ZUCA SARDAN | FLORIANO MARTINSTHEATRO AUTOMÁTICO ATO II | GRINALDA DA JUJU
Theatro automático, 2 @ 2018, Zuca Sardan e Floriano MartinsARC Edições, coleção “Nuances postiças” # 5Capa: Floriano Martins Agulha Revista de Cultura http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/ Fortaleza CE Brasil _____ 2018
ATO II | GRINALDA DA JUJU ALZIRA CATUMBELA MIRELA ANÃO PINOTE NANDIRA POMBOS ASSÍRIO PRINCE NELSON FILHOTE BABALU ORGANISTA BACO CARECA PADRE CAVEIRAS CICRANO PANFIR CORONEL BIFÃO PONTO EUXÍMIO DONA AMÁLIA COLETTE PRETOCA EMPRESÁRIO GOLIAS PÚBLICO FULANO GOLIAS RENA 1 RENA 2GOVERNADOR NEVES POMBOS RENA 3 MAMÃE NUTELLA XIM FONG MARQUÊS DE SALES
• Cortina se abre lentamente, luzes de palco claras, cenário vazio. Ouve-se um bate-boca em off, aos poucos é possível entender algumas frases: VOZ 1 (masculina) – Um completo desatino, vandalismo de quintal, panos sujos sobre a nossapesquisa tão séria… VOZ 2 (feminina) – Séria? Um verdadeiro fracasso de público, isto sim, num instante tornei-meuma viúva entupida de dívidas… VOZ 3 (masculina) – Os senhores terão que ir embora, simplesmente. Eu assumo todos os riscos eos pepinos deixados. Garanto reconstruir o teatro. • Novamente as vozes se misturam, em completa bagunça, inaudível. Surge então no palco o Ponto Exímio: PONTO EUXÍMIO – A viúva Dona Amália, do saudoso doutor Péricles, para cumprir a promessaque fez ao marido nos derradeiros minutos antes que ele expirasse, quer manter o Theatro, custe oque custar! Para tanto contratou o Empresário Golias, que deve criar espetáculos que tragam boareceita para a casa em decadência… e salvá-la in extremis da falência e bancarrota… Agora então, faceao fracasso lastimável da peça sacra inquisitorial, Golias sugere à viúva Dona Amália montar umapeça pornográfica, para chocar as peruas chiques e causar sensação nos jornais e televisão. Quantomais porca a peça, maior sucesso terá!… Dona Amália, embora relutante, por fim aceita que se monteVestido da Juju, historieta de uma bicha louca que quer se casar de vestido de noiva com Dagoberto,
porém os religiosos se recusam a deixar o teatro para que se instale uma peça que dizem ser libertina.Imagine se os padres soubessem que Juju é travesti… • A fala do ponto é interrompida por um grito de seu nome que se ouve ao fundo e logo por ali surge Dona Amália Colette, seguida do empresário Golias: DONA AMÁLIA COLETTE – Euxímio, Euxímio, o que estás aí de fuxico com a rua… Vamos deixarnossos planos em segredo, até que tudo se resolva, cabrote. PONTO EUXÍMIO – Sim senhora… Tudo guardado em meus pensamentos. DONA AMÁLIA COLETTE – Temos muito que fazer. Ande a ver, quero que vás à escola de teatroe tragas aqui Alzira Catumbela e Assírio Prince, sem demora. Tenho trabalho para eles. PONTO EUXÍMIO – Agora mesmo. GOLIAS – Aproveite e peça ao Lobolinho Pasquário que te entregue um pacotinho que deixei lácom ele semana passada. PONTO EUXÍMIO – Pronto e fiel lhe trarei o casal e… trarei o pacotinho do fubá da sua kakatuá. • Sai Euxímio, na motoca, feito tiro de bazuca: KAPOOOONNNGGAAAA!!! BRUM- BRUUUMMMMM
DONA AMÁLIA COLETTE – Tão espertinho o Ponto Euxímio!… Sacou logo que o pacotinho tinhafubá pra tua cacatuá… GOLIAS – Este Euxímio é mais vidente que o Rimbaud… • Passa um tempinho de nada, e BRUM-BRUM já volta Euxímio com Alzira e Assírio juntos de carona na motoca. GOLIAS – Mas Euxímio, que ideia é esta de entrar palco adentro do teatro de motoca??? DONA AMÁLIA COLETTE – E os três grudadinhos… Ai! Que gracinha… GOLIAS – Alzira e Assírio, queremos contratá-los AGORA pra trabalharem na peça Grinalda daJuju!… DONA AMÁLIA COLETTE – Ai, que lindo!… Como adivinhaste, Golias, que meu apelido éjustamente… Juju? PONTO EUXÍMIO (canta) – Á É Í Ó ÚÚÚ… Dabliú, dabliú… Na cartilha da Juju… GOLIAS – Pois tanto melhor!… Na peça Juju quer se casar com… Assírio!… ALZIRA CATUMBELA – Sim, meu sírio-libanês Jorginho!…
GOLIAS – Com vestido de noiva?…ALZIRA CATUMBELA – e com… véu de grinalda!DONA AMÁLIA COLETTE – Isso vai virar… um Reality Show.GOLIAS – Mas a Juju da peça é bicha!…DONA AMÁLIA COLETTE – Eu também sou… vir…PONTO EUXÍMIO – Vi… rgem!!!…DONA AMÁLIA COLETTE – Sossega, Euxímio!… Juju ia dizer que ela é vir… ago.GOLIAS – O que você é, afinal, Juju?…ALZIRA CATUMBELA – Sou virago… virgem!…GOLIAS – Na peça você quer se casar com Assírio…ALZIRA CATUMBELA – Sim, quero casar com Assírio de véu e grinalda, no civil…ASSÍRIO PRINCE – …e no religioso.
