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ALDEIA DE GRALHAS - MEMÓRIAS DE UMA VIDA

Published by dvazchaves, 2020-09-30 18:10:05

Description: ALDEIA DE GRALHAS - MEMÓRIAS DE UMA VIDA

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Domingos Vaz Chaves 51

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida 52

Domingos Vaz Chaves AS ACTIVIDADES E AS ESTAÇÕES DO ANO Quer em tempos que já lá vão, quer ainda nos nossos dias, chegada a Primavera, os lavradores, retiram os estercos (estrumes) das cortes e levam-no às leiras (terras) que pretendem semear. Uma vez retirado o esterco, é necessário refazer a «cama» do gado. Para tal, há então que cortar novo estrume (mato), o que normalmente é feito na serra, de modo a que as «camas» dos animais sejam repostas. Após se fazer a preparação da terra com várias lavouras, entre as quais, as chamadas decruada, aricada e o agradar das leiras, a semente da batata é então lançada nos regos e a terra lavrada em sulcos; isto nas leiras maiores e mais planas, porque nas mais pequenas e inclinadas o trabalho é feito manualmente à enxada. Até ao meio do século passado, feitas as sementeiras da Primavera, ranchos numerosos de aldeões, debandavam rumo à Galiza, para as «segadas», e deambulavam de terra em terra, até chegarem de novo à aldeia, no momento justo em que os centeios e fenos estavam prontos para a ceifa e o corte. Durante este periodo de emigração sazonal, era costume as jovens raparigas, grangearem pequenas poupanças, para comprarem o seu primeiro fio de ouro, cordão ou até mesmo, o seu primeiro par de sapatos, que nos domingos ou dias de festa, substituíam as socas ou os socos, que durante a semana calçavam. Era normal nesta situação, pernoitarem num mesmo palheiro, 10, 20 ou mais pessoas, homens a um lado, mulheres a outro. 53

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida Em pleno mês das segadas, os fenos eram cortados pela manhã fresca, pela força muscular dos segadores, cada qual empunhando a sua gadanha. Era um trabalho duro. Faziam-se carreiros de erva e também de suor, que corria em fio, pela face dos segadores. A sua alimentação era «cuidada», e para além das fatias de pão, embebidas em vinho com açúcar, comiam do melhor que a casa tinha. O feno era depois espalhado e virado para secar ao sol. Se o tempo estava de feição, em dois dias ficava pronto para ser engaçado e levado para os palheiros. Se sobrevinha a chuva era um prejuízo quase total. As ervas perdiam o seu valor alimentar e praticamente só ficavam as fibras sem valor nutricional. Em Gralhas, as segadas do centeio, eram também feitas com ranchos «de fora», isto é, a pagar, ou mais frequentemente, em resultado de uma entreajuda de vizinhos, com retribuições mútuas de dias de trabalho. Juntos os molhos em pequenas «medouchas» e atingido um certo nível de secagem, o centeio é transportado para as eiras onde se ergue uma ou várias grandes medas. A eira é então preparada para a malhada. Recolhe se a «bosta» de vaca em grandes quantidades, é dissolvida em água e espalhada pelo terreiro. Depois de sêca faz o efeito de um «asfalto» acastanhado. Antes das máquinas de malhar esta tarefa era efectuada a malho e nas casas «ricas» chegava-se a prolongar a malhada, por mais de uma semana. Hoje as ceifeiras debulhadoras fazem todo o trabalho de modo rápido e eficaz, mas retiram também às aldeias os mais belos e intensos momentos de convívio e sentido de grupo. Depois de darem a volta à chave do palheiro e feitas as sementeiras de Outono, sobre os agricultores de Gralhas e às portas do Inverno, recaíam novas preocupações!... Havia que limpar então os regos dos lameiros, recompor as tornas e endireitar as paredes caídas dos terrenos. 54

Domingos Vaz Chaves Entretanto as «matanças» aproximavam-se. O porco funcionava e funciona ainda, como um bem natural, que se vai transformando ao longo do ano. Nos dias anteriores à «matança», tudo é preparado ao milimetro!... Homens e mulheres necessárias, cordas, palha para queimar, matador, lavadeiras das tripas, cozinheiras, banco para assentar o porco, alguidar para o sangue e tudo o mais que seja necessário. Chegado o momento, vive-se então um reflexo profundo e antigo da festa da mesa e da repartição do produto do trabalho, que é garantia da sobrevivência da família, tal como desde os mais remotos tempos dos Castros. Assaduras, chouriças, chouriços, rojões, pás, presuntos, cabeças e queixadas, são um não mais acabar de iguarias, que vão fazer os prazeres da mesa, durante todo o ano, até à matança seguinte. Em casa, com largueza e com braços para trabalhar, não havendo doença ou desgraça, a vida segue feliz os seus dias. Quer no passado, quer ainda nos dias que correm, os agricultores de Gralhas, quase sempre se dedicavam a uma segunda profissão. Principalmente durante o inverno vira- vam pintores, pedreiros, carpinteiros - antigamente era necessário fazer novos sócos, novos carros das vacas, «botar eixes», fazer novos arados, novas grades, novos ladrais, novos engaços, «encabar enxadas», arromendar (remendar) as capas e as molhelhas e um não mais acabar de instrumentos - ferreiros, alfaiates e outros. O sistema social e económico da freguesia, revelou um grande equilíbrio e consistência até ao aparecimento da cultura intensiva da batata e posteriormente ao abandono em massa da terra, a caminho das grandes cidades e da emigração. Em Gralhas, tal como em outras freguesias das redondezas, os «ricos» são todos parentes. Há exemplos, que são conhecidos, que nos mostram, que determinados casamentos eram quase como que «contratados» e levados a cabo, normalmente entre casas das mesmas posses. Nos finais do século XIX e início do século XX, acontecia mesmo, o filho mais velho casar em casa, e os irmãos tenderem a ficar solteiros para que esta não fosse dividida. Depois, aconteciam os desmandos «amorosos», que tinham como testemunho, os filhos nos braços de pastoras e filhas de cabaneiros, os quais, só muito raramente ou por serem forçados a tal, chegavam a ser reconhecidos pelo pai. 55

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida Até à segunda metade do século passado, nos dias dos casamentos, os convidados do noivos reuniam-se em separado nas casas dos respectivos pais. Comiam, bebiam e conviviam ao som do toque da concertina e da voz do cantador contratado para a boda, quando o houvesse. Na casa da noiva, os seus convidados, seguindo as tradições antigas, anunciavam os rituais dentro e fora da igreja, para a concretização do casamento. Quando ali chegasse o cantador, este, pedia ao pai da noiva, para abrir a porta e permitisse que a filha viesse ao encontro da sua nova existência. Após ser dada a permissão, seguiam todos em fila, vestindo do melhor que cada um tinha, ostentando as mulheres, os seus fios ou cordões de ouro, fazendo-se acompanhar das respectivas oferendas, rumo à igreja. Após a celebração, seguia-se o almoço, servido por cozinheiras especializadas e para o efeito convidadas, em grandes mesas rectangulares, por forma a que nada se dispersasse. Da parte da tarde, era a festa... beber dançar e cantar, eram os principais «pratos da sobremesa». ... 56

Domingos Vaz Chaves 57

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida 4 58

Domingos Vaz Chaves A ORGANIZAÇÃO SOCIAL AO LONGO DOS TEMPOS... A organização social, o clima e a morfologia do solo, condicionaram claramente e desde sempre, as actividades rurais da população da aldeia, que viveram durante anos entregue às suas tradições mais antigas, algumas das quais perduraram até aos dias de hoje. A base dessa organização até meados do século XIX, assentou na «assembleia» dos representantes das várias famílias em cada povoação, que reúniam com uma certa periodicidade, junto às igrejas, quando tal se tornava necessário. Essa assembleia chamava-se Junta, Acordo, ou Conselho e foi herdeira do antigo “conventus publicus vicinorum”, que significa assembleia pública dos vizinhos, do reino visigótico. Era nessa «assembleia» que se analisavam até à exaustão, os problemas que a todos diziam respeito, e se decidia por vontade expressa da maioria, as soluções a adoptar. 59

