A CARTUXA - I IN MEMORIUM A CARTUXA Ao longo do corrente ano serão publicados quatro números bimestrais O SUPLEMENTO CULTURAL A CARTUXA É PARTE INTEGRANTE DO JORNAL A VOZ DE PAÇO DE ARCOS EDIÇÃO DEDICADA À CANDIDATURA - OEIRAS CAPITAL DA CULTURA 2027 Diretor: José Manuel Marreiro | Bimestral | N.º 1, ABRIL de 2021 DISTRIBUIÇÃO GRATUÍTA
A CARTUXA - I Editorial Por José Aguiar Lança-Coelho Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa São muitas e variadas de Arcos» espera as novidades, ainda!, participar de algum em tempo de pande- modo. mia. Numa palavra, Assim, depois de no último temos que concluir, número do Jornal “A Voz de que o Concelho de Paço de Arcos”, termos re- Oeiras se encon- ferido o início da construção tra numa grande e do Centro Cultural José de febril expansão. Castro, e a passagem do 1º Porém, caro leitor, centenário do Clube Desporti- para que tudo isto vo de Paço de Arcos (CDPA), se concretize, não desejamos chamar a atenção se esqueça de usar para outros importantes even- a máscara e guar- tos que se avizinham: dar distância dos O completo remodelamen- seus semelhantes, to do Convento da Cartuxa, para irradiarmos a onde a Câmara Municipal de maldita pandemia, Oeiras irá criar um Centro o mais depressa de Arte Contemporâneo que, possível. l trará ao concelho todos os grandes eventos das Artes Colaboradores deste suplemento: Plásticas, bem como os seus artistas. Ana Teixeira Gaspar Eduardo Duarte; Victor Henriques; Como se isto não bastasse, João De Freitas Branco; Paula Freitas; José Carlos temos ainda que destacar, o Oliveira; José Lança-Coelho; Ricardo Lopes facto de Oeiras se apresentar Fotografia: Paulo Mascarenhas, Aguarelas de Serrão ao concurso de Capital da Cul- de Faria tura, que ocorrerá em 2017, e que trará inúmeros eventos e benfeitorias ao nosso conce- Capa: Aguarela de Horácio Dá Mesquita lho, em que «A Voz de Paço 2
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A CARTUXA - I A PROPÓSITO (DO MILAGRE) DA CARTUXA Por Ricardo Lopes Juntos pela Cartuxa Muito poucas são as sidente da Câmara de Oeiras, As palavras do Senhor notícias agradá- Dr. Isaltino Morais, afirmou Presidente da Câmara Muni- veis nestes tempos que a assinatura do citado cipal de Oeiras são, de facto, de confinamento auto era um “ato de Cultura muito sábias e o acontecimen- e de sofrimento, mas, cer- da maior relevância e que diz to em si parece testemunhar tamente, com a Graça de respeito a todo o país”, acres- que, muitas vezes, mesmo Deus e a preciosa ajuda de S. Bruno, soubemos, no dia centando que “vamos cuidar nos tempos mais sombrios, é 17 de fevereiro de 2021, que para transportar este legado, possível ver alguma luz e ter a Câmara Municipal de Oeiras esta História e esta Cultura esperança. A Câmara Munici- havia chegado a acordo com para as próximas gerações.” pal de Oeiras pensou, e muito Estado, em meados de de- Afirmou ainda que: “Há que bem, em dinamizar o patrimó- zembro de 2020, para reabi- desburocratizar. É inadmissí- nio e o espaço num Centro de litar o Convento da Cartuxa, vel que este património esti- Arte Contemporânea que seja numa concessão de 42 anos vesse aqui abandonado por 30 uma das “alavancas deter- e um investimento que ronda anos.” (https://www.cm-oeiras. minantes” na candidatura de os 7,5 milhões de euros. A as- pt/pt/municipio/Paginas/recu- Oeiras a Capital Europeia da sinatura do auto de cedência, peracao-quinta-cartuxa-auto- Cultura em 2027 (https://www. no referido dia, contou com a -cedencia.aspx). cm-oeiras.pt/pt/municipio/Pa- presença da Senhora Ministra da Justiça e do Senhor Presi- dentes da Câmara de Oeiras. Na mesma notícia, fomos in- formados de que o município de Oeiras vai finalmente fazer a recuperação integral de todo aquele vasto património que esteve abandonado durante 30 anos. (https://www.cm-oei- ras.pt/pt/municipio/Paginas/ recuperacao-quinta-cartuxa- -auto-cedencia.aspx). Na ocasião, o Senhor Pre- 5
A CARTUXA - I ginas/recuperacao-quinta-car- seu interior, como, por exem- as gentes do nosso concelho tuxa-auto-cedencia.aspx). plo, atuações de e, naturalmente, de Laveiras- coros e peças tea- -Caxias. Pensamos ainda que Como já tivemos ocasião de trais. o espaço do outrora mosteiro publicar neste mesmo jornal O milagre da do Vale da Misericórdia pode- A Voz de Paço de Arcos, em Cartuxa recupera- ria também acolher algumas 2019, recordamos que o mo- da vai ser, temos das coletividades e instituições vimento Juntos pela Cartuxa a certeza, estrutu- educativas, culturais e des- nunca esteve a favor ou contra rante no espaço de portivas de Laveiras-Caxias, qualquer entidade ou pessoa, Laveiras-Caxias e algumas das quais sem espa- sendo constituído por um um ponto indelével ços para desenvolver os seus grupo de paroquianos da pa- na paisagem pa- ensaios e atividades. Apesar róquia de Laveiras-Caxias que trimonial e cultural de algumas destas instituições defendia a urgente recupera- de Oeiras. Além de possuírem espaços próprios, ção do templo e do mosteiro, um Centro de Arte seria possível todas elas de- outrora célebre por ser uma Contemporânea, senvolverem as suas ativida- das duas casas da Ordem da julgamos que será des ligadas à educação, ao Cartuxa em Portugal, e que importante aquele desporto e à cultura; deste a igreja se mantivesse aberta vasto espaço ser modo, um outro milagre acon- ao culto, sendo possível, como igualmente usu- teceria no Vale da Misericórdia tem ocorrido, outras manifes- fruído por todas de Laveiras-Caxias. l tações culturais e artísticas no 6
A CARTUXA - I CARTUXA DE LAVEIRAS: ARTE, PATRIMÓNIO E FUTURO Por Eduardo Duarte Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa Aassinatura, no dia 17 todavia temos por desprezo e se preocupavam com as artes, de fevereiro de 2021, galantaria fazer pouca conta das tendo uma tendência (dir-se-ia do auto de cedência artes, e quase nos injuriamos de antropológica…) para deixar as entre o Estado e a saber muito delas, onde sempre obras imperfeitas e incompletas Câmara Municipal de Oeiras as deixamos imperfeitas e sem (muitas vezes por falta vontade foi uma excelente notícia para acabar.” (Diálogos em Roma, e/ou de dinheiro); uma pessoa a arte e património português. 1548). que não conhece a arte e não Infelizmente, estas notícias são Nem de propósito, também possui uma formação mínima raras, sobretudo nos atuais o nosso mais genial poeta e um que seja do universo artístico, tempos sombrios de pandemia, dos maiores pensadores que logicamente, é incapaz de o e quando existem devem ser Portugal teve, Luís de Camões, entender e de o estimar (nem valorizadas e sublinhadas. n’Os Lusíadas, registou o céle- de propósito, Camões parece Quantas vezes o Estado, na bre e avisado verso: “Porque advogar uma educação artística sua imensa teia de burocra- quem não sabe arte, não na e um conhecimento das artes, cia e de estranhos interesses, estima.” (Canto V, 97). tantas vezes esquecido por polí- esquece que tem a obrigação Do mesmo modo, o escultor e ticos e responsáveis que nunca moral de proteger, valorizar e teórico da arte Joaquim Macha- conheceram qualquer educação transmitir às gerações futuras a do de Castro (1731-1822), cria- artística); e, finalmente, Macha- arte e o património dos nossos dor da estátua equestre de D. do de Castro que, numa expres- antepassados. José I (1775), na Praça do Co- são lapidar, resume uma espé- Já no século XVI, Francisco mércio, em Lisboa, desabafou cie de maldição permanente de Holanda (1517-1584), pen- irritado, numa carta, em 1817, que no nosso país parece existir sador, teórico da arte, pintor e depois de ser acusado, muito in- sobre as belas-artes e que po- “arquitector” (como ele próprio justamente, de trabalhar pouco: demos acrescentar, sem ofen- se define), que visitou Itália, “Em Portugal influe Astro malig- der ninguém, as outras artes e a entre 1537 e 1541, e conhe- no destruidor das Bellas Artes!!!” criação artística, em geral. ceu Miguel Ângelo, escreveu, Infelizmente, poderíamos con- Como se percebe, nunca amarguradamente, em 1548, tinuar a citar outros exemplos… foi fácil ser artista ou apreciar que “[…] nós outros, os Portu- De facto, segundo Holanda, a arte em Portugal e o país só gueses, ainda que alguns nas- Camões e Machado de Castro, muito tardiamente entendeu a çamos de gentis engenhos e Portugal quase nunca valori- importância da preservação do espíritos, como nascem muitos, zou os artistas e aqueles que património. Assim, é de toda 7
A CARTUXA - I a justiça evocar os nomes de votado, sobretudo nos últimos tiam de branco e se afastavam Almeida Garrett (1799-1854) 30 anos pelo Estado. Como todo do mundo dos homens, e esta- e Alexandre Herculano (1810- o património religioso e monacal vam em permanente oração. 1877). No texto Monumentos do país, a Cartuxa entrou em Pátrios (1838-1839), Hercula- decadência com a extinção das Uma das consequências deste no escreveu: “Importa a arte, ordens religiosas, em 1834, a contexto é o facto de terem sido as recordações, a memória de forma afinal que os Liberais en- poucos aqueles que investiga- nossos pais, a conservação de contraram para ajustar contas ram e estudaram o edifício cartu- coisas cuja perda é irremediável, com a Igreja Católica e, princi- siano do Vale da Misericórdia de a glória nacional, o passado e o palmente, um expediente para o Laveiras, permanecendo, ainda futuro, as obras mais admiráveis Estado ganhar dinheiro com as hoje, grandes lacunas relativas do engenho humano, a história, vendas dos edifícios e bens de à história da sua fundação, por a religião.” mosteiros e conventos. parte de D. Simoa Godinho (c. 1530-1594), edificação, arquite- No nosso país, o panorama Exceção feita para alguns pe- tura, arte, inventário artístico e no que concerne à defesa da ríodos, como a ação do Padre bens que possuiu. criação artística e a preservação António Oliveira (1867-1923), do património ainda terá de per- importante educador e defensor Desde logo, a futura recu- correr um longo caminho e todos dos direitos dos menores no peração do edifício da igreja e os dias devem ser ocasiões para nosso país, a Cartuxa, despo- restante conjunto edificado, por melhorar. Neste caso concreto, a jada dos seus objetos artísticos, parte da Câmara Municipal de educação das crianças e jovens bens e livros que desapareceram Oeiras, será o momento ideal, é absolutamente fundamental, e se dispersaram, permaneceu no levantamento e recuperação como afinal já preconizava Luís como um testemunho silencioso dos vários edifícios, a começar de Camões... da incúria, transformando-se, na pelo templo e claustro, para se melhor das hipóteses, somente investigar, de forma sistemáti- O mosteiro e igreja da Cartuxa numa memória longínqua de uns ca, a Cartuxa de Laveiras, nos de Laveiras é um triste exem- monges misteriosos, que ves- seus múltiplos aspetos, desde plo do esquecimento a que foi a geografia, história, arquitetura, relações com a arquitetura car- tusiana, questões estéticas, reli- giosas, iconográficas, artísticas e patrimoniais ligadas à conserva- ção e restauro. Por conseguinte, torna-se fundamental a reali- zação de várias investigações e estudos monográficos, que podem ter a forma de monogra- fias, resultantes, por exemplo, de dissertações de mestrado e de teses de doutoramento. A ordem da Cartuxa, fundada 8
