QUARTA-FEIRA Nº 476 DNa 28 DE NOVEMBRO DE 2018 pPaelçaovraa ESTA É A MADALENA. FOI A CAPA DO DNA EM 1997. FOMOS REENCONTRAR AS 11 CRIANÇAS QUEMADALENA, HUGO, JOANA, TIAGO, MARIANA, RUBEN, NUNO, MARIA, LUÍS, MARGARIDA, LOURENÇO ENTREVISTÁMOS HÁ 20 ANOS. NA ALTURA TINHAM ENTRE OS 3 E OS 10. HOJE TÊM ENTRE OS 23 E OS 30. UMA HOMENAGEM À VIDA. UM TRIBUTO AO PEDRO ROLO DUARTE
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Em 1997 havia um projecto ímpar na imprensa portuguesa chamado DNA. Era o suplemento do Diário de Notícias e eu tive a sorte deestar lá metida dos pés à cabeça do primeiro ao último minuto, durante 10 anos. O mentor e director do DNA era o Pedro Rolo Duarte, essapessoa que mudou para sempre a minha vida (e a de tantos que colaboraram com ele profissionalmente ou tiveram a felicidade de se cruzarcom ele pessoalmente). Em 1997 fui destacada para fazer uma reportagem especial com 11 crianças. Aquilo a que, em jornalismo, seconvencionou chamar “um dossier”. Entregámos uma máquina fotográfica descartável a cada uma das 11 crianças (que tinham idades compreendidas entre os 3 e os 10 anos)e pedimos-lhes que fotografassem o seu mundo. Depois, publicámos vinte e quatro páginas com um texto para cada criança e respectivoretrato, fotos tiradas por cada uma com a tal máquina descartável, e uma fotografia de grupo. A reportagem não foi publicada no DiaMundial da Criança, como seria previsível, mas em Outubro, porque uma das características do DNA era justamente a imprevisibilidade. Cinco anos depois, fomos à procura das mesmas crianças e repetimos as entrevistas e os retratos. Já não lhes demos máquinasdescartáveis, mas fomos reencontrá-las e conhecer que voltas tinham as suas vidas dado em cinco anos. A ideia era repetirmos a reportagema cada cinco anos mas entretanto o DNA acabou e não fazia sentido publicar a história em nenhum outro jornal ou revista. Perdi-lhes,perdemos-lhes o rasto. Em 2017 essa reportagem (que tinha ficado muito querida entre nós e junto de alguns fãs do DNA) fez 20 anos. O Pedro estava doente eeu pensei ir à procura de cada um dos 11 “miúdos” e saber o que era feito deles, vinte anos depois. Queria dar esse presente ao Pedro,sobretudo quando tudo parecia estar bem encaminhado nos seus tratamentos, porque não queria que soasse a despedida mas sim acelebração da vida. Encontrar os 11 magníficos não foi pêra doce. De alguns só sabia o nome próprio. Alguns tinham ligações muito ténues a pessoaspróximas (aquela coisa típica de uma redação: “alguém conhece putos entre os 3 e os 10 anos que queiram entrar nisto?”). Os mais difíceisde encontrar foram o Ruben (que era sobrinho de uma babysitter do filho do Pedro Rolo Duarte, entretanto emigrada para a Venezuela, cujonome eu nem sabia como se soletrava), o Luís (foi preciso andar a deixar mensagens meio estranhas em páginas de facebook de clubes derugby) e a Maria (não me lembrava quem a tinha sugerido e foi preciso andar a “escavar” na sua escola primária até aparecer, por fim,alguém que tinha o seu contacto). Cada entrevista foi um presente. Um bombom. Reencontrar cada um foi dos momentos mais emocionantes e bonitos da minha vidaprofissional (ainda que não se tratasse efectivamente de um trabalho mas sim de um presente). Entretanto, a doença do Pedro trocou-nos as voltas. E, depois de uma cirurgia que tinha sido um sucesso, tudo correu mal. Morreu ummês depois, na véspera do dia marcado para a fotografia de grupo. Soube da sua morte quando estava empilhada numas caixas, na minhaarrecadação, a ir buscar o DNA de 1997 para levar, no dia seguinte, para a sessão fotográfica. E o meu presente ficou sem sentido (bemcomo boa parte da minha vida). Quem sabia do projecto incentivou-me a continuá-lo, já não como presente mas como homenagem. Faltou-me a coragem durante muitotempo. Foi preciso saber esperar. Porque não foi fácil ultrapassar a sensação de esvaziamento de sentido. Quando senti que já era capaz,voltei. Escrevi os textos, muito mais devagar do que seria normal, mas depois concluí - numa espécie de auto-análise - que terminartambém significava um ponto final num projecto que me proporcionava a ilusão de que, afinal, ainda estávamos a trabalhar juntos.Entretanto, escolhi a pessoa mais sensível que conheço (além de dona de um talento raro), para fazer a sessão fotográfica, 20 anos depois.A fotógrafa Inês Correia de Matos registou a imagem de cada um e do grupo. E foi também ela quem paginou esta espécie de DNA queaqui renasce, com uma dedicação e generosidade que dificilmente conseguirei retribuir. Emocionei-me muito mais do que 11 vezes ao longo deste ano. Zanguei-me muito mais do que 11 vezes por não poder entregar opresente a quem ele se destinava. Procurei consolar-me com todos os crentes que me iam garantindo que ele havia de ver, lá onde quer queestivesse. Não sei se vês ou não, Pedro. Mas isto é para ti. Estes são os “nossos” 11 meninos que entretanto cresceram. Estes são os seus mundos.As suas vidas. E esta é uma homenagem à tua vida, que foi inspirada, inspiradora e demasiado breve. Obrigada. Por tudo.Textos e produção: Sónia Morais SantosFotografias de 1997: Marcelo BuainainFotografias actuais: Inês CM, After ClickPaginação: Inês CM, After Click DNa 3
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“Assistir à eleição de um idiota comopresidente dos EUA foi chocante.Parecia uma piada que estavaa ir longe demais” 5 anosEra o homenzinho do grupo, apesar dos batem... levam” (algo que, afinal de as pessoas. Quando se toca emseus 5 anos acabados de fazer. Não havia contas, poucos anos mais tarde até um determinados assuntos dá para perceberpergunta que lhe fizesse que não fosse político proferiu, de forma semelhante). rapidamente quem temos ali. E sinto maisrespondida com muita ponderação, para Nesse segundo encontro, o Hugo já sabia interesse em ler e ouvir pessoas de quemevitar que saísse asneira. Dizia que a o que queria ser quando chegasse a hora discordo do que pessoas com quempessoa mais importante do mundo era de ter uma profissão. Queria ser jornalista concordo. Assim tento compreender Jesus, e não fazia ideia do que ia sercomo o pai, apesar de compreender quecomo é que há gente que pensa de um quando crescesse, afinal de contas aindahavia de ser uma profissão exigente, pelomodo tão diferente do meu em assuntos faltava imenso tempo. O seu grandedesabafo deixado em forma de queixa:que para mim seriam de via única.” amigo Tiago só pensava em ambulâncias“Às vezes dava jeito ter o pai mais cedoHugo não seguiu Jornalismo, como o pai, e já tinha decidido que queria serem casa”. De tudo o que conversámos,talvez influenciado justamente por ele. O bombeiro, mas ele preferia continuar aem 2002, o mais impressionante foideclínio dos jornais, a crise nos media, a pensar apenas em jogos de computadorverificar que ele continuava a parecer umconjuntura económica, fê-lo optar por enquanto fosse possível. Não gostava depequeno homem ou... um grande miúdo.Economia, no ISEG: “Optei por beijinhos, o que entristecia um pouco asComo estaria agora, 20 anos depois daEconomia em vez de Gestão por achar avós, mas paciência, esse era, semprimeira vez que nos conhecemos? Se jáque era mais abrangente e por me atrair a dúvida, um dado adquirido. Em 2002,tinha uma seriedade adulta aos 5, que tipoideia de poder interagir com a vida das quando o reencontrei, ainda não tinhade probidade e rectidão iria encontrar?pessoas e da sociedade. Afinal, o curso feito os 10 anos mas mantinha o ar sério,Hugo sorriu perante a pergunta. Talvezfoi desmotivante para mim. Continuei uma espécie de intelectual precoce, mas asempre tenha sido introspectivo e atéporque pensei sempre que que mudar era bastante sério e crítico sobre tudo: “Hoje um erro. E então agarrei-me à ideia deHugomãealertavaparaofactodenemtudosero que parecia: “Parece um anjinho mas às aprendi a guardar mais para mim e estou acabar o curso, começar a trabalhar evezes é um terror.” Ele encolheu os a tentar ser um pouco mais aberto. Mas depois então logo se via.”ombros, justificando: “Quando me confesso que continuo a gostar de observar Não deixou escapar a oportunidade deDNa 8
fazer Erasmus e viveu 6 meses na Polónia. “Como adoro 25 anosviajar, aproveitei para o fazer muito, enquanto lá estive.”Depois, quando o curso terminou começou por trabalhar que “talvez seja uma qualidade conseguir ver e ouvir o outro lado”.numa consultora, em auditoria, mas o ambiente era Recordamos os avós, de quem falou em ambas as entrevistas e que tinhamfreneticamente competitivo. Era preciso passar a vida lá uma importância grande na sua vida: “A minha avó, mãe do meu pai, tevedentro, ainda que não fosse efectivamente necessário. Seis um AVC há uns anos. Quando me disseram foi dos dias mais tristes da minhameses depois saiu e foi um mês para a Tailândia. “Foi um vida.” Entretanto, neste ano que distou entre a nossa conversa e estapouco uma fuga para esquecer um período da minha vida publicação, a avó e o avô morreram, um em Fevereiro, o outro em Maio,que não estava a ser fácil. O confronto com uma escolha criando no Hugo um daqueles vazios irreparáveis que se criam dentro de nósque, se calhar, não tinha sido a mais acertada. Nem tinha sempre que alguém que nos é fundamental parte.gostado do curso nem tinha gostado da primeira Sair do país está nos planos. Por um lado porque é sempre importante viverexperiência profissional. Foi importante parar, abrir fora, aprender com essa distância daquilo que são as nossas raízes. Por outrohorizontes, viajar para um lugar onde tudo é diferente, porque financeira e profissionalmente pode ser interessante. “Mas tinha depara me recentrar.” ser para um sítio com mar e com pessoas bem dispostas.”Quando nos encontrámos, numa Padaria Portuguesa na Olha para o mundo com preocupação. “Assistir