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DNA FINAL 26nov

Published by ricardobranco2, 2018-11-27 03:37:05

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QUARTA-FEIRA Nº 476 DNa 28 DE NOVEMBRO DE 2018 pPaelçaovraa ESTA É A MADALENA. FOI A CAPA DO DNA EM 1997. FOMOS REENCONTRAR AS 11 CRIANÇAS QUEMADALENA, HUGO, JOANA, TIAGO, MARIANA, RUBEN, NUNO, MARIA, LUÍS, MARGARIDA, LOURENÇO ENTREVISTÁMOS HÁ 20 ANOS. NA ALTURA TINHAM ENTRE OS 3 E OS 10. HOJE TÊM ENTRE OS 23 E OS 30. UMA HOMENAGEM À VIDA. UM TRIBUTO AO PEDRO ROLO DUARTE

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Em 1997 havia um projecto ímpar na imprensa portuguesa chamado DNA. Era o suplemento do Diário de Notícias e eu tive a sorte deestar lá metida dos pés à cabeça do primeiro ao último minuto. O mentor e director do DNA era o Pedro Rolo Duarte, essa pessoa quemudou para sempre a minha vida (e a de tantos que colaboraram com ele profissionalmente ou tiveram a felicidade de se cruzar com elepessoalmente). Em 1997 fui destacada para fazer uma reportagem especial com 11 crianças. Aquilo a que, em jornalismo, se convencionouchamar “um dossier”. Entregámos uma máquina fotográfica descartável a cada uma das 11 crianças (que tinham idades compreendidas entre os 3 e os 10 anos)e pedimos-lhes que fotografassem o seu mundo. Depois, publicámos vinte e quatro páginas com um texto para cada criança e respectivoretrato, fotos tiradas por cada uma com a tal máquina descartável, e uma fotografia de grupo. A reportagem não foi publicada no DiaMundial da Criança, como seria previsível, mas em Outubro, porque uma das características do DNA era justamente a imprevisibilidade. Cinco anos depois, fomos à procura das mesmas crianças e repetimos as entrevistas e os retratos. Já não lhes demos máquinasdescartáveis, mas fomos reencontrá-las e conhecer que voltas tinham as suas vidas dado em cinco anos. A ideia era repetirmos a ideia acada cinco anos mas entretanto o DNA acabou e não fazia sentido publicar a história em nenhum outro jornal ou revista. Perdi-lhes,perdemos-lhes o rasto. Em 2017 essa reportagem (que tinha ficado muito querida ente nós e junto de alguns fãs do DNA) fez 20 anos. O Pedro estava doente eeu pensei ir à procura de cada um dos 11 “miúdos” e saber o que era feito deles, vinte anos depois. Queria dar esse presente ao Pedro,sobretudo quando tudo parecia estar bem encaminhado nos seus tratamentos, porque não queria que soasse a despedida mas sim acelebração da vida. Encontrar os 11 magníficos não foi pêra doce. De alguns só sabia o nome próprio. Alguns tinham ligações muito ténues a pessoaspróximas (aquela coisa típica de uma redação: “alguém conhece putos entre os 3 e os 10 anos que queira entrar nisto?”). Os mais difíceis deencontrar foram o Ruben (que era sobrinho de uma babysitter do filho do Pedro Rolo Duarte, entretanto emigrada para a Venezuela, cujonome eu nem sabia como se soletrava), o Luís (foi preciso andar a deixar mensagens meio estranhas em páginas de facebook de clubes derugby) e a Maria (não me lembrava quem a tinha sugerido e foi preciso andar a “escavar” na sua escola primária até aparecer, por fim,alguém que tinha o seu contacto). Cada entrevista foi um presente. Um bombom. Reencontrar cada um foi dos momentos mais emocionantes e bonitos da minha vidaprofissional (ainda que não se tratasse efectivamente de um trabalho mas sim de um presente). Entretanto, a doença do Pedro trocou-nos as voltas. E, depois de uma cirurgia que tinha sido um sucesso, tudo correu mal. Morreu ummês depois, na véspera do dia marcado para a fotografia de grupo. Soube da sua morte quando estava empilhada numas caixas, na minhaarrecadação, a ir buscar o DNA de 1997 para levar, no dia seguinte, para a sessão fotográfica. E o meu presente ficou sem sentido (bemcomo boa parte da minha vida). Quem sabia do projecto incentivou-me a continuá-lo, já não como presente mas como homenagem. Faltou-me a coragem durante muitotempo. Foi preciso saber esperar. Porque não foi fácil ultrapassar a sensação de esvaziamento de sentido. Quando senti que já era capaz,voltei. Escrevi os textos, muito mais devagar do que seria normal, mas depois concluí – numa espécie de auto-análise – que terminartambém significava um ponto final num projecto que me proporcionava a ilusão de que, afinal, ainda estávamos a trabalhar juntos.Entretanto, escolhi a pessoa mais sensível que conheço (além de dona de um talento raro), para fazer a sessão fotográfica, 20 anos depois.A fotógrafa Inês Correia de Matos registou a imagem de cada um e do grupo. E foi também ela quem paginou esta espécie de DNA queaqui renasce, com uma dedicação e generosidade que dificilmente conseguirei retribuir. Emocionei-me muito mais do que 11 vezes ao longo deste ano. Zanguei-me muito mais do que 11 vezes por não poder entregar opresente a quem ele se destinava. Procurei consolar-me com todos os crentes que me iam garantindo que ele havia de ver, lá onde quer queestivesse. Não sei se vês ou não, Pedro. Mas isto é para ti. Estes são os “nossos” 11 meninos que entretanto cresceram. Estes são os seus mundos.As suas vidas. E esta é uma homenagem à tua vida, que foi inspirada, inspiradora e demasiado breve. Obrigada. Por tudo.Textos e produção: Sónia Morais SantosFotografias de 1997: Marcelo BuainainFotografias actuais: Inês CM, After ClickPaginação: Inês CM, After Click DNa 1

Os DNa

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“Assistir à eleição de um idiota comopresidente dos EUA foi chocante.Parecia uma piada que estavaa ir longe demais” 5 anosEra o homenzinho do grupo, apesar dos “Quando me batem... levam” (algo que, confesso que continuo a gostar deseus 5 anos acabados de fazer. Não havia afinal de contas, poucos anos mais tarde observar as pessoas. Quando se toca empergunta que lhe fizesse que não fosse até um político proferiu, de forma determinados assuntos dá para perceberrespondida com muita ponderação, para semelhante). Nesse segundo encontro, o rapidamente quem temos ali. E sinto maisevitar que saísse asneira. Dizia que a Hugo já sabia o que queria ser quando interesse em ler e ouvir pessoas de quem pessoa mais importante do mundo erachegasse a hora de ter uma profissão.discordo do que pessoas com quem Jesus, e não fazia ideia do que ia serQueria ser jornalista como o pai, apesarconcordo. Assim tento compreender quando crescesse, afinal de contas aindade compreender que havia de ser umacomo é que há gente que pensa de um faltava imenso tempo. O seu grandeprofissão exigente, pelo desabafo deixadomodo tão diferente do meu em assuntos amigo Tiago só pensava em ambulânciasem forma de queixa: “Às vezes dava jeitoque para mim seriam de via única.” e já tinha decidido que queria serter o pai mais cedo em casa”. De tudo ocomo é que há gente que pensa de um bombeiro, mas ele preferia continuar aque conversámos, em 2002, o maismodo tão diferente do meu em assuntos pensar apenas em jogos de computadorimpressionante foi verificar que eleque para mim seriam de via única.” enquanto fosse possível. Não gostava decontinuava a parecer um pequeno homemHugo não seguiu Jornalismo, como o pai, beijinhos, o que entristecia um pouco asou... um grande miúdo.talvez influenciado justamente por ele. O avós, mas paciência, esse era, semComo estaria agora, 20 anos depois dadeclínio dos jornais, a crise nos media, a dúvida, um dado adquirido. Em 2002,primeira vez que nos conhecemos? Se jáconjuntura económica, fê-lo optar por quando o reencontrei, ainda não tinhatinha uma seriedade adulta aos 5, que tipoEconomia, no ISEG: “Optei por feito os 10 anos mas mantinha o ar sério,de probidade e rectidão iria encontrar?Economia em vez de Gestão por achar Hugo sorriu perante a pergunta. Talvez que era mais que era mais abrangente eHugoumaespéciedeintelectualprecoce,masamãe alertava para o facto de nem tudo ser sempre tenha sido introspectivo e até por me atrair a ideia de poder interagiro que parecia: “Parece um anjinho mas às bastante sério e crítico sobre tudo: “Hoje com a vida das pessoas e a sociedade.vezes é um terror.” Ele encolheu os aprendi a guardar mais para mim e estou Afinal, o curso foi desmotivante paraombros, encolheu os ombros, justificando: a tentar ser um pouco mais aberto. Mas mim. Continuei porque pensei sempre DNa