PONTO EUXÍMIO – O religioso nós podemos conseguir no palco. Temos toda uma trupe desacerdotes duma peça fracassada… Mas Juju, eles não devem saber que você é bicha… ALZIRA CATUMBELA – Eu não sou bicha!… Eu sou Virago Virgem e quero me casar comJorginho, vestida de noiva, com véu e grinalda!… DONA AMÁLIA COLETTE – Ai, que lindo!… Isso sim, é uma peça romântica!!!… PONTO EUXÍMIO – E atualizada!… Na linha libertária do Século 21!… GOLIAS – Mas que dirão as boas famílias? A tradição? O Clero? É mesmo a peça ideal… ASSÍRIO PRINCE – Mas a isto se resume o enredo? ALZIRA CATUMBELA – Vê lá, meu Jorginho, imagino seja apenas uma sacada, não é mesmo, seuGolias? ASSÍRIO PRINCE – E trata de enterrar esse Jorginho, que era nome de personagem que eu faziaem outra peça… ALZIRA CATUMBELA – Um negro lindo, por sinal, chefe de terreiro de Umbanda, eu amava ojeito como tentavas expulsar o Diabo de mim… E a tua virilidade que eu degustava no camarim… Ui! ASSÍRIO PRINCE – Para com isto, Zirinha. Não vês como já fico…
ALZIRA CATUMBELA – Seu Golias, onde é o camarim? GOLIAS – Agora não, Alzira. Eu fiz cópia do roteiro para que leiam. • Entra em cena Panfir trazendo cópias do roteiro e as distribui entre todos. Logo sai e retorna com Careca, cada um trazendo duas cadeiras. Saem novamente. Todos se sentam e começam a ler o roteiro. Na medida em que Golias começa a sugerir um cenário eles vão trazendo o mobiliário. PONTO EUXÍMIO – E a minha? DONA AMÁLIA COLETTE – Ponto que é ponto não senta, meu lindinho! GOLIAS – Vejam, o roteiro original possui mais alguns personagens, mas podemos fazer nossasadaptações. Acho que tem umas coisas ligadas ao mundo da mágica e também da feitiçaria que podefuncionar bem em palco. Não sei por que não se explora tais temas… Mas leiam, leiam… DONA AMÁLIA COLETTE – Ai como é comovente a parte em que ela se declara e em seguida…Lembro o meu Péricles, eu também quando me declarei a ele fui logo pegando, ele todo animado, aique saudade! PONTO EUXÍMIO – Já vi que o buraco do ponto vai tremer a peça inteira… GOLIAS – O que é isso, Euxímio! Sejamos profissionais!
PONTO EUXÍMIO – Até que eu sou, Golias. Mas já reparou nas coxas dessa Alzira…? • Alzira deixa cair seu roteiro no chão e começa a falar em um tom de voz mais masculino. ALZIRA CATUMBELA – Não tocarás num fio de cabelo meu, até que mostres o tamanho de teupau… Carvoeiro, carvoeiro, quero ver quanta lenha tens para mim… PONTO EUXÍMIO – O que diabo deu nessa mulher? ASSÍRIO PRINCE – Acho que baixou o espírito que ela incorporava na peça anterior. ALZIRA CATUMBELA – Eu era Chapeuzinho Vermelho e o Carvoeiro ia levando, num saco, seuspaus de lenha… DONA AMÁLIA COLETTE – Ai, que lindo!… Era uma peça infantil?… Edificante!… A menina e obom carvoeiro… ALZIRA CATUMBELA – Mais ou menos, Dona Amália, mas o Marquês de Sales gosta deapimentar seu teatro… DONA AMÁLIA COLETTE – Já sei, botou em cena o Lobo Mau que queria comer ChapeuzinhoVermelho!…
ALZIRA CATUMBELA – Mais ou menos, Dona Amália, mas quem queria comer ChapeuzinhoVermelho era mesmo o Carvoeiro… DONA AMÁLIA COLETTE – Ai, que horror!… O Carvoeiro era antropófago?… ALZIRA CATUMBELA – Mais ou menos, Dona Amália, ele era mais boca-de-fogo… DONA AMÁLIA COLETTE – Um celerado pirômano!… Queria tacar fogo em ChapeuzinhoVermelho!… ALZIRA CATUMBELA – Se pirômano eu não sei, Dona Amália, mas era certamente pedófilo… DONA AMÁLIA COLETTE – Esse Marquês de Sales é um asqueroso tarado!… ALZIRA CATUMBELA – Nem tanto, Dona Alzira, ele quis fazer o papel de Carvoeiro, e lutou nosbastidores com o Raymond, este sim, um terror!… DONA AMÁLIA COLETTE – Aí está! O Marquês de Sales escreve porcarias, mas tem um coraçãode ouro!… Arriscou a vida pra salvar a vida e a inocência de Chapeuzinho Vermelho!… ALZIRA CATUMBELA – Foi uma luta terrível, veio a Rádio Patrulha e prendeu o tarado!!! DONA AMÁLIA COLETTE – Bem feito!… Encanou o Raymond.
ALZIRA CATUMBELA – Não, Dona Amália, encanaram o Marquês de Sales, considerado bemmais perigoso que o Raymond… GOLIAS – E com toda a razão!… O Marquês de Sales vive aprontando sacanagens, já leva um totalde mais de vinte anos atrás das grades, em sucessivos presídios… DONA AMÁLIA COLETTE – É um perigo pra sociedade!… Um monstro tarado… GOLIAS –… e um gênio da Literatura!… Contratei-o, justamente, pra fazer nossa peça!… Até aJustiça condenar a obra-prima e a Polícia empastelar nosso teatro, já teremos feito um sucesso deescândalo mundial, e defensores da liberdade de pensamento e da expressão artística promoverãomanifestações e violências urbanas. E enquanto rolarem os processos nós já estaremos famosos, e oMarquês de Sales ganhará o Prêmio Nobel de Literatura! DONA AMÁLIA COLETTE – O Marquês toca viola?… • Panfir e Careca entram, acompanhando um visitante. PANFIR (bate o bastão) – PAFF! PAFF! PAFF!!!… O Marquês de Sales!… MARQUÊS DE SALES (se dirige a Alzira) – Ora, mas que seios mais prosaicos! Diga-me, rostinhoapetitoso, já não nos conhecemos? DONA AMÁLIA COLETTE – Eu imaginava o senhor na prisão!
MARQUÊS DE SALES – A encantadora dama deve ser a dona do bordel! GOLIAS – Sim e não, meu caro Marquês. Ela não goste de ter sua casa assim tratada. MARQUÊS DE SALES – Ah, mas é o espelho fiel de nossa sociedade! Então vamos imaginar. Tudoo que nos resta nessa vida é imaginar… Mas antes vamos redecorar essa opulência do vazio! Precisode mais duas cadeiras, uma mesa aqui no centro, uma cama com seu criado mudo e um toucador.Vamos distribuir peripécias para todos. Diversão garantida para o público, ao mesmo tempo em quenós mesmos lavaremos a égua. Ah a ciência da representação! Uma frase bem posta e faço o mundocrescer diante de todos. Um arame se passa pela linha do horizonte. Um lencinho puído por ser olençol de uma princesa. A argila bem tocada rende os melhores orgasmos da terra. Imaginar é mesmouma ciência! GOLIAS – Que gênio! PANFIR – Que tagarela! CARECA – Que pau no saco! PANFIR – Pé, Careca, é pé no saco! CARECA – Quem se importa?