A CARTUXA - I por S. Bruno em 1084, sempre mais sinistros O futuro Centro de Arte Con- foi eremítica e rigorosíssima nas que a Humani- temporânea da Cartuxa de La- suas regras, sendo vista, desde dade conheceu veiras, além de uma excelente há séculos, com uma das mais e que nos abste- designação, poderá constituir constantes e perfeitas ordens mos de enume- uma marca cultural que se deseja religiosas dentro da Igreja Cató- rar: destruir edi- poder figurar nos roteiros da arte lica, algumas das vezes, enten- fícios, derrubar nacional e até internacional, com dida como exemplo perfeito de estátuas, apagar uma programação dinâmica e de santidade e de oração constan- nomes, limpar, excelência. te. Existe, por exemplo, a frase higienizar alguns que a Igreja lembra aos homens períodos e acon- Consideramos que o próprio que Deus existe e os monges tecimentos, ter epaço da Cartuxa vai muito para cartuxos lembram a Deus que comportamentos além da arte contemporânea - os homens existem. iconoclastas, apesar da evidente ligação que rapidamente se pode ser estabelecida entre um Por tudo isto e pela sua his- transforma, por certo minimalismo e despoja- tória, é fundamental recordar a exemplo, na cria- mento formal da arquitetura e da presença dos monges cartuxos ção de listas de estética cartusianas com as ex- no concelho de Oeiras, tendo obras proibidas pressões plásticas da contempo- sido a sua presença um privi- e na consequen- raneidade -, pois deverá ser uma légio, apenas partilhado com a te queima de cidade de Évora, que também livros… e sabemos, pela histó- teve um convento desta ordem ria, onde tudo isso terminou. em Portugal. Mas o património não deverá O património é aquilo que somente ser valorizado, sob mais importante resta a um pena de ser ele próprio uma povo, que se diz e pensa inde- espécie de armazém de me- pendente, e que deve ser pre- mórias e de testemunhos, com servado, pois não nos pertence obras de manutenção somen- agora, pertenceu e foi criado te e pouco mais. O património pelos nossos antepassados e deverá ser sempre vivido, fruído terá de pertencer aos vindouros. e ensinado. Por tudo isto, algumas atitudes revisionistas sobre a história e o Voltando à Cartuxa de La- património - talvez fruto da atual veiras, é fundamental dar pandemia e de um outro estra- uma utilização cultural a todo nho vírus “maligno destruidor o espaço e aos edifícios, que das Bellas Artes” - são sempre pode ter a forma de um Centro extremamente perigosas e fac- de Arte Contemporânea, como ciosas, realizadas sistematica- a Câmara Municipal de Oeiras mente pelos regimes políticos pensa e muito bem criar. 9
A CARTUXA - I oportunidade para evocar e deles de grandes dimensões, que a pintura, de grandes di- fazer a história da própria Car- encontram-se no Museu Na- mensões (626x327 cm), foi uma tuxa de Laveiras, da sua funda- cional de Arte Antiga (Lisboa), encomenda do rei D. João V, de dora e dos seus protagonistas. Museu Nacional de Soares dos cerca de 1746, para o retábulo Paralelamente ao Centro de Arte Reis (Porto) e Museu Nacio- do altar-mor da igreja da Cartuxa Contemporânea, julgamos que nal Frei Manuel do Cenáculo de Laveiras. deveria existir um núcleo mu- (Évora). Faria, assim, todo o seológico dedicado à Cartuxa e sentido recordar esses quadros Em suma, a recuperação da também ao pintor Domingos Se- e a permanência de Sequeira Cartuxa de Laveiras é, além de queira, que ali viveu alguns anos com noviço na Cartuxa de La- uma oportunidade notável para no final do século XVIII e inícios veiras. Se a importância dessas criar um espaço ao serviço da do XIX. telas, de todas ou de algumas, cultura, da arte e da população, no contexto da História da Arte também um gesto de recorda- Recorde-se que Domingos Portuguesa, impossibilita a sua ção e gratidão com a benemé- António de Sequeira (1768- permanência no futuro espaço rita e fundadora da Cartuxa, D. 1837) não foi um artista qual- cultural de Laveiras-Caxias, ré- Simoa Godinho (c. 1530-1594), quer, mas, sem dúvida, um dos plicas, por exemplo, digitais e à com os monges que ali viveram, maiores pintores e desenha- escala, dessas pinturas podiam estudaram e rezaram, desde dores portugueses de todos ser uma solução interessante e o século XVI até 1834, com o os tempos e que passou pela que valorizaria esse novo local Padre António Oliveira, funcio- Cartuxa, consequência da sua de fruição artística e estética. nários e todos aqueles que pas- profunda religiosidade que man- saram pelo antigo Reformatório teve até ao fim da vida. Aliás, em Também a tela de Vieira Lusi- Central de Lisboa e Centro Edu- 1884, foi colocada uma interes- tano (1699-1783), que se encon- cativo Padre António Oliveira sante placa no claustro pequeno tra, como a Conversão de São e ainda com os pintores Vieira da Cartuxa que alude precisa- Bruno, de Domingos Sequeira, Lusitano e Domingos Sequeira. mente à estada nesse mosteiro, nas reservas do MNAA, poderia De facto, a arte e o património como noviço do “Insigne Pintor voltar para a Cartuxa de Lavei- só fazem verdadeiro sentido se Historico Portuguez”, recordan- ras, onde faria todo o sentido pensados e projetados para o do ainda que os monges haviam que permanecesse. Recorde-se futuro. l conservado os cinco quadros que Sequeira pintou para o “Convento”, depois designados como “Quadros da Cartuxa”. Por isso, a biografia do pintor, mas também a parte da sua pro- dução plástica está intimamente ligada à Cartuxa de Laveiras e a toda a iconografia cartusiana e de santos eremitas. Atualmen- te, esses cinco quadros, um 10
A CARTUXA - I A CARTUXA DE LAVEIRAS A História apaixonante de um antigo mosteiro contemplativo no seu passado, presente e futuro Por Victor M T Henriques marca de vinho alentejano por- Abraão, Jacob, Moisés e Elias, tuguesa, procurarei fazer uma figuras cimeiras do judaísmo. No IINTRODUÇÃO : Cristianismo curta introdução que ajude a deserto retirou-se Jesus Cristo, e Vida monástica contextualizar as características mestre e guia daqueles que se Falar do convento da Cartu- sui generis, desta quase milenar propunham seguir Seus passos. xa de Laveiras é falar neces- Ordem religiosa monástica con- O deserto, afigurava-se assim o sariamente de uma das Ordens templativa de vida eremítica da lugar da experiência suprema, religiosas mais desconhecidas Igreja Católica Romana. a prova que conduzia mais para do grande público e até mesmo além de si mesmo, o local do en- de muitos dos próprios fiéis da O Cristianismo, nascido na contro entre o anjo e a besta; o Igreja Católica Romana, circuns- Páscoa da Ressurreição de tância que obriga a fazer uma Jesus Cristo em 33 local de confronto entre o Demó- prévia contextualização que d.C., veio a gerar nio e Deus: a luta escatológica e ajude a entender o nascimento logo nos seus pri- definitiva entre o bem e o mal. não só da Ordem da Cartuxa, o meiros decénios, seu surgimento em Portugal, e o comunidades que “Fizeste meu coração para nascimento da Cartuxa de La- consideravam que ti, Senhor, e inquieto está até veiras e sua subsequente rica, o seu cristianismo descansar em Vós”, confessou curiosa e esquecida História. lhes exigia uma en- Santo Agostinho, expressando trega absoluta às com simplicidade a vivência Trata-se de um edifício nasci- exigências evan- mais íntima do crente ao longo do no contexto muito específico gélicas. Comunida- da História humana. O Homem é de uma Ordem religiosa católi- des cristãs da Síria, ca, também ela muito singular e Líbano, Egipto peculiar. Sabemos que uma res- viram surgir grupos de fiéis que posta vocacional a este género se entregavam a uma prática de tão invulgar de vida religiosa um ascetismo pobre e itineran- contemplativa eremítica, é rara te. Os inóspitos e inclementes e muitas até, incompreensível desertos eram considerados lu- aos olhos do mundo, onde a gares adequados para enfrentar descrença, a indiferença religio- a prova de Fé; a tentação e o sa e o próprio ateísmo foram se combate aos inimigos da alma e foram instalando nas almas de do mais interior de nós mesmos. tantos. E para que o leitor fique No deserto se tinham preparado a conhecer mais da Cartuxa do que o nome de uma conhecida 11