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida A Junta, era a mais perfeita expressão da Democracia Popular, e foi dirigida até aos primeiros anos do século XX por um «Juiz», um «Zelador», um «Juiz de Vintena», um «Procurador», um «Mordomo» ou um «Chamador», e a partir daí, até meados dos anos setenta da mesma era, pelo Regedor ou Presidente, o primeiro escolhido pelo povo das aldeias e o segundo pelas corporações concelhias, afectas ao regimo tatalitário da II República. O último Regedor António Chaves (Pistão) Os Regedores nomeados, eram normalmente as pessoas mais respeitadas das aldeias e totalmente independentes das autoridades administrativas oficiais, e quando da escolha, tinham a obrigatoriedade de permanecer no cargo, por um periodo minimo de 6 meses. Não eram remunerados, nem tinham qualquer tipo de privilégios pelo seu desempenho. A estes homens, competia fundamentalmente convocar as «assembleias», o que era feito normalmente através do toque do sino das igrejas ou das capelas onde elas existissem, e verificar as presenças e as ausências dos cabeças-de-casal. Aqueles que sem justificação não estivessem presentes, eram como que «excomungados» pelas populações, já que a todos era exigida a presença, fosse para o bom ou para o mau. Após a verificação das presenças, apresentavam-se então os assuntos a tratar. Todos em conjunto, ou individualmente. Eram calorosamente discutidos, mas mandavam as regras, que teriam sempre de ser encontradas soluções e de acordo com a vontade da maioria presente. Em caso de empate, cabia ao «Juiz» tomar a decisão. Eram muitos e variados os assuntos que se apresentavam às «assembleias» e estas tinham obrigatoriamente de encontrar soluções, tendo em conta cada caso concreto, designadamente, no que dizia respeito à reparação e abertura de caminhos, 60

Domingos Vaz Chaves organização da vida pastoril, distribuição das águas de rega, locais de roça, limpeza das igrejas e dos tanques, trabalhos para comunidade e tantos outros necessários à melhoria das condições nas aldeias. Esta tipo de organização durou séculos e passou de geração em geração através dos usos e costumes da terra. A partir dos finais da década de setenta do século passado, este tipo de organização social viria a ser substituída por uma espécie de «Conselho Dominical», cujos moldes de funcionamento eram muito semelhantes, senão vejamos: No final das missas de domingo, era recomendado a todos os aldeões presentes nas mesmas, de que deveriam aguardar, normalmente no largo fronteiriço às igrejas, onde teria lugar uma «reunião» para decidir sobre determinado assunto. Estas reuniões, eram «presididas» pelo Presidente ou Secretário da Junta, a quem competia colocar as questões em discussão e avaliar as respectivas votações. À semelhança do que acontecia no passado, nada ficava escrito e o registo das decisões tomadas, ficava no subconsciente de cada um, que as acatava. Actualmente, este método caíu quase em desuso. O Conselho Dominical, poucas vezes vai a votos e foi substituído pela moderna Assembleia de Freguesia. A coberto de tal modernidade e amiudadas vezes, os senhores Presidentes cedem à tentação fácil de decidir sem ouvir o povo e de o informar, preferindo afixar papéis em determinados locais, que poucos se dão ao trabalho de ler. ... 61

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida A DECADÊNCIA COMUNITÁRIA As «segadas», as «malhadas», os «carretos», as «vezeiras», os «motes», o cantar dos «reis», as «chegas de bois», entre outros, são exemplos de misturas exóticas entre o religioso e o pagão, que evocaram no passado os deuses, em favor de colheitas fartas e que é preciso não deixar esquecer. O comunitarismo tradicional, resultou assim, da necessidade de conjugar esforços, para mais facilmente se atingirem os fins desejados. E não apenas em termos laborais, ou de preparação de festas. O povo de Gralhas, impunha igualmente as suas regras, através do seu «Conselho Dominical», reunido aos domingos após a respectiva Eucaristia. Aí, onde eram transmitidas as «ordes» (ordens), aprovavam-se posturas, para garantir o respeito pelos bens e direitos comuns e pela propriedade privada, para permitir ou não, a seiva dos gados nos terrenos abertos que estavam de restolho, para arrendar os baldios, as côrtes e os palheiros, para impôr a realização de determinados trabalhos, para restaurar, limpar e pôr em funcionamento as infra-estruturas para uso da comunidade, designadamente, caminhos, represas, forno do povo, moinhos, lama-do-boi, igreja, cemitério, poças e regos-da-água entre outras. Toda a gente era solidária. Com a mesma facilidade, com que cumpriam as regras, pediam e emprestavam o fermento, o pão, a ferramenta, o burro ou a junta de vacas. Pediam e davam apoio na «segada», na «carrada», no «meter do feno», na «arranca da batata», na «matança do porco» ou na feitura do fumeiro; socorriam os vizinhos na hora da «desgraça», do incêncio, da inundação, das geadas que tudo queimavam e da doença de pessoas e animais, ao mesmo 62

Domingos Vaz Chaves tempo, que com eles choravam, nos momentos de luto e de desastre. Hoje, as novas técnicas simplificaram a satisfação das necessidades de cada agregado familiar e por isso, a necessidade de entreajuda e de partilha de recursos, foi-se diluindo progressivamente. Praticamente, tudo é feito de forma mecanizada e comercializada, e o comunitarismo, apenas resiste em pequenas franjas da população da aldeia, muito embora muitos dos «rituais», se mantenham vivos. Uma matança Interior do Forno Comunitário de Gralhas Nos dias que correm, a desertificação da aldeia é um dado adquirido. Nada foi feito, para inverter esta tendência e as familias, que aí se mantêm e que persistem na sua labuta, são normalmente auto-suficientes. OS MOTES, OS MESES DE INVERNO E DE INFERNO Como já foi referido, em finais do mês de Dezembro ou princípios de Janeiro, já em pleno e rigoroso Inverno, que por estas paragens, é ainda hoje conhecido e de que maneira pela sua longa «duração», tinha lugar a primeira sementeira da época agrícola que se avizinhava: a sementeira do centeio. Era um corropio de carros atrelados às juntas de vacas, chiando rua abaixo, rua acima, num corropio, cujo lema final era o transporte do esterco (estrume dos currais do gado), para as leiras (terrenos), que depois de podre e bem curtido, servia para adubar as respectivas terras. Daí até à proxima etapa – a segada -, era tudo uma questão de paciência e fé em Deus. Por um lado, porque desde que as sementes eram lançadas a terra, até ao momento de colher os frutos, «nada mais» era necessário fazer, pelo outro, porque se rezava aos Santos, para que o as neves ou as geadas, muito comuns por estas bandas, não fossem tão abundantes, que viessem pôr em causa o sustento de muitas familias. 63

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida OS MOTES DE GRALHAS Neste periodo de maior lazer, em parte provocado pelo frio, pelas chuvas e pelas neves, era então chegado o Entrudo, época de Caretos e de Motes, que a juventude muito apreciava.Mas se os primeiros não constituem qualquer novidade, o que eram efectivamente os Motes?... De que tratavam?... Os Motes, eram quadras de louvor, escárnio ou maldizer, de origem pagã, nascidas nos alvores da nacionalidade, e um tipo de poesia, galaico-portuguesa, que constituíu sem qualquer dúvida, um dos fenómenos culturais mais ricos da Idade Média e se prolongou na aldeia de Gralhas, até aos finais dos anos sessenta do passado século. Eram enfim, um momento único de louvor ou de critica aos aldeões, tendo sempre como pano de fundo, a satirização da sua conduta, das boas ou das más acções praticadas, durante o ano que os antecediam. Os textos das quadras, que poderão eventualmente ser chamados de intervenção, eram lidos por dois «trovadores» previamente escolhidos, pela juventude da aldeia, que em conjunto com os anotadores (autores), as escreviam antecipadamente e em total segredo, durante os serões das longas noites do inverno, de modo a que no momento certo, constituíssem autêntica novidade. O texto no seu todo, contemplava, uma a uma, todas as familias da aldeia, e em geral, cada duas ou três quadras, eram dirigidas em exclusivo e em forma de louvor ou critica, a determinada familia ou membro da mesma. O amor, a vaidade, a ganância, a inveja, a falta de solidariedade, a critica pessoal, as «casamenteiras» e os «compadres», aliados à veia cómica, lirica ou satírica estavam sempre presentes. Por vezes, determinadas criticas, não eram muito do agrado de quem as ouvia, designadamente, quando as mesmas lhe «batiam à porta», ou mesmo, quando através da sua leitura, se punham a descoberto, «amores proibidos», «negócios fraudulentos», «comportamentos hereges», «falta de dignidade e honradez» ou se ridicularizavam os comportamentos menos abonatórios das pessoas visadas. 64

