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A terra é nossa casa

Published by renatosbc, 2016-09-22 14:17:00

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A TERRA É NOSSA CASA Comunidade Xucuru Kariri do Município de Caldas / MG A Terra é nossa casa Comunidade Xucuru Kariri do Município de Caldas / MG Org.: Adriana Maria Imperador Ana Carolina Costa Nogueira



A Terra é nossa casa Comunidade Xucuru Kariri do Município de Caldas / MG Org.: Adriana Maria Imperador Ana Carolina Costa Nogueira “Esse projeto de extensão e pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da UNIFAL–MG com o parecer consubstanciado de número n°1.014.828, avaliação e permissão da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) com autorização de n° 09/AAEP/PRES/2015 e foi financiado pelo Edital PROEXT 2014”. 1

COORDENAÇÃO GERAL PROEXT / UNIFAL DOCENTES COLABORADORES Adriana Maria Imperador – Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/ ICT – Daniela Rocha Teixeira Riondet Costa – Universidade Federal de Itajubá – UNIFEI Instituto de Ciência e Tecnologia - Campus Avançado de Poços de Caldas Luciana Botozelli – Universidade Federal de Alfenas - UNIFAL/ ICT – Campus Contato: [email protected] Avançado de Poços de Caldas Paulo Henrique Junker Menezes – Universidade Federal de Alfenas - UNIFAL/ COMUNIDADE INDÍGENA XUCURU KARIRI DE CALDAS / MG ICT – Campus Avançado de Poços de Caldas Cacique José Sátiro - Representando a comunidade indígena. Marcos Gimenez - Centro Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto, SP REITOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALFENAS COLABORADORES Paulo Márcio de Faria e Silva Cuia Guimarães – Fotógrafa; Cynthia Spaggiari – Diagramação e Arte / Tupi or not Tupi DIRETOR DO INSTITUTO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA Deo Magalhães - Tupi or not Tupi Cássius Anderson Miquele de Melo Hevisley William Corrêa Ferreira Luís Antônio Fonseca Teixeira – Secretaria de Meio Ambiente de Caldas – MG PRÓ-REITORA DE EXTENSÃO GESTÃO 2014 Maria de Fátima Sant Anna PROJETO MESTRADO/ DISCENTES DA UNIFAL-MG Ana Caroline Costa Nogueira –Programa de Pós Graduação em Ciência e PRÓ-REITORA DE EXTENSÃO Engenharia Ambiental – PPGCEA- Universidade Federal de Alfenas - UNIFAL Eliane Garcia Rezende BOLSISTAS PROEXT / DISCENTES DA UNIFAL-MG PRÓ-REITORA ADJUNTA DE EXTENSÃO Alex Marquiti Alves Ana Rute Do Vale Ana Carolina de Souza e Silva Gabriela Mendes Targa SECRETÁRIA Guilherme Martinez Meire Izabel De Araújo Leonardo Barbosa Silva Livia Martins Verola TÉCNICAS EM ASSUNTOS EDUCACIONAIS Marcos Vinicius dos Santos Maria De Los Angeles De Castro Ballesteros Talis Pereira Matias Maria Regina Fernandes Da Silva CRÉDITO DAS IMAGENS TÉCNICA EM ASSUNTOS EDUCACIONAIS Cuia Guimarãoes Keri Ribeiro Prosperi 2

ÍNDICE 7 PARA UMA UNIVERSIDADE SEM MUROS 11 DEDICATÓRIA AO CACIQUE JOSÉ SÁTIRO 14 VISITA XUCURU-KARIRI NA UNIFAL 31 XUCURU-KARIRI NA ESCOLA CRIATIVAIDADE 37 VOCÊ TEM FOME DE QUE? 42 O LUGAR DA TROCA E A TROCA DE LUGARES 50 RESGATE HISTÓRICO DA COMUNIDADE 50 HISTÓRIA DA ETNIA XUCURU-KARIRI 53 O PERCURSO DA ETNIA 56 CARACTERIZAÇÃO ATUAL DA ÁREA DE OCUPAÇÃO 73 RELATOS ORAIS DA COMUNIDADE INDÍGENA 80 QUAL É A REALIDADE E QUAL É SEU DESEJO? 89 HISTÓRIA DE VIDA 3

