O HOMEM QUE FAZIA CÍRCULOS 1. O Primeiro Encontro Andava de terra em terra a visitar museus locais. Gostosobretudo de artesanato. Nas minhas viagens aventuro-me muitasvezes por estradas secundárias para apreciar com calma as paisagense os lugares. Às vezes perco-me no caminho, sobretudo quando asplacas indicadoras das povoações não estão colocadas onde deviam,ou quando me distraio e não as vejo. Nesta viagem, mesmo com aajuda atenta da minha mulher, acabámos por nos perder. Perdemo-nos. As muitas curvas consecutivas que tivemos de fazernaquela estrada, para passar uma pequena crista de montanhas onde pedras earbustos se debruçam como que para cumprimentar quem passa, ainda nosdesnortearam mais. Estávamos a meio da tarde do último sábado de Agosto.Fazia um calor medonho, seco. Junto ao horizonte o ar era alaranjado, estranho.No alto, o céu era quase branco de tão luminoso. Ao longe, do lado nascente,nuvens pesadas pareciam indecisas entre ficar ou aproximar-se. Além do somdo motor e do crepitar dos pneus a descolarem do alcatrão mole, só a cantilenaofegante das cigarras se fazia ouvir. Ao longe, já na descida, avistámos umapovoação de casas brancas e telhados cor de tijolo. A estrada, mordida nasbermas, parecia lá ir dar, mas no meu mapa nada constava nesta zona. No valesurgem oliveiras, figueiras e sobreiros, por vezes alguns grupos de pinheiros ede choupos, intervalados por pequenas searas e campos de pastagem onde seviam, de longe em longe, vacas, cavalos e ovelhas. Entrámos nessa povoação subindo por uma rua empedrada, estreita. Ocinzento escuro das pedras do chão tornava ainda mais luminoso o branco dacal das paredes. Não se via ninguém. O calor empurrara as pessoas para dentrode casa. Parámos junto de uma taberna, de onde acabava de sair um homem decerca de cinquenta anos, estragados. Vestia roupa preta e cinzenta já muitoO homem que fazia círculos - 1.º capítulo António Galrinho
O HOMEM QUE FAZIA CÍRCULOS 2. Corpo e Alma No primeiro encontro acabámos por jantar a tal galinha que setinha safo uma primeira vez, e por dormir num quarto lá de casa, poisuma medonha trovoada, seguida de forte vento e chuva torrencial,abateu-se de repente sobre a aldeia. A partir daí, várias vezes visitei ooleiro e a sua aldeia. A nossa amizade tornou-se firme como umpenedo. Nesta aldeia poucas ruas são direitas; quase todas apresentam quebras,umas mais acentuadas do que outras. Com frequência as paredes de um ladoora se aproximam ora se afastam das do outro. Por vezes, quebrasconsecutivas no mesmo sentido arqueiam as ruas, tornando-as arredondadas.Não se entende a lógica que serviu de base a este planeamento. A ideiaparece não respeitar qualquer lógica, ou talvez mesmo não tivesse existidoideia. As ruas por onde não passam carros estão pavimentadas por pequenaspedras cúbicas de calcário quase tão branco como a cal, as outras têmparalelepípedos de dimensões maiores, de granito cinzento-escuro. Ruas, travessas e largos parecem ter os nomes que sempre tiveram.Nenhuma delas tem nome de gente ou de data importante. Perguntei certo diaao oleiro por que razão assim era, por que razão não havia pelo menos umaque tivesse o nome de um político, de um escritor ou de uma data relevantepara a história do país ou da povoação. – Os nomes que elas têm são os nomes que devem ter. E são bonitos. De facto, para uma pergunta daquelas não há uma resposta maisajustada do que outra. Parece que uma espécie de vontade colectiva,inconsciente e superior, ajuda a manter certas tradições, sobrepondo-se aqualquer vontade ou opinião pessoal. Rua das Alminhas, Rua do Poço, Rua doO homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
Zambujeiro Velho, Travessa Escura, Rua do Pão Duro, Beco do Cego, sãoexemplos que mostram o quanto não faz sentido colocar-lhes outros nomes. Senalguns casos existem razões óbvias para que os nomes sejam aqueles,noutros elas perdem-se no tempo. Quase todas as casas são de piso térreo, brancas com barras ocre ouazuis, ligeiramente salientes, em torno das janelas e portas. A generalidadedos telhados tem telhas de meia-cana. Os beirais são compostos por duas outrês filas dessas telhas: a fila das telhas gotejantes apoia-se sobre uma ouduas filas de telhas invertidas, recolhidas, caiadas ou pintadas com óxido deferro. As portas e as janelas são de madeira, pintadas ao gosto, sendo maisfrequentes as cores castanha e encarnada. As janelas têm portadas demadeira interiores, normalmente brancas, deixando os vidros à vista, por fora.Entre as portadas e as janelas são muitas vezes colocadas pequenas cortinasde renda brancas ou, mais raramente, tecidos de