A CARTUXA - I o grande peregrino, esse grande refugiou numa gruta perto de na cidade de Reims (norte da navegador capaz de percorrer Subiaco, vivendo como eremita França). Ordenado sacerdote, incansavelmente os oceanos durante três anos. Seu exemplo foi indicado para professor e da vida com o desejo profundo acabou por atrair alguns discí- mais tarde Reitor da Escola Ca- de encontrar essa ligação com pulos, e foram os protagonistas tedralícia de Reims (precursora Deus, essa ligação primordial de daquela que é a mais antiga e do que é hoje a Universidade), revelação esclarecedora da sua numerosa de todas as Ordens onde ensinou teologia durante demanda de Verdade. E dentro religiosas monásticas da Igreja vinte anos. Entre seus alunos, da Revelação Cristã, para seguir do ocidente, os Beneditinos, que contam-se o futuro Papa Urbano o Mestre há que renascer de já estavam presentes em Portu- II, e São Hugo, bispo de Grenob- novo, de forma a que vivendo no gal antes da própria Fundação le. Escandalizado pela vida de- mundo, o vivam sem se deixar da nacionalidade. A Ordem Be- masiado mundana do clero seu influenciar pela mundanidade. E neditina espalhou-se por toda a contemporâneo, decide afastar- este é o grande paradoxo cristão: Europa com uma enorme rede -se da Academia e junto com estar presentes no mundo sem de mosteiros, desde a Norue- uns amigos decide “abandonar ser mundanos; ser cristão sem ga ao sul da Itália, da Polónia à o mundo fugaz, para captar o se deixar arrastar pelo perigo Irlanda, levando a mensagem Eterno e receber o hábito mo- constante de afastar de Deus. cristã através do seu lema e nástico”. Depois de passar uns divisa “Ora et Labora” (oração e tempos com São Roberto (o Desta forma surge a vida re- trabalho), criando escolas e en- fundador dos Cistercienses – ligiosa monástica cristã, cujos sinando técnicas de agricultura outra grande Ordem monástica) monges, separando-se da às populações vizinhas de seus em Molesmes, retirou-se com mundanidade, procuravam uma mosteiros. A Ordem Beneditina seis discípulos em 1084 para a maior identificação com Cristo, tornou-se a maior Ordem de solidão da região da Chartreuse, através dessa forma de “morte carácter monástico na Igreja, num vale alpino a 1000 metros para o mundo” onde o monge tendo ainda hoje em 2021 cerca de altitude, totalmente desabita- levando uma vida de penitên- de 1184 Casas ativas, entre do. Seu único desejo era poder cia, oração, estudo, contempla- abadias, mosteiros, conventos viver a sós com Deus. São assim ção, trabalho, silêncio e solidão ou simples priorados em todo o sete os primeiros cartuxos. dedica toda a sua vida em louvor mundo, desde a Austrália, aos ao Criador. Estados Unidos, do Japão à São Bruno não pertencia à Argentina. Em Portugal mantém tradição beneditina e procurou No Ocidente, o jovem São ativa a Abadia de Singeverga, algo completamente distinto, a Bento, nascido em 380 em na diocese do Porto (Santo solidão eremítica. Levantou com Núrsia (Itália), filho de pais bas- Tirso) com uma comunidade de troncos de madeira, pequenas tante ricos que o tinham enviado monges. e rudes cabanas individuais ao para Roma para fazer seus es- redor de uma capela comum. tudos, converte-se ao Cristianis- Em 1027, nasceu na cidade de No deserto e aridez selvagem mo, e chocado com a mundani- Colónia (Alemanha) São Bruno, dessas montanhas podiam as dade de seus contemporâneos que estudou com entusiasmo suas almas elevarem-se livre- da grande cidade, retira-se para desde jovem, Artes e Teologia mente na contemplação e ado- o “deserto” do campo, onde se 12
A CARTUXA - I ração que desejavam oferecer a concebido para manter a solidão tantos que porventura quereriam Deus. de cada monge, com suas celas abraçá-la, não é propriamente o individuais. A Cartuxa é o equi- que a define, e muito menos o Foi nessa solidão, propícia líbrio perfeito entre a solidão e que prejudica a saúde de seus para o maior recolhimento, que convivência comunitária. membros, que é, geralmente São Bruno e seus seis compa- mais vigorosa que a daqueles nheiros se estabeleceram, e A quinta-essência desta fun- que vivem no stress da vida no acabariam por dar origem a uma dação de 1084 por São Bruno, mundo. nova Ordem religiosa na Igreja, é consistirem em serem eremi- que ficou com o nome dessa tas puramente contemplativos. Descrevamos um pouco essa região de montanhas: “Chartreu- Consistia e consiste, pois a fórmula de vida: se”; “Cartusiae” em latim, depois Ordem da Cartuxa persiste até “Cartuja” como corruptela em aos dias de hoje, 2021, século Como vimos, São Bruno criou castelhano, e por fim a “Cartuxa” XXI, estando presentes com 16 uma espécie especial de ere- na língua portuguesa. mosteiros em 11 países: França, mitas. Organizou no ermo uma Espanha, Inglaterra, Alemanha, existência que sintetizava soli- Este novo carisma vocacional Itália, a pequena Suíça, a Eslo- dão individual do monge com na Igreja, os monges Cartuxos vénia, os Estados Unidos, Brasil, a vivência em comunidade. O demarcaram-se de outras cor- Argentina e Coreia do Sul. Como principal cuidado e propósito do rentes monásticas, como os foi sobejamente noticiado na co- monge Cartuxo, seja padre ou Beneditinos ou Cistercienses, municação social portuguesa, a irmão, é viver, orar, trabalhar em pois ao contrário destas duas única comunidade de monges silêncio e solidão. Não há coisa grandes famílias monásticas, Cartuxos em Portugal - a do que o cartuxo mais aprecie do os Cartuxos tendiam para uma mosteiro da Cartuxa de Santa que a sua cela. Considera-a vida eremítica, portanto, vivida Maria Scala Coeli, em Évora - como o lugar onde o Senhor e de forma individualmente mais deixou o País em final de outu- o seu servo conversam frequen- solitária e não privilegiando tanto bro de 2019 rumo a uma outra temente como amigos. Perse- o ênfase na vida comunitária. Casa da Ordem em Espanha. vera na sua cela todo o tempo No fundo São Bruno conseguia possível, para nela se instruir o paradoxo de a Cartuxa ser É comummente e largamente nos mistérios divinos, procuran- uma comunidade de solitários. O aceite que a Ordem da Cartuxa do converter a sua vida numa monge Cartuxo já não é mais o seja considerada indubitavel- oração contínua de louvor e eremita perdido na floresta; com mente como uma das Ordens agradecimento. a fundação da Cartuxa como religiosas mais austeras na Ordem religiosa, abre-se um Igreja. Fora dos muros de seus O facto de cortarem o primeiro novo capítulo nessa tão desco- mosteiros, é divulgada a imagem sono da noite para celebrarem nhecida e rara vocação eclesial de que são homens que nunca o Ofício Divino; o absterem-se que é o monge eremita, poden- falam. E como tantas outras nar- sempre de carne; o jejuarem a do agora, sendo na mesma um rativas, também estas são certa- pão e água sempre às sextas- eremita, mas vivendo com outros mente exageradas. -feiras e comerem apenas uma seus pares, num mosteiro único refeição entre a Festa da Exalta- que está arquitetonicamente Mas o rigor da vida monásti- ção da Santa Cruz (14 de setem- ca cartusiana, assustadora de bro) até à Páscoa, não são as 13
A CARTUXA - I São Bruno em oração, nas altas seu quintal, trabalham na oficina cartusiana é indubitavelmente e no campo, para sustentarem a Santa Missa, onde todos os montanhas da Chartreuse (Alpes economicamente a comunidade. monges comungam das duas espécies. As prostrações e os Franceses). A Fundação da Ordem A vida litúrgica é muito im- largos momentos de silêncio são portante para o monge cartuxo. característicos da Missa cartu- da Cartuxa deu-se a 24 de junho de Observa-se que o maior dos edi- siana, que segue um rito próprio, fícios que constituem um mos- diferente do Rito Romano. Toda 1084. teiro cartuxo é sempre a igreja, a liturgia cartusiana é efetuada numa atitude muito “Soli Deo”. sempre sem orgão ou quaisquer penitências mais rigorosas para Levanta-se perto da meia-noite outros instrumentos musicais: o monge cartuxo. para cantar Matinas e Laudes, apenas a voz pausada e lenta do que em dias de Festa (litúrgica) canto gregoriano. O que caracteriza verdadeira- podem demorar até cerca de mente a vida cartusiana, mais do duas horas.Até outubro de 2019, As (poucas) refeições do que rigor, é a vida eremítica na podia-se escutar o sino da Car- monge cartuxo são efetuadas solidão e convivência com que tuxa de Évora (com a sua ativa na solidão e silêncio de sua cela São Bruno doseou o equilíbrio comunidade monástica) que individual, sendo que apenas psicológico e espiritual dos seus ressoava pela calada da noite aos domingos e dias de festas monges. Dentro desses parâ- e de madrugada, pela planície almocem todos juntos no refei- metros o monge vive rezando, alentejana, numa beleza ímpar, tório. A bênção da mesa é dada meditando e trabalhando. Reza convidando as almas solitárias pelo padre que presidiu a missa e medita na solidão de sua cela, `conversão e a elevarem o cora- conventual, e durante a refeição e reza, medita e canta na igreja ção às alturas. comunitária, uma leitura espiri- três vezes ao dia em comuni- tual alimenta as almas enquanto dade. Os padres trabalhando, O clímax da vida monástica estudando e cultivando o pe- queno jardim pertencente à sua Vista geral da Casa-Mãe da Ordem da Cartuxa, o famoso mosteiro da cela (todas as celas monásticas Grande-Chartreuse, ainda hoje ativo. de todos os mosteiros cartuxos possuem seu pequeno quintal); e os irmãos, além da cela com o 14
