo clássico, o nomismo pós-exílico (culminandono farisaísmo), o nascimento do cristianismo, o catolicismo, a Refor­ma, a antiga ortodoxia protestante, o pietisrno e o iluminismo, bemcorno as ramificações atuais dos diversos sistemas cristãos de compul­sões e de combate às compulsões. No entanto, é digno de nota que oindividualismo livre de compulsão na atualidade está fortemente re­presentado justamente no Protestantismo, e conquistou perante asdemais ciências um reconhecimento considerável, por um lado através

de sua ênfase social, por outro lado através de seu sério trabalho cien­tífico crítico. Tampouco devemos esquecer que a religião não pode percorrerum desenvolvimento encerrado em si. Se, em determinadas épocas, oscristãos competiam em crueldade com os bárbaros mais selvagens,isto não aconteceu em decorrência da prática conseqüente de seuprincípio religioso, mas em virtude de adoecimentos neuróticos, quedesfiguraram e devastaram a religião cristã da mesma maneira como apesquisa e a criação artísticas foram expostas e sucumbiram às maisabomináveis deformações. Por isto nego cabalmente que seja próprio da religião como tal o ca­ráter obsessivo-compulsivo neurótico.A religião como configuração do desejo Com razão Freud não reivindica prioridade para o pensamento deque todas as religiões apenas representam configurações dos desejos(50). Com uma coerência insuperável, Feuerbach5 elaborou, há quasenoventa anos, a tese de que a teologia seria antropologia disfarçada, ea religião, um sonho (43). Acontece que Freud refinou e reforçou ex­traordinariamente essas suposições através de seu microscópio daalma. Nesse aspecto não podemos nos entregar a nenhum engano. Asimples exposição dos desejos latentes e sua reelaboração com o pro­pósito de torná-los conscientes, como também o desvelamento da si­tuação edípica, do sadismo e do masoquismo recalcado impossibili­tam totalmente que se neguem projeções de desejos na formação dereligiões. Mas, será que com isso se esclarece todo o pensamento reli­gioso? E será patrimônio exclusivo da religião essa confusão entre de­sejar e ser? Ou será que haveria na religião e na ciência, sim, até naarte e na moral o recalcamento posterior do pensamento de desejopelo pensamento real, e a mobilização do pensamento real pelo pen­samento do desejo formariam o ideal, ao encontro do qual o desenvol­vimento mental se dirige de modo ofegante, esperançoso e sempre denovo penosamente decepcionado?5. L. Feuerbach. Das Wese11 des Christe11tu111s, Quenzel: Reclam p. 40.

Antes de nos voltarmos ao exame, procuremos um ponto de parti­da comum. Nunca esquecerei aquela ensolarada manhã de domin­cro da primavera de 1909 no Parque Belvedere, em Viena, quando oProf. Freud me alertou com seu modo amável e paternal para os peri­gos que a pesquisa por ele empreendida continha. Já naquela ocasiãodeclarei-me disposto a, se a verdade o demandasse, largar o pastora­do, que para mim era precioso. Propagar uma crença que o raciocíniorefuta, ou adaptar a cabeça para a morada da descrença e o coraçãopara a sede da fé, isto me pareciam truques de malabarista, com osquais não queria ter nada a ver. Eu não saberia o que deveria modificarnesta posição. Em prol de ilusões a gente não investe a alma. Posso ir ao encontro de Freud em boa parte do caminho (Feuerbachtambém encontrou aplausos junto aos teólogos por suas críticas psico­lógicas às doutrinas religiosas)6• Eu já sabia havia tempo que as repre­sentações de Deus e do além muitas vezes são pintadas com as cores dapaleta do desejo. Quando pela primeira vez constatei numa representa­ção alucinada de Deus os traços do pai, de vários pastores, etc.7, e portrás descobri a gerência do ódio, foi bem interessante para mim a clare­za com que se podia comprovar a correlação, contudo não percebi algoextraordinariamente novo e inesperado. Há muito estava cônscio deque no além-túmulo cheio de baleias dos esquimós, nas verdes terras decaça dos índios convidativas a escalpes, na Walhalla abençoada de hi­dromel e cheia de torneios fagueiros dos germanos se espelham os de­sejos dos seus criadores, do mesmo modo como no salão celestial deoração dos pietistas ou no Além de Goethe com sua luta moral decisiva. Némesis [deusa grega da retribuição] queria que também os ateuspor mim analisados com freqüência extraordinária fossem dirigidospor pensamentos de desejo. Que analista não encontraria com fre­qüência ateus, cuja descrença era uma camuflada eliminação do pai?Contudo, eu consideraria errado comprimir toda a rejeição da religiãono esquema do desejo. Observemos um pouco mais de perto os desejos que conduzem àreligião. É preciso admitir que eles a princípio são, em grande parte,6. O. Pfeiderer. Geschichte der Religionsphylosophie. 3. ed, p. 449.7. Pfister. Die psychoanalytische Methode. 3. ed. 1924, p. 222ss.

de natureza egoísta. Porventura na ciência a situação seria outra? Se­ria possível esperar da pessoa primitiva uma sede de saber desinteres­sada? Já no assim chamado homem natural constatamos como no cul­to e na crença se move a necessidade moral, por exemplo, a necessida­de de penitência por uma injustiça cometida (p. ex., o desejo de quemorra o pai). Com o desenvolvimento moral também amadurece o de­senvolvimento religioso. Os desejos egoístas passam cada vez maispara segundo plano, mesmo que haja recaídas ao pensamento egoísta.Isto é um sinal de que é dificil extinguir o selvagem e o primitivo. Os profetas clássicos do IsraelAntigo renunciam à vida pessoal apósa morte, de tantoque seus versos e feitos foram absorvidos pelo povo. No evangelho vemos como os desejos pulsionais são combatidospoderosamente, e com força tanto maior quanto mais avança o desen­volvimento de Jesus na luta permanente contra a tradição. Constata­mos como são reprimidas a mentalidade de lucro, a discriminação ra­cial, a representação do além com tons sensuais. Isto é, a mentalidademeritória é repelida de um modo, segundo a psicanálise, mais adequa­do e sábio que na rigorosa filosofia do imperativo categórico que des­preza o amor. O que Jesus exige em nome da sua religião em grandeparte opõe-se diretamente ao egoísmo, ainda queJesus, com grande sa­bedoria, não deixe de considerar de forma alguma o amor-próprio, etampouco tenha valorizado o masoquismo, como o praticado pelos as­cetas. A mansidão e a humildade, a negação de si mesmo e a recusa deacumular tesouros, a entrega da própria vida por amor aos mais subli­mes bens morais, em suma, toda a atitude de vida, como o crucificadodo Gólgota à demanda dos seus discípulos, é diametralmente opostaàs concupiscências da natureza humana originária. Ela corresponde,porém, a uma concepção mais elevada da natureza humana, certamen­te não derivada das baixas exigências pulsionais, mas que somente po­dia brotar de um realismo ideal conquistado sob duras aflições e surgi­do de uma grandiosa antropologia e cosmologia intuitiva. Na oraçãodeJesus desaparece toda a dimensão egoísta- a prece pelo pão diário,este mínimo para a subsistência, não é mais egoísta- reinam os ideaiséticos universais, e, acima de tudo, está a sujeição à vontade divina(\"Faça-se a Tua vontade\"). Isto não é a ausência de desejo do budismo,tampouco uma introversão patogênica.

É falsa a asserção de que, segundo a concepção cristã, tudo o que é:metoicvudidsoaaaddloeguasmeoxcnuroaislctéãriorsetnicaaunpviseidmraaodt.aeJrenrsoeunsaalréelmhsesadéletadaaecdnoofradntoiocacamolémemno.tAeIsqrluãe,nemúdneacvsieadmeà2se2r,3d0e).scSaerutaiddaesalams aeixspseucbtlaimtivea,sosreeninsuoadise da vida após a morte (Mt Deus, tem como cenário aterra e como conteúdo bens ideais éticos e religiosos, que não têmnada a ver com desejos pulsionais.Não obstante, talvez o opositor argumente: não correspondem àreligião ao menos desejos de natureza superior? - Respondo: é preci­so clarear a diferença entre desejo e postulado. O desejo busca sua sa­tisfação na alucinação e em outros fenômenos que foram explicitadospara nós por Freud, sem se importar com as situações reais. Assim,também conhecemos muitos fenômenos religiosos que dão este saltoilusório do desejo à suposição de um ser. Contudo, ninguém afirmaráque cada desejo chega à satisfação unicamente dessa maneira ilegítima.É possível buscar a satisfação dos desejos de um modo muito condi­zente com a realidade. Jesus notava em si imperativos de amor que contradiziam a tradi­ção sagrada. Ainda podemos observar nitidamente o estágio no qualele acreditava que poderia harmonizar as aspirações da exigência inte­rior com aquelas do mandamento \"mosaico\" (Mt 5, 17-22). Mas, comojá percebemos (v. 27ss, 33ss, 38ss), esse enfoque não conseguiu pene­trar em toda parte. Foi necessário chegar à ruptura total. O manda­mento interno tinha de derrubar o externo. Nesse caso, porém, estanecessidade moral interna tinha de se originar diretamente de Deus. Ecomo ela visava ao amor, Deus tinha de aparecer como amoroso, e nãomais como o Deus severo e ciumento do Antigo Testamento. Com istotambém ruiu, como demonstrado acima, o caráter obsessivo, de fabri­cante de angústia da Torá. Quando visamos a traduzir este acontecimento, que se desenrolouna alma de Jesus de modo intuitivo e inspirador, para penosos atoscognitivos, chegamos ao caminho do postulado. Este não diz: desejoisto e aquilo, por isto são reais. Pelo contrário, ele conclui: isto e aqui­lo é. Portanto, que é que preciso pensar como real, para que o que defato existe se torne compreensível, que tenha podido vir a ser e conti-