cores variadas. As casas têmacesso directo para a rua, do lado da frente, e quintais do lado de trás.Roseiras, malvas e sardinheiras vêm-se com frequência em vasos colocadosjunto das portas de entrada. Algumas flores estão plantadas nas calçadas, emimprovisados e minúsculos canteiros colados às paredes; alguns têm apenas otamanho de uma só pedra da calçada, arrancada para nesse sítio se colocar aplanta, passando a fazer parte integrante destes conjuntos delicadamentecuidados e limpos. Alguns quintais apresentam uma ou duas árvores de fruto,sendo mais comuns as laranjeiras, as nespereiras e as figueiras. Os quintaismaiores têm poços e neles se fazem hortas. Algumas das casas mais antigastêm um forno para cozer pão, perto da porta da cozinha, nas traseiras dahabitação. Ressalta à vista a beleza das coisas simples. Casas e povoações comestas características são raras por estas bandas, sendo mais comuns nasprovíncias a sul. Como que fechada no vale, desta povoação não se avistanenhuma outra; a mais próxima está a mais de dez quilómetros, do outro ladodos montes. Talvez esse isolamento justifique a peculiaridade desta aldeia edas pessoas que a habitam. Contudo, em tempos idos, esse isolamento terásido maior, quando os transportes, as estradas e as comunicações eram bemdiferentes das de hoje. Mas isso não fez com que os seus habitantes seO homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
tornassem fechados e introvertidos. Pelo contrário, são bastante acolhedores,falando com muito à-vontade com as pessoas de fora. Situada na zona periférica está uma pequena escola destinada aoensino básico. Ao lado situa-se um minúsculo posto médico. Têm umaarquitectura diferente da das habitações tradicionais da aldeia; é típica dostempos de ditadura, não destoando, talvez por mero acaso, da do restantecasario. Fora do aglomerado de casas existem duas fontes: uma grande,rematada com um semicírculo, caiada de branco e com volutas pintadas deazul, com espaços para vacas e cavalos poderem beber; outra pequena, bemmais antiga, toda de granito, está emoldurada por duas colunas toscas sembase nem capitel, rematadas por uma comprida pedra, que nelas se apoia,onde estão esculpidas uma espada e uma flor. Ambas jorram água fresca elímpida todo o ano, por duas bicas. Na fonte mais recente, essas bicas são doistubos metálicos, paralelos; na mais antiga, são duas pedras de secçãoquadrada, com uma estreita ranhura na face superior, por onde escorre a água,muito próximas e viradas uma para a outra ao ponto de os fios de água sefundirem a meio da queda. Uma chama-se Fonte das Bestas, a outra Fonte dosAmores. Apesar de, durante quase todo o ano, a fonte mais nova jorrar muitomais água, nos verões mais quentes e longos chega a secar completamente,por vezes durante semanas; na mais antiga, como que por milagre, aquelesfios deslizam sempre com a mesma intensidade, suaves e certeiros, seja nopico do Inverno ou no pico do Verão. Junto da fonte antiga, coberto por umtelhado, está um tanque comunitário, encostado a uma barreira, que funcionacomo uma única parede. Nesse tanque ainda é comum ver algumas mulheresa lavar roupa. Na mais central e comprida das ruas situa-se um antigo poço, colado aduas habitações, cujas paredes formam um nicho para o acolher. Esse poçopouca utilização passou a ter depois de abertos outros e sobretudo depois decolocada água canalizada na aldeia. Contudo, em tempos antigos era o únicoque fornecia toda a povoação. Conserva-se sobretudo como peça histórica edecorativa. Mas quem ali passa pode regar as flores que estão por perto ourenovar a água de uns recipientes de onde bebem pássaros, cães e gatos, àvez; ou apenas molhar o rosto quando está calor. Está encimado por umO homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
grosso arco de ferro que acompanha, quase encostado à parede, a formacircular do nicho; a meio pende uma roldana de bronze enegrecido. Preso poruma corda, o balde de zinco brilha na borda do poço, virado para baixo. Ali perto, numa rua estreita, está a capela onde são feitos os velóriosaos falecidos. Pequena e também caiada de branco, quase se confunde comas habitações. Tem uma porta com um arco em ogiva e duas pequenas janelasrectangulares e estreitas, uma de cada lado. A aldeia tem três largos. Aquele onde estacionámos o carro a primeiravez é o Largo das Camélias, devido à cameleira ali colocada. É o maispequeno; apenas meia dúzia de casas de piso térreo, pequenas e simples, ocontornam. Um candeeiro e um pequeno banco de madeira e ferro são osúnicos objectos residentes. O Largo da Igreja está coberto por seixos do