ASSÍRIO PRINCE – Este é o homem que porá as palavras em nossas bocas? • Careca e Panfir tratam de ir buscar o mobiliário exigido pelo Marquês. Este vai ao fundo do palco e procura um lugar onde urinar. Os demais fingem que estão lendo o roteiro, desviando a vida para ele. ALZIRA CATUMBELA – Se ele for metade do que dizem… DONA AMÁLIA COLETTE – Que coisa, Alzira, o que irias fazer com a metade de um Marquês? ALZIRA CATUMBELA – Ah Dona Amália. Imagine… DONA AMÁLIA COLETTE – Seria a metade do… ALZIRA CATUMBELA – Exato, Dona Amália, a senhora acertou. DONA AMÁLIA COLETTE – Mas eu não completei a frase… ANÃO PINOTE (entra com salto acrobático) – Eu sei Dona Amália em que a metade em a Senhoraestá pensando… Mas se cortarem o Marquês em dois, não funciona, Dona Amália… DONA AMÁLIA COLETTE – Não funciona… o coração?… ANÃO PINOTE – Também não, Dona Amália. Eu sou a metade que funciona…
DONA AMÁLIA COLETTE – Mas você não é metade, Pinote. ANÃO PINOTE – Sim, sou só metade. A outra metade é meu irmão gêmeo, Nipote, que foi morarnos Países Baixos. DONA AMÁLIA COLETTE – Mas os habitantes dos Países Baixos são altíssimos. ANÃO PINOTE – Sim, todos altíssimos, menos meu gêmeo Nipote… DONA AMÁLIA COLETTE – Pobre Nipote, tão baixinho, deve se sentir deprimido!… ANÃO PINOTE – Pelo contrário, Dona Amália, está lá ele muito satisfeito porque as batavasgostam muito dele… DONA AMÁLIA COLETTE – Elas gostam dele, assim tão naniquinho? ANÃO PINOTE – Nipote é nanico por fora, mas grande por dentro. DONA AMÁLIA COLETTE – Já sei, ele tem um coração de ouro… ANÃO PINOTE – Exato, Dona Amália… A senhora QUASE acertou… DONA AMÁLIA COLETTE – Mas se não é o coração então…
ANÃO PINOTE – Muito bem, dessa vez a senhora acertou, Dona Amália!!! PONTO EUXÍMIO (do buraco) – Aproxima-se o Padre Caveiras… severíssimo… PADRE CAVEIRAS – Já vinha disposto a me desculpar pelo atraso, pela ajuda que eu daria noexorcismo… A mula quebrou a pata… Tive que concluir a jornada a pé… Mas o que se passa aqui? PONTO EUXÍMIO (do buraco) – Xiiii… Ele veio para a outra peça… GOLIAS – O senhor certamente se excedeu no atraso, Padre. A peça do exorcismo já não está maissendo apresentada. Nós estamos agora justamente aguardando o Marquês de Sales dar ascoordenadas no novo espetáculo. PADRE CAVEIRAS – Mas isto é muito constrangedor, o diretor até já me pagara antecipadamentepela minha participação. MARQUÊS DE SALES – Isto se resolve, Padre. Podemos incorporá-lo ao nosso roteiro,naturalmente que sendo bem menor a sua atuação o senhor teria que devolver a metade doadiantamento. Ah sim, e também aproveitaremos este anão encardido. Vamos então distribuir ospapéis. Alzira, tens uma dura tarefa pela frente. Teu personagem é um homem que resolve travestir-se de mulher e descolar um casório. Assírio, será o tolo da vez, casarás com Alzira, iludido de que elaé mulher e virgem. Dona Amália será a dona do bordel, Pousada do Gozo Eterno. Panfir e Careca,tratem de confeccionar a placa do bordel. Dona Amália estará sempre acompanhada de seuprestimoso anão, com seu bastão de delícias, na forma de um falo, para que a patroa não esmoreça
jamais. Padre Caveiras celebrará as núpcias. Exímio, o de sempre, você cobra as falas dessa trupetoda. PONTO EUXÍMIO (do buraco) – Mas que manuscrito horrendo, Marquês, uma letra todaengodada… MARQUÊS DE SALES – O que não der pra ler, ora, improvise… GOLIAS – Marquês, o senhor me esqueceu… MARQUÊS DE SALES – Nem pensar. Terás a função mais nobre. Serás o coringa, sempre a postospara qualquer emergência… ANÃO PINOTE – E eu serei pau pra toda obra. DONA AMÁLIA COLETTE – Mas eu preciso de umas meninas pra minha pensão. GOLIAS (abre o sacolão) – Aqui estão: Mirela, Pretoca e Babalu… Serão figurantes… ANÃO PINOTE – Preciso dar uma provada no material. MARQUÊS DE SALES – Quem prova sou eu, o Autor.
ANÃO PINOTE – Como bom Autor, você deve ficar em casa, de roupão, touca e chinelas,pensando e se babando de inveja, das nossas sacanagens. MARQUÊS DE SALES – Eu Quero ENTRAR nas minhas peças pra GOZAAAAARRRRRRRR!!!Passei trinta anos na prisão, por pequenas fantasias eróticas que sequer cheguei a cometer, porqueminha sogra era Ministra da Justiça!… ANÃO PINOTE – Todo dramaturgo é um trepa-trepa frustrado… E o maior de todos aqui está: oMarquês de Sales!… PADRE CAVEIRAS – Deus escreve por linhas tortas… Tu, Marquês, se não trepa-trepaste, foiporque a Santa Piedade Divina queria salvar tua Alma Imortal de cair na Perdição… MARQUÊS DE SALES (furioso) – A Santa Piedade Divina deve ser minha sogra!… A maior empata-foda da Humanidade!… PADRE CAVEIRAS (cai rolando e babando no chão…) – Blasfêmia Satânica!!! Blas… DONA AMÁLIA COLETTE (olha para o organista semioculto por uma cortina e estala os dedos) –Plec - Plec - Plec!… ORGANISTA BACO (toca o órgão) – FONNNNGGG FOOOOOOONNNNGFOOOONNNNGGGGGGG…
DONA AMÁLIA COLETTE – Que música divina!… A Fuga do Bode número Cinco!… ANÃO PINOTE – Repare não, Dona Amália, mas com esse organista acho que não ficou nenhumbode, fugiram todos… DONA AMÁLIA COLETTE – Toca o bastão, Pinotinho. Dele eu sei que entendes bem… Ui!Meninas, dancem com a música… • As meninas dançam, enquanto Panfir e Careca pregam a placa que dá nome ao bordel. Enquanto isto o Marquês acena para Dona Amália e Padre Caveiras, para que tomem lugar em suas falas. A música silencia. DONA AMÁLIA COLETTE – Padre, eu quero que conheças a Alzirinha, sempre foi meu fielescudeiro, cuidando do guichê e da segurança da casa, ele quer casar aqui e vamos dar uma grandefesta… PADRE CAVEIRAS – Espere, senhora. Ele, ela, Alzirinha, escudeiro… Há algum tijolo fora deprumo, não? DONA AMÁLIA COLETTE – Ah sim, o senhor me desculpe, é que mantemos tudo em segredo.Alzira é o Antenor. Moço respeitador, que um dia apaixonou-se à distância por Assírio Prince e desdeentão resolveu travestir-se, de modo a conquistá-lo. PADRE CAVEIRAS – E o abestado engoliu a farsa?