A CARTUXA - I se toma a refeição para o corpo. de Évora, a única No “deserto” dos mosteiros frase que o jor- cartuxos, os monges contem- plam as maravilhas da Natureza, nalista arrancou da Arte e do Divino, dialogando com a solidão contemplativa dos lábios do da Criação, saindo da clausu- ra uma vez por semana, dois a Prior da Comuni- dois pelos campos em redor do mosteiro em conversa amena, dade foi: “Nosso falando fraternalmente e, portan- to, alegremente, abundantemen- carisma é falar te mesmo. É o equilíbrio entre vida solitária e vida comunitária, a Deus dos visando fomentar a caridade mútua, mas também moderar e homens, não atenuar a solidão, conseguindo que esta seja mais fácil e grata. aos homens de Todos os eremitas gostam do Deus”. É esta a Antigas celas monásticas ao redor do claustro ar livre, pois eremo significa des- essência da vida grande, na antiga Cartuxa francesa de Neuville-Sur- campado.E São Bruno era muito religiosa contem- -Mer. Cada monge ocupava uma cela, de dois pisos, sensível às belezas da Criação e plativa. todas com seu jardim, próprio da Ordem. escreveu acessos elogios das Abaixo: celas individuais na Cartuxa de Notre-Dame paisagens da Calábria (sul da Os monges de Portes (França), ao redor de um clautro. A Cartuxa Itália) onde fundou seu segun- Cartuxos defen- de Portes ainda hoje permanece ativa na Ordem. do eremitério. Que teria ele dito dem, ainda hoje deste magnífico vale suave de no século XXI, Barcarena, com vista aprazível e bela para o azul do Oceano com firmeza o onde se localiza a Cartuxa de Laveiras?... seu silêncio e Os mosteiros cartuxos são isolamento do verdadeiras antenas parabólicas viradas para o Divino, a refletirem mundo, de forma as misericórdias de Deus, atra- vés de seus monges silenciosos a poder viver o e pacíficos. Numa famosa repor- tagem do programa televisivo da seu carisma pró- RTP, “Setenta Vezes Sete”, de 18 de abril de 1982, à Cartuxa prio e especial, e por isso fogem da publicidade e raramente concedem entrevistas famosos como Inácio de Loyola aos meios de comunicação. Não (fundador dos Jesuítas), João é de admirar, que sejam tão da Cruz (Carmelita), sentiram o pouco conhecidos. Apesar de desejo de ingressar numa Car- tudo, apesar do quase desco- tuxa. E também ainda em 2021, nhecimento geral, a vida solitá- a Cartuxa continua a despertar ria dos Cartuxos sempre atraiu interesse em pessoas de fé, homens e mulheres, famintas que se sentem atraídas por do Infinito, desejosos de viver uma vida de interioridade e in- ocultos aos olhos do mundo, timidade centrada naquele que consagrando a sua existência É o Absoluto e Total. l totalmente a Deus, no silêncio e solidão dos claustros. Santos Continua na próxima edição 15
A CARTUXA - I MEMÓRIAS DE UM AMIGO DA CARTUXA Por João Maria de Freitas Branco Conhecendo os laços compilação sistematizada de mendem os velhos arautos de que há muito me referências historiográficas. Por uma suposta essência saudo- ligam ao Convento da certo, sobre o imediato impulso sista da alma lusitana, cultores Cartuxa, em Caxias, oferecido pelo ambicioso pro- de um passadismo paralisante pede-me o director de A Voz jecto cultural, um dia se proce- a que a chamada Filosofia Por- de Paço de Arcos que lance derá à elaboração e publicação tuguesa forneceu abundante ao papel o raconto dos capi- de uma grande História da Car- alimento. Concebo a memória tais momentos dessa minha tuxa, abarcando mais de quatro como factor primordial da estru- dilatada relação com o nobre centúrias, desde Dona Simoa turação da mente que intervém espaço, no momento em que Rodrigues, no século XVI, até no aqui e agora concebendo finalmente, por feliz e oportuna este nosso presente. Tendo eu formas de superar as limita- iniciativa da Câmara Municipal a honra de integrar o Conselho ções do passado, acautelando de Oeiras, se anuncia a recu- Geral de Oeiras 27, sinto-me o futuro com a audácia de uma peração de todo esse com- até tentado a formalizar em acção prática actual, racional- plexo que emoldura a vila de sede própria a proposta de in- mente fundamentada e conse- Caxias inserindo-a no empol- tegrar essa iniciativa editorial quentemente transformadora. gante projecto Oeiras 27, que no programa de Oeiras Capital No fundo, esse esforço para marcará a história deste nosso Europeia da Cultura – mais pre- nos libertarmos dos grilhões Município na agora iniciada ter- cisamente, no que foi definido dos enganos, das ilusões, dos ceira década do século XXI. como quarto eixo estratégico, preconceitos dominantes e de o eixo das heranças culturais. outras limitações pretéritas é Com sincero gosto, aqui pro- A sugestão pública, deixo-a já a essencial função do historiar curarei corresponder ao sedu- aqui depositada como forma sistemático, bem como o prin- tor convite. Faço-o, porém, não de despertar cumplicidades e cipal fundamento da necessi- com a pretensão de produzir como convite à participação dade de se estudar História. O texto ensaístico de exigível cívica. conhecimento histórico solta e rigor historiográfico, senão que agiliza a Vontade. no espírito de uma descrição Neste escrito, o chamamento memorialista de cunho vinca- à colação de memórias antigas O convívio com a Cartuxa damente pessoal e executada tem mais o objectivo de servir estende-se ao longo de quase ao correr da pena, dispensan- as saudades do futuro do que toda a minha vida, porque se do, por isso mesmo, a consulta alimentar saudades do pas- Caxias não é a minha terra documental, a anotação e a sado, como talvez ainda reco- natal, a verdade é que desde 16
A CARTUXA - I o já recuado ano de 1957, ano Convento fazia parte de um Oliveira, eram forma de evitar de um século já findo, aí se circuito habitual. Mas o acesso que os delinquentes menores encontra a casa que desde a ao interior era limitado por se de idade ficassem misturados meninice, e durante mais de 63 tratar de um espaço prisional com os presos adultos, pro- anos, me abrigou com estatuto destinado a jovens reclusos do movendo a transição de uma de primeira habitação (hoje por sexo masculino. Nesse tempo lógica prisional para um lógica muitos baptizada de “Vivenda (e até Fevereiro de 2021), o educacional). Os jovens reclu- Freitas Branco”). Ora, nessa Convento, que desde o início sos eram denominados como década de 50, a paisagem ofe- de século XX tinha deixado de “os corrécios” pela população recida por todas as janelas da ser utilizado pelos frades da caxiense, sem preocupação de fachada de minha casa, situa- Ordem dos Cartuxos (ou de rigor linguístico e com um curio- da na encosta Oeste da vila, São Bruno), fazia parte das ins- so sentimento misto de conde- tinha como um dos principais talações do Instituto Padre An- namento/compaixão. Ao con- pontos de referência o Con- tónio de Oliveira (actual Centro trário do que hoje se verifica, vento da Cartuxa e o generoso Educativo Padre António de nesse tempo o regime prisional manto verde que ainda hoje o Oliveira), a que a população era semiaberto, permitindo que circunda, destacando-se nesse local sempre chamou Refor- os jovens saíssem das instala- conjunto a Igreja, com a sua matório ou Correcção, a velha ções prisionais acompanhados elegante presença. O hábito terminologia utilizada para de- pelo seu instrutor. Um absoluto de olhar para a Cartuxa en- signar os estabelecimentos es- contraste que não deixa de ser tranhou-se de forma instintiva tatais dedicados ao problema surpreendente se pensarmos na criança que eu então era. da delinquência infanto-juvenil que essa abertura ocorria no Mesmo quando uma preva- (que desde o início do século quadro político da ditadura do ricação típica de um regime XX, com o concurso de pes- Estado Novo enquanto o actual ditatorial possibilitou, no final soas como o Pe. António de regime fechado de alta segu- dos anos 60, a construção de um prédio em zona reservada a vivendas, roubando boa parte dessa vista, a Igreja da Cartu- xa permaneceu no campo de visão, não interrompendo a minha relação de vizinhança e de intimidade estético-visual com a Cartuxa. Nas frequentes caminha- das efectuadas na companhia de meu Pai pelas ruelas da aldeia de Caxias e pelos vastos campos que a circundavam, a passagem nas imediações do 17
A CARTUXA - I rança foi implementado pelo rou definitivamente no final de Instituto Padre António de Oli- regime democrático. A apa- 2020). veira (IPAO) em parceria com o rente contradição asneirada núcleo da Educação, Cultura e tem explicação alicerçada; mas Também havia o movimento Ideologia da então recém-cria- essa sai fora do escopo deste em sentido contrário. Ou seja, da Comissão de Moradores de escrito. crianças e jovens adolescentes Caxias, Laveiras e Murganhal. residentes em Caxias/ Lavei- Uma das mais interessantes Na localidade, era habitual ras saltavam para o interior do experiências pedagógicas que ver passar jovens reclusos, amplo espaço do estabeleci- me foi dado viver e que inaugu- imediatamente identificados mento prisional para irem jogar rou a minha actividade docente. pelo azul dos fatos de macaco futebol nos claustros do velho que obrigatoriamente trajavam Convento, brincando com os Tinham decorrido apenas e com que trabalhavam nas meninos do Reformatório ou, alguns meses desde o Dia da oficinas do Instituto. De acordo como mais amiúde se dizia, da Liberdade. Vivia-se, por isso, com o regulamento prisional, Correcção. um extraordinário momento eram acompanhados por um histórico. No entusiasmo colec- instrutor ou por outro funcio- A memória desta porosidade tivo de participar na construção nário do Instituto. No entan- entre a aldeia de Caxias e o de um país democrático foi to, também acontecia ver-se Instituto, prisão de menores, é tomada a decisão de proporcio- algumas vezes um “corrécio” importante para o que adiante nar aos caxienses adultos que, (usando a terminologia da se descreverá. por motivos vários, a começar época) a ir sozinho a uma loja pela pobreza, se tinham visto para adquirir material neces- Foi só em 1974, por efeito obrigados a abandonar os es- sário ao seu trabalho. Situação directo da Revolução dos tudos após terem concluído a que cheguei a presenciar mais Cravos, que passei a frequen- instrução primária (4ª Classe), do que uma vez na drogaria do tar assiduamente o espaço do um regresso aos estudos, uma Sr.António, na Av. Conselheiro complexo da Cartuxa. Essa reentrada na escola de onde Ferreira Lobo (loja que encer- passagem intra muros resul- nunca deviam ter saído com tou de um aliciante projecto aquela idade. Ia iniciar-se o pedagógico levado a cabo pelo primeiro ano escolar do Por- tugal de Abril. Era o momento de reparar a vergonhosa in- justiça. A solução encontrada foi a de criar no Convento da Cartuxa uma míni escola do ciclo preparatório (uma escola ad hoc) que juntasse os jovens reclusos que já tinham obtido o diploma da 4ª Classe com os adultos, com igual habilitação escolar, que se quisessem ins- 18