nuar sendo real? O postulado parte do existente que é reconhecido oupressuposto como assegurado e tira a conclusão de outro dado exis­tente, logicamente resultante do primeiro. De certo modo a ciência natural trilha por um caminho análogoatravés de suas hipóteses, que com a consolidação necessária sãotransformadas em teorias. Nesse caso, porém, trata-se de dados exis­tentes, dos quais se progride em direção a outros. No postulado, pelocontrário, o ponto de partida é formado por uma valoração ou um im­perativo. Kant, por exemplo, trata o categórico \"tu deves\" como oponto arquimediano e a partir dele postula um Legislador. Eu, pessoal­mente, parti de outra certeza ética, que justamente se impôs a mim apartir da apreciação tanto psicanalítica quanto sociológica: a determi­nação de amar ao próximo, a si mesmo e ao ideal absoluto. Nesta nor­ma, que resulta da particularidade do ser humano, porque o seu sercontém um dever, encontrei o lugar, a partir do qual tive de inferir umabsoluto como origem do ser e do dever, como aliás de todos os valo­res. Esta operação filosófica não é fundamentalmente outra coisa quea certeza empírica e intuitiva queJesus tinha de Deus. É flagrante quenessa constatação precisa ser sacrificada à dura prova da realidadeuma série de desejos da predileção pessoal, sim, até várias \"necessida­des\". E, se o próprio fundamento ontológico da destinação ao amorem sentido mais sublime é enfocado corno sendo intelectual e amoro­so, será que isto é realmente um contra-senso? Além disso impõe-se a pergunta: não será também na ciência afan­tasiafigurada portadora de conhecimentos válidos em forma de chara­da? Não se trabalha também no pensamento científico com os arautosdo antropomorfismo, que são ao mesmo tempo muito expressivos emuito dissimuladores? Começo pelo problema levantado por último. Ainda me lembro dagrata admiração com que li o estudo de Robitsek, na primeira ediçãoda Imago, sobre a produção científica do químico Kekulé von Stradowitzs.Segundo ele, a teoria da estrutura do benzeno surgiu de fantasias vi-8. A. Robitsek. Symbolisches Denken in der chemischen Forschung. ln: Imago I:85-90.

suais de pares e cobras dançantes; porém a razão desperta tinha deexaminar os sonhos. Precisamos ter o cuidado de não ver imediatamente corno produ­tos do desejo todas as concepções primitivas, que a nós, pensadoresrealistas do século XX, parecem fantásticas. Quando o nativo supõeque na água fervente está um animal vivo, que desejo o estaria moven­do? Não seria plausível para ele explicar a fervura desconhecida pelaanalogia com um fato conhecido por ele, de que um animal oculto cau­sa a agitação da água? E quando fenômenos e processos naturais são projetados em for­ças e entidades semelhantes ao homem, isto é uma ação privativa dareligião? Ou não será que encontramos este processo baseado em de­duções por analogia até mesmo nos ambientes mais imponentes dasciências naturais, sim, no próprio pensamento filosófico, disciplinadocom mais rigor? Falamos de \"força\", \"causa\", \"efeito\", \"lei\" e centenasde outros conceitos que há muito já foram considerados pela teoria doconhecimento antropomorfismos bastante grosseiros, mesmo que im­prescindíveis. Não é da mesma natureza o conceito de \"censura\"? A história das ciências é uma luta incessante com antropomorfismose outras projeções não autorizadas de fatos conhecidos sobre desco­nhecidos. Por que a religião e a teologia constituiriam uma exceção? Entretanto, a pergunta é se a teologia, que se ocupou com a reli­gião, teria ficado com um pé no estágio dos desejos. Sendo assim, temoseriamente (ou deveria esperá-lo?) que ela partilharia esta sorte, la­mentável para uma ciência, com as demais ciências, não excluídas asciências naturais e a história. Decididamente posso assegurá-lo comrespeito à filosofia9, e mesmo que se possa admitir que as ciências na­turais, rigorosamente exatas, tenham uma vantagem de objetividadepura, ainda assim carecem daquilo que o criticismo empirista procu­rou tão apaixonada e infrutíferamente: a experiência pura, da qual fi­cariam eliminados os acréscimos da subjetividade humana. Ao invésdisso, a abordagem das ciências naturais acaba na amarga constataçãode que somente observa uma manchinha superficial, que primeira­mente precisa ser admitida como uma aparência fulgurante. As cores9. Cf. meu artigo Zur Psyclwlogie des p/Jilosophischen Denkens. Berna, 1923.

se volatilizam em \"vibrações do fluido cósmico\", ao que se acrescentaresignadamente que o éter cósmico é um conceito auxiliar bastantequestionável. Os sons revelam-se como oscilações do ar, cuja unifica­ção numa melodia ou sinfonia não encontra espaço nos atos ou nomundo das ciências naturais. O átomo, que nos experimentos e pensa­mentos de vários milênios foi plenamente reconhecido corno partículasimples e imutável da realidade e galgado a sustentáculo de uma visãode mundo aparentemente assegurada cientificamente, esfacela-senuma bela manhã, corno um pedaço de carvão de pedra, sim, ele se trans­forma em outro elemento. Para a mais recente crítica científica a lei na­tural revela-se como um produto do desejo de que um acontecimentosempre deveria processar-se de forma igual sob as mesmas premis­sas - basta lembrarmos o constrangimento dos construtores de má­quinas e de pontes se fosse diferente! Se há um produto seguro nasopiniões revolucionárias das ciências naturais mais recentes e maiscríticas, ele é a conclusão de que nesse campo ficamos enterrados atéo pescoço nos desejos, e o pragmatismo, por mais que se torça o narizdiante dele, ao menos apresenta o lado positivo de ter desvelado o in­teresse do americano prático por uma exaustiva aplicabilidade da rea­lidade, ou seja, portanto desvelou, por trás do conhecimento, o panode fundo do desejo. A teologia legitimou-se ricamente quanto a uma não desconsiderá­vel disposição e capacidade de renunciar ao pensamento de desejo.Contudo, creio poder expô-lo de modo mais pertinente no final destanossa amigável discussão. Com a teologia também a religião se sub­meteu aos sacrifícios mais radicais e mais dolorosos para o desejo. Ademais, não se deve perder de vista que desde o início a religiãofoi capaz de absorver intensamente o saber sobre a natureza e os valo­res. Quem zombava do sol parado de Josué, deveria ter prestado aten­ção ao fato de que naquele tempo ainda não existia o conceito de umaordem natural consolidada e concluída, mas que ele foi introduzido naciência somente após dois milênios e meio, até que há pouco voltasse aperder boa parte de seu crédito. A cristandade resistiu por longo tem­po, até demasiado, contra Copérnico e a teoria da evolução, mas final­mente conformou-se com ela. Não constitui demérito que a cristandadenão partilhe de todos os modismos científicos. Uma série de naturalis­tas proeminentes, até na atualidade, não tem dificuldades de colocar

em sintonia a religião e a ciência, enquanto os de formação mais super­ficial alardeiam, nas rodas de cerveja, com mais facilidade que grandespesquisadores do nível de Freud, a incompatibilidade de ambas. Isso, contudo, não prova nada sobre a veracidade ou não da re­ligião. Que dizer, porém, das contradições do pensamento religios�?Já fa­lei do esforço sincero da teologia mais recente em superá-las. E dificilverificar se isso foi alcançado. Creio ter chegado a uma religiosidadeque dominou as contradições, mesmo que tenham sobrado enigmasnão resolvidos em cada passo, como em todas as áreas do pensamentohumano. Mas agora viro o feitiço contra o feiticeiro e pergunto: a ciên­cia empírica não está repleta de crassas contradições? Nem sequerpretendo apontar para conceitos \"capengas\" como o éter cósmico, su­postamente uma matéria, mas sem consistir de átomos, e que, apesardisso, foi saudado com cumprimentos submissos pelos cientistas na­turais mais honrados e tratado como um senhor distinto. Talvez, po­rém, cause a impressão de que renomados pesquisadores da naturezae da alma, como por exemplo Herbart e Wundt10, não atribuem à filo­sofia outra tarefa que a de superar as contradições subjacentes aos concei­tos empíricos e harmonizar os conceitos empíricos assim depurados.Então, não se deveria tratar de modo mais condescendente também areligião dos incultos e dos teólogos? Uma vez que Freud não pretendia examinar as contradições emparticular, limitando-se a declarar a maioria das doutrinas religiosascomo indemonstrável e irrefutável (42, 44), não posso ingressar comurna defesa do pensamento realista religioso em casos isolados. Quan­do consideramos que a ciência natural de hoje aprendeu a pensar comhumildade sobre o âmbito do realmente comprovável, admitiremosque no nosso problema é necessária máxima cautela, para que demodo algum exijamos de outros campos o que não temos em nossopróprio, e acusemos outros daquilo que nós mesmos praticamos. Comque moderação exemplar Freud fala da comprovação de suas proposi­ções! Igualmente devemos ter muita cautela para não tornar a unani-lO. N.T. Pfister, quando estudante de filosofia em Berlim, travou contato pessoalcom Wundt.