à eleição de um idiota comoAvenida da Igreja, Hugo estava a trabalhar há um ano presidente dos EUA foi chocante. Acordei de manhã e só conseguia pensarnuma Consultora de Investimentos e finalmente parecia que aquilo não podia estar a acontecer. Parecia uma piada que estava a irestar a gostar: “Faço relatórios sobre fundos de pensões no longe demais. Os refugiados, o aumento da xenofobia e dos ideais deReino Unido. Só falo inglês o dia inteiro. O ambiente é extrema-direita são fenómenos que não podem passar-nos ao lado.”completamente diferente, toda a gente se dá bem e há Os próximos cinco ou dez anos serão - no seu entender - decisivos paramuita entreajuda. Valorizo muito isso. Não gosto de estar definir todos os outros da sua vida. “Gostava de ter uma vida que desse paranum sítio onde tenho de estar constantemente a olhar por ter tempo para mim. Para ir à praia, para estar com amigos, com família e...cima do ombro para ver se não me vão tramar para comigo. Não me vejo a comprometer-me com filhos nos próximos 5 anos.chegarem mais longe. Cansa-me e não faz o meu género.” Tenho imensas possibilidades de usufruir da vida agora. Vamos lá ver como éNo emprego (onde se mantém) tem a possibilidade de que isto corre.”acumular horas, obtendo dias extra de férias, o que lhepermite viajar uma semana de vez em quando. “Adoroviajar e tirar fotografias. Sou um autodidata da fotografia,leio imenso e vejo muita coisa na internet, gosto de irexperimentando, compro equipamento... E viajar paradestinos que são culturalmente muito diferentes permitejuntar vários prazeres: o da viagem, o do conhecimento e oda fotografia.”Também pela altura em que conversámos, Hugo tinhaacabado de sair de casa dos pais e estava naquela fase deencantamento por viver segundo as próprias leis. “Desdeque fui para a faculdade que já me era penoso viver lá, naCharneca, e fazer mais de uma hora de transportes paracada lado. Acho que acabei por perder até algunsprogramas com amigos porque o regresso a casa eracomplicado. Agora é óptimo porque divido a casa comdois amigos e posso sair do trabalho, ir beber uma cervejae chegar mais tarde.”Quando não está a trabalhar gosta de ir para a praia, fazerbodyboard, tocar guitarra com amigos, ver séries etalkshows americanos, ir ao número máximo de bonsconcertos que consegue. Diz que um dos seus pioresdefeitos é deixar tudo para a última hora e demora-se aencontrar uma qualidade digna de registo. Pergunto se éhumildade ou o embaraço típico que quase sempre provocao auto-elogio. Ele não tem a certeza mas acaba por adiantar DNa 9
“Podia perfeitamente não ter uma carreira,talvez um ou outro projectoe depois dedicar-me à família.Afinal, é o melhor da vida, não é?” 10 anosEra das mais velhas do grupo. Em 1997 lixo na televisão mas preferia assumi-lo apesar de até já ser mãe.”tinha 10 anos e descrevia-se como uma do que mentir. Também era certo que Joana foi mãe aos 29 e diz que é umatímida com pena de o ser: “Já tentei não perdia as notícias ou o futebol. espécie de ave rara entre os amigos, quedeixar de ficar envergonhada, já tentei “Sempre que posso vou aos estádios. ainda não passaram para essa fase datanto... mas não consigo. Acabo sempre Sou do Benfica mas também gosto de vida. “Sempre quis ser mãe e só não fuipor corar e no primeiro dia de aulas fico ver os jogos do Sporting e não só”. mais cedo porque o tempo vai passandotão nervosa...” Sabia algumas coisas Acabei a entrevista a dizer que ela era – lá está – quase sem darmos por isso.”sobre o mundo e sobre a política, área o sonho de qualquer homem mas, como Frequentou o curso de Comunicação isto anda sempre tudo às avessas, ainda havia de se juntar a um que não ligasse nenhuma à bola. Quando nos reencontramos, revejo a menina tímida mas já muitíssimo trabalhada. “Foram 31 anos a esforçar- me por esconder a timidez, acho que tenho feito progressos”, graceja. Pergunto-lhe o que sobra da criança que conheci e ela parece engolir em seco, quase incrédula com a voraz passagem na qual o pai trabalhava, e queixava-se, Social da Católica, nunca com o intuito mas com muita diplomacia, sobre o de ser jornalista mas com a perspectiva facto de nem sempre conseguir estar de seguir marketing e publicidade. O tanto com os pais como gostaria. pai tinha sugerido que fosse para Em 2002, parecia uma torre. Era Economia mas ela gostava muito de altíssima, continuava tão tímida como Línguas e foi por isso que não ouviu o antes mas sempre a tentar melhorar. Os conselho paterno. Ainda assim, durante pais tinham-se separado e a mãe tinha o curso percebeu que, com efeito, lhe ia ido viver para os Estados Unidos, onde faltar uma parte de Gestão que seria já tinha entretanto um irmão, o Eric. Ela importante para o que queria fazer na vida. “A meio do curso apanhei asJoanae o irmão Miguel tinham ficado a vivercom o pai em Lisboa. Confessava ser do tempo: “Às vezes nem acredito que transformações de Bolonha. De repente,muito consumista. “Se pudesse estava tenho a idade que tenho. Acho que o 3º ano em que eu estava tornou-se osempre a comprar roupa”. Via muito mantenho muita coisa dessa menina, último. E então, quando terminei fiz oDNa 10
mestrado em Gestão.” 30 anos quase não consigo ver.”Esteve três anos a trabalhar na mesma empresa, Onde se imagina daqui a 20 anos? “Ai,no fim do mestrado, e depois saiu para ir com o Marketing e gosta mas sofre - e não é aos 50 anos? Já terei os meus filhosnamorado - hoje pai da filha - para Genebra, na pouco - por ter de ir buscar a filha Clara crescidos, imagino-me com uma casaSuíça, onde ele tinha um trabalho. ao final do dia, quando já estão ambas ainda por aqui, e de preferência não numDetemo-nos aí. Quero saber se sempre encontrou cansadas. “Custa-me imenso não poder trabalho das 9h às 19h. Não me imaginouma alma gémea que gostasse de futebol do estar mais cedo com ela. É uma pena. a fazer outra coisa mas também não amodo apaixonado como ela gostava ou se o Eles crescem muito rápido.” mesma. Obriga a uma dedicação muitodestino era mesmo torcido. Ela ri com gosto, Falamos sobre o passado e o presente, grande e não gosto da ideia de viver umaantevendo a minha reacção ao que está prestes a sobre aquilo que a caracteriza. A paixão vida inteira fechada num escritório. Nãorevelar. “O meu marido é o Carlos Saleiro, que adolescente por roupa abrandou, agora é me custaria nada ser mãe a tempo inteiro.jogou no Sporting.” Há ali um momento de mais fácil perder a cabeça com coisas Podia perfeitamente não ter uma carreira,incredulidade difícil de ultrapassar. Boquiaberta, para a Clara do que para si. Joana diz que talvez um ou outro projecto e depoiscontinuo a escutá-la: “Começámos a namorar é muito amiga dos seus, que sente que dedicar-me à família. Afinal, é o melhorquando eu tinha 16 anos, pouco tempo depois da gosta de cuidar, de estar sempre presente da vida, não é?”nossa segunda entrevista. Ele jogava nos juniores. quando precisam dela. O defeitoComo eu morava na Quinta do Lambert ia principal é o mesmo de outrora: alanchar perto do estádio e via-o. Entretanto um timidez.amigo dele apresentou-nos. Comecei a ir aos Quer ter mais filhos. O ideal seriam trêsjogos todos dele. Eu do Benfica, ele do Sporting. mas pelo marido a soma podia continuar.Diga-se que na minha casa sempre foram todos Já não vê televisão como via, o tele-lixodo Sporting menos eu, acho que para ser do foi crescendo a ponto de lhe ter ganhocontra.” Joana e Carlos namoram há 14 anos. Não anticorpos. “Vejo séries e quase nem ligocasaram nem acham importante casar. às notícias. Futebol? Confesso que atéCarlos Saleiro é, além de ex-jogador de futebol, o disso estou cansada. É tanto que jáprimeiro bebé proveta português, o que não contanada para a história mas não deixa de ser umacuriosidade engraçada. Agora, aos 31 anos, já estáreformado. “Ele teve bastante azar, teve muitaslesões, foi operado 5 vezes: duas aos joelhos,duas aos tendões de Aquiles, uma vez à coxa.Como tem o curso de treinador, continua na áreae é esse o objectivo.”Joana continua a viver perto do pai e perto doestádio de Alvalade. A filha, claro está, é sóciado Sporting desde que tem uma semana devida. A mãe de Joana vive agora no Havai e oirmão Eric já tem 17 anos. O pai também refeza vida com uma namorada que tinha doisfilhos que acabaram por ser como irmãos daJoana e do Miguel.Viver em Genebra não foi fácil, mas foi umaexperiência da qual não se arrepende. “Nuncatinha vivido fora, nunca sequer fiz Erasmus.No entanto, era a primeira vez que não estavanem a trabalhar nem a estudar, o que permitiu queaproveitássemos para passear bastante e conhecermuitos sítios novos. É uma cidade linda, segura emoderna, mas não me via a viver lá para sempre.”Quando regressou, a mesma empresa em queestava a trabalhar voltou a contratá-la. Trabalha em DNa 11
