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2018 THEATRO AUTOMÁTICO 1

Published by Floriano Martins, 2018-11-27 14:34:08

Description: 2018 THEATRO AUTOMÁTICO 1
ZUCA SARDAN & FLORIANO MARTINS

Keywords: teatro

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SANDRA FOX – Sr. Bento, por favor, uma declaração sua para nossos telespectadores, que possailuminar as inquietudes em termos da autoria desse surpreendente espetáculo… BENTO CRUZ – Nunca sei se o encontro da arte com a imprensa é uma oportunidade de iluminaros mistérios da criação ou de destampar o velho fofocódromo onde despontam as vaidades maisdébeis e os farsantes mais ilustres… SANCHO BERMÚDEZ – Ora, meu caro, por que tamanha acidez? BENTO CRUZ – Creio que estou sendo até mesmo simpático com quem me chamou de “beatíficopaspalho”… SANCHO BERMÚDEZ – Não fui eu. Foi ela. BENTO CRUZ – E há alguma diferença? SANDRA FOX – A nossa curiosidade é reflexo da inquietação popular. Afinal, o Sr. é o autor dessaobra de arte que estamos transmitindo ao vivo? BENTO CRUZ – Pois que morram de tanta curiosidade… E morram calados, para que o públicoacompanhe a peça… Paspalhos… SANCHO BERMÚDEZ – Sim, seguidores da nossa Estepe News, deixemos o áudio abertodiretamente do Theatro Automático, com vocês:

• Careca e Panfir retiram o telão, enquanto escutamos as vozes entoando um coro quase ao ponto deperder o ritmo, enquanto começam a entrar em cena, primeiramente Rigoletta Escapulário, logoseguida por Capitão Garrancho, Coroinha Ganimedes, Cura Arnóbio, Exorcista Calligaro,Inquisidor Hermeneuto, Oduvaldo Fogueira, Quasimbo do Prado, todos dançando e cantarolando:A pedra comia a casa vaziaAçucena dos santosCartaz de procura-seA casa caía a pedra se erguiaO milagre foragidoJá não sabe onde estáNa rabeira do ventoNo quintal das misériasCobre um santo cobre a estrelaNão deixa o sangue estancarCobre um verbo cobre a esmolaNão deixe ninguém entrarPONTO EUXÍMIO – Não deixar ninguém entrar, por que, se o Diabo já está no palco?…

COROINHA GANIMEDES – Mas Euxímio, esse Diabo é o Narciso Melindro, o primo-bailarino daÓpera Garnier… PONTO EUXÍMIO – Ora, Ganimedes, todos sabemos que o Narciso é homossexual. COROINHA GANIMEDES – Teria sido, talvez, mas agora mudou de sexo e virou mulher. PONTO EUXÍMIO – Se virou mulher iria querer s’esfregar em homem e não em mulher. COROINHA GANIMEDES – Mas ele é mulher lésbica, quer se esfregar mesmo é em mulher… PONTO EUXÍMIO – Se seu anseio é s’esfregar em mulher, não deveria ter cortado o pau. COROINHA GANIMEDES – Doutor Pery Ceciliano lhe cortou o pau, mas deixou o prepúciointacto. PONTO EUXÍMIO – Ora, Ganimedes, de que adianta um prepúcio sem pau?… E como poderiaDoutor Pery ter preservado o prepúcio do Narciso se lhe cortou o pau?… COROINHA GANIMEDES – Boa pergunta, Euxímio, também não sei como é possível… Que tal seperguntássemos ao próprio Doutor Pery? Lá está ele, aliás, sentado na terceira fila. Vamos consultá-lo. PONTO EUXÍMIO – Vai sozinho, pra não espantar, melhor ainda, vai e traz o escabroso para cá…