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“E aquilo que nesse momento se revelará aos povos Surpreenderá a todos não por ser exótico Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto Quando terá sido o óbvio” Um Índio CAETANO VELOSO 6

PARA UMA UNIVERSIDADE SEM MUROS Nunca gostei de muros. Desde muito pequena, conhecer novos lugares e observar como vivem as pessoas era muito mais atraente do que me isolar em pequenos espaços delimitados. Foi assim em casa, na escola e na Universidade. Mesmo na pesquisa de mestrado na Escola de Engenharia da Universidade de São Paulo, tradicional centro tecnológico, abandonei os laboratórios equipados e salas confortáveis para me aventurar na Mata Atlântica e entender a dinâmica da cultura Caiçara. Como bióloga, entendi que grande parte do conhecimento não estava nos livros, mas na vivência de uma vida toda em áreas preservadas de floresta. Decidi pelo doutorado na mesma instituição de pesquisa, mas agora na Amazônia, na tentativa de entender como comunidades de seringueiros cumpriam as complexas diretrizes de certificação do Conselho de Manejo Florestal para inserir seus produtos do mercado e garantir renda familiar com produtos da floresta. E assim, pude compreender, com a ajuda dos sobre- viventes dos embates que levaram Chico Mendes, a complexa pressão de viver na maior floresta tropical do plan- eta e driblar as pressões econômicas e sociais que o ambiente impõe às pequenas comunidades Acreanas. E após estas experiências imensuráveis, estava pronta para a Universidade: ensino, pesquisa e extensão de forma indisso- ciável e interdisciplinar. Mas como seria este novo desafio? Seria o momento de entender a relação entre a tríade acadêmica! Qual foi minha surpresa quando com- preendi que pratiquei a vida inteira o que se apresentava como desafio, e sempre foi realizado de forma natural. E lá estava eu, pouco tempo depois, assumindo o compromisso de Coordenar do Eixo Meio Ambiente da Região Sudeste do Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas - FORPROEXT, sempre apoiada pela Pró Reitora de Extensão da Universidade Federal de Alfenas. Nas intermináveis discussões do fórum, tive noção da dificuldade de criar indicadores específicos de extensão para alimentar sistemas e conseguir verba para execu- tar projetos. Verba essa que nunca foi condição única para deixar de praticar a extensão universitária, mesmo que impreterivelmente teríamos cortes nos objetivos, redução do cronograma de execução e na tabela orçamentária, 7

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mas nunca nos ideias de “fazer com”. Afinal, “fazer com” era a maneira de transcender os muros da universidade. Simplesmente sair do nosso mundo e enxergar com outros olhos, emprestar nossa “expertise” para conjunta- mente encontrar as verdadeiras demandas e encontrar as melhores respostas, mesmo que o entendimento do melhor não seja o nosso, mas das comunidades que esperam da Universidade um ambiente também sem muros. Unir o científico e o empírico e construir democraticamente o conhecimento. Mas e a interdisciplinaridade? Esta foi encontrada na ciência, na poesia, nos relatos orais, nos mitos e experiências que compõe este livro que traz um pouco da vida da Comunidade Indígena Xucurus Kariris de Caldas e eterniza relatos de nosso saudoso Cacique Sátiro, que nos deixou logo após o término de nosso trabalho no PROEXT. Praticamos extensão sim, com univer- sitários de graduação, acadêmica de mestrado, docentes, fotógrafa, comunidade local, integrantes indígenas ou, simplesmente, pessoas que souberam compartilhar o que tinham de melhor. Para todos que contribuíram de alguma forma para a realização deste sonho, muito obrigada! ADRIANA M. IMPERADOR Docente Coordenadora do PROEXT - UNIFAL 9