rio, de diferentesdimensões. Cravados no chão, com as curvaturas mais acentuadas para cima,os seixos formam padrões geométricos, aparentemente sem qualquersignificado simbólico. Bem no centro, dominando todo aquele espaço, com umaimponência que se sobrepõe à da igreja, situa-se a tal árvore enorme queavistara de relance a primeira vez. À sua volta, oito candeeiros a contornam;outros estão colocados noutros locais, sobretudo no espaço livre do lado sul,onde se encontra um cruzeiro de pedra, cuja base é octogonal, com quatrodegraus. Próximo do cruzeiro está um coreto redondo, com a base em pedracalcária, e a cobertura em ferro, pintada a branco, vermelho e verde. Viradopara o coreto está um edifício incaracterístico, que quase estraga aqueleconjunto, com uma grande porta e várias janelas altas. É o salão de festas,onde se come e dança em alturas festivas, onde se fazem exposições e se dãoespectáculos e onde ensaia a banda local. Alguns bancos compridos de ferrotrabalhado, pintados de verde escuro, estão distribuídos por todo o largo. As frentes da casa de habitação do oleiro e da olaria preenchem o ladopoente do largo onde está o penedo de granito. Do lado oposto fica umataberna minúscula. Meninos e meninas costumam brincar no penedo, subindocom cuidado para não escorregar, e escorregando com cuidado para não cairao descer. Largo da Barriga é o seu nome, outro não poderia ter, pois nemumbigo lhe falta! Um buraco pouco profundo e com cerca de dois palmos delargura ali está, quase no topo.O homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
– Às vezes cheira aqui a mijo que não se aguenta! Os miúdos sobem láacima e toca de mijar no buraquito. Gostam de fazer isso! O umbigo está virado a sul. E mal a barriga se enterra, desse lado surgeo bebedouro. Sabendo que aquele penedo é uma barriga, facilmente sepercebe que o bebedouro, redondo, ali foi colocado em função desse relevo.Redondo e colocado do lado sul, que é lado para onde se inclina um pouco oumbigo, não deixa dúvidas... Junto a ele estão colocadas duas pedrasesféricas, uma ligeiramente maior do que a outra, encostadas entre si e ambasencostadas ao bebedouro, aparentando estar ali colocadas para servir dedegraus para os pequenitos. Quando se percebe a brejeirice que ali está... nãopodemos deixar de rir. – Há muitos anos, alguém pôs aí essas pedras, por brincadeira, e aíficaram. O povo não quer que as tirem, acha-lhes graça! O largo tem a forma de um rectângulo ligeiramente deformado. Umacalçada de pedras de calcário contorna-o junto às paredes. Entre a barriga e acalçada, está um espaço de terra batida onde os meninos jogam ao berlinde eao pião, onde as meninas dançam e cantam e onde os homens jogam à malha,aos fins-de-semana. A malha joga-se junto ao bebedouro, pois é desse ladoque o chão de terra é mais espaçoso. De noite, quatro candeeiros iluminameste espaço, fazendo brilhar as pequenas partículas de quartzo, como senaquele enorme calhau estivessem poisados mil pirilampos. Como as ruas quelá vão dar são muito estreitas, os carros não podem ali entrar. Por isso, estelargo mais se assemelha a um pátio. Muitas das nossas conversas começavam com uma simples frase,normalmente dita pelo oleiro, como esta: – Vou-lhe contar uma história. Um dia, saindo de casa bem cedo, iniciámos um longo passeio peloscampos em volta da aldeia. Uma história desenrolou-se ao longo dessepasseio e começou ali mesmo, no Largo da Barriga. Com as mãos nos bolsose a pala da boina meio levantada, o oleiro aponta para o penedo com o queixoe diz: – É evidente a relação entre o penedo e o bebedouro com as pedrasredondas. É coisa que ressalta à vista, esta brincadeira. O povo daqui temO homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
orgulho nisto. As pessoas de fora, que por aqui passam, todas riem quandodescobrem a marotice. E toca de tirar fotografias. E então começou a contar-me que outras partes de um gigante míticoestão espalhadas pelos arredores da aldeia, sendo a barriga um dos pedaçosdesse corpo enorme. Contou-me que o primeiro habitante destas terras era umjovem solitário, que se encantou pelos ribeiros de água límpida que por aquipassavam. Mas um acontecimento dramático fê-lo tornar-se gigante. – Andava por este vale, no meio do qual está hoje a aldeia, e passeavapelas montanhas em redor. Nele se refugiava dos ventos frios do Inverno,vindos do Norte, e dos ares sufocantes do Verão, vindos do Sul. Atento, segui as suas palavras e os seus passos. Num pequeno bosquede pinheiros bravos e densos fetos, o oleiro apontou-me um penedo quaseescondido entre as ramagens, coberto de musgos, mais pequeno