midade dos eruditos como depuração e validade de uma doutrina. Mui­tas vezes ela é apenas um sintoma de cansaço, e os pés dos coveirostalvez já estejam à porta. Diante dessas circunstâncias, que tornam nosso ativo científico umtanto duvidoso em relação ao passivo, temos de nos precaver aindamais do perigo de trapaça. Através de pensamentos de desejos e tole­rância de contradições não construiríamos um balanço mais favorável,mas abalaríamos o crédito ainda mais. Contudo, tampouco vemos mo­tivos de depositar todo nosso patrimônio no banco da ciência e consi­derar todos os demais bens culturais como supérfluos. É o que tratare­mos mais adiante. Quando Freud acusa a religião de confusão alucinatória, sem dúvidatem razão em relação a algumas, sim, a muitas de suas formas. No en­tanto, será que isto vale para todas as configurações da religiosidade?Não penso assim. Novamente parece que o grande mestre tem peranteseus olhos formas bem definidas e as generaliza. Creio até que ele foium freqüentador raro de cultos protestantes e que também honrou ra­ramente com sua visita a teologia crítica. Aliás,justamente nós, analis­tas, que pela primeira vez levamos cabalmente a sério a psicologia dotemperamento, sabemos muito bem que por trás da confusão alucina­tória pode estar algo grande e profundo. Quando Paulo atesta que suapregação da cruz é loucura para os incrédulos (1 Cor 1,23), isto nãoconstitui para ele um demérito. Para mim um fogoso espírito criativo,dionisíaco ou apolíneo que não considera suas revelações como vinhodecantado, mas como mosto em fermentação, é muito mais preciosoque um erudito sóbrio que consome sua força vital num estéril mala­barismo de conceitos e numa meticulosa exatidão. O grau de racionali­dade não constitui necessariamente um parâmetro de valor. Na verda­de, ajuventude impetuosa, com todas as suas \"doidices\" e tolices, temuma dianteira não pequena em relação à idade da sensatez. Não é pos­sível esperar com o comer e o beber até que os senhores fisiologistastenham terminado as análises dos alimentos e elaborado suas teoriasnutricionais até a plena satisfação. Os banhos radiativos prestarambons serviços por alguns séculos antes que fosse descoberto o rádio ecom ele a causa dos sucessos terapêuticos. Seria impensável que noâmbito intelectual o conhecimento das causas fique mancando peno-

samente atrás da posse de tesouros valiosos. A mim parece, franca­mente, que ao protestantismo atual, com sua crítica extraordinaria­mente feroz e aguda, restou antes pouco que demais do êxtase platô­nico e do escândalo paulino. E mesmo assim, na minha área, não consi­go outra coisa que exercer o princípio realista com rigor implacável,ainda que sob a constante preocupação de perder bens valiosos nasmalhas da definição conceitua! científica. E não esqueçamos: hipóteses científicas podem ser recusadas. Nasquestões práticas, de cuja resposta depende a construção da vida, pre­cisamos tomar posição, mesmo quando faltam comprovações irrefutá­veis. Do contrário, como se fundaria uma família, se abraçaria umaprofissão, etc.? Do mesmo modo reside também na religião uma confi­ança. Contudo, ai daquele que só se casa por desejo, que escolhe umaprofissão e assume uma fé religiosa sem levar em conta cuidadosa­mente a realidade!A religião como hostil à razão Não consigo aceitar que a religião em si seja hostil à razão. Freudescreve: Quando indagamos em que se funda sua reivindicação a ser acreditada, deparamo-nos com três respostas, que se harmoni­ zam de modo excepcionalmente mau umas com as outras. Em primeiro lugar, os ensinamentos merecem ser acreditados por­ quejá o eram por nossos primitivos antepassados; em segundo, possuímos provas que nos foram transmitidas desde esses mes­ mos tempos primevos; em terceiro, é totalmente proibido le­ vantar a questão de sua autenticidade (38). Admitamos que aqui e acolá tenham surgido argumentações horrí­veis como essas. Mas que cristão instruído se contentaria hoje comelas? Nós, protestantes, é certo que não. Criticamos a Bfblia e os dogmascom a mesma radicalidade que a Homero e Aristóteles. No que concer­ne aos católicos, eles ao menos antepõem à sua dogmática uma apolo­gética que visa a corresponder às demandas da razão. Podemos comofilósofos negar a necessidade racional dessa apologética, como alunosde Freud diagnosticá-la como racionalização, como protestantes rejei-

tar ao menos uma parte dela como lettre de cacheí.1 1 , ainda assim sobraum trabalho intelectual digno de respeito. Nós, protestantes, sabemos muito bem quanto devemos à razãopara a nossa religião, para que não lhe neguemos totalmente o espaço.Embora Lutero não tenha concedido à razão os direitos que lhe ca­bem, ele não deixou de ser teólogo e pensador científico, do contráriojamais se teria tomado o reformador. Zwinglio passou pela escola hu­manista, o que rendeu para sua teologia e devoção não somente amansidão, mas também a clareza. Até o soturno Calvino, o temível in­quisidor-mor de Genebra, foi capaz de tornar seu pensamento jurídicoacessível à sua teologia, semelhante a uma fortaleza. A religião dos re­formadores também foi o resultado de seu pensamento de professo­res com formação científica. A teologia mais recente, que produziu eainda produz frutos consideráveis pela negação radical, está conscien­te de que presta os melhores serviços à religião justamente através deseu rigoroso raciocínio realista. Em minhas cercanias jamais ouvi falar da proibição de refletir so­bre assuntos religiosos. Pelo contrário, nós, pastores protestantes,exigimos de nossos alunos o livre pensamento crítico. Isso é óbviopara os pastores de orientação liberal, mas também conheço-o em re­lação a muitos conservadores. Tranqüilizamos pessoas atemorizadas,acometidas por aflições de fé, através da afirmação de que Deus amaao sincero que tem dúvidas e de que uma fé fortalecida pela razão émuito mais valiosa que uma fé simplesmente copiada e aprendida. Exi­gimos e cultivamos o livre pensar também na religião dos adultos. Segundo Freud, a razão seria debilitada pela religião. É verdadeque ele acrescenta logo após que o efeito da proibição religiosa depensar talvez não seja tão negativo quanto presume (62). Não obstan­te, ele sustenta que valeria a pena tentar uma educação livre (64) dodoce veneno da religião (63). Historicamente podemos indicar umalonga cadeia de pensadores, dos mais profundos e independentes,que inegavelmente enriqueceram de forma inestimável a vida intelec­tual da humanidade, e que aderiram simultaneamente à ciência e à re-11. N.T. Carta com o sinete do rei, contendo uma ordem de prisão ou exílio sem jul­gamento.

ligião - freqüentemente com maior devoção à religião. Não posso crerque Freud suponha que teriam criado algo mais magnífico se nunca ti­vessem ouvido nada a respeito de religião. Médicos como HerrmanLotze, Wundt, Kocher; físicos como Descartes, Newton, Faraday, Ro­bert Mayer; químicos como Justus Liebig; biólogos como OswaldHeer, Darwin, Pasteur, K.E. von Bar; matemáticos como Leibnitz, Pas­cal, Gauss; geógrafos como Ritter; historiadores como Johannes vonMUiler, Carlyle, Niebuhr, L. von Ranke; estadistas como Lincoln, Glads­tone, Bismarck; filósofos como Kant, Fichte, Schelling, Hegel, Herbart,Ruskin, Eucken, Bergson; poetas como Goethe, Schiller, Rückert, Bitzi­us, Gottfried Keller, K.F. Meyer, Geibel - de uma longa cadeia de no­mes brilhantes tão-somente escolho rapidamente alguns - afinal, nãorevelam deficiências intelectuais, apesar de terem crido em Deus. Eurealmente não saberia de nada que justificasse a suposição de que suamente se teria elevado para feitos ainda maiores se a religião não ti­vesse cruzado seu caminho. Uma parte dos citados encontra-se muitoacima da média dos crentes em matéria de fervor religioso, quando narealidade, em vista de suas grandes realizações intelectuais, se deveriasupor o contrário, caso o risco de tomar alguém ignorante estivessetão intimamente ligado à religião. Também podemos indicar como, em passado recentíssimo, foi jus­tamente através do pensamento que alguns cientistas naturais impor­tantes chegaram à certeza, ou pelo menos à probabilidade, da existên­cia de uma vontade construtiva do universo (Einstein, Becher, Dri­esch). Contudo, nem mesmo nessas autoridades basearemos a de­monstração da veracidade da religião. No passado, Freud ressaltava que o impulso de pensar das criançasseria prejudicado se a pergunta pela origem dos objetos da naturezafosse respondida com a referência sumária a Deus. Concordo com ele,mas gostaria de perguntar se o resultado seria diferente se dissésse­mos: a natureza os criou. Ademais ressalto que no ensino religiososempre indicamos que Deus age nosfenômenos da natureza e através doagir humano. Eu próprio recordo que meu pensamento foi ricamente fertilizadopela religião. Foram estimulados inúmeros problemas de raciocínioque, afinal, têm de ser tratados em dado momento, porque não se