DEDICATÓRIA Pois bem... A vida sempre chega ao fim, como todo livro. Seja com o final escolhido ou não. Durante a caminhada, são muitos os obstáculos, ora difíceis, ora mais fáceis, diante dos quais nos deparamos na busca incessante por dias melhores. Lutas são travadas, algumas mais intensas e outras insignificantes, seja com você mesmo ou com o mundo, parti- hando ideais ou idealizando sozinho. Nesse caminho, colecionei afetos, desafetos, amigos e inimigos, compondo suas experiências. Vivemos buscando a felicidade, mas como saberíamos o que é ser feliz se não houvesse momentos tristes que ensi- nassem? Todos os dias vividos, trabalhados, dormidos, sonhados, com sorrisos, chorados são páginas escritas para contar uma história. A busca por nos transformarmos em heróis é quase um refúgio criado para explicar os defeitos humanos e, por que não se tonar um, podendo prosperar de uma pessoa comum e ser lembrado eternamente? O importante é o legado que se deixa a seus descendentes, valores, ideais e uma história da qual todos se orgulham. Dedicamos este livro a um homem que lutou por sua crença – a causa indígena. Esse homem é José Sátiro do Nascimento, popular Zezinho Índio, e assim será lembrado como um sábio cacique.

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José Sátiro nos deixou em 28/08/2015, aos 67 anos. Compartilhamos sua sabedoria e carisma como lider- ança indígena por meio da arte e dos relatos orais desta obra. Aos xucurus kariris de caldas, nosso res- peito e agradecimento pela troca de conhecimento. 13

ANTES DE CONHECEREM NOSSA CASA, QUEREMOS CONHECER A DE VOCÊS. E ASSIM FOI! UNIFAL-MG RECEBE VISITA DE ALDEIA INDÍGENA XUCURU-KARIRI Na primeira visita que fizemos à Aldeia Xucuri-Kariri de Caldas, ainda antes de iniciarmos a proposta PROEXT 2014, o cacique José Sátiro expressou que, primeiro, os indígenas gostariam de conhecer a Universidade. E assim foi. A visita ocorreu no campus Poços de Caldas da UNIFAL-MG, no dia 05 de setembro de 2014, e contou com a presença de nove representantes da Aldeia Indígena Xucuru-Kariri provenientes da cidade de Caldas-MG. A visita é uma ação do programa de extensão universitária do PROEXT 2014, por meio da equipe ABARÉ – Diagnóstico Ambiental Participativo e coordenada pela docente Adriana Imperador do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT), campus de Poços de Caldas. Com o objetivo de apresentar a comunidade indígena à Universidade, visando estrei- tar laços e apresentar propostas de futuras pesquisas conjuntas de identificação de demandas locais em relação aos problemas ambientais e contribuir com tecnologias desenvolvidas na Universidade. Também participaram da visita: o secretário de Meio Ambiente de Caldas, Luiz Antônio Fonseca Teixeira, alunos, docentes e servidores do campus. Entre os nove indígenas participantes, havia apenas uma criança, neto do cacique José Sátiro. Elygaôlyã, cujo nome significa “Árvore”, ficou encantado com tudo que viu, principalmente com as dimensões das instalações do campus. Fez questão de visitar as salas e se sentar na carteira: “aqui dá vontade de estudar, essa carteira é gos- tosa, eu quero um dia vir estudar aqui”. 14

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PARTICIPANTES DO EVENTO “UM DIA INDÍGENA NA UNIFAL-MG” Tampinha, Lelego - Mácio José da Silva, Maria Aparecida Brito dos Santos, Ivone Sátiro do Santos, Eligaolian - Sátiro do Nasci- mento, Iracanã - Sátiro do Nascimento, Aline Ferreira de Araujo, Edson dos Santos Silva. Adriana M. Imperador, Alex Marquiti Alves, Ana Carolina de Souza e Silva, Ana Caroline Costa Nogueira, Gabriela Mendes Targa, Guilherme Martinez, Leonardo Barbosa Silva, Livia Martins Verola, Marcos Vinicius dos Santos, Luís Antônio Fonseca Teixeira, Amanda Jenifer e Talis Pereira Matias 16