COROINHA GANIMEDES – Doutor, uma dúvida minha que é de todos: como o destroncado doNarciso ainda pode sentir gozo no roçado? DOUTOR PERY CECILIANO – Tudo foi feito com um absoluto controle do acaso. Primeiramenteprocedemos a uma retração ao limite máximo do prepúcio, para só então cortar a glande e suasequência. Pelo visto a prega cutânea ficou com alguns de seus assuntos bíblicos pendentes. Deuspara entender? COROINHA GANIMEDES – Claro que Deus! Eu temo que sim. Mas a que loucura alguém podechegar… DOUTOR PERY CECILIANO – Sem dúvida há aqui uma explicação a mais por ser dada. Osíncubos não são propriamente fornicadores e sim sedutores. Por esta razão, o grande bailarino que éNarciso Melindro optou pela cirurgia para melhor encarnar a figura diabólica, o mestre de todo oincubinato. PONTO EUXÍMIO – Mas se ele é a encarnação do diabrudo, então o mal já está dentro…Queremos todos sair daqui! COROINHA GANIMEDES – Mas que nada! Deu-me agora a mais intensa curiosidade de saber oque pode suceder em meio a esse sabbat desentoado… Quem sabe não nos misturamos todos em umroça-roça de pagode, até que esse cover de Diabo nos indique um caminho… Vamos lá, Euxímio!

• Careca e Panfir, de cara fechada, barram o caminho dos dois pândegos. CARECA – Mais um passo e lhes quebramos os cornos seus pulhas debochados!… COROINHA GANIMEDES – Mas, Careca, qual é o problema? Queremos aderir ao pagode!… PANFIR – Não há nenhum pagode no palco, seu debochado ignorantaço. Estamos assistindo umespetáculo de Arte Superior. CARECA – A Divina Arte!… Vocês passem pro Circo Cyclame, onde as chanchadas baratas são proteu nível mental, abestado!… Porque aqui… PANFIR – …Só temos Arte Divina… A Divina Arte!… PÚBLICO DOS CAMAROTES – Bravoooooooo!!!… Divina Arte!!! Arte Divina!!! TURMA DO POLEIRO – Pós-de-Arroz!!! Frescos!!! Bichaaaassss!!! TURMA DA ELITE – Seus analfabetos!!! Burros!!! Comunistas!!! Lafranhudos!!! • A turma do poleiro invade os camarotes e as cadeiras das primeiras filas. TURMA DO POLEIRO – Peeegaaa!!! Mataaaaaa!!! Esfola!!!

• Começa um tremendo arranca-rabo de dantescas proporções. SILVÉRIO DOS POTES – Sargento, já chega! • Desde o momento em que o Coroinha Ganimedes e o Ponto Euxímio tentam subir ao palco o cenário é reproduzido em uma tosca gravação de celular, ouvida pelo Sargento Pelicano na delegacia Quadrante das Américas. Quando irrompe na sala o delegado Silvério dos Potes: SILVÉRIO DOS POTES – Desligue essa gravação! Quanta barbárie! Como se explica que nossotradicional Theatro Automático quase é destruído por essa turba virulenta! Não fosse a ação vigorosada polícia logo teríamos ali o Corpo dos Bombeiros cuidando dos destroços ou mesmo de algumincêndio… Sargento Pelicano, quem é o primeiro suspeito a ser interrogado? SARGENTO PELICANO – Não se trata de um suspeito, mas sim de uma testemunha: o sineiroCasimbo do Prado. SILVÉRIO DOS POTES – E o que o senhor nos conta, seu Casimbo? CASIMBO DO PRADO – Tudo começou na hora em que a festança no palco foi invadida peloclero. Eu estava ali com eles e pude ver as provocações. Ganimedes parecia possuído pelo demônio eapalpava a dona Rigoletta que, ao se virar, acreditava ser aquela pegação coisa do Calligaro ou doArnóbio. O chifrudo se aproveitava da situação e também futricava nas carnes da senhora. No meiodaquele enevoado avermelhado o salseiro foi se alastrando e o endiabrado do coroinha tratou de daro rumo que já sabemos.