que mudar era um erro. E então agarrei-me à ideia de acabar o 25 anoscurso, começar a trabalhar e depois então logo se via.”Não deixou escapar a oportunidade de fazer Erasmus e viveu 6 lado das outras pessoas”.meses na Polónia. “Como adoro viajar, aproveitei para o fazermuito, enquanto lá estive.” Recordamos os avós, de quem falou em ambas as entrevistas e queDepois, quando o curso terminou começou por trabalhar numaconsultora, em auditoria, mas o ambiente era freneticamente tinham uma importância grande na sua vida: “A minha avó, mãe do meucompetitivo. Era preciso praticamente viver lá dentro, aindaque não fosse preciso. Seis meses depois saiu e foi um mês pai, teve um AVC há uns anos. Quando me disseram foi dos dias maispara a Tailândia. “Foi um pouco uma fuga para esquecer umperíodo da minha vida que não estava a ser fácil. O confronto tristes da minha vida.” Entretanto, neste ano que distou entre a nossacom uma escolha que, se calhar, não tinha sido a maisacertada. Nem tinha gostado do curso nem tinha gostado da conversa e esta publicação, a avó e o avô morreram, um em Fevereiro, oprimeira experiência profissional. Ups. Foi importante parar,abrir horizontes, viajar para um lugar onde tudo é diferente, outro em Maio, criando no Hugo um daqueles vazios irreparáveis que separa me recentrar.”Quando nos encontrámos, numa Padaria Portuguesa na criam dentro de nós sempre que alguém que nos é fundamental parte.Avenida da Igreja, Hugo estava a trabalhar há um ano numaConsultora de Investimentos e finalmente parecia estar a Sair do país está nos planos. Por um lado porque é sempre importantegostar: “Faço relatórios sobre fundos de pensões no ReinoUnido. Só falo inglês o dia inteiro. O ambiente é viver fora, aprender com essa distância daquilo que são as nossas raízes.completamente diferente, toda a gente se dá bem e há muitaentreajuda. Valorizo muito isso. Não gosto de estar num sítio Por outro porque financeira e profissionalmente pode ser interessante.onde tenho de estar constantemente a olhar por cima do ombropara ver se não me vão tramar para chegarem mais longe. “Mas tinha de ser para um sítio com mar e com pessoas bem dispostas.Cansa-me e não faz o meu género.”No emprego (onde se mantém) tem a possibilidade de Quando vivi aqueles 6 meses na Polónia percebi que não seria para mim.acumular horas, obtendo dias extra de férias, o que lhe permiteviajar uma semana de vez em quando. “Adoro viajar e tirar São frios e fechados. Talvez vivesse algures na Tailândia, ou na Irlanda,fotografias. Sou um autodidata da fotografia, leio imenso evejo muita coisa na internet, gosto de ir experimentando, talvez vivesse em São Francisco.”compro equipamento... E viajar para destinos que sãoculturalmente muito diferentes permite juntar vários prazeres: Olha para o mundo com preocupação. “Assistir à eleição de um idiotao da viagem, o do conhecimento e o da fotografia.”Também pela altura em que conversámos, Hugo tinha acabado como presidente dos EUA foi chocante. Acordei de manhã e sóde sair de casa dos pais e estava naquela fase de encantamentopor viver segundo as próprias leis: “Estou a gostar imenso! conseguia pensar que aquilo não podia estar a acontecer. Parecia umaDesde que fui para a faculdade que já me era penoso viver lá,na Charneca, e fazer mais de uma hora de transportes para cada piada que estava a ir longe demais. A instabilidade político-financeira oslado. Acho que acabei por perder até alguns programas comamigos porque o regresso a casa era complicado. Agora é refugiados, o aumento da xenofobia e dos ideais de extrema-direita sãoóptimo porque divido a casa com dois amigos e posso sair dotrabalho, ir beber uma cerveja e chegar tarde a casa.” fenómenos que não podem passar-nos ao lado.”Quando não está a trabalhar gosta de ir para a praia, fazerbodyboard, tocar guitarra com amigos, ver séries e talkshows Os próximos cinco ou dez anos serão – no seu entender - decisivos paraamericanos, ir ao número máximo de bons concertos queconsegue. Tem lido pouco, o que o mortifica, porque “as definir todos os outros da sua vida. “Gostava de ter uma vida que dessepessoas que leem são mais inteligentes”. Diz que um dos seuspiores defeitos é deixar tudo para a última hora e demora-se a para ter tempo para mim. Para ir à praia, para estar com amigos, comencontrar uma qualidade digna de registo. Pergunto se éhumildade ou o embaraço típico que quase sempre provoca o família e... comigo. Não me vejo a comprometer-me com filhos nosauto-elogio. Ele não tem a certeza mas acaba por adiantar que“talvez seja uma qualidade conseguir pôr-me facilmente do próximos 5 anos. Tenho imensas possibilidades de usufruir da vida agora. Vamos lá ver como é que isto corre.” DNa

“Podia perfeitamente não ter uma carreira,talvez um ou outro projectoe depois dedicar-me à família.Afinal, é o melhor da vida, não é?” 10 anosEra das mais velhas do grupo. Em 1997 lixo na televisão mas preferia assumi-lo apesar de até já ser mãe.”tinha 10 anos e descrevia-se como uma do que mentir. Também era certo que Joana foi mãe aos 29 e diz que é umatímida com pena de o ser: “Já tentei não perdia as notícias ou o futebol. espécie de ave rara entre os amigos, quedeixar de ficar envergonhada, já tentei “Sempre que posso vou aos estádios. ainda não passaram para essa fase datanto... mas não consigo. Acabo sempre Sou do Benfica mas também gosto de vida. “Sempre quis ser mãe e só não fuipor corar e no primeiro dia de aulas fico ver os jogos do Sporting e não só”. mais cedo porque o tempo vai passandotão nervosa...” Sabia algumas coisas Acabei a entrevista a dizer que ela era – lá está – quase sem darmos por isso.”sobre o mundo e sobre a política, área sonho de qualquer homem mas, como Frequentou o curso de Comunicação na qual o pai trabalhava, e queixava-se, mas com muita diplomacia, sobre oisto anda sempre tudo às avessas, aindaSocial da Católica, nunca com o intuito facto de nem sempre conseguir estarhavia de se juntar a um homem que nãode ser jornalista mas com a perspectiva tanto com os pais como gostaria.ligasse nenhuma à bola. de seguir marketing e publicidade. O Em 2002, parecia uma torre. EraQuando nos reencontramos, revejo a pai tinha sugerido que fosse para altíssima, continuava tão tímida comomenina tímida mas já muitíssimo Economia mas ela gostava muito de antes mas sempre a tentar melhorar. Ostrabalhada. “Foram 31 anos a esforçar-Línguas e foi por isso que não ouviu o pais tinham-se separado e a mãe tinhame por esconder a timidez, acho queconselho paterno. Ainda assim, durante ido viver para os Estados Unidos, ondetenho feito progressos”, graceja.o curso percebeu que, com efeito, lhe ia já tinha entretanto um irmão, o Eric. ElaPergunto-lhe o que sobra da criança quefaltar uma parte de Gestão que seria conheci e ela parece engolir em seco, importante para o que queria fazer naJoanae o irmão Miguel tinham ficado a viver quase incrédula com a voraz passagem vida. “A meio do curso apanhei ascom o pai em Lisboa. Confessava ser do tempo: “Às vezes nem acredito que transformações de Bolonha. De repente,muito consumista. “Se pudesse estava tenho a idade que tenho. Acho que o 3º ano em que eu estava tornou-se osempre a comprar roupa”. Via muito mantenho muita coisa dessa menina, último. E então, quando terminei fiz o DNa

faltar uma parte de Gestão que seria 30 anos consigo disfarçar mas ainda não me éimportante para o que queria fazer na vida. “A natural.”meio do curso apanhei as transformações de No entanto, era a primeira vez que não Quer ter mais filhos. O ideal seriam trêsBolonha. De repente, o 3º ano em que eu estava nem a trabalhar nem a estudar, o que mas pelo marido a soma podia continuar.estava tornou-se o último. E então, quando permitiu que aproveitássemos para passear Já não vê televisão como via, o tele-lixo foiterminei fiz o mestrado em Gestão.” bastante e conhecer muitos sítios novos. É crescendo a ponto de lhe ter ganhoEsteve três anos a trabalhar na mesma uma cidade linda, segura e moderna, mas anticorpos. “Vejo séries e quase nem asempresa, no fim do mestrado, e depois saiu não me via a viver lá para sempre.” notícias vejo. Futebol? Confesso que atépara ir com o namorado – hoje pai da filha - Quando regressou, a mesma empresa em disso estou cansada. É tanto que já nãopara Genebra, na Suíça, onde ele tinha um que estava a trabalhar voltou a contratá-la. aguento.”trabalho. Trabalha em Marketing e gosta mas sofre - Onde se imagina daqui a 20 anos? “Ai, aosDetemo-nos aí. Quero saber se sempre e não é pouco – por ter de ir buscar a filha 50 anos? Já terei os meus filhos crescidos,encontrou uma alma gémea que gostasse de Clara ao final do dia, quando já estão imagino-me com uma casa ainda por aqui,futebol do modo apaixonado como ela gostava ambas cansadas. “Custa-me imenso não e de preferência não num trabalho das 9hou se o destino era mesmo torcido. Ela ri com poder estar mais cedo com ela. É uma às 19h. Não me imagino a fazer outra coisagosto, antevendo a minha reacção ao que está pena. Eles crescem muito rápido.” mas também não a mesma. Obriga a umaprestes a revelar. “O meu marido é o Carlos Falamos sobre o passado e o presente, dedicação muito grande e não gosto daSaleiro, que jogou no Sporting.” Há ali um sobre aquilo que a caracteriza. A paixão ideia de viver uma vida inteira fechadamomento de incredulidade difícil de adolescente por roupa abrandou, agora é num escritório. Não me custaria nada serultrapassar. Boquiaberta, continuo a escutá-la: mais fácil perder a cabeça com coisas para mãe a tempo inteiro. Podia perfeitamente“Começámos a namorar quando eu tinha 16 a Clara do que para si. Joana diz que é não ter uma carreira, talvez um ou outroanos, pouco tempo depois da nossa segunda muito amiga dos seus, que sente que gosta projecto e depois dedicar-me à família.entrevista. Ele jogava nos juniores. Como eu de cuidar, de estar sempre presente quando Afinal, é o melhor da vida, não é?”morava na Quinta do Lambert ia lanchar perto precisam dela. O defeito principal é odo estádio e via-o. Entretanto um amigo dele mesmo de sempre: a timidez. “Hoje já DNaapresentou-nos. Comecei a ir aos jogos todosdele. Eu do Benfica, ele do Sporting. Diga-seque na minha casa sempre foram todos doSporting menos eu, acho que para ser docontra.” Joana e Carlos namoram há 14 anos.Não casaram nem acham importante casar.Carlos Saleiro é, além de ex-jogador defutebol, o primeiro bebé proveta português, oque não conta nada para a história mas nãodeixa de ser uma curiosidade engraçada.Agora, aos 31 anos, já está reformado. “Eleteve bastante azar, teve muitas lesões, foioperado 5 vezes: duas aos joelhos, duas aostendões de aquiles, uma vez à coxa. Comotem o curso de treinador, continua na área e éesse o objectivo.”Joana continua a viver perto do pai e perto doestádio de Alvalade. A filha, claro está, é sóciado Sporting desde que tem uma semana devida. A mãe de Joana vive agora no Havai e oirmão Eric já tem 17 anos. O pai também refeza vida com uma namorada que tinha doisfilhos que acabaram por ser como irmãos daJoana e do Miguel.Viver em Genebra não foi fácil, mas foi umaexperiência da qual não se arrepende. “Nuncatinha vivido fora, nunca sequer fiz Erasmus.