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O desenvolvimento de uma sociedade não precisa ser interrompido. Somente os laços de sangue e o respeito pela Terra devem permanecer inalterados para caracterizar suas raízes. TÁLIS PEREIRA MATIAS 30

CONTATO INICIAL COM OS ÍNDIOS XUCURU-KARIRI NA ESCOLA CRIATIVAIDADE POÇOS DE CALDAS 15/05/2014 Não é novidade para ninguém o fato de que as atuais comu- nidades tradicionais vêm sofrendo mudanças em suas estruturas cul- turais. Sabendo disso, a expectativa sobre o primeiro contato com os indivíduos da comunidade Xucuru-Kariri era de algo “menos tradicion- al”, isto é, esperávamos algo menos “surpreendente” do que foi visto. Ver esse povo com suas vestes tradicionais, seus rostos pintados e os utensílios fabricados por eles próprios, além de seus relatos históricos e sua dança típica, foi algo estimulante e motivador, pois embora a influência cultural moderna esteja presente na comunidade tradicional, muitos aspectos de sua tradição permanecem existindo, interagindo e coexistindo com a “atual cultura do homem branco”. 31

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OBSERVAÇÃO CURIOSA Eu, Tális Pereira Matias, irmão de um dos alunos da escola, Heitor Pereira Porto Rangel, presente no dia do evento, pude observar um aspecto muito curioso no comportamento de meu irmão. Heitor é portador da síndrome de Asperger, que é um transtorno do espectro autista. Essa síndrome é caracterizada, dentre outros fatores, por dificul- dades de interação social e em processar e expressar emoções (esse problema leva as outras pessoas ao afastamento, por pensarem que o indivíduo não sente empatia), interpretação muito literal da linguagem, resistência a mudanças em sua rotina e a pessoas desconhecidas, ou que não veem há muito tempo, e comportamentos estereotipados. Todavia, embora portador dessa síndrome, pude observar extraordinária interação entre Heitor e as demais crianças indígenas, que brincaram, conversaram e, por todo o percurso até o lar, ouvi as exclamações de alegria e entusiasmo de meu irmão por ter interagido com os novos amigos. Esse comportamento não é comum para uma criança portado- ra de S.A., que não sabe lidar com situações inusitadas, algo que ela só passa a fazer, talvez, na fase adulta, quando já aprendeu a “mascarar” os sintomas e adaptar-se a certas situações, mesmo que essas a perturbem. Tal fenômeno me fez questionar muitas coisas, tanto no que diz respeito à síndrome, quanto no que diz respeito às diferenças culturais. Como essa criança pode interagir tão bem em uma situação que normalmente costuma ser adversa aos portadores de S.A.? Bem, talvez o fato de as crianças da tribo apresentarem comportamentos muito corretos e éticos em suas brinca- deiras e atitudes possa ter contribuído para isso, pois seus hábitos sutis e gentis, com certeza, são cativantes. Mas não sei se é essa a resposta para a questão, pois pouco conheço sobre as causas das variações comportamentais em cada indivíduo. Assim, o que posso declarar com mais clareza e substância é que o evento ocorrido nesse dia trouxe sur- presas e, além dessas surpresas, perguntas. De forma que o comportamento dos jovens visitantes coloca em questão os sistemas e métodos aos quais os “jovens modernos” estão submetidos. Entretanto, se esse aspecto é positivo ou negativo, não creio que caiba a mim responder. Esse relato é de um dos bolsistas PROEXT, logo após o primeiro contato com a comunidade Indígena Xucuru-Kariri de Caldas, em uma visita à escola Criatividade de Poços de Caldas, MG, ocorrida no dia 15/05/2014. 33