pode brincar de avestruz em relação à vida. Magníficos vultos históri­cos foram-me apresentados, e formou-se o senso de grandeza e neces­sidade moral. Eu sentiria como uma perda irreparável se me fossem ar­rancadas as memórias religiosas da minha vida. Também o fato de a Bí­blia ter sido me apresentada como infalível palavra de Deus aguçoumeu pensamento. Ainda me lembro que, aos doze anos, após uma lei­tura sobre o dilúvio, corri ao museu zoológico para comparar as medi­das da arca com as daquelas estantes de vidro e, com base nelas, for­mular uma teoria infantil da evolução. Ao mesmo tempo, porém, assu­mi uma atitude cética em relação à Bfblia, que mais tarde se transfor­mou em crítica independente. No que se refere ao experimento sugerido por Freud sobre umaeducação sem religião, ele na verdade já foi realizado muitíssimas vezese há muitos anos é aplicado em massa nos círculos comunistas. Em mi­nhas análises freqüentemente tive de lidar com pessoas educadas semreligião, mas realmente não posso assegurar que tenha encontradonelas um adicional de inteligência, respectivamente um desenvolvi­mento mais vantajoso das bases do raciocínio, da mesma forma cornoeu tampouco teria reconhecido os ateus corno superiores entre os filó­sofos, p. ex., em Karl Vogt ou Moleschott (sob certas condições tam­bém podemos incluir Hackel). Até aqui a história, em todo caso, profe­riu outra sentença.A religião como proteção da cultura Resta-nos examinar a religião como proteção da cultura. Com essaafirmação Freud lhe atribui uma missão policial. A religião, é claro, desempenhou grandes serviços para a civili­ zação humana. Contribuiu muito para domar os instintos asso­ ciais. Mas não o suficiente. Dominou a sociedade humana por muitos milhares de anos e teve tempo para demonstrar o que pode alcançar. Se houvesse conseguido tomar feliz a maioria da humanidade, confortá-la, reconciliá-la com a vida, e transfor­ má-la em veículo de civilização, ninguém sonharia em alterar as condições existentes. Mas, em vez disso, o que vemos? Vemos que um número estarrecedoramente grande de pessoas se mos­ tram insatisfeitas e infelizes com a civilização, sentindo-a como umjugo do qual gostariam de se libertar; e que essas pessoas fa-

zem tudo que se acha em seu poder para alterar a civilização, ou então vão tão longe em sua hostilidade contra ela, que nada têm a ver com a civilização ou com uma restrição do instinto (49)12• Consigo concordar plenamente com Freud quanto ao fato de que areligião às vezes não comprovou singularmente sua competência comopolícia cultural. No entanto, acrescento: parece-me uma felicidade quetenha sido assim, pois a religião tem coisas mais importantes a fazerque proteger a mistura de sublimidades e atrocidades que hoje se cha­ma cultura. Por cultura Freud compreende \"tudo aquilo em que a vida humanase elevou acima de sua condição animal e difere da vida dos animais\"(16). A diferença entre cultura e civilização é rejeitada. \"Por um lado,inclui todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu como fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para asatisfação das necessidades humanas; por outro, inclui todos os regu­lamentos13 necessários para ajustar as relações dos homens uns comos outros e, especialmente, a distribuição da riqueza disponível\" (16). Tenho de confessar que, a meu ver, naquilo que distingue o ser hu­mano do animal encontram-se muitas coisas vergonhosas e danosas.Conhecimento e capacidades, os bens para a satisfação das necessida­des humanas, as instituições para regulamentar as relações sociais edistribuir os bens, tudo me parece tão impregnado de crueldade, in­justiça e germes tóxicos que a religião realmente não tem motivospara se empenhar pela conservação do estado atual das coisas. Guerra,ganância, obsessão por prazer, miséria em massa, espoliação, opres­são e outros males incontáveis apontam para a necessidade de dife­renciarmos, no que se chama de cultura, entre o bom e digno de prote­ção, e o mal que deve ser combatido. Parece-me até que o cristianismo12. N.T. Preferimos a tradução livre da última frase:. \"Mas o que vemos ao invés dis­so? Que uma parcela assustadoramente grande de pessoas está insatisfeita com acultura e infeliz nela, que a percebe como umjugo que precisa ser sacudido, que es­sas pessoas investem todas as suas forças a serviço da mudança cultural ou vão tãolonge na hostilidade à cultura que não desejam saber nada de cultura e cerceamentodas pulsões\".13. N.T. Preferimos \"instituições que são necessárias para regulamentar os relacio­namentos entre as pessoas...\" a \"regulamentos\", mais fiel ao original.

levado a sério deve aspirar a revoluções muito profundas em relação ànossa cultura, que se mostra tão superficial e tão atrofiada de valoresinteriores, principalmente de valores de caráter. E o estudo da psica­nálise reforçou minha opinião. A religião não deveria tornar-se paranós uma polícia conservadora, mas guia e luz para a verdadeira cultu­ra, retirando-nos da nossa cultura de aparências. Igualmente me pareceria indigno à religião, se com Freud lhe atri­buíssemos a tarefa de proporcionar consolo para as renúncias pulsionaisexigidas pela cultura, por assim dizer, de fornecer focinheiras ou alge­mas para as massas anti-sociais. Pelo contrário, dominar os instintosanimalescos (até onde prejudicam o bem-estar e a dignidade humana)deve ser somente o reverso da solução de uma tarefa positiva: a reli­gião deve desencadear as mais sublimes forças intelectuais e de cará­ter, fomentar as realizações mais elevadas na arte e na ciência, preen­cher a vida de todos, também dos mais pobres, com os bens máximosda verdade, da beleza e do amor, ajudar a vencer as aflições reais davida, abrir caminho para novas formas mais substanciosas e autênticasde vida social. Assim pode dar vida a uma humanidade mais nobre erica interiormente, que corresponda melhor às exigências da naturezahumana e da ética do que a nossa tão glorificada não-cultura, queNietzsche já descreveu como uma tênue casca de maçã sobre um caosardente. Subestima-se completamente a essência do cristianismo quan­do se presume que ele oferece o céu como substituto para a terra en­tregue à miséria. \"Venha a nós o teu Reino!\", reza o Pai-Nosso, incum­bindo da obrigação de aplicar todas as forças em favor deste reino deDeus na terra, assim como os mandamentos do evangelho tambémsão destinados à vida terrestre. \"Antes que faças a tua oferta perante oaltar, vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão!\", exige o Sermão doMonte (Mt 5,24).Jesus não tem culpa de que a cristandade tantas vezescompreendeu erroneamente essa exigência. Freud nos propiciou apossibilidade de reconhecer por que, através de um processo neuróti­co obsessivo, as intenções do fundador da religião cristã foram detur­padas muitas vezes para uma caricatura14•14. N.T. Este é o tema central da obra magna de Pfister. Das Christentum und díeAngst. Berna: Bircher, 1944. Em inglês: Chrístianity and Fear. London: Allen andUnwin, 1944.

Não há realismo mais autêntico que o cristianismo. Apenas não se deveesquecer que pertence à realidade não somente o concreto, perceptí­vel pelos órgãos olfativos e outras janelinhas da alma, mas tambémaquilo que está atrás das janelinhas, no fundo da alma e atrás das fon­tes de estímulo dos nossos sentidos. Obviamente há necessidade deuma visão essencial mais profunda e de uma filosofia de valores paracompreendermos que abandonar essas realidades superiores situadasalém do palpável e maciço apenas conduz a um realismo ruim. Em de­corrência, adiaremos essa questão por um momento.O cientificismo de FreudA crença de que a ciência trazfelicidade à humanidade À fé religiosa Freud contrapõe a fé no poder da ciência como fontede felicidade. Na ciência Freud inclui apenas a empírica. Nela a ilusãocedeu à verdade. Aparentemente a questão \"Que é ciência?\" lhe causamenos preocupações que a ponderação paralela de Pilatos, \"Que é ver­dade?\" Freud é positivista, e podemos agradecer a Deus por isso. Sema sua dedicação concentrada no empírico ele não se teria transforma­do no grande desbravador. A um pioneiro tão genial e bem-sucedidopodemos conceder o crédito de que, no momento em que tenta es­trangular a ilusão da religião, ele erija o messianismo da ciência, semnotar que também nesta crença a ilusão se alastra. Mas concedamos primeiramente a palavra ao mestre. Freud é umacabeça genial demais para que se entregue cegamente à fé vulgar eacrítica na onipotência das ciências naturais. Ele não se detém dianteda afirmação \"se nossa convicção de que podemos aprender algo so­bre a realidade externa pelo emprego da observação e do raciocíniono trabalho científico\" que já tem fundamentação suficiente (47). Emtom genuinamente filosófico ele continua: Nada deveria impedir-nos de dirigir a observação para nossos próprios eus e de aplicar o pensamento à crítica dele próprio. Nesse campo, uma série de investigações se abre a nossa frente, cujos resultados não podem deixar de ser decisivos para a cons­ trução de uma Welta11schaw111g [visão de mundo]. Imaginamos, ademais, que um esforço desse tipo não seria vão e que, pelo menos em parte, justificaria nossas suspeitas (47).