“Já me senti tão bemem tantos sítiosque não consigo imaginaronde estarei daqui a 10 anos,quanto mais 20!Sinto que a minha casa é o mundo.” 7 anosNão era um miúdo como os outros. Em que queria ser quando crescesse. Sabia de volta. Foi o único dos 11 que já me1997 tinha sete anos e só pensava em que odiava Matemática e que estava tinha tentado contactar, há uns anos, parapedras. Tinha um saco cheio de pedras, apaixonado pela Vanessa que tinha 14 saber dos outros, para saber seumas absolutamente vulgares, outras anos e não lhe ligava nenhuma. “Deve repetiríamos o encontro, para saber - até -quartzo, outras fósseis. Queria ser achar que sou um puto parvo.” A mãe de mim. Enterneceu-me compreender,arqueólogo. Saber mais sobre o passado, atribuía as culpas ao nenhum cuidado que então, que a sensibilidade da infância nãosobre outras vidas que não viveu. Não o filho tinha com as aparências: “Parece se tinha perdido. Pergunto-lhe, agora quegostava das brincadeiras dos colegas da um desgraçadinho.” Tiago encolhia os nos reencontramos, o que se mantémescola, achava-as desinteressantes, e ombros: “Há colegas que usam ténis que daquele miúdo diferente, astuto,preferia ocupar o tempo a escavar a terra à custam vinte e tal contos! Para mim isso é interessado por coisas tão específicas procura de minhocas. E pedras, repugnante!” [sim, na altura ainda como pedras: “Mantém-se tudo. Continuo naturalmente. Quando publicámos a suafalávamos em contos. Para quem não a gostar de pedras, de castelos, de ruínas, entrevista, o professor Galopim desaiba fazer a conversão, são mais de 100 de antas, de História. Vou quase todos os Carvalho quis conhecê-lo e mostrou-lhe oeuros] anos à Feira de Minerais no Museu de Museu Nacional de História Natural, todoMarcamos encontro no Clara Clara, umHistória Natural, continuei sempre ele pedras e passado. café-quiosque no Campo de Santa Clara interessado pela cultura. A raiz manteve-se Cinco anos depois – é só fazer as contas –(o nome a não destoar ), que eu nãomas digamos que se desenvolveu uma tinha 12 anos. E (felizmente, diria) jáconhecia. Quando ele chega noto que estáárvore com muitos ramos.” tinha outros interesses. Ainda sonhava serigual, o mesmo desprendimento na Tiago fala muito, tem muito para contar, arqueólogo, nessa segunda vez em queindumentária, o mesmo olhar curioso e atropela os pensamentos, as datas, é inquieto, mas agora com uma barba a profícuo em analepses e prolepses, nota-seTiagoconversámos, mas já revelava algumpragmatismo que lhe colava os pés à terra: acentuar a rebeldia, e tatuagens a que não tem o seu percurso enfiado em“Gostava mas isso não dá dinheiro, em contarem, na pele, parte da sua história. caixinhas temporais estanques. Nota-sePortugal.” Sendo assim, não fazia ideia do Sorrio-lhe, sorri-me que a vida lhe tem oferecido uma torrente DNa

de surpresas, de descobertas, de novidades. 27 anos a Páscoa, o Natal, e acabou por ficar aAdiou os estudos, desistiu, voltou, tornou a viver. Até já foi de férias connosco paradesistir. “Achava que queria uma coisa, Tiago descobriu um mundo de projetos Trás-os-Montes. Recentemente fui comdepois já queria outra... acabei disperso em que podia fazer e... fez. Foi 10 dias para a ela a uma liturgia ortodoxa e foi muitotantos interesses que tinha.” O maior de todos Estónia participar num workshop de interessante.”era talvez a música. “Meti-me na música aos combate ao ódio e ao racismo. Foi à Tiago está quase de malas aviadas para19 anos. Antes disso tinha tirado um curso de Arménia durante 15 dias, num projeto Cracóvia, na Polónia: “Vou emigrar.técnico de som mas o que eu adorava mesmo artístico de improvisação com crianças – Sinto-me lá bem e está na hora daera ter uma banda. Fui com o namorado da “tinha dança, teatro, música”. Fez emancipação da casa dos pais. Vou àminha irmã ter aulas de gaita de foles e formações em Permacultura, Bioconstrução, aventura mas tenciono começar à procuracriámos, com outro elemento, a banda “Urze em Coaching e Desenvolvimento Pessoal, de trabalho em breve, antes de partir.”de Lume” há 9 anos. Um projecto ligado à esta última na Lituânia. Antes de nos despedirmos, pergunto-lhetradição portuguesa que é a minha relação Tiago tem 27 anos e parece já ter vivido onde se imagina dentro de 20 anos. Dámais antiga. Entretanto, o nosso professor muitas vidas dentro da sua vida. “Não uma gargalhada. “Sou horrível a planear.juntou-se a nós e hoje somos 4.” A banda já escolhi o caminho tradicional: estudos- Sempre que planeio sai tudo ao contrário.tocou na rua, mas também em festas, feiras, carreira-filhos-casa. Serei talvez a ovelha Já me senti tão bem em tantos sítios queem Portugal, em Espanha, França. negra da família mas não me imagino a não consigo imaginar onde estarei daqui aA sua vida tem sido de uma riqueza inegável. ser mais feliz. É verdade que não tenho 10 anos, quanto mais 20! Sinto que aDesistiu de ir para a faculdade, poupou umas emprego fixo, que faço uns biscates para minha casa é o mundo. Tenho amigos quemassas e, aos 18 anos, foi ao Egito com a ir ganhando dinheiro e experiências e são também a minha família em paísesirmã e o cunhado. “Voltei de lá com este conhecimento. Já fiz música, teatro, já fui que ainda nem conheço. Não faço ideiapensamento: quero morrer no meu país, mas técnico de som, já embalei comida, do amanhã. Estou muito ocupado a viveraté lá quero viajar muito!” Entretanto, foi apanhei uva, já vendi sabonetes... há tanta o hoje!”conhecendo gente de outros países. Por coisa para fazer, mas somos ainda muito O Tiago sempre foi uma caixinha deexemplo: uma amiga dele, que tinha feito formatados para sermos engenheiros, surpresas. E a sua vida nunca poderia serErasmus na Estónia, fez amizade com uma advogados, psicólogos.” uma vida sensaborona, igual à de tantosturca. Um dia, a rapariga turca veio a Em todos os países por onde já passou, outros. Simplesmente porque ele semprePortugal e Tiago conheceu-a. Ficaram tão fez amigos de diferentes nacionalidades. foi diferente.amigos que ela o convidou para o casamento, “Ainda há pouco tempo esteve cá umana Turquia. Esteve lá duas semanas. Era amiga minha da Bielorrússia. Veio passar DNairremediável: viajar, conhecer outras culturas,outras comidas, sentir outros cheiros, faziatanto sentido como se não pudesse ternascido para outra coisa. Inscreveu-se noServiço de Voluntariado Europeu para ir 10meses viver para a Polónia. “Concorri contraqualquer possibilidade de ser aceite. Nãotinha curso, sabia música, e era tudo. Masduas etapas depois e chamaram-me. Foi umadas aventuras mais incomuns da minha vida,ser voluntário 10 meses num país cuja línguaera totalmente estranha para mim. Eraassistente de uma professora de inglês. Vivianuma casa partilhada e fiz imensos teatros edei workshops nas montanhas a miúdos debairros complicados... Foi incrível. Nãoqueria voltar. Mas tinha a banda, não queriadeixar o companheiro da minha irmã namão... voltei.”Uma vez regressado, decidiu ser guiaturístico. Durante um ano, foi o que fez. Maseste seria sempre um regresso intercalado.

“Vamos mudando, o mundo vai mudando,surgem áreas novas, interesses novos,vidas novas dentro da vida.Espero saber ir-me adaptandoe aprendendo sempre.Vemo-nos daqui a 20 anos?” 6 anosQuando nos conhecemos, há 20 anos, ela estatura. Se já era grande para a idade aos Antes de prosseguirmos na descrição dotinha 6. Era alta, muito alta para a idade. E 6 anos, agora, aos 26 é um mulherão. Tem percurso académico, é importante recuaru m n a d i n h a m a n d o n a , t a m b é m . um sorriso bonito e irradia simpatia e não um pouco para contar aquela que, paraApresentou-me aos seus bonecos, com consigo deixar de sentir aquela comoção Mariana, foi das melhores experiências daalguma solenidade, e falou com ternura do que sempre me invade quando reencontro sua vida, porque – como é sabido (masirmão mais novo. Tinha acabado de passar um dos 11 magníficos. nem sempre valorizado) – as experiênciaspara o 1º ano e mal podia esperar por Mariana prosseguiu com excelência os mais significativas são muitas vezes as queaprender a ler e a escrever para saber as estudos. Apesar de gostar de ler e das se vivem para lá da trajectória estudantil.histórias todas dos livros e poder escrever letras, foi pelas Ciências que mais se “Tive a grande sorte de, aos 12 anos, entrarcartas aos amigos. interessou. Como tinha muito boas notas, para o CISV – Children InternationalCinco anos mais tarde, Mariana era uma toda a gente imaginava que podia tornar-se Summer Villages. É uma organização queleitora compulsiva. Nos dois dias antes do médica. Já se sabe, o costume. Afinal, dá foi criada por uma psicóloga americana nosso encontro tinha lido a “Viagem a um Mundo Fantástico”, de Jostein Gaarder, esempre jeito ter um médico na família. Ela,que acreditava que a paz no mundo podia recomendava. Jogava computador, andavaporém, achou que a Medicina, mais do queser alcançada pelas crianças. Achava ela de bicicleta e fazia ginástica desportiva,uma vocação, era uma missão. “Serque se as crianças fossem habituadas desde que era a sua actividade preferida. Tinhamédico é mais do que uma profissão. Ésempre a conviver com outras crianças, de muito boas notas (era menina do quadro deuma vida inteira. Tem que haver umaoutras culturas, a paz podia ser alcançada, honra) e imaginava que podia vir a serdedicação 24 horas por dia, 7 dias porporque havia o abolir de estereótipos e actriz de cinema. semana. Achei que era preciso estar muito preconceitos desde tenra idade.” mais certa de que era isso que queria do Mariana participou em 7 campos.MarianaEncontramo-nos num café perto da casaque eu estava.” E então seguiu Ciências Começou aos 12 e o último fez com 20onde, 20 anos antes, a tinha conhecido. Farmacêuticas, na Faculdade de Farmácia anos: “Brasil, Holanda, Inglaterra,Quando ela chega, reconheço-a pela da Universidade de Lisboa. Luxemburgo, Portugal, Itália, Dinamarca. DNa