“Já me senti tão bemem tantos sítiosque não consigo imaginaronde estarei daqui a 10 anos,quanto mais 20!Sinto que a minha casa é o mundo.” 7 anosNão era um miúdo como os outros. Em que queria ser quando crescesse. Sabia há uns anos, para saber dos outros, para1997 tinha sete anos e só pensava em que odiava Matemática e que estava saber se repetiríamos o encontro, para saber -pedras. Tinha um saco cheio de pedras, apaixonado pela Vanessa que tinha 14 até - de mim. Enterneceu-me compreender,umas absolutamente vulgares, outras anos e não lhe ligava nenhuma. “Deve então, que a sensibilidade da infância não sequartzo, outras fósseis. Queria ser achar que sou um puto parvo.” A mãe tinha perdido. Pergunto-lhe, agora que nosarqueólogo. Saber mais sobre o passado, atribuía as culpas ao nenhum cuidado que reencontramos, o que se mantém daquelesobre outras vidas que não viveu. Não o filho tinha com as aparências: “Parece miúdo diferente, astuto, interessado porgostava das brincadeiras dos colegas da um desgraçadinho.” Tiago encolhia os coisas tão específicas como pedras:escola, achava-as desinteressantes, e ombros: “Há colegas que usam ténis que “Mantém-se tudo. Continuo a gostar depreferia ocupar o tempo a escavar a terra à custam vinte e tal contos! Para mim isso é pedras, de castelos, de ruínas, de antas, de procura de minhocas. E pedras, repugnante!” [sim, na altura ainda História. Vou quase todos os anos à Feira de naturalmente. Quando publicámos a suafalávamos em contos. Para quem não Minerais no Museu de História Natural, entrevista, o professor Galopim desaiba fazer a conversão, são mais de 100 €].continuei sempre interessado pela cultura. A Carvalho quis conhecê-lo e mostrou-lhe oMarcamos encontro no Clara Clara, um raiz manteve-se mas digamos que se Museu Nacional de História Natural, todocafé-quiosque no Campo de Santa Clara desenvolveu uma árvore com muitos ele pedras e passado. (o nome a não destoar), que eu não ramos.” Cinco anos depois – é só fazer as contas –conhecia. Quando ele chega noto que estáTiago fala muito, tem muito para contar, tinha 12 anos. E (felizmente, diria) jáigual, o mesmo desprendimento na atropela os pensamentos, as datas, é profícuo tinha outros interesses. Ainda sonhava serindumentária, o mesmo olhar curioso eem analepses e prolepses, não tem o seu arqueólogo, nessa segunda vez em queinquieto, mas agora com uma barba a conversámos, mas já revelava algumacentuar a rebeldia, e tatuagens a percurso enfiado em caixinhas temporais contarem, na pele, parte da sua história. estanques. Nota-se que a vida lhe temTiagopragmatismo que lhe colava os pés à terra: oferecido uma torrente de surpresas, de“Gostava mas isso não dá dinheiro, em Sorrio-lhe, sorri-me de volta. Foi o único descobertas, de novidades. Adiou os estudos,Portugal.” Sendo assim, não fazia ideia do dos 11 que já me tinha tentado contactar, desistiu, voltou, tornou a desistir. “AchavaDNa 12
que queria uma coisa, depois já queria outra... 27 anos fui com ela a uma liturgia ortodoxa e foiacabei disperso em tantos interesses que muito interessante.”tinha.” O maior de todos era talvez a música. crianças – “tinha dança, teatro, música”. Fez Tiago está quase de malas aviadas para“Meti-me na música aos 19 anos. Fui com o formações em Permacultura, Bioconstrução, Cracóvia, na Polónia: “Vou emigrar.namorado da minha irmã ter aulas de gaita de em Coaching e Desenvolvimento Pessoal, Sinto-me lá bem e está na hora dafoles e criámos, com outro elemento, a banda esta última na Lituânia. emancipação da casa dos pais. Vou à“Urze de Lume” há 9 anos. Um projecto Tiago tem 27 anos e parece já ter vivido aventura mas tenciono começar à procuraligado à tradição portuguesa que é a minha muitas vidas dentro da sua vida. “Não de trabalho em breve, antes de partir.”relação mais antiga. Entretanto, o nosso escolhi o caminho tradicional: estudos- Antes de nos despedirmos, pergunto-lheprofessor juntou-se a nós e hoje somos 4.” A carreira-filhos-casa. Serei talvez a ovelha onde se imagina dentro de 20 anos. Dá umabanda já tocou na rua, mas também em festas, negra da família mas não me imagino a gargalhada. “Sou horrível a planear. Semprefeiras, em Portugal, em Espanha, França. ser mais feliz. É verdade que não tenho que planeio sai tudo ao contrário. Já meA sua vida tem sido de uma riqueza inegável. emprego fixo, que faço uns biscates para senti tão bem em tantos sítios que nãoDesistiu de ir para a faculdade, poupou umas ir ganhando dinheiro e experiências e consigo imaginar onde estarei daqui a 10massas e, aos 18 anos, foi ao Egito com a irmã conhecimento. Já fiz música, teatro, já fui anos, quanto mais 20! Sinto que a minhae o cunhado. “Voltei de lá com este técnico de som, já embalei comida, casa é o mundo. Não faço ideia do amanhã.pensamento: quero morrer no meu país, mas apanhei uva, já vendi sabonetes... há tanta Estou muito ocupado a viver o hoje!”até lá quero viajar muito!” Entretanto, foi coisa para fazer, mas somos ainda muito O Tiago sempre foi uma caixinha deconhecendo gente de outros países. Por formatados para sermos engenheiros, surpresas. E a sua vida nunca poderia serexemplo: uma amiga dele, que tinha feito advogados, psicólogos.” uma vida sensaborona, igual à de tantosErasmus na Estónia, fez amizade com uma Em todos os países por onde já passou, fez outros. Simplesmente porque ele sempreturca. Um dia, a rapariga turca veio a Portugal amigos de diferentes nacionalidades. “Ainda foi diferente.e Tiago conheceu-a. Ficaram tão amigos que há pouco tempo esteve cá uma amiga minhaela o convidou para o casamento, na Turquia. da Bielorrússia. Veio passar a Páscoa, o Natal,Esteve lá duas semanas. Era irremediável: e acabou por ficar a viver. Até já foi de fériasviajar, conhecer outras culturas, outras connosco para Trás-os-Montes. Recentementecomidas, sentir outros cheiros, fazia tantosentido como se não pudesse ter nascido paraoutra coisa. Inscreveu-se no Serviço deVoluntariado Europeu para ir 10 meses viverpara a Polónia. “Concorri contra qualquerpossibilidade de ser aceite. Não tinha curso,sabia música, e era tudo. Mas duas etapasdepois chamaram-me. Foi uma das aventurasmais incomuns da minha vida, ser voluntário10 meses num país cuja língua era totalmenteestranha para mim. Era assistente de umaprofessora de inglês. Vivia numa casapartilhada e fiz imensos teatros e deiworkshops nas montanhas a miúdos de bairroscomplicados... Foi incrível. Não queria voltar.Mas tinha a banda, não queria deixar ocompanheiro da minha irmã na mão... voltei.”Uma vez regressado, decidiu ser guiaturístico. Durante um ano, foi o que fez. Maseste seria sempre um regresso intercalado.Tiago descobriu um mundo de projetos quepodia fazer e... fez. Foi 10 dias para a Estóniaparticipar num workshop de combate ao ódioe ao racismo. Foi à Arménia durante 15 dias,num projeto artístico de improvisação com DNa 13
“Vamos mudando, o mundo vai mudando,surgem áreas novas, interesses novos,vidas novas dentro da vida.Espero saber ir-me adaptandoe aprendendo sempre.Vemo-nos daqui a 20 anos?” 6 anosQuando nos conhecemos, há 20 anos, ela estatura. Se já era grande para a idade aos Antes de prosseguirmos na descrição dotinha 6. Era alta, muito alta para a idade. E 6 anos, agora, aos 26 é um mulherão. Tem percurso académico, é importante recuaru m n a d i n h a m a n d o n a , t a m b é m . um sorriso bonito e irradia simpatia e não um pouco para contar aquela que, paraApresentou-me aos seus bonecos, com consigo deixar de sentir aquela comoção Mariana, foi das melhores experiências daalguma solenidade, e falou com ternura do que sempre me invade quando reencontro sua vida, porque – como é sabido (masirmão mais novo. Tinha acabado de passar um dos 11 magníficos. nem sempre valorizado) – as experiênciaspara o 1º ano e mal podia esperar por Mariana prosseguiu com excelência os mais significativas são muitas vezes as queaprender a ler e a escrever para saber as estudos. Apesar de gostar de ler e das se vivem para lá da trajectória estudantil.histórias todas dos livros e poder escrever letras, foi pelas Ciências que mais se “Tive a grande sorte de, aos 12 anos, entrarcartas aos amigos. interessou. Como tinha muito boas notas, para o CISV – Children InternationalCinco anos mais tarde, Mariana era uma toda a gente imaginava que podia tornar-se Summer Villages. É uma organização queleitora compulsiva. Nos dois dias antes do médica. Já se sabe, o costume. Afinal, dá foi criada por uma psicóloga americana nosso encontro tinha lido a “Viagem a umsempre jeito ter um médico na família. Ela,que acreditava que a paz no mundo podia Mundo Fantástico”, de Jostein Gaarder, eporém, achou que a Medicina, mais do queser alcançada pelas crianças. Achava ela recomendava. Jogava computador, andavauma vocação, era uma missão. “Serque se as crianças fossem habituadas desde de bicicleta e fazia ginástica desportiva,médico é mais do que uma profissão. Ésempre a conviver com outras crianças, de que era a sua actividade preferida. Tinhauma vida inteira. Tem que haver umaoutras culturas, a paz podia ser alcançada, muito boas notas (era menina do quadro dededicação 24 horas por dia, 7 dias porporque havia o abolir de estereótipos e honra) e imaginava que podia vir a sersemana. Achei que era preciso estar muitopreconceitos desde tenra idade.” actriz de cinema. mais certa de que era isso que queria do Mariana participou em 7 campos. que eu estava.” E então seguiu Ciências Começou aos 12 e o último fez com 20MarianaEncontramo-nos num café perto da casaonde, 20 anos antes, a tinha conhecido. Farmacêuticas, na Faculdade de Farmácia anos: “Brasil, Holanda, Inglaterra,Quando ela chega, reconheço-a pela da Universidade de Lisboa. Luxemburgo, Portugal, Itália, Dinamarca.DNa 14