Domingos Vaz Chaves Mas como é que tudo isto funcionava: No dia aprazado para a leitura dos ditos Motes e ao toque do sino da Capela (de Santa Rufina), o povo juntava-se no largo hoje apelidado de Cruzeiro. Um dos trovadores, subia para a varanda do Zé Rato, segurando o seu caderno de leitura e o melhor galo da freguesia, devidamente decorado com todo o tipo de adornos, e que para o efeito, era oferecido ou comprado. Para a varanda fronteiriça, subia o segundo trovador, munido tal como o primeiro, do seu caderno, onde previamente haviam sido escritas as quadras, que iriam fazer as delicias dos presentes, tanto mais que cada lavrador, suas mulheres, filhos, filhas, namorados, namoradas, velhos, velhas e até os solteirões e solteironas da terra, não escapavam à ridicularização. Uma vez instalados e em jeito de leitura feita ao desafio, os trovadores, só interrompidos pelas palmas dos presentes, faziam a apologia do galo. Realçavam as sua cores, o seu tamanho, o tamanho da sua crista e dos seus «tomates», a sua elegância e altivez, o modo como cantava, tudo isto intercalado com comparações satiricas, a determinadas pessoas presentes na concentração. Aqueles que não resistiam, abandonavam o local a resmungar, em sinal de protesto, mas tudo isto fazia parte da «festa»... Após atingidos os primeiros objectivos, o galo era então simbolicamente morto e esquartejado. Logo após, procedia-se à distribuição de todas as componentes do seu corpo!... Sempre de forma simbólica, aos aldeões alvos de maiores criticas, eram atribuídas as penas. A outros, cuja conduta não era tão censurável, saíam-lhe em sorte as patas ou a cabeça. Para outros, dado o seu melhor relacionamento e disponibilidade, ficavam reservadas, as asas ou o pescoço e para os aldeões exemplares, para aqueles que mais contribuíam para a boa harmonia e para o progresso da terra e respectiva população, ficavam as cochas e o peito, que eram as partes mais apreciadas. No final da sessão, surgiam os comentários de concordância ou discordância, com o desfolhar das criticas. Discutia-se, a «qualidade» dos Motes, se tinham sido bons ou maus 65

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida se tinham sido melhores ou piores que os do ano anterior!... Discutia-se o «ataque» que fora feito ao fulano A, quando quem tinha a ver com o assunto, era o B. Discutia-se a inoportunidade de desvendar determinado segredo, quando outros, deviam vir para a praça pública, enfim... todo um rol de questões, que eram tema de conversa, nos três ou quatro dias que se seguiam. Quanto ao galo, agora sim... via chegada a sua hora, de fazer as delicias de quantos tinham contribuído para a festa. Anotadores e trovadores, reúniam-se em casa de um deles e após a respectiva «janta», comemoravam pela noite dentro... TRÊS MESES DE INFERNO Após as comemorações natalícias, por estas bandas carregadas de significado, a passagem do Carnaval, a época da Quaresma e da Páscoa, cuja efeméride e tudo quanta a envolvia, era igualmente muito respeitada, aproximava-se a grande labuta... Labuta essa, que tinha inicio em finais do mês de Junho e se prolongava até aos últimos dias de Setembro, motivo pelo qual, muitos apelidavam este periodo, de «três meses de inferno», assim conhecido, pela abundância de trabalho, que havia nesse espaço de tempo. Era o corte do feno nos lameiros, o seu transporte para os palheiros, a segada, a malhada, a arranca da batata, entre outros que amiudades vezes íam surgindo e que era necessário ultrapassar. AS SEGADAS A «segada», era um dos ditos trabalhos, que marcava particular relevo na mente dos meus conterrâneos. Como todos os outros, era tudo feito manualmente, o que obrigava, a que fosse preparada e anunciada quase ao milimetro e com a devida antecedência. 66

Domingos Vaz Chaves Os convidados, constituídos normalmente por familiares e amigos próximos, precaviam- se com gadanhos (foices) novos, que adquiriam normalmente em Espanha e apresentavam como autênticos troféus. Face ao previsível número de «pousadas (número de molhos) a colher», era necessário calcular o número de pessoas necessárias, de entre seitoiras (segadores) e atadores, para que tudo decorresse, entre um, dois ou o máximo, três dias, tanto mais que havia outros vizinhos em «fila» de espera. Chegado o dia, era um «ver se te avias»!... Desde o nascer ao pôr do sol, apenas com interrupções para o mata-bicho (pequeno-almoço) e jantar (almoço), os quais tinham lugar em determinada leira (terreno) previamente definida, os segadores, percorrendo fazenda a fazenda, erradiavam uma alegria constante!... Faziam-se «apostas», discutia-se o número de regos (sulcos) que cada um segava, quem era o melhor segador, quem atava melhor, «arranjavam-se» namoricos e no final, o momento esperado: o recolher dos molhos para a roda (circulo) - feita normalmente no meio da fazenda -, onde ficavam sobrepostos uns sobre os outros, com as espigas de fora e ao sol, para uma melhor maturação e a feitura do ramo (arranjo feito em cruz) da segada, que depois era transportado por um dos segadores, que em conjunto com todos os demais, entoavam cânticos, até à porta do «patrão», a quem o entregavam para exposição pública (normalmente feita nas varandas das habitações) e protecção divina. Como agradecimento pelos cânticos e pelo terminar do trabalho, era então dado de beber (vinho) aos segadores, através de um pipo (barril em miniatura), que circulava de boca em boca. Seguia-se a ceia (jantar), que normalmente se prolongava até altas horas!... Aí esgrima- se de tudo um pouco... Se a leira «A», dera muito pão (centeio) ou pouco; se a leira «B», tinha dado mais pousadas ou menos, que o ano passado; se determinada leira do fulano «A», é melhor que a do fulano «B», enfim... todo um corropio de assuntos, cujo pano de fundo, era sempre o mesmo... a competição entre lavradores. Finalmente e após mais alguns «copos» para retemperar as energias, era chegada a hora da deita. É que no dia seguinte, repetindo-se o figurino, o «patrão» dava em «empregado» e havia que levantar cedo. 67

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida A CARRADA O passo seguinte nesta desenfreada labuta, dava pelo nome de«Carrada» e consistia no transporte do centeio, segado nos diversos terrenos, para as eiras, que eram propriedade de determinado grupo de pessoas, sendo aí depositado em enormes medas, que chegavam em muitos casos a atingir, os quinze metros de altura, por outros tantos de diâmetro. Todo esse transporte, era efectuado em carros puxados por vacas ou bois e tal como na «segada», também a «carrada», obedecia a certos rituais. Os cornos do gado, eram lavados a preceito, o seu pêlo tratado como nunca, as campaínhas para o enfeitar, tinham que ser sempre as melhores da casa, isto para já não falar, dos melhores jugos, das melhores molhelhas (cangas) e dos melhores estadulhos, que nesta altura, saíam das «loijas» (adegas) e substituíam os de uso corrente. Durante a carrada, a jugada (junta de vacas ou bois) de cada lavrador, era sempre apresentada, numa atmosfera de competição. Era preciso dar o «risco» (ser o melhor). AS MALHADAS Até meados do século XX e tal como na sega do feno, do centeio, nas carradas ou nas malhadas, tudo era feito manualmente. Neste caso concreto, eram necessários para malhar, pelo menos oito homens, quatro de cada lado e cada qual utilizando o seu malho (mangualde). Depois do centeio malhado, era levantada a palha com uma forquilha e O centeio que ficava no chão, era tirado pelas mulheres, com uma vassoura, normalmente feita com ramos de giesta, até ficar limpo. Além disso, era ainda ajoeirado ao vento e só depois transportado em sacos, para as caixas (arcas). Não se pense contudo, que este era um trabalho fácil!... Apesar de não parecer, era tão árduo como a própria sega do feno, ou a segada do centeio. É que antes da malhada propriamente dita, havia todo um conjunto de afazeres, que não sendo fáceis eram de todo em todo bastante desagradáveis, senão vejamos: A eira, era devidamente varrida, e mais que uma vez. Posteriormente, era recolhida na aldeia e zonas limitrofes, bosta (fezes) do gado, com a qual era barrado o recinto, até agarrar bem. Esperava-se que a dita bosta secasse, e só então, estavam reunidos os requisitos necessários, para dar inicio à malhada propriamente dita. A partir dos anos 60, do mesmo século XX, este método foi-se alterando progressivamente e as malhadas, apesar de continuarem a fazer se nas eiras, tal como no passado, eram já feitas, com o auxilio de «malhadeiras» (máquinas), que com o decorrer do tempo, se foram tornando mais sofisticadas. 68

Domingos Vaz Chaves EXEMPLOS QUE RESISTEM A VEZEIRA OU GÁDINHO Todas as manhãs e em regra, a um sinal dado através do toque de um sino, cada proprietário, tem a preocupação, de fazer sair dos seus currais (côrtes) os seus animais e juntá-los aos demais, para que em conjunto e normalmente guiados por um ou dois pastores, subam as encostas da serra, na procura da sua subsistência. A todo esse conjunto de cabeças de gado, se dá o nome de Vezeira ou Gadinho e é um dos exemplos vivos de vida comunitária, que nesta aldeia vai perdurando no tempo. Os pastores, são os próprios proprietários dos animais, que se revezam na sua guarda. A regra é simples: por cada 10 animais ou menos, que possuam, terão de dar um dia de trabalho à comunidade. Se o número de animais ultrapassar a casa das dezenas em 5 ou mais, até aos 9, a esse dia ou dias de trabalho, é acrescentado mais meio dia, o qual é normalmente prestado, quando a soma dos meios dias, perfizer 1. 69