Conheci pessoas de todo o mundo. No último dia chorávamos baba 26 anose ranho porque tínhamos criado laços fortes uns com os outros. Amaior parte deles nunca mais vi, mas no último campo que fiz Durante a conversa, percebe-se à légua que Mariana tem fibra eenquanto líder de uma delegação ganhei duas amigas para a vida: garra e sabe o que quer e o que não quer. Sabe, por exemplo, queuma norueguesa e uma turca, com quem já estive na Noruega, na não se importa de ir viver para fora se surgir uma boa oportunidade,Turquia e cá.” mas também tem a certeza de que, a ser, será sempre uma ida comPara Mariana, esta iniciativa é de facto importante, sobretudo numa bilhete de regresso: “A ir vou com um ‘v’ de volta. Não queria teraltura em que o mundo parece atravessar uma crise de valores e um filhos muito tarde e preferia não os ter fora porque não os queriaacentuado incómodo com a diferença: “Acho que precisávamos privar do convívio com os primos, tios e avós.”todos mais disto. Acredito que se todos compreendêssemos a É-lhe difícil imaginar a sua vida dentro de 20 anos. Espera já terdiferença e gostássemos dela e a valorizássemos tudo era melhor.” casado, ter a sua família criada, espera ter uma boa vida, continuarVoltando ao percurso académico (e compreendendo agora a entusiasmada profissionalmente, em princípio na área da oncologiaimportância que estas experiências tiveram na sua vida), Mariana mas quem sabe? “Nós vamos mudando, o mundo vai mudando,seguiu então para Ciências Farmacêuticas mas o objectivo nunca foi surgem áreas novas, interesses novos, vidas novas dentro da vida.ficar numa farmácia. Para Mariana esse é um trabalho Espero saber ir-me adaptando e aprendendo sempre. Vemo-nossubvalorizado, porque as pessoas tendem a tratar os funcionários daqui a 20 anos?”como lojistas, esquecendo que houve 5 anos de estudo para se Por mim está combinado.chegar ali. Ainda assim, teve de fazer um estágio numa farmácia,que durou um pouco mais que 6 meses, e deu para confirmar as DNasuas suspeitas: “É precisa uma grande capacidade para aturarpessoas que eu manifestamente não tenho”.Ainda no 4º ano do curso (2013), começou a trabalhar na Uriage(laboratórios dermatológicos). Quando teve de fazer o tal estágio nafarmácia, trabalhava das 9h às 16h na Uriage e ficava na farmáciadas 16h e picos às 21h. Em 2014 terminou o estágio e continuou naempresa onde estava. Até ao ano passado. Depois de concluir umapós-graduação em Marketing para a Indústria Farmacêutica,Mariana trocou o certo pelo incerto. Deixou para trás 4 anos detrabalho na Uriage por um estágio não remunerado num laboratóriofarmacêutico ligado à Oncologia: “Estava a precisar de mudar.Acho que ao fim de algum tempo num mesmo sítio pode começar asentir-se alguma inércia que é preciso combater. A minha geração édiferente das anteriores porque não faz tantos planos a longo prazo.Não damos as coisas por garantidas e isso permite que nos atiremosmais facilmente para fora de pé. Claro que este passo teve o seu quêde risco, porque troquei um contrato, um emprego em que ganhavabem e tinha carro, por um estágio não remunerado! Não sabia se iaficar, se ia correr bem... mas se não o fizer aos 26 anos vou fazê-loquando?”Correu bem. Um ano depois da nossa conversa, Mariana estáefectiva no laboratório. E explica que trabalhar em marketing numlaboratório não é um desvio assim tão grande à Ciência, em queapostou durante cinco anos: “Este é um marketing muito científico.Trabalho no âmbito da Oncologia, e é preciso muito conhecimentocientífico, que é a minha base. Por isso, há uma conciliação perfeitaentre Gestão e Ciência.”Na altura em que nos encontrámos, há um ano, Mariana ainda viviacom os pais. Namorava com o Francisco há 6 anos mas ainda nãotinham dado o passo. Mas em Fevereiro deste ano começaram aviver juntos numa casa perto dos pais dela, “para ficarmos maisperto de uma boa sopa”, explicou com um sorriso que esclarece(como se fosse preciso) que falamos de muito mais do que de sopa.

“A morte da minha mãemudou muita coisa.Fez-me crescer da pior maneira. 3 anosNa altura não chorei Era o mais bebé do grupo. Em 1997 tinha de palavra novinha em folha, acabada de apenas três anos. Não deu para saber muito estrear no seu léxico. sobre ele porque aos três anos não se viveu Uma das suas preocupações, aos 8 anos, era ainda o suficiente e, por outro lado, porque a de ajudar a mãe, os avós e os tios, a falta de domínio da linguagem não moçambicanos, a arranjarem os papéis da permite transmitir toda a riqueza que a vida nacionalidade portuguesa, prova de que os infantil sempre possui, ainda que seja curta. assuntos da família não lhe passavam ao Fiquei a saber que adorava o Dragon Ball, lado. Pelo contrário, faziam-no sofrer. na berra na altura, e ficava colado à Estava em formação um menino sensível. publicidade com a mesma atenção que Encontramo-nos no Lisbon São Bento dedicava aos bonecos. Comia caril de Hotel, onde trabalha como recepcionista e, amendoim com a sofreguidão com que as mais recentemente, como auditor da noite crianças devoram o seu prato favorito. Não (“night auditor”, como dizem os hoteleiros). passava sem a sua bicicleta, a que chamava A vida, desde que nos vimos pela última “psicléta” e tinha um certo fascínio por vez, não foi propriamente um mar de rosas. pombos, possivelmente por terem essa A mãe adoeceu gravemente e, quando especial capacidade de conseguirem voar, Ruben tinha 12 anos, acabou por morrer. diante dos seus olhos deslumbrados. “Foi complicado para mim. Começaram os Cinco anos depois, revelava-se um problemas na escola, faltava muito, tornei- rapazinho tímido. Gostava mais de Língua me rebelde. Acho que era a falta que ela meRubeneagora,tantosanosdepois, Portuguesa do que de Matemática porque fazia. E faz. [silêncio]. Nessa altura nãoainda ando a chorar” achava que aprender palavras novas era chorava. Não sentia nada. Foi a forma que mágico. “Solúvel” foi o exemplo que deu, arranjei de me defender. A morte da minha DNa

23 anosmãe mudou muita coisa. Fez-me crescer da pior maneira. Na altura envolveu.” Ruben contactou os irmãos e agora mantêm um contactonão chorei e agora, tantos anos depois, ainda ando a chorar. Mas os próximo. “Falamos quase todos os dias.”meus avós ajudaram-me muito. Fui para a Escola de Comércio de Quando falámos, Ruben estava a viver sozinho havia um ano: “EstáLisboa, para a área de vendas, e as coisas começaram a endireitar- a ser fantástico. Já não tenho a comida da avó, mas ela liga sempre ase. Mas aos 17 ou 18 anos saí de casa. Achava que os meus avós dizer para ir lá buscar ou para ir lá jantar.” Quando lhe pergunteieram velhos para mim, que precisava de outra vida.” sobre o amor, fez aquele ar embaraçado de quem não quer muito irFoi viver com a tia, Sandra, e arranjou dois trabalhos ao mesmo por aí. “Não é uma prioridade neste momento. Não penso em casartempo: um na EDP, a fazer leituras e a trabalhar no backoffice, ou em ter filhos, para já. Agora quero viajar, quero ver se faço umaoutro no Burger King. “Depois voltei a viver com os meus avós e viagem todos os meses, ao fim-de-semana. “surgiu a proposta de trabalhar a tempo inteiro na EDP. Aceitei e Mal sabia ele que, passado pouco tempo, havia de ter uma surpresafiquei lá dois anos.” da vida, sempre pronta a trocar-nos as certezas. Apaixonou-se, elaAcalmou. Cresceu. Voltou a estudar. Hotelaria, no Citeforma. E engravidou, e já é pai de uma menina, a Letícia, que nasceu emconheceu o pai. Setembro.Pausa para situar o pai nesta história. A mãe, moçambicana, tinha Aos 23 anos, diz que tem esperança, muita esperança num mundoemigrado para a Venezuela, onde conheceu o pai de Ruben. melhor, numa vida melhor, sobretudo agora que teve uma filha. QuerEngravidou e entretanto veio para Portugal. Enviava cartas com continuar os estudos. Ir para a universidade, fazer o curso de Gestãofotos do filho de ambos para a Venezuela, recebia respostas Hoteleira ou então seguir Marketing mas ligado à hotelaria, suaapaixonadas, até que um dia ele não respondeu mais. Perdeu-lhe o paixão. E ter a sua empresa, para a qual já anda a amealhar. Quemrasto e nunca mais quis saber. Ruben também não. Mas, quando sabe se daqui a 20 anos não teremos aqui um empresário hoteleiro defez 18 anos, o pai entrou em contacto com ele. “Quando escreveu o sucesso?nome da minha mãe, fiquei emocionado. Quis saber por que tinhadeixado de responder às cartas dela mas o que recebi foramrespostas vagas. Conversa puxa conversa e às tantas percebi quetenho 10 irmãos. Até ali tinha sido filho único. E de repente ganhei10 irmãos, filhos de várias mulheres com quem o meu pai se DNa