SARGENTO PELICANO – O meliante foi detido, o senhor que interrogar o bicho agora? SILVÉRIO DOS POTES – Ainda não, sargento. Primeiro quero que o Casimbo me diga se essaesbórnia estava no contexto, se fazia parte do script. CASIMBO DO PRADO – Nem por sonho! Nós sequer deveríamos ter entrado em cena. A peçaencerraria sua primeira parte com aquela dança. Haveria então um intervalo, para que o cenário fossepreparado para a segunda parte. Tudo aquilo foi ideia do Ganimedes. SILVÉRIO DOS POTES – Muito bem, sargento, traga o peçonhento agora. • Sob o comando de Sargento Pelicano, e empunhado por dois robustos fuzileiros, Ganimedes é apresentado ao Delegado Silvério. SILVÉRIO DOS POTES – Pois então, seu depravado, agora terás de dar conta de teus desatinos àJustiça. COROINHA GANIMEDES (cai de joelhos) – Socorrei-me, Dona Justiça, defensora implacável dosórfãos e das viúúúvas… SILVÉRIO DOS POTES – Deixa-te de vãs afetações. Não és órfão, e muito menos viúva. COROINHA GANIMEDES – Sim, sou órfão!… Fui bebê-de-roda!…

SILVÉRIO DOS POTES – Bebê-de-Roda nâo é órfão!… É infante abandonado pela mãe culposa. COROINHA GANIMEDES – Minha pobre mãezinha ingênua e pura campônia, foi seduzida porum delegado sem escrúpulos. SILVÉRIO DOS POTES – Chega de subterfúgios ridículos pra fugir do assunto!… COROINHA GANIMEDES (em lágrimas) – Sim, Papai… SILVÉRIO DOS POTES – Não fui eu, paspalho, foi tua mãe doidivana quem te botou na roda!… COROINHA GANIMEDES – Sim, Papai, ela acreditou que seus gracejos fossem sinceras juras deamor!… SILVÉRIO DOS POTES (possesso) – Cínico louco safado!!! Não sou seu pai!!! COROINHA GANIMEDES – Quero uma prova de seu DNA… E a Justiça então saberá que oSenhor é meu pai!… SILVÉRIO DOS POTES – Pelicano, trata-se de um louco varrido. Precisamos despachá-lo proHospício Pilatos! Mande preparar o camburão. Presto!!! SARGENTO PELICANO – Sim, Delegado!… Mas precisamos esperar a chegada de Doutor Pery.

SILVÉRIO DOS POTES – Mas… Quem mandou chamar o Doutor Pery??? Foste tu??? SARGENTO PELICANO – Eu não, Delegado!!! Quem telefonou e chamou Doutor Pery… foi oSineiro Casimbo. SILVÉRIO DOS POTES (no auge da fúria) – Por que chamaste o Doutor Pery, seu sineiro puto demerda??? • Sineiro desmorona, rola babando no chão, em gestos espasmódicos. Entra o escrivão, acompanhado. ESCRIVÃO OLEGÁRIO – Licencinha, meu Delegado?… Eis que vos trago aqui comigo o DoutorPery… DOUTOR PERY CECILIANO – Muito bem, do que se trata essa inesperada convocação de meuspréstimos? SILVÉRIO DOS POTES – De um equívoco, sem dúvida, pois não há nada aqui que justifique otestemunho da ciência médica. CASIMBO DO PRADO – Mas, seu Delega, o meliante se diz seu filho e exige que seja comprovadaa paternidade!