e maisredondo do que a barriga. De perto vi que por trás deste penedo estava umoutro quase igual. Seriam dois encostados ou apenas um com dois volumesidênticos. Não se conseguia perceber. – Aqui temos as nádegas. Olhei sério, mas ri-me por dentro. Ainda olhava perplexo e desconfiadopara aqueles pedregulhos, o oleiro continuou: – Vou-lhe mostrar o Gigante todo para que veja que isto não ébrincadeira. O tom de voz com que falou não deixava espaço para dúvidas. Dito comaquele à-vontade e com aquela certeza, a partir desse instante aceitei de bomgrado a existência do Gigante. Voltei a olhar para aqueles dois penedos econtornei-os. No meio do pequeno espaço entre eles estava o cone achatadode um grande formigueiro, como um vulcão em miniatura, de onde saíam eentravam milhares de formigas atarefadas, indiferentes à minha presença.Olhei estático durante algum tempo para aquele cenário e esbocei um sorrisoenorme de boca fechada, que quase rebentou em gargalhada. Enquantoseguíamos caminho, procurando outras partes do corpo, fui ouvindo maiscoisas acerca da enigmática figura. – Antes de se tornar gigante, era um jovem guerreiro, lutador forte e ágil.Tão forte, ágil e com uma presença tão firme e decidida que nunca precisouusar a sua espada. A dada altura, o jovem guerreiro decidiu abandonar tudo eO homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
tornar-se um homem solitário, mas mantendo a sua roupa e a sua espada deguerreiro, assim como o seu inseparável cavalo. Durante alguns minutos caminhámos sem nada dizer. Eu ia tentandoadivinhar mentalmente como seria o resto da história e quais seriam aspróximas partes do corpo que iríamos ver. Já fora do pequeno bosque, eenquanto atravessávamos umas hortas, o oleiro acrescentou: – Procurava silêncio. O silêncio que o meu companheiro de passeio guardou durante aquelesminutos, certamente premeditado, deu especial ênfase à frase. – Não queria que ninguém o incomodasse. Alguns passos adiante, rematou: – Procurava paz! No decorrer deste passeio, pouco a pouco, fiquei a saber a lenda doguerreiro que se tornou gigante. – Com a sua espada poderia matar, mas não matou. Com a sua espadaprotegia-se de eventuais malfeitores. Diz-se que falava com os animais e comas plantas. De noite dormia nas grutas que há nos montes. Amigos o visitavamde tempos a tempos; de tempos a tempos ia aos lugares onde havia gente ecom a gente se misturava. Mas, grande parte do tempo passava-o sozinho. Istoaconteceu muito antes de existir a aldeia. Uma espécie de magia emanava da voz, dos gestos e do andar dooleiro. Ele vivia, de forma descontraída, cada momento presente. Ditas aspalavras como ele dizia, deslocando-se no espaço como ele se deslocava, tudoà volta se enchia de encanto. Na sua presença os meus sentidos tornavam-semais despertos e sensíveis, como que por contágio. – Raul! Fiquei admirado. Foi a primeira vez que se me dirigiu chamando-me pelonome. Também pela primeira vez a ele me dirigi chamando-o pelo seu nome. – Diga, Inácio. – Você não acredita em nada disto, pois não? Eu, que pouco tempo antes me apeteceu chamar-lhe tonto, por estar aouvir coisas que me pareciam tão tontas, mas que pouco depois me haviaconvertido sem que ele se tivesse apercebido..., disse decidido: – Acredito!O homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
Acho que devia ter dito mais qualquer coisa, que me devia ter feitoentender melhor. Uma só palavra, solta assim de repente, quando na cabeçaainda há pouco fervilhavam tantas dúvidas, não parece ter sido convincente. Otom de voz não revelou convicção. Mas tinha-a! Começava a perceber a maneira de funcionar daquela cabeça. Percebionde ele queria chegar e onde me queria conduzir. Aquilo que ouvira da lendado Gigante despertara-me. Percebi que na mistura duma certa ingenuidadeinfantil com a perspicácia das suas observações..., que na mistura de frasesaparentemente sem sentido com reparos profundamente poéticos..., que entresorrisos e olhares sábios apareciam sorrisos e olhares primários, por vezesrudes, mesmo animalescos..., percebi que este homem queria que eu olhassepara as coisas com outros olhos, com olhos límpidos e sem vícios. Queria queeu apenas olhasse, ouvisse e sentisse como quem apenas olha, ouve e sente. – Não me engana, Raul. Sorrimos sem mais comentários. Continuámos a andar. Junto de um dostrês ribeiros que passam nas redondezas, está uma zona cheia depedregulhos, limpos pela passagem das águas do Inverno. O Inácio parouperto do maior deles e apontou mais uma vez como era seu hábito, com oqueixo. – Dê a volta e olhe. Dei a volta e olhei. – A cabeça! À distância, eu