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2018 LIVRO DESMEDIDO DE WILLIAM BLAKE

Published by Floriano Martins, 2018-11-23 14:50:20

Description: 2018 LIVRO DESMEDIDO DE WILLIAM BLAKE
FLORIANO MARTINS

Keywords: poesia

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criar e lembrar, explicar ou não. Somos frutos do amor e graçasunicamente a ele todas as formas se unem, se fundem em uma só.Somente o amor ambienta nossas contradições. O amor é um traçounicamente humano. Os deuses não amam, assim como as lesmas ouos unicórnios. Vivi uma época patrocinada por um horror sacrílego à Imaginação.Deus então se opunha a toda e qualquer visão espiritual. Não deveriamais ser aceito como senhor do amor e da bondade, mas como umfiltro que estabelece a louvação como norma, em lugar da afinidade.Deus não era mais humano. Havia sido convertido em catedral epapiro. Eu fui culpado de me opor a meu tempo, em todas as suaslimitações ⎼ por mim concebidas como tais, disseram ⎼, mas o quesempre tive em mente é que não há nada mais fundamental na vidado homem que não seja criar e criar e criar. Eis como devemos povoaro espectro da existência humana: com as nossas criações. Assim surgiram personagens em meus escritos que se destacampela discordância entre eles, firmando uma recusa frontal àortodoxia. Eu busquei todas as vozes. Não apenas ouvi-las, porémencarná-las. Sempre quis saber como elas reagiriam dentro de mim. Omundo é a casa de todos, jamais poderemos impor a quem seja

nossas convicções ou expectativas. Os séculos se amontoarão e ohomem seguirá repetindo o mesmo erro. Todas as janelas construídas como uma forma de nos conhecermosa nós próprios e às nossas possibilidades infinitas, serão tomadas porigual limitação, a de imposição de uma visão. Eu tive a minha vidapautada por uma sequência inesgotável de visões e jamais algumadelas se impôs diante de meus olhos como uma razão única. Ohomem sempre teve bondade em seu coração, porém sempre arejeitou. Esta talvez seja a única carta do baralho existencial que eujamais compreendi. No dia 12 de agosto de 1827 eu morri. Eu não estava propriamentecantando sobre as coisas que via no céu. Cantei a minha vida inteira,ancorando meu devaneio em uma melodia. Tanto a imaginaçãoquanto a razão carecem de ritmo. Catherine esteve comigo na hora deminha morte. Eu sempre contei com ela para que fosse meu infinito.Catherine é meu horizonte e sei que sobrevivo nela.

2016 | MEU ENCONTRO COM WILLIAM BLAKE⎼ Que obscuro amor secreto pode vir a destruir a vida?⎼ Meu corpo é minha alma. Minha alma, meu corpo. O mundo estácoberto pela existência do que imagino. As visões mais divinas e acarne queimando por dentro, tudo está tomado pela dimensão denossas eleições. Um verbo para cada desejo e a idade certa para cadamovimento. A alegria não condena ninguém ao lodaçal dos enganos.⎼ O que espera o homem ao adentrar a vida de uma mulher?⎼ Dá-me o gozo para gozar, e o coração para expressar gratidão. Abeleza me espera sempre o mais longe dos sepulcros. Malditos sejamos cantos que não criam novas incertezas. Malditas, sim, as vorazesnúpcias que esmigalham a paixão, bem como o coro das funestasiguarias do contentamento. A nenhum deus é dado o direito de exigira morte de seus acólitos.

⎼ Quais milagres te convencem de que os santos existem?⎼ Soletra em meu corpo o teu reino atacado pela arrogância, procriaem minha pele os estragos de uma colheita perdida. Não mecondenes às lágrimas compassivas das masmorras ou me convertasàs estrofes pestilentas de tuas crenças. Eu não existo. A minha vidanão é propícia a religião alguma. Com os meus restos não erguerásnenhum mercado de almas.⎼ Aonde nos leva a fome das virtudes, o pecado de sua gula?⎼ Não sabemos em que bosque nos faz desaparecer a ilusão, a qualleito ou céu nos devolve a obsessão pelas virtudes. Não há comovoltar a viver. Verbo algum se compadece de sua pronúncia em umteatro alheio a suas transgressões. Um amor não é o que se esperadele, e tanto resiste ao túmulo quanto mais se mostra um enigmaconvicto de si mesmo.

PÁGINAS APÓCRIFASA vida me escapa por entre os sulcos invisíveis da matéria.Suas páginas me atravessam com o mesmo entusiasmocom que aprendemos a extrair o milagre das sombras.Quando a voz se ergue cria um mundo à beira do silêncio,roça o precipício da compreensão, antes de avultar-lhea precedência. A voz se move como um prodígiopor entre a espessa treva fria de nossas crenças. A voz,com seu intervalo de refúgios, o lacre de seus elementosgravados para uma última revelação. A pedra da criaçãolapida um coro nos arredores da voz, como uma matilhade monstros desgarrados, com seus urros que proclamama sensualidade do caos. A noite transtornada nas igrejas da voz.O pai regendo a queda. A dor promulgada como uma chaveque se adapta às maldições. Volto a dizer que sim, era ele:Milton. Com seu manancial incriado. A silhueta movediçado primeiro profeta. Seu rosto esculpido no vidro

como um evangelho em desacordo com os próprios erros.O que me queria dizer? A mutilação da voz ao percorrero reino das ilusões? Que os deuses almejam a representaçãode nosso fracasso? Não importa. Ao trazer consigo os céusde nossa discordância entalhou as pistas de um novo conflito.