DONA AMÁLIA COLETTE – O senhor mesmo me dirá quando conhecer Alzirinha… PADRE CAVEIRAS – Deus que me perdoe. Não fosse o fato de que preciso dessa grama eu iriatrabalhar em outra peça… DONA AMÁLIA COLETTE – Juju… Venha conhecer o Padre Caveiras… PADRE CAVEIRAS – Juju, Alzira, o que mais estou por saber? DONA AMÁLIA COLETTE – Ora, Padre, Alzira é a nova versão de Antenor. O senhor esquece queestamos em um teatro… Alzira desempenha o papel de Judith, que nós tratamos por Juju… PADRE CAVEIRAS – Santa Mãe de Deus! • Alzira se aproxima, já incorporada a personagem de Juju… ALZIRA CATUMBELA – Prazer, seu Padre… PADRE CAVEIRAS – Diante de tanta beleza, até Deus se cala, minha filha… DONA AMÁLIA COLETTE – Ai Padre, que lindo! O acaso me pôs nas mãos o homem certo! ANÃO PINOTE – Aquieta, Mamá. Teu homem certo sou eu!
PADRE CAVEIRAS – Melhor não dar ouvido ao acaso. A fé em Deus afiança toda a beleza domundo. ALZIRA CATUMBELA – Peço cuidado, seu Padre, meu coração é mole e meu príncipe é tãociumento… Um desperdício… PADRE CAVEIRAS – Se teu coração é mole, minha filha, hás de torná-lo forte, inexpugnável, coma disciplina da flagelação expiatória… DONA AMÁLIA COLETTE – Trouxe o chicote, Padre Caveiras, pro o que der e vier… PADRE CAVEIRAS – Muito bem, Dona Adália. Passe a chibata pro anão, pra que ele desfira aslambadas expiatórias… DONA AMÁLIA COLETTE – Tome esse chicote, Pinote, e Castigue firme… Será para o própriobem de Alzira, pobrezinha. ANÃO PINOTE – Sim, Dona Amália… Lá vai… DONA AMÁLIA COLETTE – E Anão Pinote lasca o chicote… FLAAAPPPTTT!!! No Padre Caveirasque rola em estertores de dor… PADRE CAVEIRAS – AAAAAAAAIIIII!!! PÁRA, ANÃO de BOSTAAAAAAAAAAA!!!
DONA AMÁLIA COLETTE – Não pare, meu verdadeiro Leônidas nas Thermópilas, segueesbordoando o Padre (FLAAAAPPPTTTTT!!! FLAPPPPTTTTT!!! FLAPPPPTTTT!!!) MARQUÊS DE SALES – Mas… Afinal… Golias!… Este episódio grotesco não está na minha peça!… GOLIAS – Por sinal, Marquês, como se chama afinal a peça?… MARQUÊS DE SALES – Chama-se… O cabaço de Juju… GOLIAS – O cabaço?… Mas não era o Vestido?… MARQUÊS DE SALES – O Vestido vem por cima do cabaço… GOLIAS – E a tanga?… MARQUÊS DE SALES – Cyclame com rendinhas nas bordas… GOLIAS – Encomendarei modelo Rococó, da Coleção Xoxocavel. MARQUÊS DE SALES – Mas a peça, Golias, afinal quando começa?… GOLIAS – Não se preocupe, Marquês… O pastelão teológico dos padres esvaziou o Teatro. Umdesastre!… Precisamos catar de volta freguês na rua.
MARQUÊS DE SALES – Haja Paciêêêêênnnnciiiaaaaaaaaaaaa!!! Isso é praga da Puta SograDivina!!! GOLIAS – Calma, Marquês… Esta peça será o nosso verdadeiro Ensaio de Orquestra, uma peçasobre uma peça, tal a calcinha do cabaço… MARQUÊS DE SALES – Ou o cabaço da calcinha… Mas essa demora é exasperante… GOLIAS – A demora dá chance ao público para começar a aparecer… • O parceiro do Ponto, Eudóxio, está de camelot, na entrada do teatro, tentando atrair o Povão… Espie só por este estratégico olho-de-boi, e veja o Eudóxio, trepado numa cadeira, arengando o povão… Diante da porta de entrada do Theatro. EUDÓXIO – Vinde Vinde, nossa peça só começa quando vocês chegarem!!! SALDOOOSSSSSS!!!Preços de banana-da-terra!!! VIIINNNNNDEEE!!! AVANTE!!! VINNNNDEEEEEEE!!!VINNNNDDDEEE!!! TICO – Vinte mangos a entrada? Que roubalheira… MARQUÊS DE SALES – Já começo a pensar em reescrever o roteiro, pensar em algo para noslivrarmos da coisa.
EUDÓXIO – Que coisa, maestro? Eu mal cheguei. Dá-me um tempo e loto o teatro, nem quetenha que prometer um show privado de Juju ao Batalhão de Operações Aéreas que fica no final darua… GOLIAS – E o noivo? EUDÓXIO – Reparou que ele não diz uma palavra? Quase afirmo que esse Assírio é um impulsomal dado, um esmalte que não fixou bem… MARQUÊS DE SALES – Golias, vamos deixar o milagre por conta do Eudóxio. Enquanto isto, quetal se pensamos em um plano B? Este teatro acaso não é amaldiçoado? A trupe eclesiástica nãoconseguiu nada. E agora nós estamos aqui penando com esse roteiro descadeirado e sem público. GOLIAS – Mas se faltam cadeiras no roteiro, a maldição tem outro nome. MARQUÊS DE SALES – Estás me culpando por mais este fiasco…? GOLIAS – Ainda é cedo para culpas, mas começo a perceber que teus personagens não possuemconteúdo… DONA AMÁLIA COLETTE – Ai meninos… Não se atrevam a acabar com nosso castelo de ilusões.Teatro é como bordel: por vezes a representação de uma coisa é a representação de outra coisa. Tudoo que fazemos na vida é um pouco a ideia de que uma coisa pode ser outra coisa.
GOLIAS – Uma farsa! Uma paródia! MARQUÊS DE SALES – A eterna comédia humana! DONA AMÁLIA COLETTE – O que importa que os personagens não tenham enchimento algum…Nós podemos dar uma enxertada neles, um resmungo, uma fala gasta, até mesmo uma careta semnada por trás. GOLIAS – Disfarçar as fisionomias até que surja algum conteúdo nelas? MARQUÊS DE SALES – Por que não? Nunca sabemos ao certo se estamos vivos, porque, a rigor,somos apenas o que parecemos ser. DONA AMÁLIA COLETTE – É o que digo às minhas meninas em nossa prédica diária ao início doexpediente… GOLIAS – Puro fingimento? DONA AMÁLIA COLETTE – Não, Golias, dedicação, doação à essência da representação. MARQUÊS DE SALES – Assim é a realidade educativa de nosso mundo. Dona Amália… Jamaisimaginei tanta substância em sua interlocução.