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Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida O DESPORTO DE EXCELÊNCIA NA ALDEIA | AS CHEGAS OU LIADAS As «Chegas» ou «Liadas» de bois, são uma antiga tradição das terras de Barroso e em particular da aldeia de Gralhas, por onde passaram muitos campeões e onde nos dias de hoje, pese embora as mudanças ocorridas, são ainda levadas muito a sério. Num passado não muito distante, cada «Chega», era um dia de festa, ou de tremenda amargura e tristeza, para os habitantes da aldeia. O principal protagonista, era sempre o «boi do povo». O «boi do povo» era um bem comunal e alimentava-se normalmente nas lamas (pastos), que pertencem ainda hoje a toda a comunidade. Cerca de meio ano, antes da participar em qualquer duelo, recebia ainda, feno, centeio, batatas, nabos, beterrabes e todo um conjunto de géneros, que eram oferecidos por todos os aldeões, para complemento da sua alimentação e respectiva engorda. Pernoitava numa casa (corte), que fazia parte igualmente, do património de todos. Anualmente e por uns tantos alqueires de centeio, um pastor «arrematava» a guarda e o tratamento do animal, de quem passaria a cuidar. Quando o animal chegava à idade adulta (cinco ou seis anos) tornava-se no orgulho da aldeia, sendo por isso, motivo de acesas discussões entre os habitantes de povoações vizinhas, com cada um a defender a maior pujança do seu animal. Estas discussões, terminavam irremediavelmente numa luta entre os animais - as chamadas «Chegas» ou «Liadas» - que visavam distinguir o campeão. Por vezes, fazia-se alguma batota!... Como funcionava? Antes da «Chega» aprazada, promovia-se um confronto preliminar entre os dois contendores, feito sempre às escondidas e normalmente em noites de luar. Para que isso acontecesse, o «boi do povo» de uma aldeia, era raptado, uma tarefa nem sempre fácil, quer pelos cuidados que cada pastor e a respectiva comunidade colocava na sua guarda, quer pela bravura do próprio animal, que geralmente se tornava agressivo face a desconhecidos, quer ainda, porque perante uma situação desse tipo e caso o raptor ou raptores fossem detectados, se sujeitavam a ser severamente maltratados, ou mesmo mortos, já que era colocada em causa, a honra e a dignidade dos intervenientes. Há mesmo exemplos, cujas marcas deixadas, são profundas. Em alguns casos porém, havia a conivência entre os tratadores das duas aldeias, que decidiam confrontar os animais para atestarem se estavam prontos para poderem realizar a «Chega» pública, de forma a que esta não resultasse num fiasco. 72

Domingos Vaz Chaves Caso o resultado fosse positivo, estavam então reunidas as condições para a realização do confronto, o qual devia ser acordado seguindo um certo ritual: os «rapazes» - mais maduros e badolas - de uma aldeia dirigiam-se, geralmente ao domingo, à aldeia que pretendiam desafiar. As regras do jogo exigiam que o desafio não fosse directo. Os visitantes deviam referir, de uma forma evasiva à juventude visitada, a possibilidade da «Chega», ao que os estes deveriam responder da mesma forma, mesmo que o seu «boi do povo» fosse o campeão coroado em outros confrontos. O passo seguinte dependia da aldeia desafiada, tanto mais, que a decisão a tomar, fazia parte da tradição comunitária, o que significa, que dependia da realização de um escrutínio, normalmente feito de braço no ar, no domingo seguinte, à saída da missa e após a comunicação do desafio, feita pelo Presidente da Junta. Neste escrutinio, era sempre exigida uma maioria absoluta, caso contrário, gorava-se a hipótese da realização da «Chega». Se o desafio fosse aceite, os responsáveis das duas aldeias, iniciavam então os planos para a realização da festa, que devia acontecer em data aprazada, passado que fosse um periodo, que oscilava entre os quatro e os seis meses e a meio caminho entre as duas povoações. A escolha do terreno, era também motivo de discussão, já que apesar da «Chega» ter obrigatoriamente de se realizar em terreno neutro, o tipo de piso era muito importante para o desenrolar do confronto. As técnicas eram as seguintes: Os proprietários de um animal jovem, tentavam que a escolha recaísse sobre um piso duro, enquanto que os donos de um animal mais velho tentavam assegurar um piso mole, menos desgastante para o seu boi, que geralmente era mais pesado. O meio termo, acabava quase sempre por prevalecer. Outro dos assuntos a negociar, prendia-se com os cornos do boi!... Havia que se decidir, se as suas pontas se afiavam ou não, se podiam ser introduzidas pontas de aço, ou até o enxerto de pontas de cornos, quando o animal estava mal servido delas. Posteriormente e após a «celebração do acordo» ocorriam ainda muitos outros rituais, tais como rezas, superstições, saberes ocultos e mezinhas, que poderiam contribuir para um desfecho favorável. Até as mulheres levantavam saias e saiotes vermelhos, para incitar o boi. Definido então o local da «Chega» e as condições em que a mesma iria decorrer, era então necessário, tratar da respectiva autorização junto das autoridades concelhias , 73

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida bem como da presença de alguns Guardas no local da contenda, como forma de prevenir potenciais desacatos, o que nem sempre era conseguido, face à emoção gerada em torno de cada um dos animais. Quanto às despesas, que daí resultavam, eram normalmente suportadas, em partes iguais, pelas partes envolvidas. Chegado então o dia aprazado, os dois bois, são conduzidos ao local do «combate», pelos seus tratadores munidos de varapaus, onde são colocados frente a frente. Invariavelmente, o campo de «batalha» está a abarrotar de gente, quer se trate de pessoas oriundas das aldeias dos bois em presença, quer de curiosos de outros lugares das cercanias, que vibrando com acontecientos deste tipo, acorrem ao chamamento de uma festa ímpar na região e que toca no subconsciente de homens, mulheres, jovens e menos jovens. Uma vez na presença um do outro, os animais «medem-se», sob o olhar atento do público presente, que de imediato toma partido, apoiando o seu favorito. Este é o momento em que se destacam os incitamentos das duas comunidades em confronto, que se revêem nos seus «bois do povo». Os dois possantes machos rapidamente se enfrentam. Segue-se uma luta indescritível de jogos de cornos e marradas, corpos a vibrar até ao extremo, luta sangrenta de carreiros de sangue na disputa, que vai marcar a distinção entre vencido e vencedor. Por alguns momentos descansam, voltam a investir, afastam-se, voltam a lutar, entrelaçam de novo os seus cornos uns nos outros e empurram-se mutuamente e com violência, mostrando cada qual a sua força e a sua bravura. A «Chega» pode ser rápida ou prolongada, dependendo essencialmente do gabarito dos contendores. Em qualquer dos casos, o entusiasmo dos assistentes é indiscritível. O seu final pode acontecer quando um dos bois abandona o «combate» fugindo em debandada, o que significa o assumir da derrota, ou quando um dos animais é irreversivelmente ferido pelas investidas do seu opositor. Para os habitantes da aldeia vencedora, os momentos que se seguem são de euforia, quase de glória. O seu boi passa a ser quase venerado. O vencido segue em silêncio, a caminho do talho. Dos tratadores e de quem os acompanha ouvem-se, por vezes, vozes roucas a desabafar, numa raiva incontida: «o boi perdeu, os homens ...veremos». As cenas de violência nem sempre são evitadas, mas felizmente são cada vez mais raras. Esta tradição, já não é hoje o que era dantes. Apesar dos habitantes destas Terras do Barroso, continuarem a vibrar e a manifestar grande entusiasmo com as «Chegas», o boi do povo, já não existe mais e aquilo que resta, são as «Liadas», comercializadas a troco de alguns euros, levadas a efeito por alguns proprietários individualmente considerados, que fazem desta actividade, o seu «ganha-pão». Dos tempos de outrora, resta a nostalgia 74

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Domingos Vaz Chaves AS CARVOADAS DE GRALHAS Na Serra da Lagoa, num tempo em que havia limites e em que as pessoas viviam debilitadas, homens e mulheres, rapazes e raparigas da aldeia de Gralhas faziam carvoadas às escondidas das autoridades. Era um tempo, duro e sofrido, em que tinha de se trabalhar para o caldo ou para a merenda. Mas a vida era assim, a gente não tinha de onde lhe viesse nada, tinha que comer. \"Valiamo-nos disso, da floresta, e depois a gente semeava a batatita como agora, as couvinhas, cenoura, cebola. A gente aqui não passa fome, mas dantes passou-se muita, era uma sardinha para três”, refere Fátima dos Santos uma habitante da aldeia hoje já na casa dos setenta anos. As carvoadas fizeram-se, de modo mais sistemático até à década de 1960, embora nos anos de 1970, já depois da Revoluçãode Abril, ainda setenha produzidocarvão,masjá deforma esporádica. Havia quem fizesse carvão regularmente porque não tinha outra forma de se sustentar. Eram normalmente os jornaleiros que no verão se ocupavam dos trabalhos agrícolas nos terrenos dos outros e no inverno, a par das carvoadas, guardavam o gado dos proprietá- rios. Estas carvoadas esporádicas eram realizadas mais frequentemente pelos jovens. Sozinhos ou em grupo, com um conhecimento mais ou menos sólido sobre todas as etapas do processo, usavam o dinheiro resultante da venda do carvão para aquisição de roupas ou para poderem ir a alguma festa da aldeia ou de aldeias vizinhas. A grande dificuldade na produção do carvão residia na sua interdição que obrigava a uma engenharia de esforços para evitar ser-se apanhado pela autoridade quando se andava a arrancar as raízes e a queimá-las: quem não tinha de comer tinha que andar sempre assim ao sobressalto. 77