SILVÉRIO DOS POTES – Isto são lacraias que a destemperada de sua mãe lhe pôs na cachola. Nãohá que dá maior importância. DOUTOR PERY CECILIANO – Se o representante da lei assim o diz, não há que por dúvida.Porém, já que estou aqui, que mal pode haver em constatar o óbvio? Basta o senhor dar uma cuspidadentro de um copo… SILVÉRIO DOS POTES – O que queres dizer com isto de óbvio, seu Esculápio de araque? DOUTOR PERY CECILIANO – Deixemos quieta a poeira do passado, Silverinho. Não crês que éóbvia a tua inocência? Então o que temes? Anda, dá logo essa cuspida e vamos todos embora daqui. • O delegado cospe no copo e, em seguida, Doutor Pery recolhe a cuspida de Ganimedes, no mesmo copo. Mistura bem e dá o veredito: DOUTOR PERY CECILIANO – Falso alarme, como era previsto. As salivas não se misturaram.Dou por encerrada a missão. Alguém me leve a um bar mais próximo… SILVÉRIO DOS POTES – E tirem daqui esse farsante… SARGENTO PELICANO – A quem queres interrogar agora, seu delegado? SILVÉRIO DOS POTES – Melhor deixar o assunto amolecer um pouco, sargento. Acompanharei ohonrado médico até o cabaré de Aída Lapartida…

• Todos deixam o local. As luzes se apagam e logo que a cena volta a iluminar-se o delegado e o médico se encontram sentados em uma pequena mesa redonda, compartilhando uma bebida. SILVÉRIO DOS POTES – Meu caro doutor, eu já vi um pouco de tudo nesta vida, porém devoconfessar que jamais ouvi falar nesse teste de misturar as cusparadas… DOUTOR PERY CECILIANO – Ora, Silvério, eu sou um Prometeu acorrentado pelamesmerização global da crescente bestificação em preconceitos sacralizados, da verdadecataplasmizada por séculos de crença na obviedade científica dos donos do saber. Descobri que oHomem tem três fluxos líquido-totêmicos constantes ao longo de toda a sua vida: o fluxo daslágrimas, que vem do coração, o fluxo da saliva, que vem da barriga, e o fluxo da urina, que sai dondesai e que vem do Id, a fonte do desejo!… Então, o exame da urina num copo de cristal, reflete os raiosdivididos das várias pulsões instintivas. O copo de cristal tem uma separação vertical, fixadalateralmente nos pontos do diâmetro, de modo a se poder fazer um estudo comparativo das cuspidasde dois indivíduos diferentes, e ver em que se harmonizam e em que se contradizem. Uma mijada depaciente honesto, projeta reflexos dourados… e dum paciente falso, reflexos laranja. SILVÉRIO DOS POTES (desconfiado) – E no caso das cusparadas minhas e do dúbioGanimedes?… DOUTOR PERY CECILIANO – A sua, meu caro, saiu certamente doirada… SILVÉRIO DOS POTES – E a do Ganimedes?…

DOUTOR PERY CECILIANO – Saiu muito estranha… Assim meio furta-cor… SILVÉRIO DOS POTES – Aí está… trata-se de um ladrão de galinhas, um gatuno ordinário!… DOUTOR PERY CECILIANO – Ainda não poderia confirmar esta suspeita, sem passar acusparada no ventilador de ondas ultravioletas… SILVÉRIO DOS POTES – Eu sempre soube que a saliva era um líquido purificador, mas vejo que étambém denunciador. Bom, seja como for, não é só o farsante coroinha que me preocupa. Há muitovejo o que se passa naquele teatro de pulgas, com suas noites fumacentas e uns gritos que minampelas paredes durante o dia. Não escondo a tranquilidade que me daria ver aquele prédio escafedidoda terra de uma vez por todas… DOUTOR PERY CECILIANO – Pois viemos ao lugar certo, e veja que se aproxima a solução detodos os seus problemas, a própria dona da casa, a vidente Aída Lapartida. Sente-se conosco,querida… AÍDA LAPARTIDA – Peryquito, meu belo, há quantas!? DOUTOR PERY CECILIANO – O tempo não conta nada para nós, minha receita predileta deconvulsões… SILVÉRIO DOS POTES – A senhora é vidente?