O autor, porém, não dispõe dos meios para empreender tarefa tãoabrangente; necessita confinar seu trabalho ao seguimento de apenasuma dessas ilusões, a saber, a da religião (47). Entretanto, mais adiantea ciência experimental é tratada com otimismo, que se eleva até audacio­sas perspectivas de futuro. Depois de renunciar à religião o ser huma­no ampliará seu poder com a ajuda da ciência e aprenderá a suportaras grandes contingências do destino precisamente com resignação(64). É verdade que Freud imediatamente admite que talvez tambémesta esperança seja de natureza ilusória (67). Como? Nesse caso, possi­velmente apenas teríamos de trocar a ilusão religiosa pela científica?Seria a diferença que uma com certeza nos faz de bobos e a outra tal­vez o faça? Em decorrência, ainda ficaríamos no estado de incerteza, ea última palavra pertenceria ao ceticismo, que ao menos não duvida daafirmação de que a dúvida tem sua plena legitimação lógica? No entanto, Freud mostra que não é apenas a religião que sabeconsolar. Cavalheirescamente ele defende o intelecto: A voz do intelecto é suave, mas não descansa enquanto não con­ segue uma audiência. Finalmente, após uma incontável suces­ são de reveses, obtém êxito. Esse é um dos poucos pontos so­ bre o qual se pode ser otimista a respeito do futuro da humani­ dade, e, em si mesmo, é de não pequena importância. E dele se podem derivar outras esperanças ainda. A primazia do intelecto jaz, é verdade, num futuro muito distante, mas provavelmente, não num futuro infinitamente distante. Presumivelmente, ela es­ tabelecerá para si os mesmosobjetivos que aqueles cuja realiza­ ção você espera do seu Deus (naturalmente dentro de limites humanos, na medida em que a realidade externa,Ananke, permi­ ta), a saber, o amor do homem e a diminuição do sofrimento. As­ sim sendo, podemos dizer-nos que nosso antagonismo é ape­ nas temporário e não irreconciliável. Desejamos as mesmas coi­ sas, mas você é mais impaciente, mais exigente e - por que não dizer? - mais egoísta do que e os que se encontram do meu lado. Você faria o estado de bem-aventurança começar direta­ mente após a morte... (68). Acreditamos ser possível ao trabalho científico conseguir um certo conhecimento da realidade do mundo, conhecimento através do qual podemos aumentar nos­ so poder e de acordo com o qual podemos organizar nossa vida. Se essa crença for uma ilusão, então nos encontraremos na mes-

ma posição que você. Mas a ciência, através de seus numerosos e importantes sucessos, já nos deu provas de não ser uma ilu­ são\" (69). Ela continuará a evoluir e a se refinar. \"Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar (71 ). Com esta frase, de excelente conseqüência lógica, Freud encerrasua profecia do nauji·ágio da religião, e do glorioso absolutismo da ciên­cia. O deus Logos [razão] derruba do trono o Deus da religião e gover­na no reino da necessidade, sobre cujo sentido por enquanto aindanão sabemos o mínimo.Iluminação histórica Lembremos apenas rapidamente que também este ideal científico,como deve ser bem sabido por Freud, repousa sobre um passado dignode honra. O criador da psicanálise talvez tenha empreendido apenasum aguçamento, na medida em que, em seu positivismo, isolou maisfortemente do que foi usual o conceito de ciência diante da filosofia.Seu empirismo é totalmente diferente daquele dos empiristas ingle­ses, que se apoderam com máxima precisão do mundo da experiência,mas que paralelamente, no agir, deixavam a condução não mais à ciên­cia, mas ao instinto natural e à consciência, ou até, como John StuartMill, educado absolutamente sem religião, ainda buscavam apoiar-sena religião15• Ofuturo de uma ilusão também se afasta totalmente do po­sitivismo de Augusto Comte, que primeiro destroça o patamar do pen­samento mitológico e depois o do metafisico, para entoar o louvor dasciências específicas como único caminho de salvação. Em seguida, po­rém, tenta explicar o mundo a partir do sentimento ético do ser huma­no e constrói uma religião da humanidade altamente romântica e fan­tástica, o que vem a ser um testemunho bastante divertido de que seucientificismo, baseado decididamente num fundamento amplo, não ésuficiente. Também David Friedrich Strauss, que parece aproximar-sebastante de Freud com seu materialismo mecânico, fazendo uma in­cursão na filosofia apenas mediante a suposição de um \"universo sen­sato e bondoso\", a qual o adversário da ilusão religiosa dificilmente15. O. Pfleiderer. Geschichte der Religionsphilosophie. 3. ed., p. 606.

poderia compartilhar, postula uma ética que de forma alguma se sa­tisfará plenamente com a produção científica. Dos filósofos por mimconhecidos, o Barão von Holbach é quem mais se aproxima de Freud,porque já deriva o surgimento da idéia de Deus a partir do desejo detornar as forças da natureza acessíveis à influência por oração e porsacrifícios, através da sua humanização. Holbach combate a utilidadeda religião e por isso busca aniquilá-Ia, e coloca a felicidade perenecomo alvo do anseio humano16• É óbvio que, como empírico, Freudsobrepuja em muito ao materialista do séc. XVIII e se fecha à sua meta­fisica banal.O otimismo de Freud diante da ciência Agora estamos perante a tarefa de examinar o otimismo de Freudem relação à ciência. Primeiramente cabe focalizar claramente o queele entende por ciência e até que ponto vai seu otimismo. Para o primeiro ponto não obtemos informações detalhadas. Até opresente a atitude do maior dentre os novos pioneiros no campo davida anímica foi decididamente refratária à filosofia. Agora, porém,descubro, para minha satisfação, que a princípio Freud atribui valida­de à teoria do conhecimento na medida em que lhe cabe responder àquestão se somos capazes de experimentar algo da realidade externa.Embora Freud se exima humildemente da tarefa, como ouvimos, elemesmo assim declara que a ciência deve restringir-se à explanação domundo do modo como este se nos apresenta em virtude das caracte­rísticas da nossa organização (71 ), e que o problema da constituiçãodo mundo sem a consideração de nosso aparelho anímico perceptivo émera abstração (71 ). Nesse caso, Freud, de fato, teria produzido resultados teóri­co-epistemológicos sem uma teoria prévia do conhecimento. Ele su­põe como evidente que só temos a tratar com o mundo sensível. Con­tudo, a natureza da ciência não consiste sempre em decompor estemundo perceptível e contrapor-lhe abstrações que nos proporciona­rão o entendimento daquele mundo dos sentidos? Conforme já ouvi-16. R. Falckenberg. Gesc/úchte der neueren Philosophie, p. 208ss.

mos, a ótica decompõe as cores em vibrações de \"corpos\" incolores,que novamente são privados de sua \"corporalidade\" pela física e quí­mica e decompostos em energias, elétrons e outras abstrações nãocorpóreas. Em lugar algum vemos ou cheiramos a causalidade, emnossa interpretação a introduzimos nas aparências. Afinal, deixemos claro que o \"aparelho anímico perceptivo\", que,segundo Freud, deve ser levado em conta por toda investigação sobrea constituição do mundo, de modo algum representa uma figura nítida,protegida de equívocos. Porventura posso medir temperaturas com otermômetro sem estar seguro da confiabilidade do instrumento? Pode­mos ignorar toda a história da filosofia mais recente, que começa emDescartes com ceticismo absoluto, destroça em Hume a ilusão das cau­salidades seguras, derruba em Kant a ilusão do saber empírico enquan­to apreensão do mundo como tal, e conjurou, na mais nova ciência na­tural, um verdadeiro ocaso dos ídolos? Será que ainda não compreende­mos em que labirintos científicos nos metemos quando acolhemos levi­anamente conceitos da teoria do conhecimento e da metafísica sob odestaque enganador das ciências naturais? Porventura esquecemoscomo a ciência natural nos enganou com seu conceito de lei natural,de átomo, de atmosfera, da fórmula cósmica de Laplace, etc.? Não há ciência natural sem metafísica, nunca houve nem haverá. Eupróprio passei pela escola do criticismo empírico e procurei por \"ex­periência pura\" durante alguns semestres, no sentido de um conheci­mento da realidade que estivesse completamente livre de todos os in­gredientes subjetivos. Que tentativa vã! O mundo só nos é acessívelatravés da nossa organização anímica, isto é, não apenas pelos por­tões dos nossos sentidos, que na realidade ainda não possibilitam ne­nhum conhecimento. Nossas categorias de pensamento, independen­te de as pensarmos à maneira de Kant ou de outro, sempre interferem.Por isso ternos de fomentar a crítica epistemológica. Além disso, preci­samos de conceitos como o de causa e efeito, mesmo que tenham sidoclassificados como antropomorfismos pela sua origem. Precisamos deátomos e moléculas, e assim por diante. Quem teme a abstração preci­sa tirar as mãos da ciência. O próprio ato de medir e pesar tem a vercom abstrações, pois conceitos numéricos, como todos os conceitos,naturalmente são abstratos. A filosofia encetada imediatamente ondetermina a experiência se entrelaça com as ciências empíricas, e quem