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida Oarranque das raízes era feito durante o dia utilizando-se os sacholos e as enxadas. Esta operação, dependendo da quantidade de carvão que se queria fazer, tanto podia demorar apenas algumas horas comoprologar-se por uma semana. Arrancar as raízes era de todo o processo, a tarefa mais exigente em termos físicos. Com pesadíssimos sacholos rasgava-se a terra e retiravam-se as raízes. Mesmo aos mais fortes custava o manejo dos sacholos. Tarefa imprescindível era a da limpeza dos torgos após serem arrancados!... Olugar onde se queimavam os torgos raramente coincidia comaquele onde os mês- mos haviam sido arrancados. A queimada tinha de se realizar em locais mais ermos para ser mais dificilmente detectada pelos rondistas ou pelos guardas florestais. Seo lugar da queimada ficava perto do lugar onde se tinham arrancado os torgos, carregavam-se os cestos às costas. Se fosse para mais longe, utilizavam-se sacos de serapilheira que secolocavamno lombodos burros. 78

Domingos Vaz Chaves Por vezes, não era possível transportar as raízes logo após o seu arranque. Nesse caso, o trabalho era redobrado. Havia que levar as ra ízes para a aldeia, para não serem roubadas e no dia seguinte, transportá-las novamente para o lugar da queimada. As covas que se faziam para as carvoadas eram usadas uma e outra vez e por diferentes pessoas. Poupavam-se esforços e ganhava-se tempo. O tamanho da cova que se cavava dependia da quantidade de torgos que tivessem sido arrancados, e naturalmente, da quantidade de carvão que se pretendia obter. Se estivesse o tempo de chuva, e para impedir que a cova ficasse alagada, fazia-se um rego em redor da cova para escorrer a água. Depois de feito o buraco, tinha que se encher a cova com os torgos. Este procedimento obedecia a um saber fazer que permitia realizar uma queimada mais eficiente. Na base da cova colocava-se urze e carqueja para o lume pegar com mais facilidade. Depois, colocavam-se alguns torgos e chegava-se o lume colocando mais torgos, urzeecarqueja, àmedida que os torgos de baixo começassem atransformar-se em carvão. O processo podia demorar horas, dependendo dos torgos que havia para queimar, quando o fogo já tivesse pegado a todos os torgos, começava-se a tapar a cova. Primeiro, cobriam-se as raízes com pedras lascadas que se iam colocando de fora para o centro. De seguida, arrancavam-se torrões de terra e com a parte com vegetação voltada para baixo, tapavam-se as pedras, depoi e finalmente com a enxada, puxava-se terra para acabar de cobrir a cova, para que não entrasse ar e o carvão não se queimasse. Havia ainda que benzer a cova, protegendo-a para que todo o trabalho não ficasse perdido. Com o cabo da enxada marcava-se uma cruz e afastava-se o diabo. Otempo que os torgos demoravam a transfor- mar-se em carvão dependia da quantidade de material contido na cova, mas normalmente, eram necessárias vinte e quatro horas para que o processo ficasse completo. Havia quem preferisse queimar o carvão durante o dia. Outros arriscavam menos e optavam por fazê-lo a coberto da noite. Queimar os torgos, constituía um dos momentos mais vulneráveis de todo o processo!... Ofumo provocado pela queimada despertava a atenção dos guardas florestais e dos rondistas e nessa altura todo o trabalho podia ficar comprometido. Por vezes, quando se vol- tava ao lugar da queimada no dia seguinte já a cova tinha sido destruída pelas autoridades. Nem acruz valia comoprotecção. 79

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida Refira-se ainda, que havia guardas e rondistas mais tolerantes e solidários com as necessidades das populações.Outros, mais rigorosos, poucaempatia tinham comosinfractores. A memória colectiva referente às últimas Carvoadas de Gralhas remonta à década de 1960, embora nos anos de 1970, já depois da Revolução de Abril, ainda se tenha produzido, ainda que esporadicamente, o carvão. Havia quem fizesse carvão porque não tinha outra forma de se sustentar. Eram os cabaneiros sem terras próprias que, no verão, se ocupavam dos trabalhos agrícolas nos terrenos dos outros, e no inverno a par das carvoadas, guardavam o gado dos proprietários. Mas havia também, quem fizesse carvoadas apenas para ter dinheiro para comprar um pano para fazer uma blusa ou uma saia. Estas carvoadas esporádicas, que não se enquadravam numa prática de sobrevivência financeira da família, eram sobretudo realizadas pelos mais jovens. Sozinhos ou em grupo, com um conhecimento mais ou menos sólido sobre todas as etapas do processo, usavam o dinheiro resultante da venda do carvão para aquisição de roupas ou para poderem ir a alguma festa da aldeia ou de aldeias vizinhas. “Comecei a fazer carvoadas com treze, catorze anos!... Numa ocasião, que eu queria vestir uma roupinha à minha irmã, tinha de ganhar dinheiro que a minha mãe, coitada, não tinha para mo dar. E, então, fiz muito carvão e a minha irmã foi comigo vender. E depois ela já era uma mulherzinha e eu disse-lhe: já tens que andar vestidinha como ando eu, e quanto custará?!… Outra ocasião, uma amiga minha disse assim para mim: ó Adília vem aí a Senhora da Saúde e eu queria um vestido e a minha mãe não mo compra, tu podias ir à carvoada comigo. E eu digo-lhe assim: e tu sabes fazer carvão?!.. Tu sabes arrancar torgos?!... E ela disse: mas tu ensinas-me!... Fiz carvão até aos 19 anos” diz Adília, uma habitante da aldeia. A grande dificuldade na produção do carvão residia na interdição da sua prática. 80

Domingos Vaz Chaves De facto, a ilegalidade das carvoadas - até para cortar o mato era necessário uma licença - obrigava a que parte das operações técnicas tivessem de ser realizadas durante a noite: Quem não tinha de comer tinha que andar sempre assim ao sobressalto. Temiam-se, para além dos guardas-florestais, os rondistas, os homens do terreno que a guarda enviava para a serra com o objectivo de impedir o corte dos arbustos e a queima das urzes. Havia guardas-florestais e rondistas mais rigorosos e com pouca empatia para com os infratores: “Ainda fui responder à mor do carvão, mas não deu em nada!... Tinha 17 anos. Porque eu namorava com um rapaz e tínhamo-nos zangado e vínhamos embora de queimar o carvão e diz ele assim: não o haveis de trazer, cangalho!... E eu respondi-lhe assim: não, mas trago!... E eu não sei, foi-nos acusar ao guarda!... E depois no tribunal perguntaram-me como é que fui fazer o carvão, porque precisava, se queria vestir tinha de o ganhar que a minha mãe não tinha para mo dar. E depois deram-me pena suspensa, não sei se foi três ou quatro anos, mas pagar não paguei nadinha. Nadinha deste mundo. E foi assim a vida do carvão”. Eram os tempos difíceis de uma ditadura, em que a esmagadora maioria dos jovens e alguns adultos, para além de não saberem o que era dinheiro, tão pouco o sabiam contar. À distância de algumas décadas, rememorados hoje essa época em que osmais pobres dependiam do carvão para suprir as necessidades mais básicas, João Bengalas não hesita tratar-se de um tempo qiue não deixa saudades 81

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Domingos Vaz Chaves O emigrante dos anos 60 que maioritariamente teve a França como destino, tinha como projecto quase obsessivo o regresso. Sintoma disso é o facto de pouco menos de metade dos edifícios construídos no concelho de Montalegre, ter ocorrido entre 1965 e 1990. Uma circunstância que se deve a um boom construtivo em muito derivado ao investimento por parte desses emigrantes. Nesse espaço de tempo, o concelho de Montalegre perdeu mais de 40% da sua população, graças a esse fluxo emigratório em que a clandestinidade, mais do que uma travessia, era uma condição para gente pobre e humilde. UM EM CADA DOIS IA “A SALTO” Com efeito, a viagem “a salto” era algo que se registava em um em cada dois emigrantes. Experiências arriscadas, umas mais que outras, mas que constituía a esperança de uma vida bem melhor do que aquela a que se viam confinados. Os sinais de riqueza que verificavam nos que já tinham partido, era um gérmen, aliado muitas vezes à possibilidade de escapar à ida para a guerra colonial – que no início da década de 60 tinha deflagrado – e na qual muitos jovens da terra barrosã perderam a vida. Além do decréscimo na população residente, o impacto social e cultural provocou mudanças significativas, com os acontecimentos mais importantes a registarem-se em cada verão, em contraste com o resto do ano, a paisagem emoldurou-se das casas parecidas muitas vezes com as que os emigrantes viam nos países de acolhimento, os hábitos alimentares e de vestir sofreram grandes alterações e no fim de contas, a emigração proporcionou uma abertura ao mundo. Essa emigração, está agora em vias de completar um ciclo. O jovem que partiu da aldeia, é agora o avô que a ela regressou e está a gozar uma reforma despreocupado em termos financeiros. 83