já tinha percebido que se tratava da cabeça, por isso omeu espanto deveu-se ao facto de aquela enorme pedra se parecer de formaassustadora com uma cabeça. O crânio, o queixo, o nariz e um olholigeiramente encovado, tudo se apresentava incrivelmente no sítio. Apenasonde era suposto estar uma orelha tudo era liso. Metade do rosto apoiava naterra. A água passava encostada ao rosto. Era um fio que se afastava doribeiro uns metros acima, como que de propósito para matar a sede aoGigante, e de novo ao mesmo ribeiro voltava, um pouco abaixo. Aquelaposição e os olhos fechados, naquele cenário, mostravam o Gigante a beberágua, deliciado. O Inácio não se moveu. Observou o meu espanto em silêncio. Percebeuque eu tinha captado todos os pormenores e que olhava para aqueleO homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
pedregulho como se de uma cabeça verdadeira se tratasse. E eu própriocomeçava a acrescentar mentalmente mais algumas linhas à história daquelegigante, tentando antecipar-me. Quando me aproximei do Inácio, ele sorriunovamente e continuámos a caminhada em busca de mais partes do grandecorpo. A história continuava a ser contada, em pedaços, também. – Esse homem estranho, enigmático, ou melhor, esse homem normal,mas que aparentava aos olhos dos outros uma certa estranheza por quererestar só e em silêncio..., a certa altura apaixonou-se. Um segundo antes de ouvir a última palavra, ela apareceu-me na mente,como se só pudesse ser mesmo aquela palavra a fechar a frase. Fiqueiansioso por ouvir o resto da história. Afinal como se teria tornado o jovemguerreiro num gigante, que acabou por se transformar naquelas pedras que porali estão dispersas? Embora curioso, não forcei o final, nem o meucompanheiro mo revelaria tão facilmente. Obviamente teríamos de andar eandar mais, parar mais umas vezes, observar mais uns pedregulhos..., e euteria de continuar a ouvir a história contada aos bocados. – Certo dia conheceu uma rapariga que guardava ovelhas por aquelesmontes, muito bonita, de cabelo loiro, comprido, com a pele clara, luminosa.Olharam-se, falaram e encantaram-se um pelo outro. Encontraram-se váriasvezes. Os seus corações batiam mais forte quando olhavam olhos nos olhos,quando davam as mãos, quando se abraçavam e quando se beijavam. As suascabeças não tinham sossego. Nelas apenas existiam um e outro. Os seuscorpos jovens ardiam de paixão e desejo. O silêncio que o jovem solitáriovivera até aí era agora invadido por uma agitação que reflectia uma alegriaimensa, uma alegria diferente da que sentia enquanto ser solitário e errante. Nasua cabeça ouvia a voz doce e os passos da sua amada, via-lhe o rosto, asmãos e todo o corpo, sentia-lhe o toque e o cheiro a toda a hora. Eu ouvia aquela história como uma criança ouve um conto de fadas.Toda a minha atenção se centrava nas palavras e no tom de voz do Inácio.Simples e pausadamente, a história avançava. Apareciam na minhaimaginação, claras, as imagens desta história, agradáveis como as de umsonho bom. Surgiam fortes as cores das flores que os amantes se ofereciam,cheiroso o ar dos campos por onde passavam, bonitos e ternos os seus corposO homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
jovens, verdes e húmidos os campos que pisavam, fresca e luminosa a águaque bebiam dos ribeiros onde se banhavam. Imaginava-os tocando mãos nasmãos, dedos nos dedos; olhando-se e sorrindo em silêncio... Às palavras que oInácio dizia eu acrescentava outras, mentalmente, ilustrando-as com imagensbonitas e encantadoras. Certamente a rapariga pastora ensinaria a riqueza daspalavras e dos cantos ao seu amado, como o rapaz guerreiro ensinaria aimportância do silêncio à sua amada. – Raul! Tem boas pernas? Olhei para a montanha em frente e questionei: – Vamos subir muito? Fez um sorriso que revelou claramente o contrário daquilo que disse: – Não, nem por isso! Não se preocupe! A montanha em frente não era muito distante, nem muito alta, e apesarde já termos andado bastante eu ainda não me sentia cansado. A história queouvia, a pessoa que me acompanhava, o campo por onde andava, deram-meum alento especial. De qualquer modo mentalizei-me para mais algum esforço,pois, apesar de andar a pé com alguma frequência, não tinha o treino do meucompanheiro. Além de que andar nas ruas planas das cidades é muito maisfácil e cómodo do que andar pelos terrenos irregulares do campo, subindo edescendo, e desviando os passos dos arbustos e das pedras. – Vamos até lá acima, àquela crista. As encostas daquela montanha tornavam-se mais íngremes à medidaque subiam, terminando numa crista irregular, de onde se destacavam algumaspedras. Que parte do Gigante por ali estaria? Quase no topo da crista estavaum frio de rachar. Reparei que nas montanhas que se viam ao longe, maisaltas, e mais ao norte, existia ainda um branco manto de neve. A aragem quede lá soprava fazia dores nos ossos da cabeça. Encolhi os ombros para quenão me entrasse frio pelo pescoço, e enterrei as mãos nos bolsos o mais quepude, procurando aquecê-las. – Subir isto aquece, não é? – É verdade! Não quis desiludir o meu amigo. – Chegando cá acima nem o frio entra com uma pessoa!O homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