DONA AMÁLIA COLETTE – Por que sou uma cafetina? Ora, Marquês, me poupe de teus falsetesrepublicanos. MARQUÊS DE SALES – Somente o imaginário toma conta do mundo e descortina o que somos noíntimo. Somente o imaginário substitui Deus. GOLIAS – Mas se o mundo é um imenso teatro, o que fazemos nós alocando uma área paraconstranger a representação? MARQUÊS DE SALES – Constranger? Mas o que estamos é dando ao mundo uma prova de que épreciso concluir tudo aquilo que começamos. A imaginação requer um corpo, uma ação, umatransformação. E só o teatro pode nos conduzir pelos labirintos dessa metamorfose infinita. DONA AMÁLIA COLETTE – A verdadeira psicologia da representação… Ou o homem leva a sérioo quanto que se ilude a si mesmo ou, do contrário, jamais encarnará o novo homem que tanto cantae decanta. GOLIAS – E desanca e replanta… MARQUÊS DE SALES – Chega, Golias. Evitemos a angústia de não conseguirmos encerrar umadiscussão. Basta entender que na representação não temos que concluir nada e sim alimentar o nossodesembaraço diante do impossível. Tudo na representação é um ponto de partida. GOLIAS – E o roteiro?
DONA AMÁLIA COLETTE – Já estamos improvisando, meu querido Golias. Nem sempre escreveré ter consciência de algo. A consciência por vezes é apenas um alarme. Um sinal de que precisamosganhar tempo ou descobrir em que lugar nós estamos. GOLIAS – Muito bonito, mas o que fazemos com os atores que convidamos? MARQUÊS DE SALES – Que encontrem significado no acaso, que convertam suas veleidades emum banho de essências, que deixem de ser vítimas de si mesmos. • Panfir e Careca súbito saltam sobre o Marquês e o amarram da cabeça ao cós e forram-lhe uma rolha na boca. CARECA – Pronto Mestre. O Marquês está já embrulhado e arrolhado. GOLIAS (passa um lenço no rosto) – Ai!… Parabéns, rapazes! Que alívio. Estamos livres desseSacão!!! PANFIR – Livres ainda não, Mestre. Apenas o temos no pacote pronto. Devemos expedi-lo peloCorreio?… GOLIAS – Não adianta… Mesmo que o despachemos pra Lapônia, ele sempre voltará. DONA AMÁLIA COLETTE – Mas Golias, por que essa implicância contra o Marquês?
GOLIAS – Porque esse clerado JAMAIS nos deixará completar nossa peça!!! Ele nos levará à ruínatotal!!!… Nosso teatro será destroçado a picaretadas por bestiais operários, vendido e des-tro-çaaaa-do pela ganância dos abutres imobiliários. DONA AMÁLIA COLETTE – Foi você mesmo, Golias, quem teve a ideia de contratarmos oMarquês!… Foi você mesmo, Golias, quem cismou que o Marquês de Sales era um gênio!… GOLIAS – Foi a maior ASNEIRA de minha vida!!! Vou despachá-lo amarrado num caixão pro ReiAzteka Mokazuma, para um sacrifício humano a seus Deuses sedentos!… DONA AMÁLIA COLETTE – Os Deuses Aztekas não aceitam qualquer vítima… São exigentes…Mas depois de tão brutal expedição, o Marquês, ressentido, não há de querer voltar. GOLIAS (olhos esbugalhados) – Ele voltará, Amália, esse Marquês é pior que o Corvo do AllanPoe!… Ele NUNCA MAIS!!! NUNCA MAIS vai nos largar!!! NUNCA MAIS no deixará fazer a nossapeça!!! DONA AMÁLIA COLETTE – Nunca sairá do beiral da janela?? Mas o Marquês não é o Corvo… Tãoteimoso quanto, mas não sabe voar. E se o jogarmos janela abaixo, do janelão das cumeeiras? GOLIAS (pálido) – Será recolhido por Damas Protetoras de Mendigos, tratado num Hospital edepois… voltará!!!…
CARECA (prestimoso) – Podemos matá-lo, Mestre, e o enterrarmos nas cafundas do porão. GOLIAS – Não adianta. As ratazanas abrem o buraco e desenterram o defunto, e o MarquêsRedivivo voltará!… • Golias súbito se arranca os cabelos chora profusamente, tomba com estrépito, e rola pelo palco, até sair de cena. Desce do teto um balanço de madeira e nele se senta o Anão Pinote, balançando-se faceiro enquanto entram Alzira e Assírio e cantarolam improvisadamente, sentados no chão, cada um de um lado do balanço: ALZIRA CATUMBELA – Aonde quer que vá o lobo ele volta com um saco sorridente cativandotoda a gente… ASSÍRIO PRINCE – Aonde quer que vá o diabo ele volta pelo buraco da fechadura espiando tudocom sua cara dura… ALZIRA CATUMBELA – Volta a caneta na janela com outros traços de pura luz… ASSÍRIO PRINCE – Volta o cabide esquecido no vento com outro vestido e uma estátua azul… ALZIRA CATUMBELA – Quando a floresta se perde na solidão de suas areias… ASSÍRIO PRINCE – Quando os pecados se enroscam na avidez de seus espelhos…
ALZIRA CATUMBELA – As cidades recortam suas margens e choram por todos os lares… ASSÍRIO PRINCE – As mulheres de negro engolem seus filhos e voltam a pari-los com novosmistérios… ALZIRA CATUMBELA – Os subúrbios dormem nus… ASSÍRIO PRINCE – Os reflexos não sabem sonhar… ALZIRA CATUMBELA – As esculturas fazem amor se arrastando pela noite bordada na fronte dosdeuses… ASSÍRIO PRINCE – Aonde quer que vá o infinito algum dia terá que voltar… ALZIRA CATUMBELA – Como um eco dilatado e carente de discípulos… ASSÍRIO PRINCE – Como um pranto deslocado fingindo não temer seus fantasmas… ALZIRA CATUMBELA – Aonde quer que a inocência tenha deixado suas árvores… ASSÍRIO PRINCE – Ela voltará, ela voltará… Ela voltará…
• O público responde ao ato com um aplauso fervoroso, o teatro todo de pé, reconhecendo a maestria da cena. Sons de Bravo Bravo e muito plac plac cessam ante o aceno, de uma das frisas, do Governador: GOVERNADOR NEVES POMBOS (de pé, no balcão nobre, dando adeusinhos) – Muitoobrigado… Muito obrigado… NANDIRA POMBOS – Ai! Gardêncio, agora, de repente, o Povo gosta de você… Até que enfim…Mas custaram… NELSON FILHOTE – Povo burro custa a aprender… Muitas orelhas e rabo, mas poucainteligência… GOVERNADOR NEVES POMBOS (preocupado, em surdina) – Pssst, Nelsinho!… Respeito!… Ouqueres levar umas bolachas?… NELSON FILHOTE (canta um gingle, debochado) – Bolachas… só Madalena… Nhac-Nhac-Nhoc,revela o Sharlock… GOVERNADOR NEVES POMBOS (irritado) – Nandira, você precisa ser mais severa comNelsinho!… Está se tornando um moleque!… NANDIRA POMBOS – Nelsinho, o Povo do Brasil é bom e patriota, e admira muito o Papai…
GOVERNADOR NEVES POMBOS – Pois é, Nandira, eles sabem que eu trabalho em silêncio, probem do Brasil. NELSON FILHOTE – Mamãe, eu pensava que os aplausos eram pra peça, que finalmentecomeçou… NANDIRA POMBOS – Claro que eram pro teu pai, Nelsinho… Ademais quem te disse que a peçasó agora começou?… Já vamos pelo segundo ato!!! Você não percebeu??? NELSON FILHOTE – Eu estava lendo minha revista de estória-em-quadrinhos, as aventuras doSharlok Sholmes. GOVERNADOR NEVES POMBOS – Mas ora, Nandira, estamos aqui num teatro de prestígio,assistindo a uma peça clássica… E o Nelsinho se bestificando com uma vulgar estória-em-quadrinhos… Seja enérgica com nosso filho! Ou se tornará um desmiolado parasita. Ele precisa sepreocupar com coisas sérias, a História do Brasil, os Heróis Pátrios, a Arte Erudita… ALZIRA CATUMBELA (Brada, insuflando o público) – TODO MUNDONUUUUUUUUUUUUUUUU!!!!!!!!!!!!• A ovação da plateia abafa o diálogo da trupe institucional na frisa da esquerda. No palco permaneceapenas o Anão Pinote se balançando. Entram Panfir e Careca, vassoura em punho, varrendo toda acena. Pinote apenas se balança. Careca e Panfir gesticulam entre si, sem entender o motivo dademora. Supostamente o Anão teria que iniciar sua fala.