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida Diga-se porém, que quem perdeu com este surto migratório, foi toda uma região e o país. Como é sabido, os modelos de desenvolvimento económico, ético, social e cultural em que o país tem persistido ao longo de décadas, têm entre outras consequências, provocado fenómenos de desertificação e de desflorestação, que em muitas das sua áreas assumem proporções sérias e ameaçadoras de sustentabilidade. E Gralhas e todo o concelho não fogem à regra. Não vão muitas décadas, que no único aposento das casas cobertas que eram de colmo, de rudes paredes de pedra sobreposta, por cujas fendas muitas vezes entrava o frio e o vento, nasciam as crianças nas aldeias mais remotas e perdidas no tempo. Nasciam sem assistência médica e só raras vezes com o auxilio de uma parteira improvisada. Aos cinco anos ensinavam-lhes a rezar, aos sete já lhe confiavam a guarda das vacas, das cabras e das ovelhas, o monte era a sua primeira escola e quase sempre a única, e aos doze, a vida de trabalho ininterrupto principiava. Rapaz ou rapariga e de “comunhão” feita, era já uma criatura emancipada!... Se os pais eram pobres, íam “servir”; se fossem filhos de lavradores remediados, faziam em casa o tirocínio árduo da lavoura. Mais tarde – por volta dos dezoito, os mais diligentes e ao serviço de lavradores mais abastados, chegavam a ganhar 50 escudos mensais, aos vinte era chegado o tempo da “tropa” e da guerra, e por volta dos vinte e três, livres que eram de “serem soldados”, casavam-se. Desde o nascer do dia até noite fechada, homens e mulheres tinham como único ofício, trabalhar no campo. À noite, até altas horas, era comum a mulher fiar junto da lareira a teia com que havia de fazer as primeiras meias e os primeiros cobertores, enquanto o homem descansava da labuta do dia, ajudando-a a dobar o fiado. A partir daqui, tudo volta ao principio e o trabalho sem rendimentos que se vissem, era o seu regime moral. 84

Domingos Vaz Chaves O dinheiro era escasso e muitos nem sequer o conheciam, a troca de bens aligeirava as necessidades básicas, e até a doença parecia respeitar todo este culto sagrado da economia dos lavradores de barroso, onde só a velhice os matava. Este, era pois o retrato social de uma região - tal qual outras “amordaçada” e abandonada pelos Governos Centrais. Foi assim nas décadas de 60, de 70 e de 80, até aos dias de hoje. Ora como era suposto acontecer, “não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe”, e todo este “regime patriarcal” acabaria por morrer economicamente e exactamente da mesma maneira como economicamente havia nascido e vivido durante séculos. Hoje, ignorar estes factos e dizer-se que a desertificação é um problema actual, é no mínimo surrealista e procurar tapar o sol com uma peneira, tentando esconder-se uma realidade, que aqueles que já contam para lá do meio século, conhecem como ninguém. Uma realidade, que como é sabido passou por escolhas: ou o desenvolvimento do interior ou a guerra que consumia cerca de 50% da riqueza nacional; ou paralelamente ainda, a contribuição para a manutenção de um “regime” sem horizontes ou a fuga à miséria. Chegados aqui, a escolha foi óbvia!... Na ausência de modelos de desenvolvimento económico, ético, social e cultural em que se persistia, as populações sem alternativas e sem esperança numa vida melhor não hesitaram: o abandono das aldeias e a fuga para o litoral, para as grandes áreas metropolitanas e para o estrangeiro ditaram o resto. E o resto é que na lista negra da desertificação e para além de outras regiões do país, consta também a região transmontana e como é óbvio todo o concelho de Montalegre. Concelho de Montalegre, que segundo o INE-Instituto Nacional de Estatística, tinha como população residente em 1960 - incluindo todas as faixas etárias, 32.728 indivíduos e 10 anos depois em 1970, a população já era de 22.925 – o que significa um decréscimo de 9.803 indivíduos; 11 anos mais tarde em 1981, diminuíu ainda mais e cifrava-se em 19.403; em 1991, a tendência continuou e os residentes eram 15.464, e finalmente em 2011, ano em que ocorreu o último census, o número total de indivíduos residentes era de 10.537. 85

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida Contas feitas, só entre 1960 e 2011, datas em que ocorreram os ditos censos, a população teve um decréscimo de 22.191 indivíduos, 4.927 dos quais, nos últimos vinte anos que antecederam 2011, segundo ainda as referidas projecções do INE. Diga-se em abono da verdade, que infelizmente a desertificação não é uma exclusividade do concelho de Montalegre!... É pelo contrário um problema nacional e concelhos existem bem piores que o nosso. E nesse problema, sem falar da ditadura salazarista que o potenciou, cabem todos os Governos desde o 25 de Abril de 1974 até hoje. E cabem todos, porque todos eles relegaram para a inutilidade porções importantes do seu território com as consequências nefastas que hoje todos podemos observar – continua a perder-se a terra, a terra continua a perder homens, e os homens que por lá vão restando acabam por perder um país que se desinteressou por eles. Hoje, é o país e os portugueses que pagam tal desleixo!... Ainda que as terras em questão não fossem promissoras para a economia nacional – o que na questão em apreço até parece nem ser o caso, isso não é, nem nunca foi razão suficiente para as votar ao esquecimento, antes pelo contrário. Portugal não é apenas Lisboa e Porto, e estando em causa razões ligadas à soberania do território, à segurança alimentar e à economia nacional entre outras, só isto seria razão suficiente para olhar para o país com outros olhos. Uma razão especialmente válida para países não ricos como Portugal, que consiste em investir e retirar riqueza de todo o território e não apenas em parte dele. Se o que há é pouco para todos e se urge aumentar o bem-estar geral, urge também um racional empenho em maximizar aquilo de que cada um, e de que cada pedaço de terra é capaz de dar. 86

Domingos Vaz Chaves A VELHA E A NOVA EMIGRAÇÃO... Em termos gerais, entre 1958 e 1974, 1,5 milhões de portugueses abandonaram o seu país. Só em 1973 foram 123 mil. No ano seguinte, mesmo após todas as restrições à emigração por toda a Europa, saíram do país 71 mil pessoas. Fugiam como já foi afirmado da guerra das Colónias, da fome, da pobreza e da repressão. Principal destino: a França. A mala de cartão era tudo o que levavam, pois na verdade não tinham mais nada. O Decreto-Lei número 39749 de 1954 classificava a emigração clandestina como um crime, estabelecendo sanções penais e atribuindo à PIDE- Polícia Internacional e de Defesa do Estado, competências para a reprimir. Foi um período negro diga-se da História de Portugal, que afectou sobretudo a população mais carenciada, mas a uma escala sem precedentes distritos como a Guarda, Viseu, Castelo Branco, Vila Real e Braga. Estas foran as zonas de onde saíram a maior parte dos portugueses em direcção às fronteiras com Espanha, nomeadamente à de Chaves e Vilar Formoso. Ao partir, essas pessoas levavam consigo a esperança de conseguir uma vida melhor, deixando para trás os filhos, as mães, as esposas e a sua Pátria. Algumas endividavam-se para poder pagar a viagem. Partiam durante a noite às escondidas, por terras desconhecidas, na tentativa de dar o “salto”. Fugiam a pé, juntando-se a grandes grupos guiados por “passadores”. Fugiam da PIDE, da Guardia Civil Espanhola e dos Gendarmes franceses, pondo em risco a própria vida. 87

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida Muitos deles não chegavam ao destino – eram enganados pelos passadores, morriam de frio ou fome, caiam por uma ravina, eram mortos ou capturados e reenviados para Portugal onde lhes esperavam severas punições por parte da PIDE. Aqueles que conseguiam, rapidamente se apercebiam que a felicidade de uma vida melhor se tornava amarga com a saudade de um país e dos familiares que deixavam para trás. Hoje não há PIDE, não há guerra colonial e não há repressão, mas continua a haver fome e pobreza e actualmente fruto de uma grave pandemia, um desemprego elevadíssimo. Os mais qualificados para fazer face ao descalabro, optam cada vez mais por fazer carreira no estrangeiro, devido às melhores oportunidades e salários. Substituíram a mala de cartão por uma mala com rodinhas, já não passam a fronteira a pé, mas de avião!... Em vez de escreverem longas cartas a falar da nova vida e das saudades da família ou de fazerem curtos telefonemas de tempos a tempos, comunicam através das redes sociais, dos programas de conversação instantânea ou por telemóvel. Estes são os novos emigrantes portugueses. São sobretudo jovens quadros técnicos e científicos que procuram oportunidades de enriquecimento pessoal e profissional, com tudo o que de negativo tal situação implica para o desenvolvimento do país e principalmente do seu interior cada vez mais abandonado. ... 88