Conheci pessoas de todo o mundo. No último dia chorávamos baba 26 anose ranho porque tínhamos criado laços fortes uns com os outros. Amaior parte deles nunca mais vi, mas no último campo que fiz Durante a conversa, percebe-se à légua que Mariana tem fibra eenquanto líder de uma delegação ganhei duas amigas para a vida: garra e sabe o que quer e o que não quer. Sabe, por exemplo, queuma norueguesa e uma turca, com quem já estive na Noruega, na não se importa de ir viver para fora se surgir uma boa oportunidade,Turquia e cá.” mas também tem a certeza de que, a ser, será sempre uma ida comPara Mariana, esta iniciativa é de facto importante, sobretudo numa bilhete de regresso: “A ir vou com um ‘v’ de volta. Não queria teraltura em que o mundo parece atravessar uma crise de valores e um filhos muito tarde e preferia não os ter fora porque não os queriaacentuado incómodo com a diferença: “Acho que precisávamos privar do convívio com os primos, tios e avós.”todos mais disto. Acredito que se todos compreendêssemos a É-lhe difícil imaginar a sua vida dentro de 20 anos. Espera já terdiferença e gostássemos dela e a valorizássemos tudo era melhor.” casado, ter a sua família criada, espera ter uma boa vida, continuarVoltando ao percurso académico (e compreendendo agora a entusiasmada profissionalmente, em princípio na área da oncologiaimportância que estas experiências tiveram na sua vida), Mariana mas quem sabe? “Nós vamos mudando, o mundo vai mudando,seguiu então para Ciências Farmacêuticas mas o objectivo nunca foi surgem áreas novas, interesses novos, vidas novas dentro da vida.ficar numa farmácia. Para Mariana esse é um trabalho Espero saber ir-me adaptando e aprendendo sempre. Vemo-nossubvalorizado, porque as pessoas tendem a tratar os funcionários daqui a 20 anos?”como lojistas, esquecendo que houve 5 anos de estudo para se Por mim está combinado.chegar ali. Ainda assim, teve de fazer um estágio numa farmácia,que durou um pouco mais que 6 meses, e deu para confirmar assuas suspeitas: “É precisa uma grande capacidade para aturarpessoas que eu manifestamente não tenho”.Ainda no 4º ano do curso (2013), começou a trabalhar na Uriage(laboratórios dermatológicos). Quando teve de fazer o tal estágio,trabalhava das 9h às 16h na Uriage, de onde seguia para a farmácia,e ficava até às 21h. Em 2014 terminou o estágio e continuou naempresa onde estava. Até ao ano passado. Depois de concluir umapós-graduação em Marketing para a Indústria Farmacêutica,Mariana trocou o certo pelo incerto. Deixou para trás 4 anos detrabalho na Uriage por um estágio não remunerado num laboratóriofarmacêutico ligado à Oncologia: “Estava a precisar de mudar. Achoque ao fim de algum tempo num mesmo sítio pode começar a sentir-sealguma inércia que é preciso combater. A minha geração é diferente dasanteriores porque não faz tantos planos a longo prazo. Não damos ascoisas por garantidas e isso permite que nos atiremos mais facilmentepara fora de pé. Claro que este passo teve o seu quê de risco, porquetroquei um contrato, um emprego em que ganhava bem e tinha carro,por um estágio não remunerado! Não sabia se ia ficar, se ia correrbem... mas se não o fizer aos 26 anos vou fazê-lo quando?”Correu bem. Um ano depois da nossa conversa, Mariana estáefectiva no laboratório. E explica que trabalhar em marketing numlaboratório não é um desvio assim tão grande à Ciência, em queapostou durante 5 anos: “Este é um marketing muito científico.Trabalho no âmbito da Oncologia, e é preciso muito conhecimentocientífico, que é a minha base. Por isso, há uma conciliação perfeitaentre Gestão e Ciência.”Na altura em que nos encontrámos, há um ano, Mariana ainda viviacom os pais. Namorava com o Francisco há 6 anos mas ainda nãotinham dado o passo. Mas em Fevereiro deste ano começaram a viverjuntos numa casa perto dos pais dela, “para ficarmos mais perto deuma boa sopa”, explicou com um sorriso que esclarecia (como sefosse preciso) que falamos de muito mais do que de sopa. DNa 15
“A morte da minha mãemudou muita coisa.Fez-me crescer da pior maneira. 3 anosNa altura não chorei Era o mais bebé do grupo. Em 1997 tinha de palavra novinha em folha, acabada de apenas três anos. Não deu para saber muito estrear no seu léxico. sobre ele porque aos três anos não se viveu Uma das suas preocupações, aos 8 anos, era ainda o suficiente e, por outro lado, porque a de ajudar a mãe, os avós e os tios, a falta de domínio da linguagem não moçambicanos, a arranjarem os papéis da permite transmitir toda a riqueza que a vida nacionalidade portuguesa, prova de que os infantil sempre possui, ainda que seja curta. assuntos da família não lhe passavam ao Fiquei a saber que adorava o Dragon Ball, lado. Pelo contrário, faziam-no sofrer. na berra na altura, e ficava colado à Estava em formação um menino sensível. publicidade com a mesma atenção que Encontramo-nos no Lisbon São Bento dedicava aos bonecos. Comia caril de Hotel, onde trabalha como recepcionista e, amendoim com a sofreguidão com que as mais recentemente, como auditor da noite crianças devoram o seu prato favorito. Não (“night auditor”, como dizem os hoteleiros). passava sem a sua bicicleta, a que chamava A vida, desde que nos vimos pela última “psicléta” e tinha um certo fascínio por vez, não foi propriamente um mar de rosas. pombos, possivelmente por terem essa A mãe adoeceu gravemente e, quando especial capacidade de conseguirem voar, Ruben tinha 12 anos, acabou por morrer. diante dos seus olhos deslumbrados. “Foi complicado para mim. Começaram os Cinco anos depois, revelava-se um problemas na escola, faltava muito, tornei- rapazinho tímido. Gostava mais de Língua me rebelde. Acho que era a falta que ela meRubeneagora,tantosanosdepois, Portuguesa do que de Matemática porque fazia. E faz. [silêncio]. Nessa altura não achava que aprender palavras novas era chorava. Não sentia nada. Foi a forma queainda ando a chorar” mágico. “Solúvel” foi o exemplo que deu, arranjei de me defender. A morte da minhaDNa 16
23 anosmãe mudou muita coisa. Fez-me crescer da pior maneira. Na altura tenho 10 irmãos. Até ali tinha sido filho único. E de repente ganheinão chorei e agora, tantos anos depois, ainda ando a chorar. Mas os 10 irmãos, filhos de várias mulheres com quem o meu pai semeus avós ajudaram-me muito. Fui para a Escola de Comércio de envolveu.” Ruben contactou os irmãos e agora mantêm um contactoLisboa, para a área de vendas, e as coisas começaram a endireitar- próximo. “Falamos quase todos os dias.”se. Mas aos 17 ou 18 anos saí de casa. Achava que os meus avós Quando falámos, Ruben estava a viver sozinho havia um ano: “Estáeram velhos para mim, que precisava de outra vida.” a ser fantástico. Já não tenho a comida da avó, mas ela liga sempre aFoi viver com a tia, Sandra, e arranjou dois trabalhos ao mesmo dizer para ir lá buscar ou para ir lá jantar.” Quando lhe pergunteitempo: um na EDP, a fazer leituras e a trabalhar no backoffice, sobre o amor, fez aquele ar embaraçado de quem não quer muito iroutro no Burger King. “Depois voltei a viver com os meus avós e por aí. “Não é uma prioridade neste momento. Não penso em casarsurgiu a proposta de trabalhar a tempo inteiro na EDP. Aceitei e ou em ter filhos, para já. Agora quero viajar, quero ver se faço umafiquei lá dois anos.” viagem todos os meses, ao fim-de-semana. “Acalmou. Cresceu. Voltou a estudar. Hotelaria, no Citeforma. E Mal sabia ele que, passado pouco tempo, havia de ter uma surpresaconheceu o pai. da vida, sempre pronta a trocar-nos as certezas. Apaixonou-se, elaPausa para situar o pai nesta história. A mãe, moçambicana, tinha engravidou, e já é pai de uma menina, a Letícia, que nasceu ememigrado para a Venezuela, onde conheceu o pai de Ruben. Setembro.Engravidou e entretanto veio para Portugal. Enviava cartas com Aos 23 anos, diz que tem esperança, muita esperança num mundofotos do filho de ambos para a Venezuela, recebia respostas melhor, numa vida melhor, sobretudo agora que teve uma filha. Querapaixonadas, até que um dia ele não respondeu mais. Perdeu-lhe o continuar os estudos. Ir para a universidade, fazer o curso de Gestãorasto e nunca mais quis saber. Ruben também não. Mas, quando Hoteleira ou então seguir Marketing mas ligado à hotelaria, suafez 18 anos, o pai entrou em contacto com ele. “Quando escreveu o paixão. E ter a sua empresa, para a qual já anda a amealhar. Quemnome da minha mãe, fiquei emocionado. Quis saber por que tinha sabe se daqui a 20 anos não teremos aqui um empresário hoteleiro dedeixado de responder às cartas dela mas o que recebi foram sucesso?respostas vagas. Conversa puxa conversa e às tantas percebi que DNa 17
“As histórias das princesasnem sempre têm um final feliz.Sim, alguma candura perde-seno caminho.Mas isso é crescer,certo?” 4 anosParecia uma bonequinha, da primeira vez Língua Portuguesa e de como gostava de mas com uma firmeza e segurançaque a conheci. Tinha 4 anos e era o se aninhar no pai, que tinha prometido evidentes ao primeiro olhar, e de certoexemplo acabado da feminilidade. Voz conseguir pegar-lhe ao colo até ela ter 12 modo contrastantes com a fragilidade dafininha, vestido cor-de-rosa, delicada, anos. Havia uma promessa de rapariga no menina que não gostava sequer de sabermaternal com a irmã Marta que tinha lugar da bonequinha, o que deixava o que havia bruxas nas histórias.então 2 anos, a ponto de se deixar bater jogo todo em aberto relativamente ao Começo justamente por aí. Quero saber osem dar o troco por compreender que, futuro. E não há melhor do que isso. que sobra dessa Madalena que conheci. Éafinal, ela era “só um bebé”. Passaram 15 anos desde a última vez que a vez dela sorrir. Começa por dizer queQuando crescesse, a Madalena queria ser nos vimos. Vinte anos desde a primeira sobra muito mas, ao longo da conversa,princesa ou bailarina, naturalmente. Se entrevista. Ela foi a primeira dos onze que concluímos ambas que é capaz de sobraralgum desses planos falhasse concedia vir contactei, por um lado porque lhe pouco. Há ali uma certa dureza no olhar ea ser escritora de contos para crianças. conhecia o apelido (o que tornou a busca no discurso que me surpreende, apesar deNão gostava de desenhos animados com mais fácil), mas também porque foi a nada ser mais natural na vida do que sebruxas porque a assustavam, e tapava os nossa capa em ambas as edições do DNA mudar diametralmente em vinte anos. ouvidos para não lhes escutar as gargalhadas malévolas, ao mesmo tempo que escondia a cara na almofada mais próxima. Eu, que não era casada nem tinha filhos, tive vontade de a levar para casa. Cinco anos depois, quando nosMadalenareencontrámos, Madalena mantinha a (e agora também, porque há coisas, nesta Ainda assim, insisto. Quero compreender perpétua mutação, que devem permanecer o que produziu tamanha inversão. imutáveis). Chegamos lá num instante. Quando tinha Combinámos encontro no Pão de Canela, 14 anos, os pais separaram-se. Um na Praça das Flores, e eu estava nervosa. divórcio difícil. “As histórias das Ela entrou e eu sorri. Por fora e por princesas nem sempre têm um final feliz. dentro. Era a “minha” princesa que O primeiro ano foi horrível. Tive dedoçura mas já revelava alguma impaciência entrava por aquela porta, vestida de cor- crescer muito depressa, sentia que tinhapara com a irmã e falou-me da paixão pela de-rosa, com o mesmo jeito de menina, de tomar conta da minha mãe, e depoisDNa 18