EUXÍMIO (do buraco do ponto) – As voltas que o mundo dá… ANÃO PINOTE (visivelmente havia esquecido sua fala; desce então do balanço e começa) – Asvoltas que o mundo dá sã reticências que a vida nos leva a acatar. Melhor aprender a imitar qualquerum que possamos ser. Se evitar a queda é o que queres, aprendas então a imitar os muitos modos decair. O mesmo vale para a morte e os recibos passados de qualquer aventura. Uma fábula consegueser várias: cada uma delas instalada em um novo contexto social. Como uma farsa ao alcance dequalquer um. Como disse certa vez Pinóquio: se o Diabo pode tudo, haverá então um momento emque ele não pode nada. É justo nessa hora que nos aproveitamos de sua vaidade e reescrevemos aorigem das espécies. Não estou bem certo se foi mesmo Pinóquio quem disse isto. Porém o santonunca deve ser mais importante do que o milagre. Vejamos com quantas panelas contentamos afome da humanidade. Os pecados requerem uma autenticidade quase poética. De tal modotornaram-se exaustivos, repetidos a boca pequena, que hoje são uma arte vulgar. Como dizer aohomem que pare de imitar apenas os mitos mais promíscuos? • Pinote toma gosto com o monólogo. Panfir e Careca montam em suas vassouras e os três vagueiam por todo o palco. Mais algumas frases e entram em cena Dona Amália e Golias. Cruzam toda cena quanto conversam. Pinote retorna ao balanço. ANÃO PINOTE – Se nós queremos compreender a avidez de cada capricho, seja do homem ou dosdeuses, antes teremos que aprender a imitá-los, sobretudo aqueles que mais repudiamos. Somente aimitação aprisiona e definha o monstro que temos dentro de nós.
DONA AMÁLIA COLETTE – Veja bem, Golias, como nos recuperamos das sandices do Marquês… GOLIAS – São excelentes atores… DONA AMÁLIA COLETTE – Com a competência invejável do improviso… GOLIAS – Este sim é o verdadeiro teatro automático… DONA AMÁLIA COLETTE – Ui que isso me deu uma vibração por todo o corpo… Que lindo:teatro automático! GOLIAS – Se duvidar até o cenário se improvisa… DONA AMÁLIA COLETTE – E sempre contamos com Euxímio e Eudóxio para o caso de atores emobiliário esquecerem seus improvisos… GOLIAS – Viva o Teatro Automático! NELSON FILHOTE (erguido no balcão) – VIVAAAAAAAAAAAAAAA!!! • Governador Neves tenta arrancar Nelsinho do parapeito, mas o menino resiste. NELSON FILHOTE – ME SOLTA!!! ME SOOOOOLLLLTAAAAAAA!!!
PÚBLICO – Pssst!… Psssst!… Silêncio!!! NANDIRA POMBOS – Ai! Sossega, filhote querido, e vem pro meu cordão!… Quero dizer, sossega,pra não magoar de Papai e Mamãe os corações… PÚBLICO – Mas vamos acabar com essa zoeira!… ROLHAAAAAAA!!! GOVERNADOR NEVES POMBOS – Aí está, Nandira, a tua educação pietista!!! Esse meninoprecisa de uma rolha!!! NANDIRA POMBOS (súplice) – Seja bonzinho, Nelsinho, que Papai do Céu te dará um presente… NELSON FILHOTE – Papai do Céu é teu Pai?… NANDIRA POMBOS – Sim, meu amor… NELSON FILHOTE – Então ele é meu Avô!!! PÚBLICO – BRAVOOOOO!!! QUÁ-QUÁ-QUÁ!!! BRAVOOOOO!!!! GOVERNADOR NEVES POMBOS (aproveita a deixa, se ergue risonho e dá adeusinhos) –Grazie… Grazie… Il Teatro Automático é meraviglioso!!!… PÚBLICO – Senta, Pombão!!! Paspalhoooo!!!! ROOOLHAAAAAAAA!!!!
GOLIAS (sottovoce, para Golias) – Xi, Gogô, esta barulheira, afinal, é nosso sucesso!!!… EUDÓXIO (bota a cara fora do buraco) – Sim, o Teatro Automático! Tão humano!… Com suasfolias brejeiras afervora a fé no Criador de todas as coisas… DONA AMÁLIA COLETTE (sottovoce) – Golias, o Eudóxio pirou… Aquela padrecada do primeiroato virou-lhe a cabeça… Tente acalmar sua doideira… GOLIAS (amável, beatífico) – Muito bem, Eudóxio… A Fé faz milagres, meu filho!… Mas… diga-me… Quem é esse Criador de Todas as Coisas?… EUDÓXIO – O Operário!!! NELSON FILHOTE – VIVAAAAAAAAAAAAAA!!!! GOVERNADOR NEVES POMBOS (tenta arrancar o filho do parapeito) – Sossega, seu Moleque demeeeerda!!!! NELSON FILHOTE (punho erguido) – VIVA A REVOLUÇÃÃÃÃOOOO!!!! • Silêncio tumular na Plateia… Constrangimento geral… A pouco e pouco se elevam cochichos… FULANO – Nosso Governador… é comunista!!!