“As histórias das princesasnem sempre têm um final feliz.Sim, alguma candura perde-seno caminho.Mas isso é crescer,certo?” 4 anosParecia uma bonequinha, da primeira vez impaciência para com a irmã e falou-me entrava por aquela porta, vestida de cor-que a conheci. Tinha 4 anos e era o da paixão pela Língua Portuguesa e de de-rosa, com o mesmo jeito de menina,exemplo acabado da feminilidade. Voz como gostava de se aninhar no pai, que mas com uma firmeza e segurançafininha, vestido cor-de-rosa, delicada, tinha prometido conseguir pegar-lhe ao evidentes ao primeiro olhar, e de certomaternal com a irmã Marta que tinha colo até ela ter 12 anos. Havia uma modo contrastantes com a fragilidade daentão 2 anos, a ponto de se deixar bater promessa de rapariga no lugar da menina que não gostava sequer de sabersem dar o troco por compreender que, bonequinha, o que deixava o jogo todo que havia bruxas nas histórias.afinal, ela era “só um bebé”. em aberto relativamente ao futuro. E não Começo justamente por aí. Quero saber oQuando crescesse, a Madalena queria ser há melhor do que isso. que sobra dessa Madalena que conheci. Éprincesa ou bailarina, naturalmente. Se Passaram 15 anos desde a última vez que a vez dela sorrir. Começa por dizer quealgum desses planos falhasse concedia vir nos vimos. Vinte anos desde a primeira sobra muito mas, ao longo da conversa,a ser escritora de contos para crianças. entrevista. Ela foi a primeira dos onze que concluímos ambas que é capaz de sobrarNão gostava de desenhos animados com contactei, por um lado porque lhe pouco. Há ali uma certa dureza no olhar ebruxas porque a assustavam, e tapava os conhecia o apelido (o que tornou a busca no discurso que me surpreende, apesar de ouvidos para não lhes escutar as gargalhadas malévolas, ao mesmo tempo que escondia a cara na almofada mais próxima. Eu, que não era casada nem tinha filhos, tive vontade de a levar para casa. Cinco anos depois, quando nosMadalenareencontrámos, Madalena mantinha a mais fácil), mas também porque foi a nada ser mais natural na vida do que se nossa capa em ambas as edições do DNA mudar diametralmente em vinte anos. (e agora também, porque há coisas, nesta Ainda assim, insisto. Quero compreender perpétua mutação, que devem permanecer o que produziu tamanha inversão. imutáveis). Chegamos lá num instante. Quando tinha Combinámos encontro no Pão de Canela, 14 anos, os pais separaram-se. Um na Praça das Flores, e eu estava nervosa. divórcio difícil. “As histórias das Ela entrou e eu sorri. Por fora e por princesas nem sempre têm um final feliz.doçura mas já revelava alguma dentro. Era a “minha” princesa que O primeiro ano foi horrível. Tive de DNa

Tive de crescer muito depressa, sentia que 24 anos e queremos voltar para a nossa zona detinha de tomar conta da minha mãe, e depois conforto, a outra metade do tempo está-senão sabia se era suposto tomar as dores de que andavam na universidade, onde não mais feliz do que nunca. A minha vidauma das partes, se era suposto encontrar existia electricidade havia meses! No passou a dividir-se em pré-EUA e pós-quem tinha razão, quem tinha culpa. Foi Inverno, os estudantes faziam os exames EUA. Ainda ontem estive a falar com apreciso tempo para perceber que ninguém de luvas e lanterna! As histórias que me minha ‘mãe’ americana e tenho contactotem toda a razão, ninguém tem toda a culpa, impressionaram mais foram as de pessoas regular com os meus ‘irmãos’ todos. É umaas coisas simplesmente não correm bem. E que, antes da guerra na Síria, tinham vidas relação para a vida e muda-nos mesmo.”não faz mal. Há sempre um plano B. A vida normais. Vidas que podiam ser as nossas. Madalena confessa que pensar no futurocontinua, só não nos moldes em que E fugiram daquele horror e ali estavam, mexe com ela. Pensar a curto prazo éachávamos que ia continuar. E isso até foi noutro horror, em campos de refugiados.” inevitável, mas a longo prazo chega a serbom porque permitiu que eu deixasse de estar Outra das viagens que ajudou na assustador. Tem dificuldade em imaginar-tão presa a histórias da carochinha. Sim, construção da mulher que hoje é foi, em se com uma vida estável, sossegada,alguma candura perde-se no caminho. Mas bom rigor, mais do que uma viagem. Foi sedentária, até. “Gosto de me agarrar àisso é crescer, certo?” um ano de vida vivido nos Estados Unidos, ideia de que ainda vou viver em muitosCertíssimo. Madalena cresceu bem, mesmo em Dallas, Texas. “Uns primos tinham sítios. Na Austrália, por exemplo. Tenhocom as marcas que crescer sempre nos adorado fazer este intercâmbio, com a esses sonhos todos e espero que a vidadeixam a todos. Diz que tem cada vez mais a Multiway, e candidatei-me. Fiz lá o 12º ainda me surpreenda muito. Mas depois“visão céptica” da vida, como o pai, em vez ano. Aprendi tanto! Isto de entrar numa tenho receio de um dia me arrepender deda “visão romântica”, que é típica da mãe. família que não é a nossa, aprender não ter acautelado uma vida estável. UmaDesde criança que preferia as letras aos rapidamente as suas rotinas, o seu vida de gente crescida. Não sei, talvez nãonúmeros e acabou a sonhar ser jornalista. funcionamento, sendo que a cultura é confie o suficiente no meu sentido deAchou que seria boa ideia inscrever-se em totalmente distinta... acho que depois de o responsabilidade.”Direito mas o curso revelou-se tão penoso conseguirmos fazer somos capazes de Talvez. Ou talvez tenha aprendido que nãocomo uma tortura a que recusou submeter-se. qualquer coisa.” vale a pena ter o guião da históriaMudou para Comunicação Social, que Madalena foi viver com uma família de demasiado pensado, porque a vida é muitoterminou em Janeiro do ano passado, e quer pais separados, com 6 miúdos em casa. mais admirável que isso. A princesafazer jornalismo, de preferência na área da “Foi o ano em que me tornei mais cresceu e saiu do seu conto cor-de-rosa. EPolítica. Neste momento está a fazer um confortável com quem eu sou. Há ali que bem que o tem feito.estágio de seis meses na Vice Iberia Media momentos de grande introspecção. MetadeGroup, em Barcelona. Esse é um dos do tempo chora-se porque é tudo diferente DNafascínios desta nova geração, o sentir que omundo é a sua casa.Agora, aqui em Barcelona, estou a viversozinha, o que tem tanto de bom como desolitário, mas está a saber-me mesmo bem.Se fosse mais ágil na cozinha seria melhor,mas a parte da liberdade e da responsabilidadede gerir a minha vida sozinha tem sido umaóptima parte desta aventura.”Voltando atrás, ao que fez dela a pessoa que éhoje, creio que se poderá dizer que muitomais do que o curso primeiro ou o cursosegundo, o que lhe deu mesmo mundo e amoldou como se molda um pedaço deplasticina foram as viagens que teve a sortede fazer. Entre todas, talvez a mais marcantetenha sido a viagem de voluntariado à Grécia,com a associação Help Refugees, onde ficoudurante três semanas, à custa de váriasmesadas poupadas: “Foi a melhorexperiência da minha vida. Conheci pessoas

“Uma das coisas que aprendi,com isto de estudar, parar, voltar,foi que nunca é uma perda de tempo. 5 anos Em 1997, quando nos conhecemos, o Nuno Cinco anos mais tarde, quando nos tinha 5 anos. Era muito tímido, fechado, reencontrámos, o Nuno ali estava, de pedra parecia levemente enfadado por ter de e cal naquela que parecia ser uma vocaçãoAprendi outras coisas, conheci responder a tantas perguntas. Aos três anos inscrita no sangue: queria ser pintor ou dizia que queria ser “pintador” e aos cinco arquiteto. Tinha resolvido parte da timidez, mantinha a profissão mas já com o nome continuava a amar o Pico e a ser amigo do pronunciado corretamente. A avó garantia Manuel.Nunooutrasrealidades,outraspessoas, que havia de ser arquiteto, tudo porque Encontramo-nos num café no Campo ninguém achava usual que uma criança se Pequeno, edifício que fazia parte do seu encantasse como ele por edifícios, diante imaginário infantil por lhe achar dos quais conseguia ficar longos minutos, semelhanças com o palácio do Aladino (lá em evidente fascínio. Nessa altura, o que está, a observação arquitectónica sempre mais gostava na vida, para lá de ficar a presente). admirar construções e pinturas, era das Faço-lhe a pergunta mais óbvia: se sempre férias que passava na ilha do Pico, Açores, seguiu Arquitectura. Ele ri-se. Não. de onde era natural a avó (e onde se Decidiu-se por Engenharia. Entrou em juntavam tios e primos no verão). Electrotecnia primeiro, mudou-se para Civil Também tinha um certo enlevo por mapas, a seguir. Mas não era um sonho. E acabou a sobretudo desde que o tio Carlos lhe tinha não ser um prazer. Como o mundo oferecido um Globo Terrestre que gostava continuou sempre a interessar-lhe, ao fim de de rodopiar, ao mesmo tempo que três anos largou o curso do Instituto imaginava os países. E tinha um grande Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL) eganhei outra bagagem” amigo, o Manuel Magalhães, de quem mudou-se para a Nova, para Ciência Política garantia não se separar jamais. e Relações Internacionais. “Primeiro estive DNa