não sabia se era suposto tomar as dores de 24 anos meus ‘irmãos’ todos. É uma relação para auma das partes, se era suposto encontrar vida e muda-nos mesmo.”quem tinha razão, quem tinha culpa. Foi mais do que uma viagem. Foi um ano de Madalena confessa que pensar no futuropreciso tempo para perceber que ninguém vida vivido nos Estados Unidos, em mexe com ela. Pensar a curto prazo étem toda a razão, ninguém tem toda a culpa, Dallas, Texas. “Uns primos tinham inevitável, mas a longo prazo chega a seras coisas simplesmente não correm bem. E adorado fazer este intercâmbio, com a assustador. Tem dificuldade em imaginar-não faz mal. Há sempre um plano B. A vida Multiway, e candidatei-me. Fiz lá o 12º se com uma vida estável, sossegada,continua, só não nos moldes em que ano. Aprendi tanto! Isto de entrar numa sedentária, até. “Gosto de me agarrar àachávamos que ia continuar. E isso até foi família que não é a nossa, aprender as suas ideia de que ainda vou viver em muitosbom porque permitiu que eu deixasse de estar rotinas, o seu funcionamento, sendo que a sítios. Na Austrália, por exemplo. Tenhotão presa a histórias da carochinha. Sim, cultura é totalmente distinta... depois de o esses sonhos todos e espero que a vidaalguma candura perde-se no caminho. Mas conseguirmos fazer somos capazes de ainda me surpreenda muito. Mas depoisisso é crescer, certo?” qualquer coisa.” tenho receio de um dia me arrepender deCertíssimo. Madalena cresceu bem, mesmo Madalena foi viver com uma família de não ter acautelado uma vida estável. Umacom as marcas que crescer sempre nos pais separados, com 6 miúdos em casa. vida de gente crescida. Não sei, talvez nãodeixam a todos. Diz que tem cada vez mais a “Foi o ano em que me tornei mais confie o suficiente no meu sentido de“visão céptica” da vida, como o pai, em vez confortável com quem eu sou. Há ali responsabilidade.”da “visão romântica”, que é típica da mãe. momentos de grande introspecção. Metade Talvez. Ou talvez tenha aprendido que nãoDesde criança que preferia as letras aos do tempo chora-se porque é tudo diferente vale a pena ter o guião da histórianúmeros e começou a sonhar ser jornalista. e queremos voltar para a nossa casa, a demasiado pensado, porque a vida é muitoAchou que seria boa ideia inscrever-se em outra metade do tempo está-se mais feliz mais admirável que isso. A princesaDireito mas o curso revelou-se tão penoso do que nunca. A minha vida passou a cresceu e saiu do seu conto cor-de-rosa. Ecomo uma tortura a que recusou submeter-se. dividir-se em pré-EUA e pós-EUA. Ainda que bem que o tem feito.Mudou para Comunicação Social, que ontem estive a falar com a minha ‘mãe’terminou em Janeiro do ano passado, e quer americana e tenho contacto regular com osfazer jornalismo. Neste momento está a fazerum estágio de seis meses na Vice IberiaMedia Group, em Barcelona.Voltando atrás, ao que fez dela a pessoa que éhoje, creio que se poderá dizer que muitomais do que o curso primeiro ou o cursosegundo, o que lhe deu mesmo mundo e amoldou como se molda um pedaço deplasticina foram as viagens que teve a sortede fazer. Entre todas, talvez a mais marcantetenha sido a viagem de voluntariado à Grécia,com a associação Help Refugees, onde ficoudurante três semanas, à custa de váriasmesadas poupadas: “Foi a melhor experiênciada minha vida. Conheci pessoas que andavamna universidade, onde não existia electricidadehavia meses! No Inverno, os estudantesfaziam os exames de luvas e lanterna! Ashistórias que me impressionaram mais foramas de pessoas que, antes da guerra na Síria,tinham vidas normais. Vidas que podiam seras nossas. E fugiram daquele horror e aliestavam, noutro horror, em campos derefugiados.”Outra das viagens que ajudou na construçãoda mulher em que se tornou foi, em bom rigor, DNa 19
“Uma das coisas que aprendi,com isto de estudar, parar, voltar,foi que nunca é uma perda de tempo. 5 anos Em 1997, quando nos conhecemos, o Nuno reencontrámos, o Nuno ali estava, de pedra e tinha 5 anos. Era muito tímido, fechado, cal naquela que parecia ser uma vocação parecia levemente enfadado por ter de inscrita no sangue: queria ser pintor ou responder a tantas perguntas. Aos três anos arquitecto. Tinha resolvido parte da timidez,Aprendi outras coisas, conheci dizia que queria ser “pintador” e aos cinco continuava a amar o Pico e a ser amigo do mantinha a profissão mas já com o nome Manuel.Nunooutrasrealidades,outraspessoas, pronunciado corretamente. A avó garantia Encontramo-nos num café no Campo que havia de ser arquitecto, tudo porque Pequeno, edifício que fazia parte do seu ninguém achava usual que uma criança se imaginário infantil por lhe achar semelhanças encantasse como ele por edifícios, diante com o palácio do Aladino. dos quais conseguia ficar longos minutos, Faço-lhe a pergunta mais óbvia: se sempre em evidente fascínio. Nessa altura, o que seguiu Arquitectura. Ele ri-se. Não. Decidiu- mais gostava na vida, para lá de ficar a se por Engenharia. Entrou em Electrotecnia admirar construções e pinturas, era das primeiro, mudou-se para Civil a seguir. Mas férias que passava na ilha do Pico, Açores, não era um sonho. E acabou a não ser um de onde era natural a avó (e onde se prazer. Como o mundo continuou sempre a juntavam tios e primos no verão). interessar-lhe, ao fim de três anos largou o Também tinha um certo enlevo por mapas, curso do Instituto Superior de Engenharia sobretudo desde que o tio Carlos lhe tinha de Lisboa (ISEL) e mudou-se para a Nova, oferecido um Globo Terrestre que gostava para Ciência Política e Relações de rodopiar, ao mesmo tempo que Internacionais. “Primeiro estive 6 meses a imaginava os países. E tinha um grande trabalhar com o meu pai, depois estudei amigo, o Manuel Magalhães, de quem outros 6 meses para fazer os exames de garantia não se separar jamais. admissão ao novo curso. Nunca estudeiganhei outra bagagem” C i n c o a n o s m a i s t a r d e , q u a n d o n o s tanto na vida mas achei que era uma áreaDNa 20
25 anosdois anos, interrompeu. “Estava saturado, queria conhecer céus. Também gostava de viajar mas custa-lhe pedir dinheiro aos pais.pessoas, fazer outras coisas.” Talvez o interesse pela política e pelas relações internacionais tenhaA família inquietou-se. Três anos numa área, um salto para outra nascido no 11 de Setembro. Nuno tinha então 9 anos e lembra-se dee uma nova interrupção podia significar demasiada inconstância ver o “mesmo filme” em todos os canais. Tinha pouca capacidadee uma vida desperdiçada em coisa nenhuma. Mas Nuno queria para entender mas espoletou-se ali um desejo de compreensão doganhar dinheiro, ter contacto com o mundo real, não apenas com mundo: “Fui percebendo que não é só um jogo de bons e de maus.o microcosmos universitário. Trabalhou um ano no By The Tendemos a fazer esta distinção mas nada é só preto, nada é sóWine, no Chiado e garante que foi uma experiência interessante: branco. Passei a interessar-me muito pelas questões do terrorismo,“Como sou introvertido foi bom para ganhar mais à-vontade. E pelas questões que levam seres humanos a agredir outros serespara ganhar ritmo, que é bem diferente das aulas da faculdade. humanos. Acho que gostaria de fazer disso vida. Mas, para serAlém disso, o meu grupo atual de amigos surge daí, por isso foi sincero, ainda não sei.”sem dúvida uma decisão acertada.” Sorri um sorriso nostálgico quando lhe pergunto pelo amigo ManuelOs pais repetiam a ladainha, com a qual ele não deixava de Magalhães: “Costumavam dizer que se a nossa amizade acabasseconcordar: “Tens de acabar o curso”. Ainda assim, Nuno sentia algo no mundo tinha de estar errado. Não é que tenha acabado,que não era chegado o momento. Foi trabalhar com o pai, na simplesmente seguimos caminhos diferentes. Acho que é normal.exploração de um restaurante, depois saiu. Hoje continua a Não é o mundo que está errado. São as pessoas que crescem emtrabalhar na restauração e a concluir o curso ao mesmo tempo. direções distintas. A vida é mesmo assim.”“Continuo sem fazer ideia do que será o meu futuro. Uma das No dia da sessão fotográfica, Nuno apareceu com um ar vintage,coisas que aprendi, com isto de estudar, parar, voltar, foi que cabelos despenteados, bigode, camisa com um estampado às flores.nunca é uma perda de tempo. Aprendi outras coisas, conheci Tem uma despreocupação natural que o leva a viver cada dia comooutras realidades, outras pessoas, ganhei outra bagagem. Mas, se não houvesse amanhã. Uma espécie de “logo se vê” queclaro, depois também sinto que tenho de construir qualquer desconcerta e, ao mesmo tempo, quase tranquiliza. Na verdade, paracoisa. E para isso tenho de escolher, tenho de seguir um caminho.” quê grandes planos, para quê grandes ansiedades? O hoje existe e éNuno ainda vive em casa dos pais, com o irmão, a avó e um cão. real. Amanhã? Logo se vê.Adoraria emancipar-se mas as rendas em Lisboa são de bradar aos DNa 21