A CARTUXA - I crever nesse nível de ensino, professores, restava a hipótese terno: o Francisco Ferreira dos de forma a poderem continuar do voluntariado. Obstáculo fácil Santos que, sem ter chegado os estudos adquirindo maiores de transpor quando se vive um a dar aulas, acompanhou de habilitações. O projecto contou momento extraordinariamente perto a organização da activi- desde a primeira hora com o singular e empolgante como dade lectiva, estando quase apoio entusiástico do então foi o da Revolução dos Cravos. sempre presente nas classes. director do Instituto, o Sr.Pe- Toda a gente queria participar, ralta (como era habitualmente todos tinham férrea vontade Para o nível de escolarida- tratado). Homem progressista, de ser úteis à sociedade. São de em causa (ciclo preparató- dinâmico e genuíno democrata momentos únicos. Mas é claro rio, popularmente conhecido empenhado na construção do que a concretização do projec- por “ciclo”, correspondendo Portugal de Abril, Peralta, que to inovador requeria o concurso ao actual 2º ciclo do ensino nos deixou prematuramente, igualmente altruísta de outras básico) não era exigido que os foi um constante aliado dos pessoas e uma das que teve docentes fossem licenciados. movimentos cívicos de âmbito papel relevante na essencial Por isso, contactei rapidamen- municipal em que estive envol- vertente da homologação do te um conjunto de amigos que vido nessa época. No período curso junto do Ministério da eram estudantes universitários em que o curso funcionou, o Educação foi curiosamente a (alguns estavam a iniciar nesse seu gabinete de director serviu mesmíssima pessoa que me mesmo ano lectivo os seus como “sala de professores”, animou a redigir esta prosa respectivos cursos, como era onde se efectuavam as reu- memorialista: o director da Voz o caso do António Freire Valen- niões de avaliação e outras. Um de Paço de Arcos, José Manuel te, encarregue da leccionação amplo e bonito espaço, situado Marreiro que nesse então, um do Português e que viria a ser imediatamente à esquerda da pouco por acaso, tinha um pre- juiz do Tribunal do Trabalho; fachada da Igreja e com porta cioso contacto pessoal facilita- João Reis, outro dos voluntário, para o claustro, que me doeu dor do processo burocrático: estava mais adiantado no seu ver ser votado ao abandono o contacto com José Manuel percurso universitário). Todos muitos anos mais tarde (na Prostes da Fonseca, secretário aceitaram o convite para traba- última década do século passa- de Estado da Administração lhar sem auferir nenhuma re- do), acabando por se deteriorar Escolar durante os três primei- muneração nem qualquer outro a ponto de ficar quase irreco- ros governos provisórios do tipo de benefício material. O nhecível. pós-25 de Abril. Foi ele que per- horário era pequeno, uma vez mitiu desburocratizar o proces- que se tratava de uma única Havendo alunos inscritos, so, dando assim decisivo apoio turma, e necessariamente noc- instalações adequadas, ma- à iniciativa cidadã. Neste, como turno, pós-laboral, pois metade terial didáctico e luz verde da em outros projectos directa- da turma era constituída por parte do Ministério da Educa- mente relacionados com a Car- trabalhadores-estudantes. Não ção, ficava apenas a faltar um tuxa (que adiante referirei) tive me recordo do número exacto elemento essencial: o corpo do- sempre a meu lado um querido de alunos, mas não eram mais cente. Como não havia base or- amigo de infância, Amigo fra- de 30. Os “internos”, ou seja, os çamental para a contratação de mais novos, eram reclusos do 19
A CARTUXA - I Instituto Padre António de Oli- nidade através da aquisição de em outro local e com outro veira, e na minha qualidade de conhecimento e de mais habili- nome. Refiro-me à Escola de professor tive acesso aos seus tação académica. São Bruno (mais recentemen- processos. Lembro-me de estar te também denominada Agru- com o olhar fixado nas páginas Foi a primeira vez que dei pamento de Escolas de são de alguns desses processos e aulas, mas nunca mais tive um Bruno), com morada evocativa não conseguir acreditar no que grupo de alunos tão profunda- do seu berço: Rua Dona Simoa estava a ler sobre o passado mente heterogéneo. E, talvez Godinho, em Laveiras; ou seja, daqueles jovens adolescentes. por isso, não creio ter encon- a rua que homenageia a bene- Coisas inenarráveis que dese- trado ao longo da minha acti- mérita que no final do século jamos nem sequer poder imagi- vidade docente nenhuma outra XVI doou aos frades Cartu- nar serem possíveis. De repen- turma que oferecesse uma pai- xos os terrenos de que era te, emergiam os humilhados e sagem humana tão forte, tão proprietária em Laveiras, de ofendidos, como que brotando inquietante, tão humanamente modo a possibilitar a constru- da ficção dostoievskiana. Como trágica. ção do Convento da Cartuxa. é que coisas tão horríveis se Mal sabia eu, no momento da podiam ter passado em tão Importa pôr em evidência a sementeira pedagógica, que pouco tempo de vida? Como projecção que esta extraordi- muitos anos mais tarde o meu é que aqueles seres podiam nária experiência pedagógica filho João Pedro iria frequentar ainda acreditar em alguém ou teve. Ela lançou boa semente essa escola gerada pelo movi- em alguma coisa? Mas eles em tempo próprio. Foi o em- mento cívico que integrei, e que confiavam em mim. Eram rapa- brião de uma nova escola pú- iria ter aulas na mesma sala zes encantadores, com poten- blica, a Escola Preparatória onde eu tinha dado a minha pri- cialidades. Tinham esperança. de Caxias que durante anos meira aula – uma aula de Mate- Sim, ainda tinham uma réstia funcionou (provisoriamente) mática, pois foi essa a discipli- de esperança num futuro dife- naquele mesmo espaço do na que leccionei. Curiosidades rente em que pudessem cons- Convento da Cartuxa e que truir-se pessoa. Alguns rostos ainda hoje existe, se bem que ficaram para sempre gravados na minha memória. Também entre os alunos “ex- ternos” havia percursos de vida agravados, bicudos. Tinham percursos profissionais muito contrastantes: um funcionário público, um motorista, uma operária fabril, um porteiro de um bar do Cais-do-Sodré… Es- peravam, também eles e elas, encontrar ali uma nova oportu- 20
A CARTUXA - I do destino. [Na última fase em apoio. Eu era então presidente referido apenas como grupo que funcionou nas instalações da direcção do Grupo Acadé- Intervenção), inscrito na APTA do Convento da Cartuxa este mico (GA), associação cultural – Associação Portuguesa do estabelecimento de ensino teve fundada em 1970 e que tinha Teatro de Amadores. O primei- o nome de Escola Base 2,3 ou sede em Caxias (embora não ro espectáculo realizado nesse simplesmente EB2,3.] fosse uma agremiação caxien- palco da Cartuxa foi o de uma se, com actividade circuns- nova produção (bastante mais Todo o processo que levou crita a esta localidade). Essa arrojada, com diferente ce- à criação da Escola merece associação incluía um grupo nografia e renovado desenho ser um dia relatado de forma de teatro amador, inicialmente de luzes) da mesma peça de detalhada. Bom seria que os denominado Grupo Experi- Osvaldo Dragún. Esse espec- protagonistas vivos narrassem mental de Teatro do GA, que táculo, que talvez tenha sido a por escrito ou oralmente (atra- iniciara em 1973 a preparação primeira grande representação vés de depoimentos gravados) da sua primeira produção, com teatral realizada em Caxias, essa sua experiência. a peça Historias para ser con- esgotou a sala, enchendo por tadas (traduzida em português completo a plateia e o balcão, O trabalho docente que de- com o título Três Histórias para mereceu a atenção da crítica senvolvi na Cartuxa fez-me serem contadas) da autoria do especializada, teve o apoio do tomar conhecimento da exis- dramaturgo argentino Osvaldo Teatro Nacional de São Carlos tência de uma sala de espec- Dragún. A primeira represen- e até contou com a presença táculos, com amplo palco e tação teve lugar no palco do já não oficial do primeiro-ministro camarins, construída nos anos referido Ginásio1 do Liceu Na- e do secretário de Estado da 1950, em pleno Estado Novo, cional de Oeiras (LNO) pouco Cultura. Era o Portugal de Abril mas encostada às traseiras tempo antes do 25 de Abril (es- a despontar. da igreja barroca. Trata-se de capando ao crivo da censura); uma sala/ginásio em tudo se- mas urgia encontrar local onde Uma das coisas que maior melhante ao que encontramos se pudesse sediar a activida- satisfação me deu foi termos nos grandes liceus construídos de teatral, uma das principais conseguido levar para o palco, nessa mesma época (veja-se vertentes da acção cultural de- integrando o elenco de uma o caso do ginásio grande, ou senvolvida. A aprovação pelo das produções teatrais, um dos Ginásio 1, do Liceu Nacional director do IPAO da proposta alunos “internos”. Foi gratifican- de Oeiras, actual Escola Se- formalizada pela Direcção do te ver um jovem adolescente cundária Sebastião e Silva, Grupo Académico foi imediata que à partida tinha enormes que data de 1952). Ao saber e a associação passou a dispor dificuldades de dicção e de da existência desse espaço, de uma magnífica sala onde expressão verbal ser capaz de hoje em adiantado estado de durante vários anos pôde rea- superar essas imperfeições, degradação, apressei-me a lizar os espectáculos do Grupo causadas pelas dores infligidas apresentar ao Sr.Peralta uma de Teatro Amador Intervenção nas esquinas de uma vida sem proposta de natureza cultural (denominação dada a partir do infância, sem amor, sem hu- e artística, sabendo de ante- 25 de Abril, sendo por vezes manidade, e conseguir subir à mão que iria poder contar uma ribalta para representar diante vez mais com o seu generoso 21