Perante este reparo, eu nada disse. Que poderia eu dizer? Tive vontadede rir mas evitei, não fosse o ar gelado apertar-me os dentes... O Ináciocontinuou: – Veja se descobre onde está mais uma parte do Gigante. Olhei em volta com os ombros já encostados às orelhas e os braçoscolados às costelas. Não estava em condições de procurar. Além disso, eramvários os penedos que por ali se erguiam, lavados pela chuva e pelo vento. Omeu companheiro propôs, apontando com o indicador da mão direita, quedesenhou um arco suave: – Desça um pouco por este carreiro. Eu desci, até porque mais abaixo estava mais agradável, pois já não seapanhava o ar frio que vinha do outro lado. – Pare! Parei. – Olhe para a esquerda. Olhei, e de imediato vi. De imediato se me aqueceu o peito com umarrepio forte, daqueles que gelam as costas quando somos surpreendidos poralgo desagradável. Via-se perfeitamente que no meio das outras pedras aquelaera diferente. Ali estava, na crista da montanha, uma pedra quase da minhaaltura, oval mas um pouco irregular, apoiada num gigantesco penedo que saíadas entranhas da terra, parecendo balançar ao mínimo movimento da minhacabeça. Andando um pouco para um lado e para outro, mirei-o de ângulosdiferentes. – O coração! Foi o Inácio quem o referiu, embora não fosse necessário. Masnecessário foi acrescentar: – Vá junto dele! Bastaram-me alguns passos para lá chegar. – Encoste-lhe a mão. Tirei a mão direita do bolso que gelou nos segundos em que hesiteiencostar. Hesitei sem razão para isso, pois não estava a pensar em nada,estava apenas espantado e cheio de frio. Estendi a mão e colei-a à pedra.Logo a recolhi, atordoado como se tivesse ouvido um tiro por trás da cabeça. – Está quente!O homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
Num sítio onde tudo estava frio como poderia estar quente aquelepenedo como se tivesse apanhado sol num dia de Verão? Afinal estávamosainda no início da Primavera, num cabeço onde uns dias antes ainda havianeve. A língua prendeu-se-me, as pernas também, as ideias também. Sentia-me enfeitiçado. Entretanto o Inácio já se afastava. Tive de o seguir. Durante algum tempo descemos por um caminho muito próximo do quefizemos na subida, do qual nos afastámos mais adiante. Contrariando adecisão que tomara, de acreditar sem hesitar nesta história, a certa alturafraquejei, e ocorreu-me que perante a presença de tantas pedras epedregulhos que por aquelas bandas se espalhavam não seria difícil inventaruma ou várias histórias partindo das formas sugeridas. Seria normal que porentre tantas pedras algumas se parecessem com partes do corpo humano.Onde se dizia estar uma barriga, poderia ser vista outra coisa qualquer, assimcomo nas nádegas... No entanto, ao pensar de novo na cabeça, na suaposição e na água que passa junto a ela, todas as dúvidas parecem cair porterra. Mais forte ainda fora o impacto causado pela pedra que acabámos dever, naquele sítio e em equilíbrio. Que dizer do calor que sai dessa pedra,desse coração? Como explicar isso? Por largo tempo o Inácio deixou-meentregue aos meus pensamentos. Nada acrescentou sobre o calor daquelapedra, ou porque não saberia explicar aquele fenómeno, ou porque não lhequeria tirar poesia procurando explicações racionais, ou porque preferia quefosse eu a construir na cabeça a explicação que entendesse. – Às vezes neva por aqui. Mesmo quando tudo fica coberto por ummanto branco, daquela crista sobressai sempre o coração, cinzento. O seucalor não permite que a neve a ele se prenda. E a história continuou mal começámos a descer. – Os amantes encontraram-se em dias e locais certos durante três anos.Ele chegou a construir uma cabana, onde parte dos encontros se deram. Àsescondidas de todos trocavam beijos, flores, abraços, olhares, sorrisos ecorpos. Assim foi até ao dia em que, assustada, desfigurada, ela apareceu semtrazer as ovelhas. O pai queria obrigá-la a casar com um rico viúvo com maisdo dobro da sua idade. Aqui, o meu companheiro fez uma pausa, talvez para que euperguntasse o que perguntei:O homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