não se aprofunda seriamente em problemas filosóficos o faz como umlaico confuso. Ademais, como seremos capazes de solucionar a questão religiosa sedesconsideramos as questões básicas da teoria do conhecimento? Nãorepresenta simplesmente um dogmatismo negativo declarar, por decisãoarbitrária, que não existem uma vontade e um sentido universais? Quando se acredita que a filosofia é uma mania de cabeças distan­tes da vida e da realidade, cabe referir ao fato de que a história da filo­sofia exibe uma série de nomes brilhantes de pessoas que realizaramgrandiosidades na física, matemática, astronomia, etc. Quando aindahoje um cientista da estatura de um Driesch, que atuou durante vinteanos nas ciências naturais, coroado de glórias, passa à filosofia, quan­do psiquiatras tomam o mesmo rumo, isto deveria assinalar que a filo­sofia não trata apenas de manias e quimeras, e sim de uma realidadecuja existência não pode ser descartada facilmente. A meu ver estemundo de ordem intelectual, que pode ser depreendido do mundoempírico, se apresenta a nós com mais segurança que o mundo dossentidos, que com certeza é enganador. Obviamente alguém podesimplificar as coisas e aderir ao agnosticismo. Contudo, tampoucoessa declaração de falência da razão é algo tão fácil assim. Por conseqüência, não consigo saber do conceito corriqueiro deciência de Freud até que ponto vai o conhecimento, que grau de confia­bilidade ele pode atingir e que chances lhe são atribuídas. Como possosaber, então, se existem ou não um fundamento intelectual originárioe uma vontade cósmica ordenadora e, portanto, pensante? Como sa­berei se a expansão do poder através do conhecimento representa umacréscimo de felicidade para a humanidade ou não? Agora também temos condições de nos ocupar com o prognósticocientifico de Freud. Não é possível falar que ele nos presenteia com umdedo rosado de Éolo. Freud é um homem por demais sério e honestopara fazer promessas de que não esteja convicto de ser capaz de cum­prir. O homem há de ampliar seu poder com o auxílio da ciência - nãonos é dito até que ponto- e de aprender a suportar resignadamente asgrandes contingências do destino. Isto é tudo, realmente tudo. Masserá que com isso Freud já não afirmou demais? Não poderia a culturaruir em breve? O ocaso do Ocidente não nos foi anunciado por um ho-

mem cujo saber é reconhecido em todos os quadrantes? Seria impen­sável que uma cultura guiada somente pela ciência sucumbirá às pai­xões selvagens, depois que a guerra mundial desvelou a barbárie ocul­ta nas profundezas dos povos? Não nos asseguram Eduard von Hart­mann e muitos outros que o crescimento das ciências apenas multipli­ca nossa miséria? É tão líquido e certo que o desenvolvimento científi­co multiplicou a soma total da alegria humana de viver e, se esse foi ocaso até aqui, há garantias de que sempre o será? É verdade que nossentimos mais felizes que há cem anos? É esse o caso pelo menos en­tre os eruditos? Porventura os operários se sentem mais satisfeitos,graças às bênçãos da ciência, que há algumas gerações? Ou os arte­sãos? Ou os agricultores? O que acontece com as mais belas conquis­tas da técnica, quando são forçadas a servir à ganância humana, à cru­eldade humana, à desumana sede de prazer? O prognóstico cientifico de Freud baseia-se em uma simples deduçãopor analogia, que não considero segura. É a seguinte: pelo fato de queaté o presente o desenvolvimento científico trouxe vantagens aos hu­manos, o mesmo também acontecerá no futuro. Ou melhor, no fundoestá uma crença na ciência, cuja base Nietzsche avistou com seusolhos de falcão, formulando-a com as palavras: Devem ter captado a questão... ou seja, que sempre resta umafé metafisica, sobre a qual repousa nossa fé na ciência - que tam­ bém nós, descobridores de hoje, nós, ateus e antimetafisicas, ainda retiramos o nosso fogo da fogueira acendida por uma fé de milênios, aquela fé cristã que também foi a fé de Platão, de que Deus é a verdade e que a verdade é divina... Mas como será, se justamente isso se torna cada vez menos digno de crédito...?17 Acaso sabemos através de um oráculo que o conhecimento semprecontribuirá para o fomento da felicidade humana, mesmo quando pai­xões maléficas forem determinantes? Byron lamenta: \"A árvore do sa­ber não é a árvore da vida!\" O conhecimento exato será capaz de refu­tá-lo? E quando arde em nós um impulso faustiano de saber, será queas ciências naturais e a medicina (a filosofia e a teologia ficam excluí-17. Nietzsche. Diefro/Jliche Wisse11sc/wft. Vol. 6, p. 301 [edição de bolso].

das) nos podem satisfazer, ou será que também o coração do Faustode hoje quase está sendo consumido? Freud prevê que aprenderemos a suportar com resignação as contin­gências do destino. Bem, disto muitos também foram capazes desdetempos antigos sem ciência, e ainda que me incline perante a grande­za da alma do ateu que reúne esta resignação, quem me garante, que epor que justamente a resignação tem de ser a última palavra? Algunsmeteram desesperadamente uma bala na cabeça, mesmo se encon­trando nos altivos pináculos da ciência. Outros se consumiram numódio selvagem contra a vida, procurando anestesiar-se com excessos,outros introverteram-se com e sem o gentil convite para aderir a umamística hostil ao mundo, etc. Não será que, por trás da crença de Freud no triunfo final do inte­lecto, está o desejo, e que sua profecia do fim de uma ilusão engloba osurgimento de uma nova ilusão, a saber, a ilusão científica? Combinacom a humildade de Freud que o desfile não venha precedido de fan­farras e bandeiras, mas aconteça de modo bastante abafado e com pas­sos tateantes. Contudo, não consigo aderir.justamente porque o prin­cípio da realidade se interpõe como advertência.A crença de Freud na suficiência da ciência \"Seria ilusão o crer que podemos obter de outro lugar aquilo queela (a ciência) não é capaz de nos dar\" (71 ). Nestas palavras culmina aconfissão de fé de Freud. Do contexto depreendemos que ele tem emvista o conhecimento acerca do mundo. Mas a disposição de todo o li­vro revela que nessa afirmação ele está pensando, como já fez anteri­ormente (64), no substitutivo pleno para aquilo que a religião oferecia. Por mais que eu acompanhe Freud com alegria e entusiasmo nomaravilhoso caminho da sua ciência experimental, neste ponto é im­possível para mim manter o passo com ele. Aqui o brilhante intelectode Freud excede-se num intelectualismo, o qual, extasiado pelos seussucessos, esquece seus limites. Nós, pessoas;- não somos apenas aparelhos de pensar, somos entesvivos, sensitivos e volitivos. Precisamos de bens e valores, necessitamos

pdoqsauueemntaarssloecagsoro.smpeNqruãcedoelceaisrstseearaasztiptnasae,ofmaresçaoaomqsfu,ne?enorNeasncsãoaaeonsrsaet,evlrumi�aslzerooea,rçmcecõiosoeo,mcsstí,nadfanirenoetnioqmqtu-ru�eoea�snnsdlceo�e1samgsnidocoóeorqsrspueuqeemmsruesaadorne.actTsooinanqatmsuancebmiiçêépbãnmeoécnmioea­que nos julga ou recompensa? Não foi comprovado justamente pela psi­canálise o poder do sentimento de culpa? Não é Freud que explicita demodo mais claro que qualquer outro no mundo o significado supremoda valoração, dos sentimentos, dos afetos e das pulsões? É sabido que o intelecto não é capaz de atribuir valores. O mais aguçadoraciocínio não sabe avaliar se uma sinfonia de Mahler ou uma pinturade Hodler são belas. O homem mais inteligente é capaz de aplaudir,sem conflitos internos, uma traição infame ou zombar de uma morteheróica a serviço da verdade. Um canalha sem coração pode disporde uma inteligência lúcida, e uma pessoa intelectualmente fraca é ca­paz de se indignar diante de uma perfídia. A ciência carece da capaci­dade de avaliar grandezas estéticas e éticas. Sim, parece que aindaescutamos ressoar a definição de Aristóteles a respeito do cérebrocomo uma câmara de refrigeração, quando a razão - não somente emEspinoza - é caracterizada ou enaltecida como uma função de abran­dar os sentimentos. É flagrante que Freud precisa abrigar em algum lugar de seu edifí­cio científico os valores afetivos, dos quais sua própria vida evidenciauma riqueza tão admirável. Contudo, não consigo encontrar este lugarem seu conceito de ciência. Tampouco vejo onde ele deixa colocados os templos da arte. Serárealmente que a arte é somente um sinal de falta de análise e de fra­queza? Poderia a ciência substituir a perda de sinfonias de Beetho­ven ou sonatas de Reger? E as maravilhosas obras de arte egípcias,helênicas, cristãs, deveríamos sacrificá-las em troca de princípios eachados científicos? As maravilhosas catedrais, que perfazem o orgu­lho e deleite de nossa geração, as pinturas inspiradas pelos senti­mentos cristãos de Fra Angelico, Leonardo da Vinci, Albrecht Dürer,Holbein, até Gebhardt, Thoma, Steinhausen, a Pietá de Miquelânge­lo, do Criminoso na cruz ou o Filho pródigo de um Meunier, etc., tudoisso deveria desaparecer? Haveria de secar a vertente da poesia cris-