A CARTUXA - I de uma larga plateia um papel, muitos a ficar de pé, por não -me-ia impossível nesta circuns- mesmo que secundário, numa haver cadeiras suficientes).Tive tância listar os eventos levados peça de teatro. Este caso, por si a satisfação de poder convidar a cabo ao longo dos últimos só, engrandece a iniciativa que o meu saudoso amigo Arman- anos (desde a primeira década aqui baptizo de “Escola Aberta do Caldas para ser o apresen- do século XXI), mesmo que me da Cartuxa”, assim como remu- tador desse Canto Livre. Quem limitasse a enumerar os mais nera amplamente e compensa melhor do que ele para o fazer? relevantes. Obedecendo a um por completo o trabalho e o in- Também a sétima arte marcou prioritário intento pedagógi- vestimento de esforço de todos importante presença na progra- co, todos os concertos eram aqueles que de algum modo mação cultural daquela sala, comentados, tendo eu pró- contribuíram para que o curso tendo aí sido projectadas algu- prio assumido quase sempre se realizasse, para que aquela mas grandes obras da cinema- a função de palestrante. singular “Escola” tivesse funcio- tografia clássica que durante Realizaram-se vários ciclos te- nado. décadas tinham sido proibidas máticos, fizeram-se concertos em Portugal, como as películas com instrumentistas solistas, Bastava este primeiro contac- de Sergei Eisenstein. Havia na cantores, grupos de música to directo com o Convento da sala de espectáculos, atrás do de câmara, coros, grupos de Cartuxa para que tivesse per- balcão, uma cabine de projec- dança, e até com orquestra. durado em mim, até hoje, um ção onde estava instalado um Os espectáculos contaram elo afectivo com aquele espaço velho projector de qualidade com a participação de alguns patrimonial. Mas outros aconte- profissional. dos mais destacados músicos cimentos vieram cimentar essa portugueses bem como de mú- afinidade. Deixei para o fim a Igreja da sicos residentes em Portugal. Cartuxa, porque foi cronologica- Mas houve também a presen- O facto de a associação mente o último espaço a ser por ça de figuras com notoriedade cultural Grupo Académico ter mim utilizado para prosseguir o internacional, como foi o caso passado a dispor de uma sala longo trabalho de realização de do célebre guitarrista brasileiro própria permitiu também a reali- actividades culturais. Foi só a Carlos Barbosa-Lima. Mas os zação de outro tipo de eventos, partir da altura em que assumi jovens intérpretes, em início de para além das artes dramáticas. o cargo de presidente do Giná- carreira, não ficaram esqueci- Desses, merece destaque o pri- sio Ópera, no início do presente dos e a Cartuxa serviu-lhes de meiro (e creio que único) Canto século, que pensei em eleger a palco. Recorde-se ainda que Livre realizado em Caxias, com Igreja da Cartuxa como um dos até foi possível efectuar os en- a participação de destacados locais de realização regular de saios de cena com orquestra cantautores, representantes da espectáculos de natureza cultu- para uma megaprodução ope- balada e da canção popular de ral e artística na zona da grande rística em que participavam intervenção, como José Jorge Lisboa, com preponderância largas dezenas de profissio- Letria actual presidente da SPA para os de cariz musical. Feliz- nais, tendo sido um desses en- – Sociedade portuguesa de Au- mente foi possível concretizar saios aberto ao público. Tirando tores; espectáculo que contou essa intenção. E de tal forma partido da óptima acústica da com a presença de centenas que, mesmo que quisesse, ser- de espectadores (obrigando 22
A CARTUXA - I igreja, realizaram-se também namento. Dados a ter em conta do Instituto Padre António de sessões de apresentação de quando chegar o momento de Oliveira (actual Centro Educa- grandes concertos históricos repensar a forma de utilização tivo Padre António de Oliveira), de que há registo filmado. Com da Igreja depois de estarem assim como da Direcção Geral recurso à electrónica e aos so- terminados os trabalhos de rea- dos Serviços Prisionais, parti- fisticados meios audiovisuais bilitação. cularmente no período em que modernos foi possível efectuar foi liderada por Celso Manata, na Igreja da Cartuxa uma espé- A dada altura, e com a devida orgulho-me de ter contribuído cie de recriação virtual desses autorização do Ministério da de alguma maneira para dar concertos históricos de Viena, Justiça, decidi colocar na Igreja oxigénio cultural à elegante e Berlim, Paris e de outras capi- da Cartuxa o meu piano de acolhedora Igreja da Cartuxa, tais mundiais da Música, dando cauda. Isso facilitou em muito a chamando assim a atenção prioridade ao melhor reportório realização de eventos musicais, para a urgência de recuperar religioso, por óbvias razões, e proporcionando apetecíveis esse património (propriedade escolhendo sempre os mais su- reduções de custos de produ- do Ministério da Justiça) que perlativos intérpretes (K.Richter, ção. Esse piano passou inclu- na prática tinha sido abandona- Karajan, Bernstein, Herreweghe sivamente a ser utilizado pelo do pelo Estado há cerca de 30 e outros, à frente das melhores grupo musical paroquial nas anos por falta de recursos finan- orquestras mundiais, com os missas dominicais, bem como ceiros para efectuar a própria melhores coros e os melhores em outas cerimónias religiosas. manutenção mínima dos edi- cantores solistas). O piano permaneceu durante fícios. Foi por isso com grande vários anos na Igreja e só de aí satisfação que acolhi a recente Deve assinalar-se que o públi- foi retirado quando o director do notícia do acordo firmado entre co não era nem exclusiva nem Instituto me alertou para a falta o Estado e a Câmara Municipal preponderantemente local (da de condições de segurança por de Oeiras tendo em vista a re- zona de Caxias/Paço de Arcos). efeito do acentuado estado de cuperação integral do complexo Em todo o tipo de realizações degradação do edifício. E em da Cartuxa. Com o dinamismo era notória uma presença sig- boa hora o fiz, porque evitei que se lhe reconhece, o presi- nificativa de pessoas provenien- nesse mesmo dia que tivesse dente da Câmara Municipal de tes de outros cantos do Muni- havido um incêndio. Na noite Oeiras, Isaltino de Morais, tirou cípio de Oeiras, assim como anterior tinha havido um assalto máximo partido do programa também de outros concelhos, e os bandidos deixaram velas Capital Europeia da Cultura de incluindo Lisboa, Almada, para acesas por baixo de superfícies modo a conseguir pôr termo a além de Cascais. Por vezes inflamáveis. Estou em crer que uma situação de abandono pa- esquece-se que fora das horas a minha intervenção foi provi- trimonial que há muito se tinha de ponta não são necessários dencial. tornado tão inaceitável quanto mais de 10/15 minutos para de vergonhosa e em que todos automóvel percorrer a distância Através da estrutura ins- os governos das últimas três que separa a Praça Marquês de titucional do Ginásio Ópera décadas pecaram por negligên- Pombal do Convento da Cartu- (patrocinada pelo Montepio e cia. Sensível às insistências do xa, onde há parque de estacio- pela Roff) e contando com o permanente apoio do director 23
A CARTUXA - I Município, a ministra da Justiça, como se sabe, inclui o Conven- musical de vários géneros (eru- Francisca Van Dunam, prota- to da Cartuxa como principal ditos e populares – ópera, ope- gonizou gesto de excepção à objecto arquitectónico), motivo reta, zarzuela, musical, revista). anterior regra governamental e de ponderação nomeadamente A cenografia, por exemplo, o acordo agora firmado, que es- no quadro da candidatura de pode, desde logo, ser uma das tabelece uma concessão de 42 Oeiras a capital europeia da cul- mais relevantes vertentes artís- anos, vai permitir que a Câmara tura no ano de 2027 (o projecto ticas criadoras de um elo com invista cerca de 7,5 milhões de Oeiras 27), é o facto de toda o trabalho de artistas plásticos Euros na reabilitação de toda a essa actividade ter tido conti- que venham a integrar o Centro Quinta da Cartuxa, com desta- nuamente uma grande adesão de Arte Contemporânea, con- que, naturalmente, para a Igreja do público. correndo assim para o desen- acabada de construir no ano de volvimento de uma comunidade 1736. Agora que a Câmara de ou união artística que convide Oeiras vai avançar com as tão à participação da população, O complexo da Cartuxa (com longamente aguardadas e de- como colectivo receptor mas o Convento, com o extenso sejadas obras de recuperação também como fonte de compe- espaço verde da Quinta e o con- do Convento e da Quinta da tências profissionais – à seme- junto arquitectónico erguido nos Cartuxa, parece-me importan- lhança das iniciativas passadas anos 1950) oferece excelentes te honrar este passado. Nesse que aqui evoquei. Deste modo, condições para a prática da sentido, afigura-se-ma indis- honrando a boa tradição cultural Cultura. E com base na minha pensável manter essa sala de da Cartuxa e no melhor espírito experiência de anos, agora aqui espectáculos, mesmo que o das experiências pretéritas, pro- resumida, posso declarar que adiantado estado de degrada- picia-se o desenvolvimento de se trata de um local que atrai ção em que se encontra obrigue novas dinâmicas de participa- público, porque satisfaz vários a uma transformação estrutural ção cidadã. Elemento que, no- requisitos fundamentais rela- do edifício. O palco e os basti- te-se bem, é considerado pela cionados com aquilo a que po- dores podem ser melhorados, Comissão Europeia um dos demos chamar os segredos da mas qualquer alteração deverá objectivos centrais do programa psicossociologia do espaço de prever a possibilidade de aco- da Capital Europeia da Cultura. realização cultural e que talvez modar uma orquestra em frente se possam resumir em cinco do palco, sendo para tal impor- Do que ficou dito, talvez não pontos: ambiência acolhedora, tante que este seja mantido seja difícil extrair as primordiais beleza, acessibilidade, par- num plano. É esta uma forma razões de uma amizade íntima queamento, segurança. A isto simples e prática de se poder com um espaço. adicionam-se, naturalmente, e improvisar uma espécie de num outro plano organizativo, fosso de orquestra. Este por- Espero que estas memórias os conteúdos culturais ofereci- menor arquitectónico interior pessoais da minha relação com dos. aumenta as potencialidades a Cartuxa contribuam para es- do espaço de forma a permitir truturar a acção cultural desti- Motivo de reflexão sobre a que nele se possam também nada ao espaço arquitectónico futura utilização do vasto com- realizar espectáculos de teatro reabilitado e façam germinar plexo da Quita da Cartuxa (que, saudades do futuro. l 24