CICRANO – Eu sabia… Uma melancia… verde por fora e vermelho por dentro… FULANO – E estamos num regime de exceção… Em estado de sítio… A Polícia do Marechal está deolho neste teatro… • Entra um destacamento policial comandado pelo Coronel Bifão. CORONEL BIFÃO – Até segunda ordem estão TODOS detidos. GOVERNADOR NEVES POMBOS (erguido no balcão) – Mas Coronel Bifão, somos todos aquibons cidadãos… CORONEL BIFÃO – Ordem do Marechal Morcego!!! Este teatro vai ser fechado a bem da OrdemPública e da Segurança Nacional!… NELSON FILHOTE (novamente erguido no balcão) – Muito bem, Coronel!!! Ordem e Porrada!!! • Luzes se apagam… A cortina se fecha… Silêncio tumular na plateia… Ouvimos duas vozes em off: DONA AMÁLIA COLETTE – Desta vez foi um estrupício só. Levaram até os pontos… GOLIAS – Será que exageramos?
DONA AMÁLIA COLETTE – Não, Gogô, o mundo é que não está pronto para a nossa arte… GOLIAS – Mas justo agora que o mundo se expandiu e está de todo conectado… DONA AMÁLIA COLETTE – Balela de mercado, meu amado. O mundo está encardido de tantahipocrisia… E cada vez mais empurrado para uma solidão sem parâmetro. GOLIAS – Mamá… És tu mesma? DONA AMÁLIA COLETTE – Ah meu querido, a gente aprende um pouco com a vida… GOLIAS – E o que vamos fazer agora? DONA AMÁLIA COLETTE – Vamos reabrir nosso teatro, claro. GOLIAS – Mas valerá a pena, para o mesmo público, a mesma sociedade…? DONA AMÁLIA COLETTE – Desta vez seremos mais espertos. Vamos montar um auto de Natal emesclamos o roteiro com nossas picardias… GOLIAS – Custo a crer que sejas tu, mon amour. Que brilhante ideia, mas… De quem será o texto?
DONA AMÁLIA COLETTE – Ora, Gô, será nosso, vamos improvisando aos poucos. Faremos acena principal na fábrica de presentes de Mamãe Nutella, ela acompanhada de suas três renasfavoritas. GOLIAS – E o cenário? DONA AMÁLIA COLETTE – Tudo muito simples, dadas as nossas condições. Uma mesa bemcomprida no centro e o sacolão de Mamãe Nutella ao lado. Todos trabalham de pé. GOLIAS – Encontrei uma poltrona velha, meio enxovalhada, que tal? DONA AMÁLIA COLETTE – Ótimo. Eventualmente Mamãe Nutella poderá ali descansar. GOLIAS – Vou indagar ao Anão Pinote quem poderá fazer o papel das três renas. DONA AMÁLIA COLETTE – Vai, meu tesouro. Eu vou deixar tudo arrumado. Lembra que destavez nem ponto nós teremos. GOLIAS – Nós somos o futuro das artes, meu grande amor! DONA AMÁLIA COLETTE – Precisamos de neve no palco, Golias… GOLIAS – No Brasil não neva, Amália… Precisamos duma peça engajada, nacionalista…
DONA AMÁLIA COLETTE – Mas sempre precisa nevar, meu bem, num Auto Natalino… GOLIAS – Não temos auto tampouco, Amália, estamos à beira da falência… DONA AMÁLIA COLETTE – À Beira da Falência… Você é um gênio, meu querido!… Que nomelindo, prum auto natalino! Tocado de suave melancolia, para aureolar nossa peça devocional… Quegênio você é, meu bem!… E precisamos de muita neve, Golias, o palco, e o teatro inteiro, coberto deneve, neve caindo em cima do público… Ai! Que lindo… GOLIAS – Já te disse, Amália, não temos mais auto!… E neve muito menos. Talvez em Pomerode,em Santa Catarina, pra Chopada de Outubro… DONA AMÁLIA COLETTE – Bela ideia, meu amor, você sempre é tão original… Vamos montar oTeatro em Pomerode!!! O Prefeito, Doutor Xarrel, nos dará todo o apoio. GOLIAS – Já te contei, não temos mais auto, Amália, estamos à beira da falência… E que nomelindo UM NABOOO!!!!… Estamos ferrados!!!… (crise de choro) Sniff… Sniff… U-Ru-Ruuuu…Atchuuummmm!! Fooonnnnggg!!! XIM FONG (entra) – Platão Gogô chamou Xim Fong? Platão Gogô ké kuaké koiza?… GOLIAS – Sim, Xim Fong, traga-me ovos com fritas, uma cerveja Vaca Preta e… o telefone. • Xim Fong faz rapapé, e sai, veloz, rodopiando, aos pinotes.
GOLIAS – Vou telefonar pra Mamãe Mutela… Ela pede cachê bem mais barato que o Papai Noel. DONA AMÁLIA COLETTE – Ela não se chamava… Nutella?… GOLIAS – Só se chamará Nutella se a famosa companhia quiser patrocinar a nossa peça. DONA AMÁLIA COLETTE – Mas Gogô… Mamãe Mutela não tem o prestígio do Papai Noel… GOLIAS – Mas Mamãe Mutela é preta faceira e sacudida, sabe rebolar, e preparar seus quindins… DONA AMÁLIA COLETTE – Mamãe Mutela é… sul-africana?… Mãe dum grande estadista… Heróinacional… GOLIAS – Mamãe Mutela é preta brasileira, tem roupa de babados, e tabuleiro de quindins…Faremos um auto natalino engajadão, nacionalista!… DONA AMÁLIA COLETTE – E você que me dizia que não temos mais auto… GOLIAS – Auto natalino sempre se consegue, de papelão, o Leopardo das Vinte nos prepara um. DONA AMÁLIA COLETTE (suspirão) – Um auto preto em rua de neve… Ai! Que lindo… GOLIAS – Aí está, aí está: o título de nosso auto!