tã, promanada nas ondas prateadas do Natã de Lessing, do Fausto deGoethe, do Idiota de Dostoiewski, da Ressurreição de Tolstoi, etc., eno lugar da verde campina somente restaria a charneca agreste18 dateoria, sobre a qual os fantasmas do engano voariam ameaçadora­mente? Ao cético, que nem sequer consegue lamentar-se com Faus­to: \"Ó, feliz quem ainda é capaz da esperança de emergir desse mardo engano!\"19 - a ele mostraríamos obstinadamente o glorioso futu­ro da ciência nos próximos séculos? Para mim, a arte continua sendo o arauto bendito de profundosmistérios e preciosos tesouros, que escapam e escaparão aos óculosdos eruditos, um milagre que sacia almas famintas, uma mensagem depaz do reino dos ideais, que nenhum punho de pensador jamais conse­guirá derrubar, porque seguramente pertencem mais à verdadeira rea­lidade que as materialidades palpáveis e demais falsificações dqs sen­tidos. Eu necessitaria de exposições longas para elaborar essas idéias.Então caberia ao intelecto apenas o papel explicativo, que honra e ser­ve ao gênio criador. Como fico horrorizado diante de um Estado deeruditos privado da arte2º! Muito menos pode a ciência experimental substituir para nós o rei­no dos valores e das forças éticas. A própria ciência precisa afiliar-se à fi­nalidade ética, se não quiser decair para um empreendimento duvido­so. Quem poderia contestar que em Freud ela pertence a um plano éti­co e o ajuda a cumpri-lo? Em seu livreto, porém, se vejo corretamente,não foi dedicado espaço a essa apreciação ampla. Não nos encontra­mos mais no solo socrático da doutrina de que saber em si já é poder.O alcoólatra, que sabe que será arruinado pelo vício, nem por isso pos­sui a força de romper com ele. Também o conhecimento analítico dadinâmica do inconsciente e das suas raízes mais profundas por si sóainda não auxilia, como hoje sabemos, na libertação do seu jugo. Freudnos ensina que as pulsões aprisionadas igualmente precisam ser redi­midas na transferência.18. N.T. Weide e Heide-Jogo de palavras no original alemão entre \"campina\" e \"char­neca\". Esta última é uma terra pobre e arenosa, que dá flores agrestes e ásperas.19. Oh, glück/ic/1, wer noch hoffe11 kan11, aus diesem Meer des lrrtums aufzutauc/1e11!20. N.T. Jogo de assonância entre ge/ehrt [erudito] e entleert [esvaziado, privado].

Será realmente pacífico que com a ciência crescente a mentalidadedas pessoas também é purificada? Não foi Alexander von Õtingen quedemonstrou, em termos percentuais, que há maior número de crimi­nosos entre os eruditos do que entre os de intelectualidade média?Não encontramos com freqüência entre os acadêmicos uma mentali­dade incrivelmente mesquinha? Quando a escola pública foi criada, háquase um século, esperava-se uma rápida diminuição da criminalida­de. E agora? Donde extraímos a certeza de que no futuro o acréscimo de ciên­cia e técnica produzirá magicamente um incremento das forças éticas?Na luta contra o alcoolismo experimentei com clareza suficiente comoé pouco o que se consegue com argumentos científicos. E mesmoquando as repressões deveriam estar superadas, o fio condutor daciência não nos faria atingir aquela moralidade que proporciona à vidadignidade e verdadeira saúde interior. Com isto também forneci o motivo por que não creio na substitui­ção da religião pela ciência. A religião é o sol que gerou o mais belo flo­rescer da arte e a colheita mais rica da mentalidade ética. Toda artemagnífica e portentosa é oração e oferta perante o altar de Deus.Deus, que para o filósofo da religião é o fundamento real dos ideais, épara o devoto o fundamento ideal do seu real agir, é o Espírito dePentecostes que desce em línguas de fogo sobre a terra, o Revelador,cujo \"Haja luz\" também ilumina com ofuscante claridade as trevas dasmentes humanas. Aquele que pudesse destruir a religião perfuraria araiz-mestra da grande arte que revela o sentido mais profundo e asmais elevadas forças da vida. Da mesma forma vislumbramos na religião um pilarfi111da111ental damoral. Não perdemos de vista que a fé devota acolheu em si juízos éti­cos e sempre de novo os acolhe, como ensina, por exemplo, a históriado cristianismo. Mas tampouco esquecemos que os avanços éticosmais ousados e maravilhosos apenas puderam iniciar como religião.Os grandes avanços da ética não são devidos aos cientistas, mas aosfundadores de religiões. Também Kant, que por excluir o amor signifi­ca uma grave recaída para antes da ética de Jesus, no fundo é apenasum porta-voz erudito do protestantismo pendido para o puritanismo.

Nem sequer é pacífico que a própria ética se encontre numa linhaprogressiva. Não posso concordar com a frase de Freud de que o agirmoral sempre seria compreensível por si. Sabemos que não podemosnos basear, sem mais nem menos, na consciência, e na ciência da mo­ral as mais diversas doutrinas se digladiam ardorosamente. A rasa mo­ral utilitarista parece urna aberração ao kantiano, o eudemonismo comsuas imprecisões cambiantes irrita o nietzscheano, que deseja e canoni­za a vontade de poder como parâmetro do bem e do mal, etc. Nos pro­blemas éticos isolados constatamos um caos de concepções contradi­tórias. Por exemplo, lembremos o julgamento moral da guerra, o acú­mulo desmedido de capital, o amor livre, o aborto provocado, etc. Opensamento positivista, a ciência, como Freud parece ter em mente, não écapaz de nos fazer avançar muito, mesmo que nos possa fornecer,como expus em outro lugar, elementos altamente valiosos para a éti­ca. Esta sempre continuará sendo uma disciplina filosófica. Ao lado dasociologia proporciona esses elementos em primeiro plano a psicaná­lise de Freud. Recentemente ouvi, numa discussão aberta, ojurista vie­nense Kelsen expor que o positivismo não consegue sequer criar umalegislação (o próprio Kelsen é positivista); como, então, poderia darsurgimento a um sistema de doutrinas éticas? Por isso a ciência empírica nos abandona ao construirmos concei­tos éticos. E o mais importante: a geração de uma vida moral nunca foialcançada mediante teorias áridas e conceitos inteligentes. Negaresse fato representaria urna censura da pior espécie. A religião, comseus símbolos em parte sublimes, em parte encantadores, com seuesplendor poético e suas avassaladoras interpretações da realidade,com seus personagens arrebatadores, que atraem por suas ações eseus sofrimentos comoventes e que por suas falhas e fraquezas aler­tam por um lado e por outro novamente insuflam ânimo na pessoaabatida para com novas forças perseguir seu ideal, a religião comsuas gigantescas bases metafisicas e perspectivas de futuro, com suasanção divina dos mandamentos morais e sua mensagem de reden­ção, que antecipa algumas das mais significativas conquistas da psi­canálise, a religião com suas exigências que superam toda a resistên­cia do mundo empírico pela certeza de um compromisso e uma alian­ça maiores, em suma: todo este mundo do ideal, que apenas tem cer­teza de ser expressão de uma realidade superior, suprema, e que