A CARTUXA - I AS ARTES E O FUTURO Por Paula Freitas Oeiras27, que inte- Município para albergar um nidade de fazer do Conven- gra a candidatura centro internacional de artes to da Cartuxa um centro de para Capital Eu- e também o muito esperado cultura, de formação artísti- ropeia da Cultura Teatro de José de Castro, em ca, de pesquisa e inovação, uma rede de artes que sirva em 2027, um projecto que Paço de Arcos, em jeito de a população e permita a sua participação ativa e a inclu- baseado na Cultura, deve homenagem ao grande actor são de todos. Um local pri- contar com o apoio de toda a Oeirense! comunidade e em especial de É agora a grande oportu- artistas, técnicos e todos os que estão ligados à cultura. Uma Capital Europeia da Cultura precisa de ativida- de e programação intensa, música, teatro, dança, pin- tura, cinema, circo, litera- tura, poesia, etc., diversa, privilegiando os criadores portugueses e para todos os públicos e ainda, de ter espaços que permitam a sua apresentação: teatros, auditórios, anfiteatros, es- paços não convencionais de apresentação que, no caso do nosso concelho são in- suficientes e de distribuição irregular. Caxias e Paço de Arcos não têm nem Teatro, nem auditório (bem falta nos fazem!). É, pois, com grande expectativa que vemos final- mente a Cartuxa entregue ao 25
A CARTUXA - I vilegiado com espaços para auditório, um centro de artes não só possam trabalhar e criação artística, ensaios, re- rodeado por jardins e mesmo apresentar as suas criações. sidências artísticas, onde se ao lado do mar. Onde a comunidade possa possam receber os grupos participar em formações, ati- nacionais e internacionais e O Teatro é a arte de estar vidades artísticas e estimu- os seus espetáculos; de in- na pele do outro, de se ver no lar a formação de grupos de tercâmbios e masterclasses, outro de se transformar no teatro, dança etc. Um espaço onde existam escolas de outro, o teatro é uma apren- inclusivo, harmonioso em artes, de teatro, de dança e, dizagem ao longo da vida que artes se encontrem e finalmente, de ter um Teatro e para a vida, não escolhe trabalhem em rede. É talvez onde as apresentar ao públi- idades, a todos inclui, todos um sonho, mas em momen- co. são importantes, é um tra- tos tão difíceis como o que balho de equipe e solidário atravessamos sentimos bem A falta de espaços de cria- onde todos são imprescindí- a falta dos nossos artistas, ção, investigação e formação veis para que um espetáculo dos espetáculos, dos concer- onde as atividades culturais aconteça. O Teatro torna-nos tos. Enfim as apresentações se possam desenvolver é melhores seres humanos, artísticas os encontros com dos maiores problemas com descobre os nossos talentos o público ao vivo! Sem Cul- que se deparam os criadores e capacidades, também os tura não há futuro e Oeiras em geral. Ter acesso a espa- nossos limites. O Teatro, por tem agora a oportunidade de ços com meios técnicos onde ser uma arte que se enreda criar as condições para que possam realizar as suas cria- com todas as outras - da pin- sejamos não os melhores do ções é uma das premissas tura à dança passando pela mundo, mas os que fazem um fundamentais para o de- música, a arquitetura … - é mundo melhor para todos, senvolvimento e divulgação por excelência a atividade onde a participação cidadã das artes e dos artistas. É artística em que a formação, seja uma realidade capital. l necessário pensar nestes ou antes a aprendizagem, a espaços de forma que não pesquisa, os desafios, o de- Autor: António Casimiro sirvam apenas a candidatura senvolvimento pessoal e o para a Capital Europeia da conhecimento são um cami- Cultura 2027, mas também e nho, um percurso para exer- principalmente que se man- citar ao longo da vida. Uma tenham no futuro ao servi- escola de teatro faz falta em ço das comunidades locais, Oeiras e, agora que final- tendo em vista o desenvol- mente vão começar as obras vimento das suas capacida- para o teatro José de Castro des, a formação artística das em Paço de Arcos, faz todo mesmas, assim como a cria- o sentido. ção de novos públicos. Espa- ços de encontro onde reine A Cartuxa é um espaço a poesia. Caxias e Paço de privilegiado para um centro Arcos com um Teatro, um cultural multidisciplinar onde os nossos artistas locais e 26
A CARTUXA - I SONHAR ACORDADO Por José Carlos Oliveira V estir fato novo pode Presidente da Câmara con- concretizou um dos seus ajudar mas será seguiram resolver. Mas a maiores sonhos: inventou o de pouca dura. reabilitação não pode ficar avião, e conseguiu voar. Mas Porque, na verda- pelo tal fato novo, tem de também foi nesse ano que de, não é a farpela que cria invadir o fato com a criação o Homem passou a sonhar a alma. E sem ela somos um da vida, que naquele terre- acordado. Aconteceu pela invólucro vazio, na melhor no da cartuxa nos chama mão dos irmãos Auguste das hipóteses vivendo de à oportunidade de estru- e Louis Lumière, com uma estórias e da História, redu- turar um grande polo das primeira sessão de exibição zidos à evolução das coisas Artes, onde muitos vejam de cinema no Salão Grand em lugar de dedicados à e, também muitos, muitos Café dos Champ Elysée, a evolução de nós. mais, sejam trazidos a per- 28 de Dezembro. ceber como se faz o que ali Por isso é um acto essen- se pode e deve fazer, que é Desde então, a feitura do cial dar vida à reabilitação o olhar analítico da contem- Cinema aprendeu muito – e do Mosteiro da Cartuxa - poraneidade sobre o passa- muito mais há a aprender, mesmo que tardia, e que do e o presente, na constru- sempre: identificámos e só este Governo e o actual ção do futuro. coordenámos as artes que concorrem para a constru- E neste conjunto da ção cinematográfica, e as nossa expressão artísti- ciências e técnicas chama- ca, evidentemente social das à concepção e constru- e económico, há uma das ção do objecto fílmico. muitas áreas que se tornou extremamente influente no O Cinema é uma composi- Mundo, e de grande impac- ção alargada que exige a in- to na formação – e defor- vasão das outras artes, com mação – das sociedades e quem comunga o ambicioso nas economias dos países: propósito de levar os olhos o Cinema e o Audiovisual, a da sociedade a verem e, sua história, e a forma de o mais do que isso, a viverem fazer e de o saber ler. situações e comportamen- tos, sob uma outra pers- Porque em 1895 o Homem pectiva que a voracidade do 27
A CARTUXA - I quotidiano nos impede de xa poderão, e deverão, ser plicidade esclarecida, em fazermos. trazidas para o plano da lugar de os manter como racionalização de métodos receptores passivos. E porque perante o que e leituras. Debatendo e en- se passa no ecrã sonha- sinando ali feituras e leitu- Concordo que também mos acordados, sentimos, ras do cinema que abram isto pode parecer um sonho. muitas vezes mais do que novas percepções aos que Mas sendo um sonho, este vemos, situações e com- sonhando acordados pode- não será nunca mau, e portamentos limite que nos rão então apreender novas sendo esclarecido, acorda- remetem para reacções densidades. Trazendo os do, portanto, é um desafio subconscientes, que no espectadores para a cum- à capacidade do poder po- Polo das Artes da Cartu- lítico concelhio para res- ponder às competências de tanos que aqui vivem e ao potencial de outros que, perante a concretização deste sonho desperto, ra- pidamente acorrerão. Como cúmplices. l 28
A CARTUXA - I A GREVE DOS TECELÕES DE OEIRAS DE 1871 Por Ana Teixeira Gaspar Co m e m o r a m - s e este ano 150 anos sobre a denomina- da Greve de Oeiras. Há uns anos, o município de Oeiras tinha um mote intitula- do “Oeiras mais à frente”. E, quem sabe, se terá sido ba- seado nesta ocorrência, uma vez que em Novembro de 1871, os operários da Fábrica de Lanifícios de São Pedro do rios do seu pessoal para fazer Areeiro, em Oeiras, foram pro- decoroso que Lisboa, já civili- face à concorrência estran- tagonistas de uma das primei- zada, com teatro lírico e outros geira, alterando a forma de ras greves que ocorreram em regalos de capital eminente, cálculo salarial. Em vez do Portugal, e que teve algumas não tivesse esse chique social salário semanal tabelado, os particularidades, uma vez que – a greve! Oeiras, com uma tecelões passariam a receber abalou a estrutura associativa dedicação amável forneceu- em função do que produzis- do país, impulsionou o vigo- -lhe esta elegância. Oeiras sem. E as contas são bem di- roso movimento grevista que deu a greve. Os nossos es- ferentes quando se compara assolaria todo o país no ano tadistas puderam ter ocasião a posição do patrão e a dos seguinte, em 1872, e fazia de comentar a nossa última operários. entrar Oeiras na literatura greve, e de falar no terrível proletariado.” Eça de Queiroz explica: “ há queiroziana. dois trabalhos essenciais no Em Novembro de 1871, Eça De facto, a 13 de Novembro fabrico do lanifício: preparar a de Queiroz, em Uma Campa- de 1871, 53 tecelões da Fá- teia, o que leva uma semana, nha Alegre, com o seu habi- brica de Lanifícios do Areei- e produzir o tecido, o que tual estilo sarcástico, referia ro, em Oeiras, iniciam uma gasta outra semana.” a greve de Oeiras: “Este mês greve, protestando contra a a opinião preocupou-se com diminuição do vencimento. O José Diogo da Silva pro- o que se chamou a greve de proprietário, José Diogo da punha-se pagar 4$000 a Oeiras. Parecia realmente in- Silva, decide baixar os salá- cada operário, mas somente 29