“Não tenho televisão,não tenho redes sociais,não tenho carro,não tenho carta sequer,ando de transportes públicosporque é o que me faz sentido.” 10 anosFoi das mais difíceis de encontrar, tal não tem piada. Eles só pensam no dinheiro casa arrendada para onde se tinha mudadocomo expliquei no início deste trabalho. e podem comprar tudo o que querem. havia poucos meses. Uma casa lindíssima,Chama-se Maria Martins. Ora, se Marias Assim, qual é o interesse?” antiga, com uma vista de cortar ahá muitas, Martins também não há por aí Cinco anos depois, em 2002, Maria estava respiração. Porém, sem cascatas.poucos. E se juntarmos o nome Maria ao em plena adolescência. Tinha feito o Maria tornou-se uma mulher interessante, apelido Martins continuam a existir aossegundo furo na orelha sem sequercom uma personalidade forte, muito dona pontapés. Acresce que ela não temconsultar a mãe, confessava gostar dedo seu nariz (como, de resto, já era de facebook ou outras redes sociais e, porroupas mas sublinhava que não eraprever pelas conversas anteriores). Não isso, mesmo que fosse uma busca difícilnenhuma fútil, e queria ser arquitecta: “Aseguiu Psicologia, como imaginava aos 10 talvez acabasse por ser possível... se ela láarte é a minha paixão. Gosto muito deanos, mas manteve o sonho dos 15 e estivesse. Foi então preciso ir ao detalhedesenhar.” Quanto a ser rica, bom, aformou-se em Arquitectura. De resto, dos textos anteriores para a conseguiropinião tinha mudado um pouco. Emquando chegou a altura de ir para a encontrar. E nesse dia, foi uma festa.calhando dava jeito, até porque gostava defaculdade só pôs mesmo uma opção, Em 1997, Maria tinha 10 anos e queria serter “uma casa no campo com cavalos eporque ser arquitecta era a única psicóloga ou psiquiatra porque “queriacascatas”, e também gostava de “poderpossibilidade que aventava. Durante o que as crianças malucas deixassem de oviajar, ter mais roupa, muita roupa!” Ecurso, fez Erasmus em Buenos Aires. “Um ser”. Ou isso ou ser dona de um banco,terminámos a nossa conversa com a Mariaano do outro lado do mundo. Foi uma não propriamente para ser rica mas paraa fazer uma promessa: “Se enriquecercoisa que pus na cabeça. Queria estar fora saber como funcionavam os bancos portelefono a dar a minha nova morada. Podee fazer coisas que, de outro modo, ser que a próxima entrevista seja no dificilmente teria oportunidade de fazer.Mariadentro. Ser rica, de resto, não estava nosseus planos. Poder comprar tudo, sem campo, junto às cascatas.” Além do tempo de estudo, apanhei umasqualquer dificuldade, era coisa que lhe Pois. Não aconteceu. A entrevista deu-se férias grandes de lá e viajei pela Américafazia muita confusão: “A vida dos ricos no coração de Lisboa, junto à Sé, numa Latina durante 3 meses. Foi inesquecível.DNa 22
E foi lá que conheci o meu namorado, o António, que é 30 anosportuguês, mas que também lá estava a fazer Erasmus namesma altura, na área de Economia.” anos e que, depois disso, pode partir para outra parte qualquer doMal terminou o curso, Maria foi viver para Berlim. Tinha a mundo. “Não sinto que voltei e que estou a construir cá a minha vida.facilidade do alemão (tinha frequentado a Escola Alemã) e Não. Sinto que estou cá agora. Mas nesta idade é giro estar fora. É bomqueria ter uma experiência internacional. Além disso, a estar aberto a fazer uma série de coisas. E eu estou. Nós estamos. Éprobabilidade de arranjar emprego era maior fora do que verdade que sinto o chamado relógio biológico aos berros, mas não achodentro. Esteve lá 4 anos. O primeiro ano e meio sozinha, nada que tenha de fazer tudo antes de ter filhos porque depois já não dá.depois o António foi ter com ela. Vai dar para fazer tudo na mesma. Temos ambos muita tranquilidade emViver em Berlim foi muito bom. “Havia uma qualidade de relação a isso.”vida incrível. É uma cidade sem carros, com uma diversidade Falamos do mundo em que estamos, tão diferente do mundo em que nosde pessoas e de formas de pensar totalmente diferentes... A conhecemos, há 20 anos. “Preocupa-me muito a questão dos refugiados, eoferta cultural era enorme, os bilhetes baratíssimos. Lá fazia uma série de movimentos políticos que estão a ocorrer que vão deixarballet numa escola pública, que tinha esta e outras cicatrizes muito profundas.”modalidades para crianças e para adultos, sem ser preciso Maria não faz ideia do que vai ser a sua vida daqui a 20 anos, se por acasopagar. A minha casa cá custa o dobro do que pagava lá. E a nos voltarmos a encontrar: “Penso que aos 50 vai saber bem ter mais solvida cá é muito mais cara.” Fica no ar a questão: o que é que do que chuva e, assim, talvez esteja por cá de novo. Poderei estar naa levou a voltar? “Por um lado acho que estava a ficar um cidade mas também no campo. Dispenso as cascatas e os cavalos, que erapouco cansada de viver fora, apetecia-me um pouco da o tal sonho de infância. Mas uma vida no campo, tranquila, não está nadasensação de casa. Por outro lado, queria trabalhar aqui posta de parte. Aliás, nada está. Gosto desta ideia de estar tudo em aberto.porque sinto que a cidade está a desenvolver-se muito e, em É essa a graça da vida.”alguns casos, da pior maneira. Apetecia-me debruçar sobreessa problemática. Talvez tenha sido uma espécie dechamamento.”Para Maria, existe ainda a vontade de fazer a diferença.Retiremos o advérbio. Não tem que ser temporário. De resto,veja-se o modo como vive, de forma convictamente diferenteda maioria: “Não tenho televisão, não tenho redes sociais,não tenho carro, não tenho carta sequer, ando de transportespúblicos porque é o que me faz sentido. Vim viver para ocentro da cidade, gosto da vida de bairro, apesar daenxurrada de turistas, sinto que precisamos repensar a vidacomo um todo e a vida nas cidades. Sinto que me tornei maistempestuosa do que era. Então no que concerne a questõesque se prendem com as cidades e com o modo como vivemosfico mesmo fora de mim. Há amigos que não mereconhecem. Mas a verdade é que fizemos um curso,pensámos de certa forma, e o que vejo é amigos a aceitaremqualquer trabalho, qualquer coisa, muitos até a abandonarema Arquitectura, que era a sua paixão. Acho que devíamos terum papel mais activo, mais consciente, mais interactivo.”A casa de Maria tem livros por todo o lado e é bom conversarcom ela e perder a conta às horas que passam. Percebe-se queestá ali alguém que se recusa a simplesmente viver, mas quepensa sobre a vida. Mal chegou a Portugal, arranjou logoemprego num atelier, ao contrário do que a mãe imaginouque pudesse acontecer. Sim, porque por muito que a quisessepor cá, sentiu aquele calafrio (muito materno) por a imaginara trocar o certo – ainda que longe – pelo incerto – ainda queperto. Maria não sabe o que o futuro lhe reserva (alguémsabe?). Sabe que tem um contrato de arrendamento por três DNa 23
“Acabar o cursofoi como um tributo ao meu pai.Ele queria muito e eu sempre a adiar,com a síndrome do Peter Pan.Tenho a certeza de que ficou contente,onde quer que esteja.” 10 anosQuando nos conhecemos em 1997 o Luís todo a regressar a Lisboa. “Nem pensar! às mensagens, quer por telefone, quer pelo foi logo avisando que aceitava a entrevistaNão trocava isto por nada!”facebook, e foi preciso enviar uma mas que ficasse claro que ele já não eraO Luís não era lá muito amigo da escola,derradeira missiva mais incisiva para que nenhuma criança. “A partir dos 10 anosnão gostava de estudar e a sua partefinalmente respondesse. Foi simpatiquíssimo, somos adultos.” Ainda assim, o Luís nãopreferida do dia da semana era quandodesfez-se em pedidos de desculpas, tinha medo do mundo dos crescidos. Iaescutava o toque para a saída. Mas já tinhamostrou-se entusiasmado em fazer parte estudar para ser arquitecto mas, tambémprometido a si mesmo que a partir dodo grupo original, e foi impossível gostaria de ser agricultor como o pai.10º ano ia ser melhor. Queria vir a trabalharcontinuar arreliada com ele. Nesse ano, o Luís tinha deixado Lisboana quinta, com o pai. Tinha começado aComeçamos por recordar a sua promessa para ir viver com os pais na quinta dojogar rugby havia 5 anos e adorava.de se emendar nos estudos quando Cartaxo. Ainda estava na dúvida sobre seAos 15, o Luís dizia que ia casar aos 25chegasse ao 10º ano. “Não aconteceu. era um evento feliz ou nem por isso,anos, que era a idade ideal, e que a mulherChumbei nesse ano. Depois vim para porque se por um lado tinha deixado umatinha de ser bonita, meiga e saber fazer asLisboa porque os pais acharam que não série de amigos na cidade, por outrolides da casa. Não devo ter conseguidoestava a funcionar, lá em Santarém. “viver no campo é sempre mais saudável”.disfarçar um certo esgar de incómodo eEstava sempre com os amigos, não havia Em 2002 não foi fácil conseguir um diaele, esperto, topou-o: “Já percebi que devemaneira de atinar. Vim viver com a minha para conversar com o Luís. Aos 15 anos asachar machista esta minha visão dairmã para o Restelo, para a casa onde solicitações eram mais que muitas e forammulher ideal mas acho uma coisa tãovivíamos todos antes de irmos para a bonita uma mulher preocupar-se com quinta. O meu sobrinho tinha nascido háLuísprecisos telefonemas, cartas e gravaçõesdeixadas em telefones fixos com gravador. essas coisas.” pouco tempo e a minha irmã estavaQuando finalmente conseguimos falar, o Em 2017 o Luís voltou a ser muito difícil grávida da minha sobrinha. O meuLuís contou-me sobre a vida incrível em de encontrar. E, mesmo depois de cunhado chegava tarde e eu dava apoio.”Vila Chã de Ourique. Não se imaginava de encontrado, fez-se rogado. Não respondia Depois, aos 18, foi viver sozinho. UmaDNa 24