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Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida FONTE FRIA Desconhece-se a época da sua construção, embora haja indicadores, que apontam os meados do século XVIII, como data previsível. Hoje imprópria para consumo, nela brotou uma das melhores águas da aldeia, tendo a particularidade de ser gelada em pleno verão e mais macia, durante os rigorosos invernos, que por aqui marcam presença. IGREJA PAROQUIAL Sabe-se que o ano da sua construção é anterior ao século XVI. E sabe-se também que é anterior ao século XVI, dado existir na Biblioteca Pública de Braga, uma «Relação de todas as Igrejas do Arcebispado e seus Padroeiros», onde consta, para além de outras 26 igrejas da região de Barroso, a «Igreja de colação do Arcebispo de Santa Maria de Gralhas». Embora tratando-se de um documento sem data, pela caligrafia e ortografia, verifica-se ter sido manuscrito, no início do século XVI, razão pela qual, a Igreja terá sido construída no antecedente. 90

Domingos Vaz Chaves A esta aldeia e à sua Igreja, se refere também o respectivo Vigário, Francisco Affonso dos Santos, que sob o testemunho do Vigário de Santo André de Vilar de Perdizes, Agostinho Alvares e do Reitor de São Miguel de Vilar de Perdizes, Miguel do Couto de Oliveira, quando em 20 de Março de 1758 e em resposta a uma ordem emanada do Muto Reverendo Senhor Doutor Vigário Geral, para que lhe desse conta do que havia nesta freguesia, lhe respondeu o seguinte: • Esta freguezia de Santa Maria de Gralhas está sita na província de Trás dos Montes no Arcebispo de Braga Primaz, da comarca de Chaves, eclesiástica e do secular de Bragança e o hé do termo da vila de Monteallegre. Hé freguezia matriz. • Hé beneficio simples, anexo a hua tercenaria na Santa Sé Primaz.Hé toda de Roma e do ordinário conforme ao mês da sua bacatura.O beneficiado que existe hé José da Silva Duarte. (...) • A paróchia está dentro do lugar no meio da povoaçam (parte) do Nacente e nam tem mais lugares. • Seu orago hé Nossa Senhora d`Àssumpssam.Tem três altares hum principal e dois colaterais, o principal tem o Santíssimo no sacrário e Santo António e o Santo Nome de Jezus e o colateral da parte direita tem Nossa Senhora dÀssumpssam e o da parte esquerda tem Nossa Senhora do Rozário. Nam tem naves, nam tem irmandades. • O párocho hé vigário ad nutum aprezentado pelo beneficiado deste beneficio.Terá de renda cem mil réis pouco mais ou menos hum anno por outro. Também conhecida por Igreja de Santa Maria, é uma das mais belas da região. 91

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida CRUZ DOS CAMPOS E POÇO DA LUÍSA Originariamente, a cruz que se vê na foto, não se encontrava no interior do poço (tanque). Encontrava-se isso sim, no cimo de um morro ali existente e era um Monumento de Fé Cristã, de saudação e homenagem aos mortos e às «Almas», sendo formado por quatro partes distintas: a)-Uma plataforma com 2 degraus de acesso; b)-Uma base assente na plataforma, servindo de apoio à coluna; c)-Uma coluna na vertical, com alguns remates decorativos, entre os quais se notam, um cálice, uma hóstia e uma escada com dez degraus, representando os Dez Mandamentos; d)-E uma coluna na horizontal. Mas esse local, não serviu apenas para os fins acima referidos. Porque violavam a lei de Deus e dos homens, durante séculos, os malfeitores da aldeia, foram ali castigados e expostos ao sarcasmo e à irrisão pública da povo. Os açoutes, as mutilações e outros castigos infligidos aos transgressores da lei e aos perturbadores da ordem, visavam a defesa comum dos aldeões e contribuíam de um modo eficaz para o saneamento moral dos habitantes. Quanto ao Poço da Luisa, o seu lugar original, era junto à chamada casa do «Americano», isto é, cerca de 40 metros para sul do local onde hoje se situa. Foi construído no tempo do Estado Novo, mais precisamente no ano de 1945 e nada tem a ver com a Cruz colocada há cerca de duas dezenas de anos no seu interior. 92

Domingos Vaz Chaves CASA DO SEMINÁRIO «(...) Por todos estes motivos, que têm sido longamente e seriamente ponderados e amadurecidos no nosso espírito, pomos termo, ao findar do ano lectivo corrente, ao pequeno seminário de Gralhas (...)». Foi com estas palavras, que D. João Evangelista de Lima Vidal, o primeiro Bispo da Diocese, decretou, em 28 de Fevereiro de 1925, o encerramento do Seminário de Gralhas, extinguindo o legado do fundador do mesmo. O Seminário, que funcionou durante cinco anos, desde Janeiro de 1921, até ao fim do ano lectivo de 1925, resultara de uma doação feita pelo Padre João Álvares Fernandes de Moura, natural desta freguesia, onde nasceu em 09-07-1848 e senhor de grandes propriedades na terra. Apesar de aí não viver permanentemente, o Padre Moura, era um apaixonado da aldeia, a qual visitava com frequência, sendo inclusivé, um grande benemérito da igreja paroquial. Contam os mais antigos, que tudo o que de bom aparecesse em Braga, o Padre Moura logo adquiria para a Igreja da sua terra, que por isso mesmo, foi, até há pouco tempo, uma das mais ricas em paramentos, cálices e alfais. Pelo Seminário de Gralhas, passaram dezenas de alunos, os quais após o seu encerramento, partiram para Braga. Esta casa, serviu ainda como escola preparatória, para muitos outros jovens que se prepararam para a vida, incluindo os rapazes da terra, muitos dos quais, aprenderam ali a ler, escrever e contar. Passados que foram mais de 75 anos, em que a Casa do Seminário esteve transformada numa normalíssima casa de habitação agrícola, hoje, após uma fantástica recuperação, levada a cabo pelos actuais proprietários, é o ex-libris da aldeia, funcionando como Casa de Turismo Rural. 93

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida CAPELA DE SANTA RUFINA É um cartão de visita da aldeia!... A sua construção remonta ao Sec. XVIII, tendo sido levada a cabo com dinheiros do Padre António Gonçalves Calado, natural da freguesia e senhor de grande fortuna. Este pároco, que durante muitos anos viveu no Rio de Janeiro, aplicou ainda parte dos seus bens, numa fundação do vínculo de Nossa Senhora de Belém, a qual tinha sede nesta mesma capela. Entre as obrigações inerentes a esta fundação, contavam-se a celebração de uma missa diária, a criação de uma escola primária e a manutenção do respectivo funcionamento. Durante muitos anos, quase foi votada ao esquecimento e actualmente após algumas obras de beneficiação, levadas a cabo por João Justo Tiago Lage, um benemérito da aldeia, passou a servir de capela mortuária. RELÓGIO DE SOL A medição do tempo, constituíu desde muito cedo, um mecanismo de racionalização, das actividades humanas no quotidiano. Propósito, que esteve na origem dos primeiros relógios de sol, e ao que se sabe, a Idade Moderna já os conhecia. 94

Domingos Vaz Chaves Sto. Agostinho, numa observação filosófica, dizia que o tempo não é outra coisa senão extensão. Partindo deste pressuposto, a vida só pode ter sentido se devidamente articulada com a continuidade do tempo. Os relógios de sol, foram então feitos, para facilitar a orientação e gestão das actividades pessoais e profissionais. Exemplar localizado na Casa do Seminário Estas peças são fruto da arte escultórica do povo. Medir o tempo, era a sua principal função. A sua cambiante decorativa e figurativa, era minuciosamente trabalhada para constar nas fachadas principais das casas. É provável que só as famílias com algum poder económico tivessem direito a um relógio deste tipo, sinal de uma modesta ostentação. O relógio existente na Casa do Seminário de Gralhas, é um exemplo vivo dessa realidade, e apresenta uma configuração geométrica que data doséculo XIX, compreendendo uma espécie de mostrador de horas, motivos vegetalistas em baixo relevo e figuras peculiares, que conservam ainda laivos da sua policromia. O ponteiro era em metal (ferro) e estava cravado no centro do mostrador, donde uma série de linha rectas (incisões gravadas) divergiam em direcção ao limite (bordadura) do referido mostrador. A sombra provocada pelo ponteiro ia girando e indicando as horas, em consequência do movimento da terra. ... 95