AÍDA LAPARTIDA – Senhora eu nunca fui, xerife, mas vidente, sim, lá pelos idos que já foram,bem antes de eu me estabelecer aqui com este cabaré. Hoje só cuido das minhas meninas… O únicopalmo que ainda enxergo além do nariz diz respeito à esperteza de alguns clientes que querem comersem pagar. DOUTOR PERY CECILIANO – O delegado vem se queixando das atividades lúbricas visíveis einvisíveis que se dão no velho Automático. O que sabes de lá, querida? AÍDA LAPARTIDA – Além de que estão com o aluguel atrasado há três meses? SILVÉRIO DOS POTES – Isto é o que eu chamo de um bom começo… DOUTOR PERY CECILIANO – Pois do delegado pretende por um fim em tudo lá… AÍDA LAPARTIDA – Eu já pensei na forma ideal. Durante um daqueles sabbat nevoentos eupoderia preparar um de meus filtros negros de amor que eles beberiam em suas adorações ocultas, eseria o fim, um belo suicídio coletivo que não despertaria maiores atenções do que a usualdecrepitude espiritual de uma seita… SILVÉRIO DOS POTES – Linda ideia. Eu abriria um processo rápido para investigar o que logo seconcluiria ser estranheza de um lastimável culto satanista.

DOUTOR PERY CECILIANO – Eu atestaria a desgraça singular causada por uma avaria coletivado próprio discernimento. Fim da questão. SILVÉRIO DOS POTES (sottovoce) – Vamos disfarçar, Pery, que acaba de entrar no bar o DoutorRúbio Bordosa, extremamente honesto, um herói nacional intransigente… DOUTOR PERY CECILIANO – A Gralha de Bruxelas! Crocita sem parar… Réplicas e tréplicas noCongresso Nacional. Haja saco e café pra coar… SILVÉRIO DOS POTES – Não seja cético, Pery!… Essa descrença no valor nacional é que não deixao Peru crescer!… DOUTOR PERY CECILIANO – Mas não estamos no Peru, Silvério, acho que você andou de novocheirando fubá… SILVÉRIO DOS POTES – Quem?? Eu?? Sniff… Jamais!!… Não sou sniff… drogado como você, seuDoutor vira-bosta!… Zombando Sniff… do nosso Rúbio!… DOUTOR PERY CECILIANO – Se você não estivesse tão pirado, perceberia que sou um fanáticoadmirador de nosso Gavião de Granada!… SILVÉRIO DOS POTES – Gavião não, o nosso Condor passa!… DOUTOR PERY CECILIANO – Você continua pirado, pensando que estamos no Peru…

SILVÉRIO DOS POTES – Estamos na Rua da Casa do Peru!… DOUTOR PERY CECILIANO – Essa sua obsessão fálica inconsciente se exacerba com o seu fubá… SILVÉRIO DOS POTES – Eis que ele se aproxima… Ainda será o Presidente do Brasil!… Bom dia,Doutor Bordosa!… RÚBIO BORDOSA – Não deixeis que vos afastem dos bons carecas, pois os maiores vigaristas sãosempre cabeludos… SILVÉRIO DOS POTES – Vossa careca, Doutor Bordosa, é luminosa, um verdadeiro Farol deRhodes!… RÚBIO BORDOSA – Agigantam-se as formigas saúvas, e zombam da virtude dos tamanduás!… SILVÉRIO DOS POTES – Nossos heroicos tamanduás-bandeiras defendem a Amazônia!!! DOUTOR PERY CECILIANO – Mas os Tatus não fazem nada!… Se escondem no buraco. SILVÉRIO DOS POTES – Os Tatus são uns alienados. Mas nossos Tamanduás são impretéritosdefensores de nossas florestas!… RÚBIO BORDOSA – E de nossas vitórias-régias, nossos manacás em nossos bosques…