aventura com pouco proveito para os estudos, 30 anos anos. Nem sequer ia lá.”sempre a ficarem para último na sua lista de Aos 30 anos, Luís ainda não tinha casado,prioridades. cunhado assumiu as rédeas da quinta com contrariando a sua ideia juvenil de que darQuis ir para Gestão mas havia a Matemática a muita coragem. Tem o curso de Gestão o nó aos 25 seria o mais acertado. Quandoatrapalhar. Então seguiu Gestão Hoteleira no mas vinhas e agricultura não eram nada nos reencontrámos tinha uma namorada háInstituto Politécnico Internacional. Mas o com ele. Dou-lhe muito valor. Saiu da sua apenas alguns meses (que mantém): “Ainstituto fechou enquanto ele lá estava zona de conforto para assumir um negócio Joana tem-me feito muito bem. Estou(parecia que quando não era ele que não familiar que, se não fosse ele, provavelmente numa fase feliz, estável, mais madura.”queria nada com os estudos, eram os estudos morreria. Abdicou de tudo para ajudar a Fala com enlevo do pai e da mãe e deque não queriam nada com ele). Mudou-se de família.” todos os ensinamentos que colheu dearmas e bagagens para o Instituto Superior de Hoje, Luís está mais embrenhado na ambos. Orgulha-se da força da mãe, doLínguas e Administração (ISLA) e ainda havia quinta. Quer vender o vinho e tem modo como deu a volta à dor de terde mudar de novo, dessa vez para o Instituto algumas ideias que envolvem a produção perdido o amor da sua vida, da artista queSuperior de Educação e Ciências (ISEC). de eventos: “A Quinta do Falcão é linda e é. Fala ainda do pai e do modo como, aosParalelamente, o rugby. Tornou-se cada vez fica ao lado de Lisboa. Acho que agora 60 anos, jogava futebol com ele, sempremelhor, entrou para o clube de rugby que fiz este curso tenho as ferramentas próximo, sempre amigo. Há uma ternuraAgronomia mas teve uma ruptura de para explorar essa área.” Confessa que, profunda que se liberta de cada palavra eligamentos grave em 2006 e, em 2010, fez durante alguns anos, lhe voltou as costas que comove.uma lesão gravíssima em pleno jogo, um dia porque o confronto com aquele lugar onde Daqui a 20 anos? Imagina-se casado, comdepois de saber que o pai tinha um cancro de tinha sido tão feliz lhe trazia dor e vazio: filhos e, sem dúvida, envolvido na Quinta dopulmão. “Já jogava nos seniores. Tinha sabido “E porque sentia que talvez a quinta Falcão. “Seria um grande orgulho para o meuna véspera do cancro do pai e estava tivesse tirado anos de vida ao meu pai. pai. E seria um grande orgulho para mim.”emocionalmente de rastos. Parti a perna a Sentia como que uma revolta contrajogar. Parti dois ossos e fiquei com a perna aquele lugar e arrependo-me de não terpendurada. Fui-me muito abaixo nessa altura. dado mais apoio ao meu cunhado nessesFiquei com raiva do rugby. Estávamos emFevereiro e o meu pai morreu em Outubro.”Luís tinha 23 anos. A doença galopante do pai(durou apenas 8 meses) e a sua mortemexeram muito com ele. Talvez o tenhammudado para sempre. Quando ele morreu,começou por sentir necessidade de cuidar damãe e, depois, quis honrar a memória do pai:“O meu pai sempre quis que eu estudasse. Eeu também sempre percebi que tinha de ofazer mas era um bocadinho como o Peter Pan.Terminou há dois anos o curso de GestãoHoteleira, o que foi um alívio para a mãe. “Eusei que ela tinha medo que eu não acabasse.Senti-o como um tributo ao meu pai. Tenho acerteza de que ficou contente, onde quer queesteja.” Estagiou no Altis Belém e ficou lá atrabalhar durante um ano. Depois, quis ir àprocura de outra oportunidade. Foi para oBNP Paribas processar pagamentos. Aguentou6 meses. “A seguir fiz um curso de um ano deProdução de Eventos na ETIC. E foi excelenteporque senti que, pela primeira vez, estudeiporque quis e no que me deu verdadeiro gozo.”Pergunto pela quinta. O que foi feito da quintano Cartaxo, com a morte do pai? “O meu DNa 25
“Quando fiquei na Moody’sfoi uma excitação para todos.Fizeram posts no facebook,daqueles a babar de orgulho,o que teve a sua graça.” 4 anosEra mínima, quando nos conhecemos, Tinha, de resto, uma enorme preocupação tendo com o pai, professor universitário,mas já cheia de habilidades que fazia com o que dizia na entrevista, não fosse que, vendo o entusiasmo pelos números aquestão de exibir. Aos 4 anos, e acabada passar uma imagem ruim da sua pessoa. terá “puxado mais para a teoria”.de conhecer esta estranha que lhe entrou Adorava novelas, para desconsolo da Na dúvida entre Economia ou Gestão,casa adentro com um caderno e uma mãe, mas era muito responsável, optou por Economia, por ser maiscaneta em riste, Margarida cantou, curiosa e companheira, a ponto de abstracto, mais teórico, mais abrangente.dançou, revelou conhecimentos musicais quase ser possível esquecer que se Fez o curso na Universidade Nova devariados (a canção preferida era “Óculos tratava de uma criança. Lisboa e, em 2013, foi estagiar para ade Sol”, de Natércia Barreto) e respondeu O que se mantém dessa menina de Delloite. Seguiu-se o mestrado emque a pessoa mais importante do mundo microfone na mão e resposta pronta é, Finanças, na Católica, que lhe abriuera a mãe. A mãe? “Então quem é que me talvez, e segundo a própria, a energia, outras portas. Ou melhor, não foileva à natação? Quem é?” Além disso, essa vontade de estar sempre a criar, a propriamente o mestrado mas as notasapontou o Globo Terrestre, que era o seu inventar, a meter-se em novos projectos. que Margarida teve. “Terminei o primeirocandeeiro de quarto, e falou com O fascínio por Londres, que apontava no ano com 18,1.” E foi assim que teve a entusiasmo de alguns países e cidades, com destaque para Lisboa, em Portugal, e Londres, em Inglaterra. Em 2002, ano da segunda visita, continuava a querer ser cantora quando crescesse mas também médica pediatra.Margarida“Não vai ser fácil conciliar as duas seu globo-candeeiro, não só se manteve oportunidade de ir fazer o segundo ano como cresceu e se tornou morada, uma à Bocconi University, em Milão, uma das vez que é lá que vive há um ano. mais prestigiadas escolas de negócios do Porém, não se tornou cantora ou pediatra mundo. “Foi fantástico. Gostei muito da ou ambas. Continua com “os mesmos faculdade, aprendi imenso.” gostos musicais duvidosos” mas o Quando falámos, no ano passado, por interesse que demonstrava pela Medicina Skype, Margarida ainda estava a terminarcarreiras mas logo se vê”, dizia com foi-se esbatendo com o tempo e talvez o mestrado e já estava em fase deaquele ar doutoral que metia em tudo. também com algumas conversas que foi entrevistas de emprego para váriasDNa 26
empresas em Londres. Começou com testes 24 anos amigo e uma mulher de família. Quantoonline, depois vieram as entrevistas por telefone, aos defeitos, confessa-se demasiadoentrevistas muito técnicas que envolviam Tem dois irmãos mais velhos, que já são preocupada e pessimista: “Estou sempreafincada preparação. pais, cada um de um filho, o que faz dela à espera do pior.” Olhar o mundo,O namorado Miguel, também formado em tia duas vezes. E depois tem o irmão mais quando se tem esta característica, não éFinanças, vivia em Londres, na altura em que novo, o Manel, com 10 anos. É ao falar fácil: “Assusta-me esta tendência de osMargarida estava em Milão, a fazer o mestrado, dele que os olhos mais brilham, a voz países se fecharem, adoptando medidasmas isso hoje em dia não constitui qualquer mais se amacia, a postura corporal se proteccionistas, isolando-se e olhando osproblema para nenhum destes jovens. Há o transforma. É ao falar dele que assisto a outros países como potenciais ameaças.”Skype, o WhatsApp, o MSN, voos baratos, e um uma transformação de uma Margarida Daqui a 20 anos imagina-se com um ousem número de maneiras de comunicar. As séria e muito profissional para uma dois filhos, realizada profissionalmente, erelações à distância não são assim tão à distância Margarida enternecida e maternal. “O sem ter mudado muito porque gostaria dequanto isso porque os quilómetros reduziram- Manel é muito parecido comigo e tenho se manter igual a si própria. No final,se, o longe fez-se perto, e o mundo tornou-se imensas saudades dele. Foi das coisas antes de nos despedirmos, pergunta-memais pequeno. mais fantásticas que me aconteceu. É pela minha vida, que voltas deu nestes 20Entretanto, os meses passaram e voltámos a falar. espertíssimo, tem uma energia fora de anos. É a única, dos 11, que o faz, comMargarida tinha sido escolhida para integrar a série e está muito à frente no Youtube e no genuíno interesse. E isso, parecendo queMoody’s, em Londres, a empresa de rating domínio de todas as novas ferramentas não, diz muito sobre si.americana que classificou Portugal como lixo na que aparecem. É uma alegria tê-lo naaltura da Troika (mas que este ano já considerou minha vida.” DNa 27existir um caminho de sustentabilidade, fazendo Tal como na primeira e na segundasubir o rating do país). É de calcular o conversas, em que falámos de qualidadesentusiasmo dela e da família por tão nobre e defeitos, voltamos ao tema. Margaridaentrada na vida profissional. “Foi uma excitação elenca a persistência como um dos seuspara todos. Fizeram posts no Facebook, daqueles atributos. Isso e ser muito amiga do seua babar de orgulho, o que teve a sua graça. Noprimeiro dia eu estava em pânico, cheia de medode não corresponder às expectativas. Mas temcorrido muito bem.” Tão bem que, seis mesesdepois, entrou para o quadro da empresa, onde ératings analyst para a Península Ibérica.A vida em Londres é boa. Margarida vivemesmo perto do escritório, em Canary Wharf,num pequeno estúdio. Trabalha muito, diz quenão há momentos mortos, que a pressão éconstante. “O que me vale é que tinha uma boapreparação. Este é um trabalho de detalhe e nãopodem haver falhas”.Margarida está naquela fase da vida em que temtudo para provar e todo o caminho ainda paradesbravar. Percebe-se que o céu é o limite e, sedependesse só dela, chegava lá de certezaabsoluta. Ainda assim, gostava de voltar aPortugal quando o seu currículo já lhe abrisseportas mais interessantes e financeiramentecompensadoras. “Ninguém se quer reformar emInglaterra, nem mesmo os ingleses, que queremé ir justamente para Portugal. Ainda não pensoter filhos mas está nos planos. Gostava de terdois, o Miguel eventualmente gostava de ter três.”A família de Margarida é grande e animada.