25 anos6 meses a trabalhar com o meu pai, depois estudei outros 6 Nuno ainda vive em casa dos pais, com o irmão, a avó e um cão.meses para fazer os exames de admissão ao novo curso. Nunca Adoraria emancipar-se mas as rendas em Lisboa são de bradar aosestudei tanto na vida mas achei que era uma área que fazia mais céus. Também gostava de viajar mas custa-lhe pedir dinheiro aoso meu género.” Esteve lá dois anos, interrompeu. “Estava pais. “Gostava de ir à América Latina, a Berlim, adorava ir ao Médiosaturado, queria conhecer pessoas, fazer outras coisas.” Oriente.”A família inquietou-se. Três anos numa área, um salto para outra Talvez o interesse pela política e pelas relações internacionais tenhae uma nova interrupção podia significar demasiada inconstância nascido no 11 de Setembro. Nuno tinha então 9 anos e lembra-se dee uma vida desperdiçada em coisa nenhuma. Mas Nuno queria ver o “mesmo filme” em todos os canais. Tinha pouca capacidadeganhar dinheiro, ter contacto com o mundo real, não apenas o para entender mas espoletou-se ali um desejo de compreensão domicrocosmos universitário. Trabalhou um ano no By The Wine, mundo: “Fui percebendo que não é só um jogo de bons e de maus.no Chiado e garante que foi uma experiência interessante: Tendemos a fazer esta distinção mas nada é só preto, nada é só“Como sou introvertido foi bom para ganhar mais à-vontade. E branco. Passei a interessar-me muito pelas questões do terrorismo,para ganhar ritmo, que é bem diferente das aulas da faculdade. pelas questões que levam seres humanos a agredir outros seresAlém disso, o meu grupo atual de amigos surge daí, por isso foi humanos. Acho que gostaria de fazer disso vida. Mas, para sersem dúvida uma decisão acertada.” sincero, ainda não sei.”Os pais repetiam a ladainha, com a qual ele não deixava de Sorri um sorriso nostálgico quando lhe pergunto pelo amigo Manuelconcordar: “Tens de acabar o curso”. Ainda assim, Nuno sentia Magalhães: “Costumavam dizer que se a nossa amizade acabasseque ainda não era chegado o momento. Foi trabalhar com o pai, algo no mundo tinha de estar errado. Não é que tenha acabado,na exploração de um restaurante, depois saiu. Hoje continua a simplesmente seguimos caminhos diferentes. Acho que é normal.trabalhar na restauração e a concluir o curso ao mesmo tempo. Não é o mundo que está errado. São as pessoas que crescem em“Continuo sem fazer ideia do que será o meu futuro. Nunca fiz direções distintas. A vida é mesmo assim.”Erasmus nem pensei nisso porque não senti falta de sair. Acho No dia da sessão fotográfica, Nuno apareceu com um ar vintage,que acaba por ser festa a mais e eu nunca fui muito de borgas. cabelos despenteados, bigode, camisa com um estampado às flores.Uma das coisas que aprendi, com isto de estudar, parar, voltar, Tem uma despreocupação natural que o leva a viver cada dia comofoi que nunca é uma perda de tempo. Aprendi outras coisas, se não houvesse amanhã. Uma espécie de “logo se vê” queconheci outras realidades, outras pessoas, ganhei outra bagagem. desconcerta e, ao mesmo tempo, quase tranquiliza. Na verdade, paraMas, claro, depois também sinto que tenho de construir qualquer quê grandes planos, para quê grandes ansiedades? O hoje existe e écoisa. E para isso tenho de escolher, tenho de seguir um real. Amanhã? Logo se vê.caminho.” DNa

“Não tenho televisão,não tenho redes sociais,não tenho carro,não tenho carta sequer,ando de transportes públicosporque é o que me faz sentido.” 10 anosFoi das mais difíceis de encontrar, tal não tem piada. Eles só pensam no dinheiro casa arrendada para onde se tinha mudadocomo expliquei no início deste trabalho. e podem comprar tudo o que querem. havia poucos meses. Uma casa lindíssima,Chama-se Maria Martins. Ora, se Marias Assim, qual é o interesse?” antiga, com uma vista de cortar ahá muitas, Martins também não há por aí Cinco anos depois, em 2002, Maria estava respiração. Porém, sem cascatas.poucos. E se juntarmos o nome Maria ao em plena adolescência. Tinha feito o Maria tornou-se uma mulher interessante,apelido Martins continuam a existir aos segundo furo na orelha sem sequer com uma personalidade forte, muito dona pontapés. Acresce que ela não temconsultar a mãe, confessava gostar dedo seu nariz (como, de resto, já era de facebook ou outras redes sociais e, porroupas mas sublinhava que não eraprever pelas conversas anteriores). Não se isso, mesmo que fosse uma busca difícilnenhuma fútil, e queria ser arquitecta: “Aseguiu Psicologia, como imaginava aos 10 talvez acabasse por ser possível... se ela láarte é a minha paixão. Gosto muito deanos, mas manteve o sonho dos 15 e estivesse. Foi então preciso ir ao detalhedesenhar.” Quanto a ser rica, bom, aformou-se em Arquitectura. De resto, dos textos anteriores para a conseguiropinião tinha mudado um pouco. Emquando chegou a altura de ir para a encontrar. E nesse dia, foi uma festa.calhando dava jeito, até porque gostava deFaculdade só pôs mesmo uma opção, Em 1997, Maria tinha 10 anos e queria ser“uma casa no campo com cavalos eporque ser arquitecta era a única psicóloga ou psiquiatra porque “queriacascatas”, e também gostava de “poderpossibilidade que aventava. Durante o que as crianças malucas deixassem de oviajar, ter mais roupa, muita roupa!” Ecurso, fez Erasmus em Buenos Aires. “Um ser”. Ou isso ou ser dona de um banco,terminámos a nossa conversa com a Mariaano do outro lado do mundo. Foi uma não propriamente para ser rica mas paraa fazer uma promessa: “Se enriquecercoisa que pus na cabeça. Queria estar fora saber como funcionavam os bancos portelefono a dar a minha nova morada. Podee fazer coisas que, de outro modo, ser que a próxima entrevista seja no dificilmente teria oportunidade de fazer.Mariadentro. Ser rica, de resto, não estava nosseus planos. Poder comprar tudo, sem campo, junto às cascatas.” Além do tempo de estudo, apanhei umasqualquer dificuldade, era coisa que lhe Pois. Não aconteceu. A entrevista deu-se férias grandes de lá e viajei pela Américafazia muita confusão: “A vida dos ricos no coração de Lisboa, junto à Sé, numa Latina durante 3 meses. Foi inesquecível. DNa

E foi lá que conheci o meu namorado, o António, que é português, 30 anosmas que também lá estava a fazer Erasmus na mesmo altura, na áreade Economia.” antes de ter filhos porque depois já não dá. Vai dar para fazer tudoMal terminou o curso, Maria foi viver para Berlim. Tinha a na mesma. Temos ambos muita tranquilidade em relação a isso.”facilidade do alemão (tinha frequentado a Escola Alemã) e queria ter Falamos do mundo em que estamos, tão diferente do mundo emuma experiência internacional. Além disso, a probabilidade de que nos conhecemos, há 20 anos. “Preocupa-me muito a questãoarranjar emprego era maior fora do que dentro. Esteve lá 4 anos. O dos refugiados, e uma série de movimentos políticos que estão aprimeiro ano e meio sozinha, depois o António foi ter com ela. ocorrer que vão deixar cicatrizes muito profundas.”Viver em Berlim foi muito bom. “Havia uma qualidade de vida Maria não faz ideia do que vai ser a sua vida daqui a 20 anos, seincrível. É uma cidade sem carros, com uma diversidade de pessoas por acaso nos voltarmos a encontrar: “Penso que aos 50 vai sabere de formas de pensar totalmente diferentes... A oferta cultural era bem ter mais sol do que chuva e, assim, talvez esteja por cá deenorme, os bilhetes baratíssimos. Lá fazia ballet numa escola novo. Poderei estar na cidade mas também no campo. Dispenso aspública, que tinha ballet e outras modalidades para crianças e para cascatas e os cavalos, que era o tal sonho de infância. Mas umaadultos, sem ser preciso pagar. A minha casa cá custa o dobro do que vida no campo, tranquila, não está nada posta de parte. Aliás, nadapagava lá. E a vida cá é muito mais cara.” Fica no ar a questão: o está. Gosto desta ideia de estar tudo em aberto. É essa a graça daque é que a levou a voltar? “Por um lado acho que estava a ficar um vida.”pouco cansada de viver fora, apetecia-me um pouco da sensação decasa. Por outro lado, queria trabalhar aqui porque sinto que a cidade DNaestá a desenvolver-se muito e, em alguns casos, da pior maneira.Apetecia-me debruçar sobre essa problemática. Talvez tenha sidouma espécie de chamamento.”Para Maria, existe ainda a vontade de fazer a diferença. Retiremos oadvérbio. Não tem que ser temporário. De resto, veja-se o modocomo vive, de forma convictamente diferente da maioria: “Nãotenho televisão, não tenho redes sociais, não tenho carro, não tenhocarta sequer, ando de transportes públicos porque é o que me fazsentido. Vim viver para o centro da cidade, gosto da vida de bairro,apesar da enxurrada de turistas, sinto que precisamos repensar a vidacomo um todo e a vida nas cidades. Sinto que me tornei maistempestuosa do que era. Então no que concerne a questões que seprendem com as cidades e com o modo como vivemos fico mesmofora de mim. Há amigos que não me reconhecem. Mas a verdade éque fizemos um curso, pensámos de certa forma, e o que vejo éamigos a aceitarem qualquer trabalho, qualquer coisa, muitos até aabandonarem a Arquitectura, que era a sua paixão. Acho quedevíamos ter um papel mais activo, mais consciente, maisinteractivo.”A casa de Maria tem livros por todo o lado e é bom conversar comela e perder a conta às horas que passam. Percebe-se que está alialguém que se recusa a simplesmente viver, mas que pensa sobre avida. Mal chegou a Portugal, arranjou logo emprego num atelier, aocontrário do que a mãe imaginou que pudesse acontecer. Sim,porque por muito que a quisesse por cá, sentiu aquele calafrio(muito materno) por a imaginar a trocar o certo – ainda que longe –pelo incerto – ainda que perto. Maria não sabe o que o futuro lhereserva (alguém sabe?). Sabe que tem um contrato de arrendamentopor três anos e que, depois disso, pode partir para outra partequalquer do mundo. “Não sinto que voltei e que estou a construir cáa minha vida. Não. Sinto que estou cá agora. Mas nesta idade é giroestar fora. É bom estar aberto a fazer uma série de coisas. E euestou. Nós estamos. É verdade que sinto o chamado relógiobiológico aos berros, mas não acho nada que tenha de fazer tudo