SILVÉRIO DOS POTES – Nossos bosques têm mais flores, e nossas flores… AÍDA LAPARTIDA – …mais ardores. DOUTOR PERY CECILIANO – Bravos, Aída (palmas) Plac-Plac-Plac!!!… Bravooooo!!! Bis!!! Bis!!! RÚBIO BORDOSA (sottovoce pro Silvério) – Seu amigo é o Radamés?… SILVÉRIO DOS POTES (sottovoce) – Não, Doutor Bordosa, é tão só Doutor Pery, um médicochegado a um bom fubá… E hoje… exagerou na dose. RÚBIO BORDOSA – Agigantam-se as cheiradas nas fuças de nossos pirados, que zombam davirtude dos honestos operários. SILVÉRIO DOS POTES – Isso mesmo, Doutor Bordosa, precisamos de mais igualdade social noBrasil. RÚBIO BORDOSA – Não, Silvério, é preciso uma desigualdade social proporcional à desigualdadenatural. SILVÉRIO DOS POTES – É verdade, Doutor Bordosa!… Um avestruz não pode ser tratado comoum urubu…

RÚBIO BORDOSA (digno) – … ou como uma… Águia!!! SILVÉRIO DOS POTES – da Conferência da Paz da Haia!!!… DOUTOR PERY CECILIANO – E do… Sniff… Tribunal Internacional de Lambadas, na Haia!!! SILVÉRIO DOS POTES (sottovoce pro Bordosa) – Não repare, Doutor Bordosa… O Pery… sniff..Sniff… hoje… Sniff… exagerou na dose … • Doutor Rúbio Bordosa, digno, faz um leve cumprimento, e se afasta… SILVÉRIO DOS POTES – Até que enfim, foi-se o sacão… Sniff… Mas… Sniff… de que estávamosmesmo falando?… AÍDA LAPARTIDA – Aqui entre nós, eu suporto o Doutor por uma razão oculta: ele me contratauns rapazinhos, para divertimento privado. Tenho dois de sua preferência, que vieram do Uruguai, eme rendem bons tostões… Mas que é uma trolha de nojo ah isso é… SILVÉRIO DOS POTES – Não me diga! AÍDA LAPARTIDA – Já disse. Agora trate de esquecer. Certa vez um cliente me contou dosacordos sexuais e das cerimônias satânicas articuladas pelo ator Narciso Melindro a pedido do BispoFerrasco. Segundo esse cliente esta foi a razão da existência do Theatro Automático, verdadeiro panode fundo para acobertar a luxúria de seus amores negros.

DOUTOR PERY CECILIANO – Eu mesmo fui chamado várias vezes para ressuscitar algumasmocinhas que certamente haviam ultrapassado os limites dos suspiros poéticos… AÍDA LAPARTIDA – Asdrúbal Sacolão, que sempre cuidou da recolha do lixo aqui na rua, tambémme falou de sacos fedorentos e que ele constatara se tratar de panos rasgados encharcados de sangue.Algo de estranho ali sempre houve, de modo que agora é nossa deixa, temos que… SILVÉRIO DOS POTES – Mas como seria o plano de envenená-los? AÍDA LAPARTIDA – Tudo muito simples. Eu mesma já forneci ao cura Arnóbio umas receitas demeus afrodisíacos sobrenaturais…Posso agora lhes preparar algo com o fulminante efeito de um raio,agora que acelere o coração até que a máquina pife por completo. DOUTOR PERY CECILIANO – Eu mesmo posso levar o presente macabro, ah ah ah… SILVÉRIO DOS POTES – De modo algum, pois daria nas vistas. Melhor que tenhamos porcúmplices a dupla Panfir e Careca, nossos infiltrados sem despertar desconfiança… DOUTOR PERY CECILIANO – Temos agora que aguardar uma noite em que a fraternidadedemoníaca se reúna por completo, para não deixarmos nenhum sacripanta de fora. AÍDA LAPARTIDA – Porei as meninas de butuca, atentas a tudo… E deixarei prontos os potes combeberagem certa.