A CARTUXA - I na semana da produção do Alega também José Diogo que eram». No dia seguinte, tecido, enquanto os trabalha- da Silva que a fábrica está os operários fazem publicar dores propõem 3$500, mas implantada em Oeiras onde o no mesmo jornal a resposta: em todas as semanas. custo de vida é menos dispen- «nenhum largou a enxada de dioso que na capital. Por seu cavador para vir para a ofici- De pronto, os tecelões turno, os operários reclamam na, tendo todos aprendido os nomeiam uma comissão que a vida em Oeiras é cara e preceitos da arte, conquanto para dialogar com o patrão, que a redução do salário não não fosse desonra ser cava- demonstrando, assim, que lhes permitiria viver, sugerin- dor”. sentem a necessidade de or- do, então, que a diminuição ganização e de estruturas re- salarial fosse metade do valor Mas não seria só aquele pe- presentativas promotoras da imposto pelo proprietário. riódico a lançar provocações negociação, comissão essa contra os tecelões de Oeiras. que José Diogo da Silva ini- A greve de Oeiras extrava- Também Manuel Pinheiro cialmente recusa receber. sou os limites concelhios. A Chagas, em crónica de 29 de 2 de Dezembro de 1871, o Novembro, em O Eco Ameri- Dez dias depois do início da Jornal do Comércio sugere cano, sugere a ligação do mo- greve, a 23 e 25 de Novembro que os grevistas estariam a vimento grevista português à de 1871, José Diogo da Silva ser utilizados por forças com Internacional, com propósitos faz publicar anúncios nos jor- propósitos políticos: “Lastima- iberistas, o que leva os mem- nais para angariação de 46 mos a cegueira que os não bros da comissão de greve a tecelões, numa manifesta ati- deixa ver que estão servindo publicar esclarecimentos a 29 tude de recusa de negociação de instrumento a maquina- de Janeiro de 1872. com os seus operários. ções políticas, cuja direc- ção reprovamos, porquanto, A greve de Oeiras gerou A greve de Oeiras vai ser mesmo na política, desadora- uma onda de solidarieda- notícia nas páginas dos jor- mos a máxima depravada de de para com os tecelões em nais da capital com sucessivas que todos os meios são bons greve. Foram abertas diversas notícias, ora divulgando a po- com tanto que se alcancem subscrições entre os operá- sição do proprietário, ora com os fins”, ou, como a 19 de rios da região de Lisboa, em as justificações dos tecelões. Dezembro, insinuando a par- especial de Alcântara, para ticipação de um estrangeiro, auxiliar monetariamente os que nos leva a crer no envolvi- colegas em greve. Alguns mento directo e activo de José jornais, como o Diário de No- Fontana, suíço de nascimento. tícias, publicam os resultados das subscrições públicas que E já antes, a 23 de Novem- promovem. bro, o Jornal do Comércio acusa os tecelões de serem No Centro Promotor dos provenientes do mundo rural: Melhoramentos das Classes “se fizeram artífices de sim- Laboriosas - criado em 1852 ples cavadores de enxada por iniciativa dos regenera- dores Rodrigo da Fonseca, 30
A CARTUXA - I Casal Ribeiro e Rodrigues grevistas – mesmo os cabeci- que “puxava muito para o Sampaio – têm lugar várias lhas – na fábrica de lanifícios. patrão”, o administrador do reuniões com vista a auxiliar Na altura, “a filarmónica de concelho, pressionado por os colegas de Oeiras. No dia Oeiras, composta de operá- José Diogo da Silva, intima 4 de Dezembro, informava o rios dali, percorreu à noite a oito operários a irem à sua pre- Diário de Notícias: “cerca de vila, festejando o regresso dos sença. Rapidamente, esses 200 pessoas foram ontem de seus companheiros à fábrica”, tecelões reúnem 60 colegas tarde ao Centro Promotor. O anuncia o Jornal do Comércio e, em conjunto, elaboram um presidente expôs o fim da re- de 21 de Dezembro. documento que pretendem união. Muitas pessoas subs- entregar à administração do creveram para os operários de Na prática perdida, a luta concelho. Esta não recebe os Oeiras. Outros levaram listas dos tecelões de Oeiras foi tecelões e, em contrapartida, de subscrição”. Novamente a ganha em consciência de pede reforço policial a Lisboa, 10 de Dezembro: “hoje pelas 3 classe e solidariedade ma- para auxiliar as 30 praças do horas da tarde há reunião no nifestada, mesmo para lá do destacamento de caçadores Centro Promotor das pessoas espaço regional em que se 5, estacionado na torre de que desejam auxiliar os ope- inseria. Fomentou o acelerar São Julião, que ocupam a vila rários da fábrica de Oeiras, da desagregação do Centro de Oeiras. Chegam 50 lancei- que estão fora das oficinas”. Promotor, dado que a sua di- ros e 60 praças de infantaria recção não soube responder n.º 1. No seguimento deste Para além dos locais já re- capazmente e a cisão acaba incidente, José Diogo da Silva feridos, os donativos foram por suceder. A 21 de Novem- despede 14 operários, seis também enviados para a bro a comissão administrativa dos quais haviam sido os “ca- Associação de Tecidos, em do Centro Promotor é substi- beças de motim” da greve do Alcântara, e para a loja de tuída por uma nova direcção ano anterior. Então, tinha sido drogas do sr. Monteiro, na de que faziam parte José forçado a aceitar a admissão Boavista, em Lisboa. Porém, Fontana e Costa Goodolphim, dos grevistas. Agora, de forma é interessante verificar que entre outros, revelando-se im- ardilosa, consegue despedir os donativos mais avultados portantíssimo para o bom des- os elementos mais activos e foram provenientes dos ope- fecho das inúmeras lutas que reivindicativos dos seus traba- rários de outras fábricas de estalariam por todo o País no lhadores. lanifícios, numa clara manifes- ano seguinte ao da greve de tação de solidariedade para Oeiras. Embora não conheçamos com os colegas grevistas. elementos relativamente à Seis meses depois, em época em que a greve ocor- A 18 de Dezembro de 1871, Agosto de 1972, a Fábrica de reu, sabe-se que a Fábrica terminava a greve dos tece- Lanifícios de São Pedro do de Lanifícios de São Pedro lões da Fábrica de Lanifícios Areeiro volta a ser notícia nos do Areeiro, fundada em 1864 de São Pedro do Areeiro, que jornais. Aproveitando os desa- com 60 operários, possuía, durou um mês e seis dias, catos que tiveram lugar entre em 1881, por altura do Inqué- com a cedência dos tecelões um grupo de tecelões e um rito Industrial, 594 trabalha- e a admissão de todos os maquinista, tido por homem 31
A CARTUXA - I dores, sendo uma das maio- marquês de Pombal; a Fábri- Por outro lado, logo em res fábricas de tecelagem ca de Lanifícios do sr. José 1872, em Oeiras, é fundada do País e a que dispunha de Diogo da Silva; a Ermida e uma sociedade cooperativa maior número de maquinaria Alto de Santo Amaro; o Monte de consumo com 50 asso- a nível nacional. Possuía três das Antas e as Estações do ciados com o nome de 19 de máquinas a vapor (de entre as homem pré-histórico junto da Dezembro, data do termo da indústrias de fiação e tecela- Ribeira da Lage”. greve; a 18 de Junho de 1876, gem, somente a Companhia é fundada a Associação de de Lanifícios de Alenquer Em 1900, na exposição de Socorros Mútuos de Oeiras e, dispunha de uma máquina a Paris, foi atribuída uma meda- no mesmo ano, a Associação vapor), seis caldeiras de sis- lha de ouro à Fábrica de Lani- Socialista 18 de Março, em tema francês com ebulidores fícios do Areeiro, agora já sob homenagem à Comuna de e 556 aparelhos (a Fábrica de a direcção de Alfredo Diogo, Paris que tantas repercussões Bernardo Daupias & C.ª pos- filho do fundador, José Diogo teve no movimento operário suía somente 90). da Silva. Também a Camisa- português, sendo esta uma ria Pereira da Costa e C.ª, de das três associações de resis- Igualmente significativo é Linda-a-Velha, receberia na tência existentes no distrito de o facto de, em 1891, o rei D. mesma exposição uma meda- Lisboa, situando-se as restan- Carlos e a rainha D. Amélia lha de bronze. tes em Alcântara e no Beato. visitarem Oeiras, aconteci- mento marcante para a vila Finalmente, podemos segu- Assim, tudo nos leva a crer que, desde D. José, não re- ramente afirmar que a greve que a greve de Oeiras ultra- cebia qualquer visita régia. dos tecelões de Oeiras, uma passou em muito o âmbito E, naturalmente, foram visitar das primeiras a ocorrer em restrito de um conflito laboral, a Fábrica de Lanifícios do Portugal e que durou mais imprimindo uma certa cons- Areeiro. Aliás, na sua edição de um mês, não morreu sol- ciência de classe, o que leva- de 27 de Outubro desse ano, teira. Ela provocou, como já ria os operários da região – e o Jornal do Comércio afirma foi afirmado, a solidariedade em particular, os da Fábrica que “o pretexto manifesto da dos operários, sobretudo da de Lanifícios de São Pedro do ida d’el rei a Oeiras foi visitar a região de Lisboa, gerando Areeiro – a se agruparem em fábrica de lanifícios do Areei- um sentimento de espírito de associações várias, tanto de ro, propriedade do sr. José classe, incentivador do as- carácter mutualista e artístico, Diogo da Silva”. Se dúvidas sociativismo e da criação de como de resistência. tivéssemos da importância e associações de resistência na relevo que aquela fábrica re- luta por melhores condições Mas se dúvidas tivésse- presentava, dissipar-se-iam de trabalho, e foi desenca- mos sobre a relevância desta com o n.º 3 do jornal Gazeta deadora da desagregação greve, bastar-nos-ia o facto de Oeiras que, em Maio de do Centro Promotor e, con- de Eça de Queirós a ter pre- 1893, noticiava como “coisas sequentemente, responsável senteado com a sua sabo- dignas de ver-se na vila de pelo desfecho positivo das rosa escrita, apelidando-a, Oeiras: Palácio e quintas do inúmeras lutas operárias que jocosamente, de “esse chique tiveram lugar no ano seguinte. social”. l 32
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