“Acabar o cursofoi como um tributo ao meu pai.Ele queria muito e eu sempre a adiar,com a síndrome do Peter Pan.Tenho a certeza de que ficou contente,onde quer que esteja.” 10 anosQuando nos conhecemos em 1997 o Luís deixadas em telefones fixos com gravador. essas coisas.”foi logo avisando que aceitava a entrevista Quando finalmente conseguimos falar, o Em 2017 o Luís voltou a ser muito difícil mas que ficasse claro que ele já não eraLuís contou-me sobre a vida incrível emde encontrar. E, mesmo depois de nenhuma criança. “A partir dos 10 anosVila Chã de Ourique. Não se imaginava deencontrado, fez-se rogado. Não respondia somos adultos”. Tudo porque era precisotodo a regressar a Lisboa. “Nem pensar!às mensagens, quer por telefone, quer pelo chegar a casa e estudar uma série deNão trocava isto por nada!” facebook, e foi preciso enviar uma disciplinas e não dava para estar sempre aO Luís não era lá muito amigo da escola,derradeira missiva mais incisiva para que brincar. não gostava de estudar e a sua parte finalmente respondesse. Foi simpatiquíssimo, Ainda assim, o Luís não tinha medo dopreferida do dia da semana era quandodesfez-se em pedidos de desculpas, mundo dos adultos. Ia estudar para serescutava o toque para a saída. Mas já tinhamostrou-se entusiasmado em fazer parte arquitecto mas, ao mesmo tempo, tambémprometido a si mesmo que a partir do 10ºdo grupo original, e foi impossível gostaria de ser agricultor como o pai.ano ia ser melhor. Queria vir a trabalharcontinuar arreliada com ele. Nesse ano, o Luís tinha deixado Lisboana quinta, com o pai. Tinha começado aComeçamos por recordar a sua promessa para ir viver com os pais na quinta dojogar rugby havia 5 anos e adorava.de se emendar nos estudos quando Cartaxo. Ainda estava na dúvida sobre seAos 15, o Luís dizia que ia casar aos 25chegasse ao 10º ano. “Não aconteceu. era um evento feliz ou nem por isso,anos, que era a idade ideal, e que a mulherChumbei nesse ano. Depois vim para porque se por um lado tinha deixado umatinha de ser bonita, meiga e saber fazer asLisboa porque os pais acharam que não série de amigos na cidade, por outrolides da casa. Não devo ter conseguidoestava a funcionar, lá em Santarém. “viver no campo é sempre mais saudável”.disfarçar um certo esgar de incómodo eEstava sempre com os amigos, não havia ele, esperto, topou-o: “Já percebi que deve maneira de atinar. Vim viver com a minhaLuísEm 2002 não foi fácil conseguir um diapara conversar com o Luís. Aos 15 anos as achar machista esta minha visão da irmã para o Restelo, para a casa ondesolicitações eram mais que muitas e foram mulher ideal mas acho uma coisa tão vivíamos todos antes de irmos para aprecisos telefonemas, cartas e gravações bonita uma mulher preocupar-se com quinta. O meu sobrinho tinha nascido há DNa

pouco tempo e a minha irmã estava grávida da 30 anos dado mais apoio ao meu cunhado nessesminha sobrinha. O meu cunhado chegavatarde e eu dava apoio.” Pergunto pela quinta. O que foi feito da anos. Nem sequer ia lá.”Depois, aos 18, foi viver sozinho. Uma quinta no Cartaxo, com a morte do pai?aventura com pouco proveito para os estudos, “O meu cunhado assumiu as rédeas da Aos 30 anos, Luís ainda não tinha casado,sempre a ficarem para último na sua lista de quinta com muita coragem. Tem o cursoprioridades. de Gestão mas vinhas e agricultura não contrariando a sua ideia juvenil de que darQuis ir para Gestão mas havia a Matemática a eram nada com ele. Dou-lhe muito valor.atrapalhar. Então seguiu Gestão Hoteleira no Saiu da sua zona de conforto para assumir o nó aos 25 seria o mais acertado. QuandoInstituto Politécnico Internacional. Mas o um negócio familiar que, se não fosse ele,instituto fechou enquanto ele lá estava provavelmente morreria. Abdicou de tudo nos reencontrámos tinha uma namorada há(parecia que quando não era ele que não para ajudar a família.”queria nada com os estudos eram os estudos Hoje, Luís está mais embrenhado na apenas alguns meses (que mantém): “Aque não queriam nada com ele). Mudou-se de quinta. Quer vender o vinho e temarmas e bagagens para o Instituto Superior de algumas ideias que envolvem a produção Joana tem-me feito muito bem. EstouLínguas e Administração (ISLA) e ainda havia de eventos: “A Quinta do Falcão é linda ede mudar de novo, dessa vez para o Instituto fica ao lado de Lisboa. Acho que agora numa fase feliz, estável, mais madura.”Superior de Educação e Ciências (ISEC). agora que fiz este curso tenho asParalelamente, o rugby. Tornou-se cada vez ferramentas para explorar essa área.” Luís fala com enlevo do pai e da mãe e demelhor, entrou para o clube de rugby Confessa que, durante alguns anos, lheAgronomia mas teve uma ruptura de voltou as costas porque o confronto com todos os ensinamentos que colheu deligamentos grave em 2006 e, em 2010, fez aquele lugar onde tinha sido tão feliz lheuma lesão gravíssima em pleno jogo, um dia trazia dor e vazio: “E porque sentia que ambos. Orgulha-se da força da mãe, dodepois de saber que o pai tinha um cancro de talvez a quinta tivesse tirado anos de vidapulmão. “Já jogava nos seniores. Tinha sabido ao meu pai. Sentia como que uma revolta modo como deu a volta à dor de terna véspera do cancro do pai e estava contra a quinta e arrependo-me de não teremocionalmente de rastos. Parti a perna a perdido o amor da sua vida, da artista quejogar. Parti dois ossos e fiquei com a pernapendurada. Fui-me muito abaixo nessa altura. é. Fala ainda do pai e do modo como, aosFiquei com raiva do rugby. Estávamos emFevereiro e o meu pai morreu em Outubro.” 60 anos, jogava futebol com ele, sempreLuís tinha 23 anos. A doença galopante do pai(durou apenas 8 meses) e a sua morte próximo, sempre amigo. Há uma ternuramexeram muito com ele. Talvez o tenhammudado para sempre. Quando ele morreu, profunda que se liberta de cada palavra ecomeçou por sentir necessidade de cuidar damãe e, depois, quis honrar a memória do pai: que comove.“O meu pai sempre quis que eu estudasse. Eeu também sempre percebi que tinha de o Daqui a 20 anos? Imagina-se casado, comfazer mas era um bocadinho como o Peter Pan.Terminou há dois anos o curso de Gestão filhos e, sem dúvida, envolvido na QuintaHoteleira, o que foi um alívio para a mãe. “Eusei que ela tinha medo que eu não acabasse. do Falcão. “Seria um grande orgulho paraSenti-o como um tributo ao meu pai. Tenho acerteza de que ficou contente, onde quer que o meu pai. E seria um grande orgulho paraesteja.” Estagiou no Altis Belém e ficou lá atrabalhar durante um ano. Depois, quis ir à mim.” DNaprocura de outra oportunidade. Foi para aoBNP Paribas processar pagamentos. Aguentou6 meses. “A seguir fiz um curso de um ano deProdução de Eventos na ETIC. E foi excelenteporque senti que, pela primeira vez, estudeiporque quis e no que me deu verdadeiro gozo.”

“Quando fiquei na Moody’sfoi uma excitação para todos.Fizeram posts no facebook,daqueles a babar de orgulho,o que teve a sua graça.” 4 anosEra mínima, quando nos conhecemos, Tinha, de resto, uma enorme preocupação tendo com o pai, professor universitário,mas já cheia de habilidades que fazia com o que dizia na entrevista, não fosse que, vendo o entusiasmo pelos números aquestão de exibir. Aos 4 anos, e acabada passar uma imagem ruim da sua pessoa. terá “puxado mais para a teoria”.de conhecer aquela estranha que lhe Adorava novelas, para desconsolo da Na dúvida entre Economia ou Gestão,entrou casa adentro com um caderno e mãe, mas era muito responsável, curiosa e optou por Economia, por ser maisuma caneta em riste, Margarida cantou, companheira, a ponto de quase ser abstracto, mais teórico, mais abrangente.dançou, revelou conhecimentos musicais possível esquecer que se tratava de uma Fez o curso na Universidade Nova devariados (a canção preferida era “Óculos criança. Lisboa e, em 2013, foi estagiar para ade Sol”, de Natércia Barreto) e respondeu O que se mantém dessa menina de Delloite. Seguiu-se o mestrado emque a pessoa mais importante do mundo microfone na mão e resposta pronta é, Finanças, na Católica, que lhe abriuera a mãe. A mãe? “Então quem é que me talvez, e segundo a própria, a energia, outras portas. Ou melhor, não foileva à natação? Quem é?” Além disso, essa vontade de estar sempre a criar, a propriamente o mestrado mas as notasapontou o Globo Terrestre, que era o seu inventar, a meter-se em novos projectos. que Margarida teve. “Terminei ocandeeiro de quarto, e falou com O fascínio por Londres, que apontava no primeiro ano com 18,1.” E foi assim que entusiasmo de alguns países e cidades, com destaque para Lisboa, em Portugal, e Londres, em Inglaterra. Em 2002, ano da segunda visita, continuava a querer ser cantora quando crescesse mas também médica pediatra. “Não vai ser fácil conciliar as duasMargaridacarreiras mas logo se vê”, dizia com seu globo-candeeiro, não só se manteve teve a oportunidade de ir fazer o segundo como cresceu e se tornou morada, uma ano à Bocconi University, em Milão, uma vez que é lá que vive há um ano. das mais prestigiadas escolas de negócios Porém, não se tornou cantora ou pediatra do mundo. “Foi fantástico. Gostei muito ou ambas. Continua com “os mesmos da faculdade, aprendi imenso.” gostos musicais duvidosos” mas o Quando falámos, no ano passado, por interesse que demonstrava pela Medicina Skype, Margarida ainda estava a terminar foi-se esbatendo com o tempo e talvez o mestrado e já estava em fase deaquele ar doutoral que metia em tudo. também com algumas conversas que foi entrevistas de emprego para várias DNa