“Já fui mais ambicioso.Quando acabei o cursoachei que ia fazer campanhase ia ser espectacular.Achamos que vamos comer o mundoe o mundo acaba por nos comer a nós.” 8 anosTinha tanta graça. Tanta graça. Loirinho, que está escrito no ‘frasco’... Diz que o baço, triste, quase embaraçado, a desviarespevitado, brincalhão. Na primeira vez tabaco pode matar! E ela continua! o olhar, como se alguém lhe tivesseque conversámos tinha 8 anos e o que Foooogo! Eu nunca vou fumar! ”Cinco apagado a luz. Talvez tivesse sido do dia,mais gostava de fazer era jogar futebol anos depois, quando nos reencontrámos, talvez tivesse sido uma certa timidez que“no computador e na vida real também”. mantinha a desenvoltura. Tinha-se não conseguiu ultrapassar à primeira e,A sua preferência clubística era um tanto mudado de Lisboa para a Covilhã e estava por isso, voltámos a conversar umaou quanto esquizofrénica (ou talvez a começar a acostumar-se. “É mais segunda vez, para tentarmos - ambos -diplomática): era do Benfica por causa do sossegado”, explicava, tentando convencer- encontrar o rasto daquele miúdo luminoso.tio Kiko e do Sporting por causa da mãe. se. Nessa altura queria ser jogador de Lourenço não teve uma vida dourada.Na escola, ficava muitas vezes de castigo futebol ou piloto de Fórmula 1. Dizia que Também não foi nenhuma tragédia, nada(e não era difícil imaginar porquê). o mundo estava perigoso “por causa do Bin disso, mas talvez seja, de todos, aqueleNão gostava de Aníbal Cavaco Silva, que Laden, dos israelitas e dos palestinianos”, e que amadureceu mais depressa por culpatratava desdenhosamente por “Cavaco” e preocupava-se muito com o ambiente e de alguns acidentes de percurso que o achava que Pinto da Costa era um doscom a “falta de árvores”. No final dofizeram olhar para a vida com a aspereza homens mais poderosos do mundo.encontro, perguntou-me se lhe pagava o com que os outros não olham. “Tornei-me Queria casar e ter 3 ou 4 filhos. Aalmoço: “É o jornal que paga, não é?” Emais racional do que emocional e acho escolhida podia bem ser Claudia Schiffer,almoçámos um belo bife, com o Lourençoque vejo a vida de uma forma um pouco que para ele era, sem sombra de dúvida, asempre com coisas para contar. cínica. Vejo os anos passar e sinto que os mulher mais bonita do mundo. TambémForam preciso duas entrevistas para meus sonhos estão a ficar para trás e garantia que nunca na vida iria fumar, esseprocurar descortinar o Lourenço, 20 anostenho dificuldade em agarrá-los.” depois da primeira vez. No primeiro Aos 18 anos ficou sozinho na Covilhã.Lourençovício incompreensível de alguns adultos,como a mãe, por exemplo: “A minha mãe reencontro, o Lourenço adulto parecia ter “Fui viver para uma residência universitária,fuma imenso! E ainda por cima sabe o muito pouco a ver com o Lourenço criança, e durante dois anos foi uma grandeDNa 28
cowboyada. Mas o curso [Ciências de 28 anos encontrar-lhe a luz. Era ele, ainda.Comunicação] não era o que eu estava à espera Engraçado, extrovertido, a fazer conversae decidi sair da Covilhã e vir para Lisboa.” família. Não se queixa, diz que está bem e piadas que ajudaram a quebrar o geloFicou dois anos sem estudar, a trabalhar em como está, mas não deixa de sublinhar o daquele encontro com tantos anos decall centers. “A minha mãe sempre quis que eu modo como a namorada é agarrada à interregno. Era como se o miúdo loirinhotivesse mais do que ela tinha tido e custou-lhe família e como isso o enternece. Não usa que conheci tivesse apenas crescido emque eu tivesse parado. Mas acho que percebeu estas palavras, não se vá pensar que é tamanho. Que bom reencontrá-lo assim,que era temporário. Aproveitei para tirar a algum lamechas. Ri muito, gosta de fazer nessa leveza e brilho que não vislumbreicarta e depois entrei para a Escola Superior de rir. Chorar? Raramente. Muito raramente. durante a primeira entrevista, mesesComunicação Social, onde ainda estou a tentar De resto, guarda mais de 90% das coisas antes. Talvez tivesse sido do dia, talvezacabar o curso de Publicidade e Marketing.” para si próprio. Não é cá de partilhas ou tivesse sido uma certa timidez que nãoQuando acabar o curso não sabe bem o que confidências. conseguiu ultrapassar à primeira. Talvez aserá a sua vida. A área que escolheu está muito Retomando conversas antigas, diz que vida ainda o venha a surpreender. Talvezsaturada e se calhar só saindo do país é que mantém a aversão por Cavaco Silva mas consiga comer o mundo. Talvez.consegue safar-se. “Mas eu gostava de ficar congratula-se por já não ter de o ver apor cá, gosto do nosso país... Se bem que me comer bolo rei em horário nobre daimagino perfeitamente a viver em Nova Iorque, televisão. Ainda tem dificuldade emTóquio, Londres ou Amesterdão.” acreditar que Donald Trump é oDa primeira vez, quando lhe perguntei se havia presidente dos Estados Unidos (não estáalguém especial, sorriu e voltei a ver o sozinho) e se há acontecimento do mundorapazinho traquina de há 20 anos. Mas foi só que o marcou para sempre foi, semum vislumbre, que voltou logo a desaparecer dúvida, o 11 de Setembro de 2001.num ápice. Não queria falar disso. Fechou-se No dia da fotografia individual e decomo uma concha. Depois, na segunda conjunto (e na segunda entrevista), conseguiconversa, abriu mais o coração para falar dasua Sónia, que fez questão de adjectivar como“muito melhor do que a Claudia Schiffer”.Além de estudar, Lourenço trabalha nodepartamento de vendas online da Worten. “Aminha vida acaba por não ser muito excitante.É trabalho-casa-faculdade e repete. Daqui a 10anos gostava de estar a trabalhar na minha áreamas vejo-o cada vez mais como uma miragem.Tenho 29 anos e quanto mais tempo passa pior.Vou fazer o quê? Sair de um emprego estávelpara ir fazer estágios de 6 meses nãoremunerados? E quem é que paga a casa e asdespesas?”Pergunto pela ambição, pela gana de ir maislonge. Ele sorri, com o tal sorriso de quem jánão vê a vida em tons de rosa: “Já fui maisambicioso. Quando comecei o curso dePublicidade e Marketing achei que em poucotempo ia estar a fazer campanhas e que ia serespectacular. Achamos que vamos comer omundo e o mundo acaba por nos comer a nós.”Gostava de ser pai, para poder ser aquilo quenão teve. Um bom pai, racional, ponderado,“que não aja de cabeça quente” e que eduque edê amor. Ele teve amor de mãe mas acreditaque lhe faltou uma noção mais apertada de DNa 29
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© Tiago Figueiredo“O DNA durou dez anos, ganhou todos os prémios que havia para ganhar, no domínio dojornalismo, da fotografia, do design. A insuspeita norte-americana SND (Society for News Design)escreveu, no livro de premiados da sua 20ª edição, relativa a 1998, que o DNA poderia figurar nagaleria do “melhor do século”, sublinhando o destaque dado à fotografia, à tipografia e à gama decor. Nesse ano, o suplemento venceu diversas categorias e teve medalha de ouro na maisrelevante: overall magazine design. (…) Só me ocorre esta ideia: poucos profissionais têm, na suavida, a oportunidade de concretizar um projecto que lhes encha as medidas ao ponto de, nãodesvalorizando passados nem enjeitando futuros, poderem dizer: missão cumprida. E eu posso.”“Não Respire”, Pedro Rolo Duarte
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