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VOCÊ TEM FOME DE QUÊ? TUPI OR NOT TUPI Coletivo Filosófico Antropofágico A natureza nos deu as mãos que podem pegar e segurar tudo, assim o homem é um ser de atividade livre e da natureza se alimenta. A mandioca que plantei lá, pode e deve ser a mandioca plantada aqui. Adaptar é necessário para a sobrevivência, mas, como diz uma banda de rock tupiniquim “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte” e é no conhecimento de nossa cultura – cantos, dan- ças, músicas, rezas que reconhecemos o patrimônio do povo do qual pertencemos e que nos auxilia a atribuir sentido em meio ao todo do dia a dia que nos obriga a comer. Em tempos de primazia das técnicas e teorias científicas so- bre a realidade, o mistério e os segredos da natureza são repassados pela oralidade em comunidades afastadas dos centros urbanos; os costumes e tradições são transmitidos pela convivência e execução de ritos... A educação acontece em qualquer lugar. Em nossa fome de “educar o diferente”, será que não atropelamos certos processos educativos que acontecem de forma espontânea no cotidiano? Descon- sideramos a fome do outro para saciar a nossa. E será que nossa fome é realmente “educar” ou pode ser uma fome de intenção “normativa”? O contato com culturas outras nos permite a ponderação so- 37

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bre a “norma”, sobre o que é normal. Convenções sociais estipulam diretrizes morais sobre os costumes e definem se são aceitáveis ou reprováveis e, a partir disso, subjetividades são produzidas para re- sponderem (ou reagirem) a tais diretrizes. Defronte outros costumes, muitas vezes radicalmente diferentes, colocamos em xeque a “norma” e, com pensamento e emoções tranquilos, percebemos que ali, mesmo diante do maior estranhamento que se possa ter vivido, ainda ali existe algo comum; algo do outro é seu. Aquilo é uma expressão humana de uma cultura diferente; o diferente não é o agente que expressa. E de onde vem o espanto, a náusea, o medo, o desconforto? Afirmar que vem do preconceito é muito clichê, ele também é uma expressão humana cultural. Podemos então falar sobre nosso desinteresse pelo outro, pela história, pela luta. Desinteresse pois o “Eu” é o imperativo e é o “Eu” que tem demandado todo o interesse atual. Eu devo ser mais desenvolvido, eu devo ser mais apto, eu devo ser mais adequado, eu devo ser mais comum. Sujeitos em série são produzidos culturalmente e isso é a “norma”. Linhas midiáticas de produção de sujeitos comuns conduzem o dia a dia da população que sente necessidade de corre- sponder aos anseios sociais. E essa “norma” não causa espanto, medo, desconforto? Ela, então, se tornou “comum”. Ficamos acostumados a ela. Mas isso não quer dizer que ela seja “natural”. Algo normal se torna comum, mas ainda assim não se naturaliza. Ainda buscamos acampamentos aos fins de semana, ainda vamos para o interior nos feriados, sempre que dá corremos para aquela montanha perto de casa. É a natureza chamando para lembrar que por mais adaptados que estejamos, o essencial sempre será importante! 39