DONA AMÁLIA COLETTE – Essa Xim Fong pode ser o saco da Mamãe Nutella. Magrinha assimcomo é será o saco vazio. Aí nós vamos enchendo de presente até estourar as medidas, ah ah ah. GOLIAS – Que perversidade, Mamá… DONA AMÁLIA COLETTE – Não importa… Eu já decidi tudo. Olha só como ficou o cenário! Astrês renas acabaram de chegar. Vamos organizar a produção de presentes. ANÃO PINOTE – Este ano Mamãe Nutella apresenta uma novidade: os pacotes serão todos iguais,porém cada criança, ao abri-lo, terá realizado seu desejo. GOLIAS – Ah um auto de magia, finalmente! DONA AMÁLIA COLETTE – Todo o poder à imaginação, que lindo! XIM FONG (entra com o telefone na mão, o fio solto) – Meu Gol de placa, tem um homembarbudo praguejando do outro lado da linha… GOLIAS – E como sabes que é barbudo? XIM FONG (em seguida sai de cena) – Ora, tem pelos dentro da voz… RENA 1 – As verdades se indagam quanto ouro dão as sombras…
RENAS 2 e 3 – Quantas sombras, quantas sombras, espalhadas pelo chão… RENA 2 – Nossos corpos imitando as verdades mais carentes… RENAS 1 e 3 – Quantos gritos derramados dentro da mesma canção… RENA 3 – Olha a mão, olha o castelo do juízo, olha tudo, olha até o murmúrio do impossível… RENAS 1 e 2 – Quantos sonhos se fabricam no quentinho da paisagem… GOLIAS – Quem fala? A VOZ – Quem imaginas que seja! GOLIAS – Posso imaginar de tudo… A VOZ – Mas no fundo sabes quem sou! GOLIAS – Temo que sim. O que desejas? A VOZ – Não se trata de um desejo e sim de uma queixa… Não devem dar muita trela àimaginação. Ela é a grande morada daquele outro…
GOLIAS – O irmão torto? A VOZ – Um porco! GOLIAS – Mas os dois se queixam da mesma coisa. Cada um quer ser o espelho do mundo. A VOZ – Não posso querer ser o que já sou. É apenas uma questão de refazer a ordem natural dascoisas. GOLIAS – Há quem diga que a ilusão é a última quimera. A VOZ – Por quem me tratas? GOLIAS – Pelo que talvez sejas mais do que imaginas… A VOZ – Quem imagina é o outro… XIM FONG (retornando com outro telefone nas mãos) – Meu Goliardo, mil desculpas, eu trouxe otelefone errado, é este aqui, toma… GOLIAS – Alô… Alô… Mas este está mudo… XIM FONG – Não é melhor assim?
MAMÃE NUTELLA – Xim Fong entendeu o espírito de nosso auto. Vejam só como cai a neve láfora… XIM FONG (cai pra trás) – Ai! Que susto!… Donde saiu essa Mãe Preta?… MAMÃE NUTELLA (sorrisão Eucalol) – Sou um Gênio Bom do Natal… XIM FONG – Gênio Bom do Natal é o Papai Noel… MAMÃE NUTELLA – Quem pode, pode, minha fia… Tem Papai Noel de olho azul, barba branca…E tem Mãe Preta de saia rodada… Papai Noel é pra gente fina, do Teatro Municipá… ANÃO PINOTE – E tem o Tio Índio… pra defender nosso Folclore… MAMÃE NUTELLA – Dos Irmãos Bilhas Buenas… Mas Tio Pery saiu da moda… Não colou. ANÃO PINOTE – E você, Mãe Preta?… Está aguentando a concorrência com Papai Noel?… MAMÃE NUTELLA – Facho o que pocho, meu fio… Trabalhei na Televisão, fiz papé no Direito deNascer… GOLIAS (estala os dedos) – Plek-Plek!!! Agora me lembro!!! Mãe Preta!!! Na Tevê Azteka!!!
ANÃO PINOTE – Mas isso é pechincha de subúrbio… Ao passo que Papai Noel é astrointernacional… MAMÃE NUTELLA – Papai Noel é Grobal, meu fío… Traz presente caro pras crianças dos EstalosZunidos e Oropa… Eu trabaio na favela… Trago presente artesanal… Tudo feito de cartão, folha dejornal… Bonecas, buscapés, barcarolas, balões, brabuletas, bolas de futibó, cobras spanta-coió…charutos… DONA AMÁLIA COLETTE – Charutos pras crianças? Você vai ser presa, Mãe Teté!… MAMÃE NUTELLA – Os charutos e figas-da-guiné são pra pretos velhos e pretas velhas quevoltaram a ser criança… Seu Bastide e Dona Nurce são meus freguês… Há mais de noventa anos… GOLIAS – Apronta esse magnífico trabalho de assistência social… mas inteiramentedesconhecida… Aposto que o Papai Noel nem te conhece, Mãe Fubica… MAMÃE NUTELLA – Poizé Seu Gogô… Ele finge que não me conhece… Mas tudo bem… Seu Noé éda boa sociedade, gente branca, de grana… Ele só trabaia de helicopes… GOLIAS – De helicóptero?? Mas, e as Renas??? MAMÃE NUTELLA – Elas estão aqui no Teatro, Seu Golias!… GOLIAS (pálido) – Essas três… três renas são as do Papai Noel???
MAMÃE NUTELLA – ERAM, Seu Gogô… Agora não são mais. Não fazem mais xuxesso… GOLIAS – Mas são Renas Mágicas!… Elas sabem cantar!!!… MAMÃE NUTELLA – Papai Noel está pouco ligando… Ele passou pro Bazar Varejeiro, e SeuMoscão, por três maços de cigarro, levou as renas que vendeu pro Teatro… GOLIAS – Amália!… Quanto você pagou pelas Renas?… DONA AMÁLIA COLETTE – Paguei uma fortuna, Golias… raspei o que sobrava na caixa e… GOLIAS (rola babando de raiva no chão) – SUA BUUUUUURRRRRRRAAAAAAAA!!!! DONA AMÁLIA COLETTE – Achei que valia o investimento, pois nosso auto não poderia existirsem elas. GOLIAS – Até aqui só deu muita confusão. DONA AMÁLIA COLETTE – Mas isso se afina… GOLIAS – Como? Se nem mesmo um rabisco de roteiro nós temos? Estamos acumulandofracassos…
DONA AMÁLIA COLETTE – Não me invente de desistir agora… GOLIAS – Mas o que fazer, Mamá? DONA AMÁLIA COLETTE – Vamos fazer o que sabemos fazer melhor. Todo mundo em volta damesa. As três renas embrulhando os presentes. Anão Pinote colocando tudo no grande saco. MamãeNutella caladinha espiando se tudo está saindo como ela deseja. MAMÃE NUTELLA – Disto só saberemos quando a criançada receber os presentes… GOLIAS – Mas sempre podemos imaginar o melhor… DONA AMÁLIA COLETTE – É isto, meu Agogô! Esta é a razão do auto: tornar o mundo melhor. ANÃO PINOTE – Abre a boca, Xim Fong. Esqueceste que és o saco? DONA AMÁLIA COLETTE – Tudo o que pedimos é que deem o máximo de imaginação, com todaa lenha na máquina. GOLIAS – Isto agora é um trem, Mazinha? DONA AMÁLIA COLETTE – Podemos ser tudo o que queremos. Como fazemos de noite emnossa…
GOLIAS – Psiu, mulher! Os nossos segredos são somente nossos. DONA AMÁLIA COLETTE – Como se a trupe já não houvesse reparado… Tá bom, meu meninoimpossível! RENA 1 – As fábulas se indagam quanta luz dão ao mundo… RENAS 2 e 3 – Quantas luzes, quantas luzes, espalhadas pelo chão… RENA 2 – Nossos corpos imitando as janelas mais abertas… RENAS 1 e 3 – Quantos sonhos derramados dentro da mesma canção… RENA 3 – Olha a pérola, olha o trem a caminho do paraíso, olha tudo, olha até o suspiro daeternidade… RENAS 1 e 2 – Quantas noites se fabricam no quentinho da dessa mata… DONA AMÁLIA COLETTE – Ui! Que lindo! GOLIAS – Agora vai…
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