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida GALERIA DOS NOTÁVEIS JOSÉ JOAQUIM ALVES PENEDONES - O \"TI CASADO\" HERÓI DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL 1914-1918. Naquela época, as disputas territoriais entre as grandes potências e a má distribuição dos benefícios do progresso entre a população, criaram um clima de instabilidade constante. O risco de um confronto iminente pairava então no ar, até que em 1914, as previsões se confirmaram, com o início de uma \"guerra que ia acabar com todas as guerras\", transformando-a apenas numa única – a 1.ª Guerra Mundial, que iria durar até 1918. A expressão Grande Guerra, cunhada para o conflito que pela primeira vez na história envolveu todo o planeta, justificava-se pelas proporções que o confronto alcançou, pelo aparato bélico que foi mobilizado e pela devastação que provocou. As novas armas, fruto do desenvolvimento industrial e os méto- dos inéditos empregados nos combates deram aos países capitalistas o poder quase absoluto de matar e destruir. Portugal participou ao lado dos Aliados, tendo alguns efectivos integrado o exército inglês. A marcha da vitória ocorreu já em Paris em 1919, trazendo alguma glória e honra para os soldados lusitanos. Um desses gloriosos Homens, era natural de Gralhas e chamava-se José Joaquim Alves Penedones, conhecido na aldeia pelo “Ti Casado”, que mais tarde ali viria a casar com a senhora dona Ana Morgada. Embarcou para a guerra em 14 de Março de 1917, regressou em 28 de Fevereiro de 1919, e desembarcou em Lisboa em 31 de Março de 1919, como consta da sua ficha militar do Corpo Expedicionário Português, que aqui se reproduz. PADRE, ANTÓNIO GONÇALVES CALADO Sacerdote natural desta aldeia de Gralhas e residente durante muitos anos no Rio de Janeiro - Brasil. Senhor de grande fortuna, aplicou os seus dinheiros na Fundação do vínculo de Nossa Senhora de Belém, com sede na Capela de Santa Rufina em Gralhas. Entre as obrigações inerentes a esta Fundação, contam-se a celebração de \"uma missa diária\" a \"criação de ncionuma escola primária\" e a \"manutenção do seu fuamento\". Viveu no século XVIII. 96

Domingos Vaz Chaves PADRE, ANTÓNIO LOPES AMADOR Natural da aldeia de Gralhas, onde nasceu a 3 de Junho de 1928, o padre Amador foi ordenado em 19 de Dezembro de 1953, tendo antes de ser capelão militar desempenhado as funções de Prefeito e Professor no Seminário de Vila Real. Terminada a sua comissão militar, regressou à diocese onde a par de Assistente diocesano de todos os organismos da Acção Católica Rural, foi pároco de Vilarelho da Raia, uma aldeia do concelho de Chaves. Por fim, a pedido do seu Bispo, fixou-se no Barroso, onde foi arcipreste e pároco de Montalegre. A falta de saúde obrigou-o a deixar o cargo, passando então a paroquiar Gralhas, Donões e Mourilhe. Era um verdadeiro amigo e apóstolo. Por alguma razão nas exéquias fúnebres celebradas em Gralhas, o bispo da diocese de então, D. Joaquim Gonçalves, recordou: \"Gostava que da vida deste padre ficasse o exemplo desta dupla vertente: a dedicação aos movimentos da vocação dos leigos no mundo e o trabalho da pregação\". Bom padre e pregador de renome, que Deus o acolha. Faleceu no dia 2 de Outubro de 2006 e a ele se devem as obras de beneficiação da Igreja da freguesia. PADRE, JOÃO ALVARES FERNANDES DE MOURA Para além de ter sido, o mais notável dos homens de que há memória em Gralhas, o Padre Moura foi uma das figuras marcantes de todo o Barroso, senão mesmo do país. Nasceu nesta freguesia, em 09-07-1848, onde fez a instrução primária em 1861. Cursou Português e Latim em 1862, Francês e Latinidade em 1863, Filosofia em 1864, Oratória em 1865, Geometria e Geografia em 1867. Estudou Teologia no Seminário Conciliar de Braga de 1868 a 1870. Em 1871 recebeu a ordenação sacerdotal. Começou a sua vida paroquial na sua própria aldeia no ano de 1876. De 1878 a 1920 foi Procurador e Secretário do Seminá- rio de Braga, tendo em 1921 regressado de novo à sua terra, onde veio a falecer em 22- 09-1920, não sem antes deixar a marca da fundação do Seminário. Apesar da sua notabilidade e interesse pela terra, parece ter sido esquecido, como provam as designações de topónimos da aldeia. ... 97

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida BIBLIOGRAFIA • A Arte e a Natureza em Portugal - Vol.VII, Revista de Divulgação. • Adriano Vasco Rodrigues - Arquelogia da Pininsula Hispânica; • Afonso do Paço - Carta Paleolítica de Portugal, in «Anais da Academia de História, vol. IV, 1941. • Agostinho Lacerda Pizarro - A Raça Barrosã; • Alberto Sampaio - Vilas do Norte de Portugal; • Arquivo do Arcebispado de Braga - Registo Geral Arquivo do Registo Civil de Montalegre; • Arquivo dos Serviços Florestais de Montalegre: • Arquivo Histórico Português - Vol. VII • Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Cartas de Foral • Aula Galicia; • Biblioteca Nacional de Lisboa - Inquirições e Alçadas; • Subsidios para a Bibliografia da História Local Portuguesa; • Chancelaria de D. Dinis - sobre cartas de foral, aforamentos, posturas de foro em Barroso – declaração de direitos, herdades, reguengos, honras e devassas; • Chancelaria de D. João III - Doação de Barroso ao Duque de Bragança, carta aos moradores de Montalegre; • Cónego Gaspar Estaço - Antiguidades da Lusitânia; • Contador de Argotte - Memórias para a História Eclesiástica do Arcebispadp de Braga; • Costa Veiga - História Militar; • Ferreira de Castro - Terra Fria; • Fortunato de Almeida - História da Igreja em Portugal; • Gama Barros - História da Administração Pública Portuguesa, sec. XII a XV; • Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira; • Hubner - Noticias Arqueológicas de Portugal 1861; • Igreja de Gralhas - Registos Paroquiais; • Inácio Vilhena Barbosa - Cidades e Vilas de Portugal; • João Carneiro - As Casas do Padroado; • João Gonçalves da Costa - Montalegre e Terras de Barroso; • Jornais - O Montalegrense, Barroso a Terra e a Gente e o Povo de Barroso; • José Batista Barreiros - Ensaio de Inventário de Castros do Concelho de Montalegre, 1914; • José Fernandes Chaves - Os Motes na Aldeia de Gralhas; • José Henriques Pinheiro - Estudo da Via Romana Braga Astorga; • José Hermano Saraiva - História de Portugal; • Leite de Vasconcelos - Etnografia Portuguesa, Religiões da Lusitânia, Anuário para o Estudo da Tradições Populares Portuguesas, De Terra em Terra e Toponímia Portuguesa; • Livro de Visitas do Arcediagado de Barroso, 1825; • Lopez Cuevillas - La Civilizacion Céltica en Espana, 1953; • Mário Cardoso - Alguns Elementos para a localização dos Castros do Norte de Portugal; • Memórias Históricas e Genealógicas dos Grandes de Portugal; ... 98

Domingos Vaz Chaves ÍNDICE NOTA INTRODUTÓRIA – 4 GERAÇÕES – 6 PARA QUE SE SAIBA – 11 OS TEMPOS QUE O TEMPO APAGOU – 14 A LOCALIZAÇÃO E ESTRUTURA SOCIAL – 21 Clima Origens AS CULTURAS QUE POR CÁ PASSARAM – 27 Os nossos mais longínquos antepassados A cultura Castreja A passagem dos Romanos – cidade de Grou Os Suevos e Visigodos A chegada dos Mouros A Reconquista Cristã GRALHAS NA IDADE MÉDIA – 37 A TERRA E A GENTE – 43 AS CASAS – 46 SERRA DO LAROUCO – 47 O atestado do passado galaico que une Gralhas à Galiza 99

Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida A FAUNA – 48 A FLORA – 49 AS ACTIVIDADES E AS ESTAÇÕES DO ANO – 52 A ORGANIZAÇÃO SOCIAL AO LONGO DOS TEMPOS – 52 A DECADÊNCIA COMUNITÁRIA – 62 OS MOTES, OS MESES DE INVERNO E DE INFERNO – 63 As segadas A carrada As malhadas EXEMPLOS QUE RESISTEM – 69 AS CHEGAS OU LIADAS – 71 AS CARVOADAS – 76 O último suspiro A GRANDE DEPRESSÃO NA ALDEIA – 82 A VELHA E A NOVA EMIGRAÇÃO – 87 PATRIMÓNIO ARQUITÉCTONICO – 89 Fonte Fria . . .Igreja Paroquial Cruz dos Campos e Poço da Luísa Casa do Seminário Capela de Santa Rufina Relógio de Sol GALERIA DOS NOTÁVEIS – 96 BIBLIOGRAFIA - 98 100


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