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O LUGAR DAS TROCAS E A TROCA DE pessoal de cada um, ou a partir da LUGARES: A EXPERIÊNCIA INDÍGENA experiência grupal de espaço, seja ele do ritual, da rotina ou do lazer. BRASILEIRA EM TRÊS MÔNADAS O tempo é fator fundamental nessa gênese e formação subjetiva do lugar - tanto na experiência individual quan- HEVISLEY WILLIAM CORRÊA FERREIRA to coletiva. É necessário um profundo envolvimento emocional para que se estabeleça uma identidade sendo esse mesmo o lugar onde estão envolvidos os eventos mais significa- I stitui-se basicamente como uma fer- tivos de nossa existência. As ideias Muito além de ser apenas trivializada, ramenta de estudo sob duas óticas: a relativas a uma sociedade (produção, a expressão “lugar” é polissêmica, do lugar como localização (ou ponto rituais tradicionais, relações sociais, ou seja, possui uma considerável de referência) e a do lugar como um linguagens, valores, culinária) encon- variante em seus significados. Se produto sui generis, um artefato tram no lugar o seu espaço concreto, iniciarmos nossa perspectiva pelo singular e que compõe a afetividade, não apenas de contemplação saudo- dicionário, encontraremos conceitos as experiências e as aspirações das sista (quando em momentos de trans- tocantes ao espaço ocupado, peque- pessoas. Enquanto a primeira possui formação de uma mesmo local ou nas áreas, localidades, pontos de ob- um semblante aparentemente frio e mudança territorial), mas de vivência servação e referência, entre outros. muito bem circunscrito, a segunda e experiência. Dentro da ciência geográfica, a ex- é constituída a partir da experiên- pressão também nega uma unicidade cia que temos do mundo, o espaço II de sentido. A própria geografia como vivido, experienciado, que é pleno de Anteriormente ao ano de 1500, o área científica no seu período clássico memória em sua constituição subjeti- território que viria a ser denominado já foi considerada por alguns autores va – enfim, o lugar como afetividade. Brasil era povoado por nativos, viv- como a ciência dos lugares. O tempo Essa perspectiva, tão abrangente endo em tribos espalhadas por todos passa, os autores se vão, mas seus no sentido interdisciplinar, pode ser os biomas e sem nenhuma divisão rastros ficam, e o conceito hoje con- explorada a partir da experiência sistemática de terras. 42

Estamos aqui nos referindo a uma forma bastante acelerada. Uma nova próprio confinamento configuram o relação harmoniosa com o ambiente estrutura social foi imposta, assim atual cenário da questão indígena no e que suscitava impactos mínimos. como foi coagida uma nova relação século XXI, onde a imensa maioria dos Esse arranjo de vivência pré-colonial, com a terra, que perde então seu índios vive em reservas destinadas à associado ao grande espraiamento no equilíbrio frente ao homem branco. O perpetuação de seus costumes. Am- território brasileiro – e também fora ímpeto do colonizador representou bas as situações representam ambi- dos atuais limites – fez com que a uma nova e dura realidade no modo entes hostis para o indígena. Quebra- paisagem fosse pouco modificada. de vida dos indígenas que, frente às se a relação intensa e extensa com a A essência dessa relação aos olhos tentativas de escravização terra e o sentimento de identidade da Modernidade pode muito bem e/ou dizimação, não viam outro e experiência perde seu sentido. As ser descrita como sendo topofílica, recurso senão a fuga para localidades relações são antagônicas: o homem onde acontece o vínculo, a afeição e a interioranas do Brasil. Longe do urbano não estabelece vínculos dura- familiaridade entre a pessoa e o lugar homem branco, mas também de suas douros, mas apenas afetivos. O indí- de vivência – o ambiente físico em terras originais. gena estabelece afinidades sensoriais si. Ora, se o termo criado pelo geó- e ao mesmo tempo etéreas com a ter- grafo humanista Yi-Fu Tuan refere-se III ra de sua posse histórica. O olhar do a uma relação sublime entre ser e O Brasil dos últimos cinquenta anos é colonizador do século XXI carece de terra, o mundo exterior configura-se o Brasil da FUNAI (Fundação Nacional auteridade e não vê no espaço físico como o espaço do espanto, das per- do Índio), mas é também o Brasil das do outro o sentido de sua existência. plexidades e do estranhamento. Tais (escassas) terras indígenas formal- E a topofilia, estabelecida muito antes sensações são mais fáceis de serem mente demarcadas, dos incansáveis da chegada do colonizador, continua identificadas em locais de resistência, missionários cristãos, dos garimpei- a definhar-se no Brasil do capital e das onde o mundo exterior configura- ros, dos madeireiros e dos grileiros. fronteiras agrícolas. se como o déspota, aquele que se Todos estes agentes representam o propõe em definhar o território em invasor, aquele que veio quebrar o questão. vínculo com a terra, que veio trazer a Após a chegada e fixação do colo- restrição dos modos de vida indígena. nizador no litoral brasileiro, as A troca de território (por vários transformações no espaço se deram fatores de natureza coercitiva) ou o 43

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