– Decidiram fugir? Então ele continuou: – Era a única saída. Mas mal subiram para o cavalo, apareceram quatrohomens, dois com arcos e flechas, dois com espadas, que os cercaram. Orapaz ainda tirou a sua espada mas, destreinado de a utilizar e perante quatrodestemidos guerreiros, de pouco valeu resistir. Mas ainda lutou com quantasforças tinha, quando a amada lhe foi roubada. No meio da barafunda, dosgritos da pastora, ameaças e golpes dos raptores, e coices do cavalo, um golpede espada corta-lhe uma orelha. Ficou desfalecido no chão ouvindo os gritosda sua amada enquanto a distância permitiu. Continuámos a andar, já por terrenos planos, novamente. Perguntei: – Que se passou depois? – Quando recuperado fisicamente, montado no seu cavalo, procurou arapariga pela aldeia onde morava. Nada conseguiu saber dela. Todos lheescondiam informações, receosos. Durante semanas a procurou por todos ossítios onde pôde ir, mas nada soube. Por todo o lado procurou inteirar-se doscasamentos que se realizariam nos tempos próximos. Passou por alguns, àdistância, mas em nenhum deles estava a sua amada. Cansado e tresloucadode tanto procurar, um dia desmonta-se do cavalo e deita-se de barriga no chão.Gritando e chorando de desespero, arranha e morde a terra de raiva. Levanta-se e, à medida que a sua ira descontrolada crescia, o seu corpo inchava. Ao contar estas partes mais dramáticas, o meu amigo gesticulava emudava o tom da sua voz como se declamasse esta história num palco.Contudo, ansioso pelo desenrolar da história, a minha atenção ia mais para aspalavras. – Era como se ele só conseguisse expirar uma pequena parte do ar queinspirava, e assim fosse inchando, inchando até se tornar gigante, enorme.Dores imensas atacaram-lhe o corpo, além das que já tinha na alma. Semprede espada na mão, brandindo-a sem nexo, decide golpear-se com umaviolência tal que desfez o próprio corpo em pedaços. As diferentes partesficaram espalhadas por este vale e por estas montanhas, transformando-se empedras. Fiquei mudo. Durante algum tempo só os nossos passos pisando a terra,e o cantar esporádico de algum passarito, se faziam ouvir. Até que perguntei:O homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
– As pessoas daqui, desta aldeia e das mais próximas, conhecem estahistória? Ao ouvir a pergunta o Inácio parou, virou-se para mim levantando asobrancelha do meu lado, e disse: – Todos conhecem a história do jovem guerreiro que não lutava, que seapaixonou e se tornou gigante e depois se matou. Todos sabem que estaspedras que eu lhe mostro são os restos do seu corpo. Mas cada pessoa contaa história à sua maneira. Todos os que a contam querem acrescentar maisbeleza aos momentos belos e mais tragédia aos momentos trágicos. Cada umdá-lhe ou retira-lhe o encanto que entende, numa ou noutra passagem. Comoisto se passou há tanto tempo... é normal que assim seja; e é normal que seinvente um pouco. Continuando a nossa caminhada, entrámos num montado, sob o qualcresciam pequenos arbustos. De repente, frente aos nossos olhos, um menirligeiramente arqueado, com o dobro da minha altura, marcava a sua presença,imponente. O Inácio sorriu e disse: – Já viu? Percebia-se de maneira bem óbvia qual era a parte do corpo do Gigantea que correspondia aquela pedra. Olhei-a de alto a baixo. Do chão até meiaaltura mantinha o mesmo diâmetro. A partir daí estreitava ligeiramente,terminando redondo como a cúpula semi-esférica de uma igreja. Os ramos deum sobreiro roçavam suavemente na sua extremidade da pedra, ao ritmo dabrisa que soprava, ligeira. Mal nos afastámos, o Inácio contou que quando era jovem, o presidenteda câmara quis deslocar o menir para junto da barriga. Não o fez por ser difícile dispendioso, e também porque receava a revolta do povo. O desagrado daspessoas não se deveu ao facto de se tornar demasiado óbvia e chocante paraalguns a relação entre o menir e o penedo da barriga. Elas simplesmente nãoqueriam que a pedra fosse retirada do sítio onde sempre o conheceram. Masesse autarca não desistiu da ideia de dar um toque brejeiro ao largo, e acaboupor colocar o bebedouro no sítio onde queria colocar a grande pedra. Continuámos a nossa caminhada. Algumas pedras e penedos por ondepassámos fizeram lembrar-me outras partes do corpo: um ombro, um dedo, umcalcanhar. Da primeira vez ainda arrisquei:O homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