PEQUENO DESASTRE DA SENSIBILIDADEEu dei a última volta no céu, buscando suas árvores refeitas. O céupossui uma técnica de conciliação que me impressiona. A tudo tornaadequado, até mesmo sua fealdade é bela. Os céus maistempestuosos são líricos. Qualquer artista sabe contrariar o quepensamos do inferno e dar-lhe um acento de inquestionável fascínio.Os céus permanecem intocáveis, sempre adequados, alheios àrestauração. Toda forma de messianismo está baseada em um truqueantitético que parte da representação do inferno como o sítioverdadeiro do mistério a ser vencido, mais do que simplesmentecompreendido. Não somos nada quando entramos em julgamentocom o céu. Cabe ao inferno retroceder. As escrituras sagradas são oícone de uma era de iletrados. O céu possui um método de impressãoque converte em beleza divina toda a matéria que o absorve. Oinferno até hoje paga por haver reescrito a própria imagem. Qualartista se assinaria com um nome impronunciável? Somos aemanação do céu ou do inferno?

CONTORNANDO JERUSALÉMEspalhei escadas e abismos por todos os lados para melhor apoiar oscorpos. A queda não é uma antecipação. Talvez não seja nem mesmoo desejo lacrado de permanência em algum duto de ventilação. Oespaço não afiança os erros do tempo. Geralmente somos a supressãode algum entalhe que perdeu a ênfase. A experiência, no entanto,acaba se permitindo definir por uma tutela lógica. Se eu entorto umacolher com o olhar sou atração de circo. Se a colher está onde nãoposso vê-la, sou um caso científico. Para que haja uma versão militara colher precisa se converter em um gatilho. Se nada for explicado, ofato pode ainda ser meramente estético. Desde que o Vaticano não sesinta ameaçado. O meu corpo foi se deformando em meio à indecisãosobre a data desse concílio impossível. Nada era tão simples nemhaverá resposta para o ocorrido. A ciência e a religião jamaisconseguiram entender a mecânica ilusória da criação. Somos umaideia decaída do que um dia poderíamos vir a ser. Todas as forças se

movimentam em direção ao inevitável. São uma representação dodestino cujos apócrifos se perderam em nossa memória.

GÊNESE DE UM LIVRO DE TRUQUESAo receber em casa exemplar do livro Gog, de Giovanni Papini, deimediato após a primeira folheada saí com ele, sem nada planejar.Após um tempo impreciso caminhando dei de cara com um lugarchamado Mercado 153. Entrei e o simpático metre me informou quetinha Heineken original, holandesa. Aquele 153 me levou direto aonove de sua decomposição, número que multiplicado se reproduz a simesmo, de acordo com o princípio da adição mística. Um gole dageladíssima cerveja e, ao folhear novamente o livro, pedi ao metreque me conseguisse papel e caneta. Incalculável o tempo que levei aescrever, até que, sem que antes desse por conta, percebi que estavaescrevendo de forma invertida, como se o manuscrito só pudesse serrevelado pelo uso de um espelho. Surpreso e faminto, pedi um filéalto, mal passado, e voltei a folhear o livro de Papini, sem, no entanto,ler sequer uma frase. As manifestações espíritas se dão deincontáveis maneiras. Há aquelas que produzem estranhos ruídos ouque arrastam móveis pela casa; outras que materializam bilhetes ou

fornecem pistas para que localizemos velhas tranqueiras domésticasou mesmo alguns pequenos tesouros; há ainda aquelas em queouvimos vozes ou somos tomados pelo espírito de alguém… Minhamãe e sua irmã vislumbravam formas humanas, chegando aidentificá-las e conversar com elas. No meu caso não houve nadadisto. Naquela manhã o que senti foi a presença invisível de WilliamBlake, a delicada força de sua mão segurando a minha esimplesmente rascunhando notas e mais notas. Durante cinco ou seisvezes repeti aquele ritual. Retornava ao Mercado 153, sentava-me àmesma mesa, cerveja, filé, sem que nada faltasse. Sempre comigo olivro de Papini, mesmo sem abri-lo. No terceiro dia o metre indagouse eu era escritor. Para ele a minha visita era tão afetuosa quanto a deBlake para mim. A primeira cerveja eu tomava conversando com ele,curioso de tudo. O poeta inglês prosseguiu com seus manuscritos, eno quarto dia me apresentou Catherine, sua esposa, pedindo que eutambém a deixasse escrever algo. Observo agora que nem mesmoquando as anotações se concluíram eu voltei a folhear o exemplar deGog. Senti que havíamos finalizado aquele estranho rito quando mepus a desenhar o rosto de Blake e logo o meu próprio sobre ele. Nãonos despedimos. Algo em mim estava ciente de que eu havia recebido

um presente. Nossa relação com o mundo, visível ou não, se dá comoa percepção de uma ponte, cujo entendimento da mecânica decomunicação de duas experiências é o que define nossa existência.Blake me descrevera fatos que não constam de suas diversasbiografias. Somente uma semana depois é que comecei a ler Papini.Em algum momento fomos – Blake, Papini, eu – a misteriosa definiçãode três mundos: corpo, intelecto e espírito.

ARC Edições coleção “Nuances postiças”1. Bazar dos Grandes Invisíveis, de Zuca Sardan e Floriano Martins 2. Livro desmedido de William Blake, de Floriano Martins

2018


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