SILVÉRIO DOS POTES – Adeus, amores diabólicos! Adeus, conluios entre a igreja e bruxos… DOUTOR PERY CECILIANO – Adeus meninas, com seus dotes sobrenaturais e sua pujançaembriagadora… AÍDA LAPARTIDA – Peryquito, não te faças de choroso, desde já te prometo uns xodós ciganosinesquecíveis… DOUTOR PERY CECILIANO – Mas não posso deixar de sentir uma culpada tristeza, uma saudadeinvoluntária por este pérfido mundo diabólico… SILVÉRIO DOS POTES – Realmente, os amores infernais, cruéis, mas fascinantes, sãoirresistíveis… AÍDA LAPARTIDA – Este boteco é assombrado… A parede do fundo se abriu… e vemos umafloresta!… DOUTOR PERY CECILIANO – Sim… Alumiada pela lua vermelha… Não é um quadro… Há umafogueira acesa… SILVÉRIO DOS POTES – A voluptuosa atração pelo abismo… Mas eis, à volta da fogueira… umasfeiticeiras dançam em roda…

DOUTOR PERY CECILIANO – Com adoráveis meneios… de ancas… risadinhas marotas…Feiticeiras jovens, faceiras, com vigor juvenil, e uma agilidade felina… SILVÉRIO DOS POTES – Estão nos acenando, Pery!… Ai, que me dão um tesão satânico!… DOUTOR PERY CECILIANO – Não há como resistir… Que tal, Silvério, se matássemos só apadrecada, e deixássemos as jovens feiticeiras vivas?… SILVÉRIO DOS POTES – O mundo com as jovens safadas feiticeiras, e sem a padrecada, seria oJardim das Delícias… DOUTOR PERY CECILIANO – Por isso os Padres não querem deixar ninguém gozaaarrrr!!!… ossacerdotes são inimigos jurados do Prazer!… SILVÉRIO DOS POTES – Acabemos com os Padres, e sua cruel Tirania, e abramos o mundo parao dionisíaco furor!… DOUTOR PERY CECILIANO – Avante Baco!!! Viva o Bacanal!!! Viva o Marquês de Sade!!! Avante,Silvério, vamos ao Sabbat!!! • Ouve-se uma belíssima flauta… Surge Pan, dançando, e tocando sua melodia ligeira, feliz… Renasce o Mundo Pagão!…

AÍDA LAPARTIDA – Não há jeito, suas perebas volúveis… Já esqueceram que as orgias financiadaspelo Clero são todas impregnadas de cartas marcadas…? Até mesmos os céus são tingidos comanagramas ardilosos… Qualquer um que caia ali naquela rede demoníaca não tem escapatória…Escutem a flauta de Pan Valentino, o nosso diabinho prometido… E esqueçam o próprio nome, poistudo em nossa floresta de delícias é a fina flor de um paganismo sem ida nem volta… DOUTOR PERY CECILIANO – Pois assim seja: a ciência que não descuide dos encantos daimprovisação! SILVÉRIO DOS POTES – O prazer acima da lei! DOUTOR PERY CECILIANO – Somente através da força erótica alcançamos a plenitude do ser. SILVÉRIO DOS POTES – Viva a tentação e a concupiscência! • Põem-se todos a dançar, no mais abrupto frenesi, uma espécie de triunfo herético, um escarcéu de pegação e desnudamento… Rapazinhos e jovens feiticeiras misturadas aos embalos lúbricos de Silvério, Pery e Aída… Todos seguindo a flautinha mágica… Fi-firi-firi, fli-flinando, majestosa… As luzes vão pouco a pouco desmaiando, até a mais completa escuridão.

FIM DO PRIMEIRO ATO

ARC Edições coleção “Nuances postiças”1. Bazar dos Grandes Invisíveis, de Zuca Sardan e Floriano Martins 2. Livro desmedido de William Blake, de Floriano Martins 3. O livro invisível de William Burroughs, de Floriano Martins 4. Theatro automático 1, de Zuca Sardan e Floriano Martins 5. Theatro automático 2, de Zuca Sardan e Floriano Martins 5. Theatro automático 3, de Zuca Sardan e Floriano Martins

2018


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