testes online, depois vieram as entrevistas por 24 anos à espera do pior.” Olhar o mundo,telefone, entrevistas muito técnicas que quando se tem esta característica, não éenvolviam afincada preparação. E depois tem o irmão mais novo, o fácil: “Assusta-me esta tendência de osO namorado Miguel, também formado em Manel, com 10 anos. É ao falar dele que países se fecharem, adoptando medidasFinanças, estava em Londres, na altura em que os olhos mais brilham, a voz mais se protecionistas, isolando-se e olhando osMargarida estava em Milão, a fazer o mestrado, amacia, a postura corporal se transforma. outros países como potenciais ameaças.”mas isso hoje em dia não constitui qualquer É ao falar dele que assisto a uma Daqui a 20 anos imagina-se com um ouproblema para nenhum destes jovens. Há o transformação de uma Margarida séria e dois filhos, realizada profissionalmente, eSkype, o WhatsApp, o MSN, voos baratos, e um muito profissional para uma Margarida sem ter mudado muito porque gostaria desem número de maneiras de comunicar. As enternecida e maternal. “O Manel é se manter igual a si própria. No final,relações à distância não são assim tão à distância muito parecido comigo e tenho imensas antes de nos despedirmos, pergunta-mequanto isso porque os quilómetros reduziram-se, saudades dele. Foi das coisas mais pela minha vida, que voltas deu nestes 20o longe fez-se perto, e o mundo tornou-se mais fantásticas que me aconteceu. É anos. É a única, dos 11, que o faz, compequeno. espertíssimo, tem uma energia fora de genuíno interesse. E isso, parecendo queEntretanto, os meses passaram e voltámos a série e está muito à frente no Youtube e não, diz muito sobre si.falar. Margarida tinha sido escolhida para no domínio de todas as novasintegrar a Moody’s, em Londres, a empresa de ferramentas que aparecem. É uma alegria DNarating americana que classificou Portugal como tê-lo na minha vida.”lixo na altura da Troika (mas que este ano já Tal como na primeira e na segundaconsiderou existir um caminho de sustentabilidade, conversas, em que falámos de qualidadesfazendo subir o rating do país). É de calcular o e defeitos, voltamos ao tema. Margaridaentusiasmo dela e da família por tão nobre elenca a persistência como um dos seusentrada na vida profissional. “Foi uma excitação atributos. Isso e ser muito amiga do seupara todos. Fizeram posts no facebook, daqueles amigo e uma mulher de família. Quantoa babar de orgulho, o que teve a sua graça. No aos defeitos, confessa-se demasiadoprimeiro dia eu estava em pânico, cheia de medo preocupada e pessimista: “Estou semprede não corresponder às expectativas. Mas temcorrido muito bem.” Tão bem que, seis mesesdepois, entrou para o quadro da empresa, onde ératings analyst para a Península Ibérica.A vida em Londres é boa. Margarida vivemesmo perto do escritório, em Canary Wharf,num pequeno estúdio. Trabalha muito, diz quenão há momentos mortos, que a pressão éconstante. “O que me vale é que tinha uma boapreparação. Este é um trabalho de detalhe e nãopodem haver falhas”.Margarida está naquela fase da vida em que temtudo para provar e todo o caminho ainda paradesbravar. Percebe-se que o céu é o limite e, sedependesse só dela, chegava lá de certezaabsoluta. Ainda assim, gostava de voltar aPortugal quando o seu currículo já lhe abrisseportas mais interessantes e financeiramentecompensadoras. “Ninguém se quer reformar emInglaterra, nem mesmo os ingleses, que queremé ir justamente para Portugal. Ainda não pensoter filhos mas está nos planos. Gostava de terdois, o Miguel eventualmente gostava de ter três.”A família de Margarida é grande e animada.Tem dois irmãos mais velhos, que já são pais,cada um de um filho, o que faz dela tia duas vezes.

“Já fui mais ambicioso.Quando acabei o cursoachei que ia fazer campanhase ia ser espectacular.Achamos que vamos comer o mundoe o mundo acaba por nos comer a nós.” 8 anosTinha tanta graça. Tanta graça. Loirinho, que está escrito no ‘frasco’... Diz que o muito pouco a ver com o Lourençoespevitado, brincalhão. Na primeira vez tabaco pode matar! E ela continua! criança, baço, triste, quase embaraçado, aque conversámos tinha 8 anos e o que Foooogo! Eu nunca vou fumar! ”Cinco desviar o olhar, como se alguém lhemais gostava de fazer era jogar futebol anos depois, quando nos reencontrámos, tivesse apagado a luz. Talvez tivesse sido“no computador e na vida real também”. mantinha a desenvoltura. Tinha-se do dia, talvez tivesse sido uma certaA sua preferência clubística era um tanto mudado de Lisboa para a Covilhã e estava timidez que não conseguiu ultrapassar àou quanto esquizofrénica (ou talvez a começar a acostumar-se. “É mais primeira e, por isso, voltámos a conversardiplomática): era do Benfica por causa do sossegado”, explicava, tentando convencer- uma segunda vez, para tentarmos - ambos -tio Kiko e do Sporting por causa da mãe. se. Nessa altura queria ser jogador de encontrar o rasto daquele miúdo luminoso.Na escola, ficava muitas vezes de castigo futebol ou piloto de Fórmula 1. Dizia que Lourenço não teve uma vida dourada.(e não era difícil imaginar porquê). o mundo estava perigoso “por causa do Também não foi nenhuma tragédia, nadaNão gostava de Aníbal Cavaco Silva, que Bin Laden, dos israelitas e dos disso, mas talvez seja, de todos, aqueletratava desdenhosamente por “Cavaco” e palestinianos”, e preocupava-se muito que amadureceu mais depressa por culpa com o ambiente e com a “falta de árvores”. No final do encontro, perguntou-me se lhe pagava o almoço: “É o jornal que paga, não é?” E almoçámos um belo bife, com o Lourenço sempre com coisas para contar. Foram preciso duas entrevistas para procurar descortinar o Lourenço, 20 anos depois da primeira vez. No primeiro achava que Pinto da Costa era um dos de alguns acidentes de percurso que o homens mais poderosos do mundo. fizeram olhar para a vida com a aspereza Queria casar e ter 3 ou 4 filhos. A com que os outros não olham. “Tornei-me escolhida podia bem ser Cláudia Schiffer, mais racional do que emocional e acho que para ele era, sem sombra de dúvida, a que vejo a vida de uma forma um pouco mulher mais bonita do mundo. Também cínica. Vejo os anos passar e sinto que os garantia que nunca na vida iria fumar, esse meus sonhos estão a ficar para trás mas vício incompreensível de alguns adultos, tenho dificuldade em agarrá-los.” Aos 18 anos ficou sozinho na Covilhã.Lourençocomo a mãe, por exemplo: “A minha mãefuma imenso! E ainda por cima sabe o reencontro o Lourenço adulto parecia ter “Fui viver para uma residência universitária, DNa

e durante dois anos foi uma grande 28 anos consegui encontrar-lhe a luz. Era ele,cowboyada. Mas o curso [Ciências de ainda. Engraçado, extrovertido, a fazerComunicação] não era o que eu estava à espera de família. Não se queixa, diz que está conversa e piadas que ajudaram a quebrare decidi sair da Covilhã e vir para Lisboa.” bem como está, mas não deixa de o gelo daquele encontro com tantos anosFicou dois anos sem estudar, a trabalhar em sublinhar o modo como a namorada é de interregno. Era como se o miúdocall centers. “A minha mãe sempre quis que eu agarrada à família e como isso o loirinho que conheci tivesse apenastivesse mais do que ela tinha tido e custou-lhe enternece. Não usa estas palavras, não se crescido em tamanho. Que bomque eu tivesse parado. Mas acho que percebeu vá pensar que é algum lamechas. Ri reencontrá-lo assim, nessa leveza e brilhoque era temporário. Aproveitei para tirar a muito, gosta de fazer rir. Chorar? que não vislumbrei durante a primeiracarta e depois entrei para a Escola Superior de Raramente. Muito raramente. De resto, entrevista, meses antes. Talvez tivesseComunicação Social, onde ainda estou a tentar guarda mais de 90% das coisas para si sido do dia, talvez tivesse sido uma certaacabar o curso de Publicidade e Marketing.” próprio. Não é cá de partilhas ou timidez que não conseguiu ultrapassar àQuando acabar o curso não sabe bem o que confidências. primeira. Talvez a vida ainda o venha aserá a sua vida. A área que escolheu está muito Retomando conversas antigas, diz que surpreender. Talvez consiga comer osaturada e se calhar só saindo do país é que mantém a aversão por Cavaco Silva mas mundo. Talvez.consegue safar-se. “Mas eu gostava de ficar congratula-se por já não ter de o ver apor cá, gosto do nosso país... Se bem que me comer bolo rei em horário nobre da DNaimagino perfeitamente a viver em Nova Iorque, televisão. Ainda tem dificuldade emTóquio, Londres ou Amesterdão.” acreditar que Donald Trump é oDa primeira vez, quando lhe perguntei se havia presidente dos Estados Unidos (não estáalguém especial, sorriu e voltei a ver o sozinho) e se há acontecimento dorapazinho traquina de há 20 anos. Mas foi só mundo que o marcou para sempre foi,um vislumbre, que voltou logo a desaparecer sem dúvida, o 11 de Setembro de 2001.num ápice. Não queria falar disso. Fechou-se No dia da fotografia individual e decomo uma concha. Depois, na segunda conjunto (e na segunda entrevista),conversa, abriu mais o coração para falar dasua Sónia, que fez questão de adjectivar como“muito melhor que a Claudia Schiffer”.Além de estudar, Lourenço trabalha nodepartamento de vendas online da Worten. “Aminha vida acaba por não ser muito excitante.É trabalho-casa-faculdade e repete. Daqui a 10anos gostava de estar a trabalhar na minha áreamas vejo-o cada vez mais como uma miragem.Tenho 29 anos e quanto mais tempo passa pior.Vou fazer o quê? Sair de um emprego estávelpara ir fazer estágios de 6 meses nãoremunerados? E quem é que paga a casa e asdespesas?”Pergunto pela ambição, pela gana de ir maislonge. Ele sorri, com o tal sorriso de quem jánão vê a vida em tons de rosa: “Já fui maisambicioso. Quando comecei o curso dePublicidade e Marketing achei que em poucotempo ia estar a fazer campanhas e que ia serespectacular. Achamos que vamos comer omundo e o mundo acaba por nos comer a nós.”Gostava de ser pai, para poder ser aquilo quenão teve. Um bom pai, racional, ponderado,“que não aja de cabeça quente” e que eduque edê amor. Ele teve amor de mãe mas acreditaque lhe faltou uma noção mais apertada

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