ésacuocuramersnstfaceaeeconidrltiiuadacsuaa.dmdCeoaorppnaolteuqdndueioetau, dcdsoeeelhfdaoeerfrémotufaotodrasaalsgsseuraiminsqvaudeevárziddsaaiasvd,aaeds,esdtubeabersícnatiismêtuneoicfrsioaadr,çecmaiscêaonvsmictiqabauiasee­,tê-la apesar de suas realizações. É melhor ir ao inferno com a verdadeque ao céu à custa de mentiras! Em sua tolerância Freud enalteceu a religião como proteção contraneuroses (p. 58). Anteriormente ele expôs que desde o enfraquecimen­to das religiões as neuroses se multiplicaram extraordinariamente21 •Será que o cavalheirismo fez com que Freud fosse longe demais? Cons­tato igualmente nas multidões de devotos resolutos uma imensidadede histéricos e neuróticos obsessivos. Não levando em conta que to­das as ortodoxias devem ser consideradas como neuroses compulsivascoletivas, há entre cristãos muito devotos uma grande parcela de psi­coneuróticos. Afinal, tudo depende da forma como a devoção é cons­truída, o quanto ela atua de maneira repressora. No entanto, não sepode negar que o livre sopro do evangelho genuíno constitui uma pro­teção indispensável contra o perigo das neuroses. Mas com isso o campo da religião não foi nem de longe delineadode forma exaustiva. A religião não se deixa diluir em entusiasmo pelaarte, em moral e em proteção contra a neurose. Agrega ainda uma sé­rie de outros aspectos. A religião se ocupa com a pergunta pelo senti­do e valor da vida, com o impulso por unificação da razão numa con­cepção universal de mundo que abarca o ser e o dever, com o anseiopor um lar e paz, com o impulso pela unio mystica com o absoluto, comas algemas de culpa da alma, com o anseio de liberdade por graça, coma necessidade de um amor que esteja livre das inseguranças insuportá­veis do terreno, com inúmeros outros anelos, que, quando não satisfei­tos, sufocam e amedrontam a alma, mas que pela harmonização religio­sa elevam a vida humana para alturas esplêndidas com horizontes in­descritivelmente encantadores, que fortalecem o coração e que ele­vam o valor da existência pela incumbência de compromissos moraismuito pesados no espírito de amor. O não-religioso não consegue sen­ti-lo, do mesmo modo como o não-musical é incapaz de vislumbrar o21. Freud. As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica [1910]. ln: Obras com­pletas. Vol. XI. 1977, p. 131ss.

conteúdo de uma composição musical de Brahms. Na verdade, a reli­gião não é nem de longe tão aristocrática quanto a arte e a ciência eru­dita. Ela própria é uma corrente em que ovelhas conseguem nadar eelefantes podem afogar-se. Afinal, acaba sucedendo o que afirma oNovo Testamento: \"A fé não é de todos\" (2Ts 3,2). No entanto, sob fénão compreendemos apenas uma imaginação, mas uma comoção detodo interior da pessoa. Quanto a ciência nos parece pobre diante dessa plenitude, ela qualapenas consegui indicar uma parcela bem pequena, porque faltou oespaço para maiores explanações e porque palavras nem sequer con­seguem reproduzir o indizível! A mim não surpreende que alguns dosmais proeminentes cientistas compreenderam seu agir como um cultoa Deus e que alguns dos maiores artistas e poetas depositaram humil­demente suas coroas de louros defronte o altar divino.Conclusão Portanto, como imaginaremos o futuro da ilusão criticada por Freud?Também eu sou da opinião que, se for apenas ilusão, tem de cair e desa­parecer. Contudo, Freud nem visava a levantar a pergunta pela verdade.Ele acentua expressamente que a ilusão poderia ser verdadeira (44). Em decorrência, sou da opinião que o pensamento realista deveavançar ao máximo o que a essência da realidade permite. A forma comoisto eventualmente poderia ocorrer foi esboçada nas sucintas indica­ções do meu tratado Weltanschauung und Psychoanalyse22• Assinalei comoa partir da ciência empírica resulta como complemento logicamentenecessário uma metafisica, mas que - e isto é ainda mais importantepara a religião - é possível ou até necessário traçar conclusões da de­terminação ética acerca do sentido e da vontade universal. Uma religião esclarecida só pode surgir do entrelaçamento harmôni­co entrefé e ciência, a pa1tir de uma mútua interpenetração entre o pen­samento de desejo e o pensamento realista, na qual, entretanto, o22. /n: Zum Kampf um die Psyc/10a11alyse. 1920, p. 289ss; 364ss [Some app/icatíons ofpsyc/10-analysis. Londres, 1922].

conteúdo do pensamento do real não pode sofrer nenhuma falsifica­ção da realidade e das suas correlações23 • No entanto, com essa síntese, o conteúdo verdadeiro da religiãonão vaza para as profundezas? Freud o presume (46); contudo nãoposso compar�ilhar d� sua conjectura. A meu ver, a substância do c:is­tianismo não e agredida de nenhum modo quando negamos os mila­gres no sentido de intervenç:ôes de Deus no curso da natureza. Em to­dos os casos constitui um fato que milhões de cristãos o fizeram há sé­culos e não obstante consideraram sua religião seu bem mais sagrado.o Deus destituído de grosseiros antropomorfismos, da teologia mo­derna trabalhada filosoficamente, a vontade universal, que visa à con­cretização do amor no sentido ético mais elevado, é mais excelso que0 Deus que passeia ao frescor do ocaso e que fecha a porta da arca coma própria mão, também mais excelso que o Deus que utiliza a terracomo estrado para seus pés, e a linguagem por analogias da devoçãonão deve conter nenhum retrocesso para um pensamento de desejoinferior. As prescrições éticas, que não aceitamos mais simplesmentecomo ditadas a partir de origens sagradas, mas que, como filhos deDeus autônomos, derivamos da natureza do ser humano e da comuni­dade humana, não se revestem de menor santidade que os estatutosde quaisquer documentos da religião. Neste processo, porém, subme­temos com devoção ao exame o entendimento ético do passado e nosreservamos todos os direitos de protesto e rejeição. A Bfblia não setomou menor para nós, mas mais maravilhosa, desde que não mais aconsideramos um papa de papel e oráculo infalível, como base legalpara processos contra hereges, e sim, em virtude da liberdade evangé­lica, a submetemos à crítica mais inexorável.Já reprimimos há temposa recompensa e o castigo por serem perigosos meios de educação,embora tampouco neguemos o fato de que nos mandamentos moraistambém há uma higiene, que informa sobre os perigos que ameaçam asaúde individual e social e que em decorrência sinaliza em direção a23. Neste ponto Pfister fez um acréscimo a mão, na década de 40: \"Desejos que nãopassam pela crítica da realidade seduzem à estultícia, ao engano e ao delírio e impe­lem muitos à ruína. Vida sem desejo é morte secreta. A verdadeira vida floresce apartir do casamento entre pensar e desejar. Sem pensamento perde o olhar; sem de­sejos perde o movimento volitivo\". Apud Eckart Nase. Oskar Pfisters a11alytisc/1e Seelsor­ge: Theorie und Praxis des ersten Pastoralpsycho/oge11, dargstellt 011 zwei Fal/studien. Ber­lim/Nova Iorque: DeGruyter, 1993, p. 487.

uma lei decisiva para a felicidade e o sofrimento, e determinante paraa configuração da vida. A ordem ética universal não é para nós um es­tado existente, mas uma força normativa no sentido recém-menciona­do, uma capacidade e lei cuja tendência reconhecemos pela observa­ção da realidade da vida. Tentamos dar-lhe expressão por meio de pre­ceitos morais, os quais precisamente formulamos em termos éticoscomo expressão do mais supremo anseio de desenvolvimento cósmicoe que, em decorrência de urna relação com a vontade criadora, reco­nhecemos como santos e instituídos por Deus. Assim, a moral de for­ma alguma se alicerça sobre uma autoridade heterônoma, mas sobre aautonomia do indivíduo e da sociedade, porém não sobre suas predi­leções fortuitas, mas sobre sua essência, que por sua vez remete a umainstância absoluta e última imaginável. Podemos dispensar este aprofundamento religioso? Será que oavanço das ciências exatas o tomará supérfluo? A atual marcha à direi­ta rumo às ortodoxias não deve ser decisória para a nossa sentença.Somente a partir da essência da humanidade e da estreita limitação dointelecto tenho de contrapor à profecia de Freud sobre o futuro deuma ilusão a afirmação, não mais profetizadora, mas fundamentadapsicologicamente, da ilusão de um futuro desses. Alegra-me muito que no fundo o próprio Freud busque o mesmoalvo, ele com seu olhar genial de pesquisador, eu com meus parcos re­cursos. Ele é impelido pelo seu deus Logos, sob o qual ele compreendeo intelecto, \"presumivelmente\" para o alvo do amor humano e da dimi­nuição do sofrimento (68). A mim me impele aos mesmos alvos o meudeus Logos, que eu, obviamente, com base no primeiro capítulo doevangelho de João, compreendo como sabedoria e amor divinos. Ape­nas quero agregar a esses alvos, com intensidade muito maior que areferência de Freud que evoca Schopenhauer, a criação de valores in­ternos e externos positivos. Não é a confissão de fé que constitui o ver­dadeiro critério do cristão. Emjo 13,35 um outro parâmetro é dado:\"Nisto conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns paracom os outros\". Correndo o risco de ser alvo de zombaria das más lín­guas, arrisco-me mais uma vez a afirmar que à luz dessa palavra, embo­ra se denominando gentio, Freud, com sua concepção e obra de vida,está à frente de muitos cristãos freqüentadores de igrejas. Unem-se, pois, O futuro de uma ilusão e A ilusão de um futuro numamesma fé sólida, cujo credo é: A verdade vos libertará!


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