– Aqui está um ombro. O Inácio rebentou com uma gargalhada que parecia não ter fim, eexplicou: – Isso?! Isso é apenas uma pedra! Das outras vezes já não arrisquei. De facto, distinguir pedras que eramapenas pedras de pedras que eram partes do corpo do Gigante nem sempreera fácil. Então voltei a esperar que tivesse ele a iniciativa de me levar a outras.Mas, a certa altura esclareceu: – A imaginação das pessoas pode ver mais partes do corpo noutraspedras. Mas apenas as que lhe mostrei são, de facto, partes do corpo doGigante. Não se lhe conhece o corpo inteiro. Parte dele está, certamente,soterrado. Todas as outras pedras que se vêem pelas redondezas estão aípara nos entreter e enganar. Aquela jornada terminou com o regresso à aldeia, em torno da tal árvoreenigmática, que se encontra no Largo da Igreja. – Vou falar-lhe mais desta árvore. Apesar do cansaço devido a tão grande caminhada por campos, vales emontes, ainda tinha energia para estar bem atento. – Já reparou no quanto esta árvore é estranha? – Claro! Mas de vez em quando vemos árvores que não tínhamos vistoantes. São muitas as variedades de árvores. Algumas são típicas dedeterminadas zonas, que só aí se encontram. A curta distância, o Inácio olha a árvore de alto a baixo e diz: – Pois..., mas esta é única! Logo acrescentei: – Única na região. Logo ele emendou: – Não! Única mesmo, única no mundo! Ao ouvir isto, vieram de novo à minha memória algumas frases doprimeiro encontro, que tanto me pareceram tolas. Estive quase a duvidar. – Já reparou neste tronco imensamente largo, junto ao chão? Olhei, não respondi, não era preciso responder. Ele continuou: – Deve ter milhares de anos esta árvore.O homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
De facto, o tronco da árvore é mesmo muito largo, sobretudo na partemais baixa. Contornei-o, contei vinte e quatro passos. Mas à altura dos olhos játem cinco ou seis palmos de largura. Os primeiros ramos aparecem um poucomais acima; são grossos e pesados, descendo numa curvatura suave, voltandoa subir já perto das pontas. A meia altura os ramos já se mantêm na horizontal.Quanto mais próximos do cimo, mais se erguem e se aproximam da vertical. – É o peso do tamanho que os faz vergar à medida que vão crescendo,e depois envelhecendo. A árvore é bem alta. Mais alta do que a igreja. Em baixo a copa é larga,gorda, e só a meia altura estreita de forma acentuada, terminando num bicobem aguçado. – Nunca se encontrou outra assim. Conta uma história antiga que foitrazida de terras distantes, ainda pequena, por algum navegador. Mas é bemanterior aos tempos em que as caravelas e as naus cruzavam os oceanos. As folhas assemelham-se a mãos, grandes. Quatro recortes dividem-nasem cinco partes de tamanhos idênticos, formando como que cinco dedos. Umpé forte e comprido, embora fino, une-as aos ramos mais estreitos. Apenasesses ramos, no exterior da árvore, dão folhas. Por dentro, um emaranhadoimenso de ramos e raminhos escuros, parecendo secos, cruzam-se de formairregular, criando uma teia densa. As folhas formam um manto espesso quecobre toda aquela estrutura. Do lado virado para o céu, as folhas são de umverde muito escuro, quase azul; do lado virado para o chão, são de um verdemuito claro, quase branco. – Quando sopra uma ligeira brisa, as folhas abanam como se fossemmãos a tremer de frio; quando o vento sopra mais forte as folhas acenam,como num cumprimento. Outras vezes parece que nos chamam, outras aindaque nos enxotam. Vi, aquando de um vento muito forte que assolou a aldeia, que as folhasse moviam de forma desengonçada, embora graciosa, alternando o verdemuito escuro com o verde quase branco, como se luzes acendessem eapagassem. Por vezes, quando as folhas se tocam com suavidade parecemcumprimentar-se, tocar-se, ou fazer carícias tal como fazem as mãos. – Mas como é possível que esta árvore seja única? O Inácio não respondeu. Tentei de novo fazê-lo falar:O homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
– A primeira vez que a vi tinha flores brancas, agora tem flores pretas. Ele riu alto, com uma gargalhada bem sonora. Mas decidiu falar doutrasparticularidades da árvore, sem se sujeitar às minhas perguntas. Contou queno Verão dá umas flores brancas com oito pétalas grandes, bem abertas, quepartem dum núcleo cor-de-laranja. À chegada do Outono as flores vãofechando e viram-se para baixo; as pétalas encostam-se e fecham com a formade uma sineta, com as pontas viradas para dentro. Era assim que elasestavam. Apesar de fechadas e quase coladas, percebia-se que lá estavam aspétalas, negras, deixando um orifício na extremidade; dando a impressão deque se as pétalas fossem um pouco maiores tapariam essa abertura. Uma vezviradas para baixo, as pétalas ficam ressequidas e duras. Nessa altura, docentro do núcleo cor-de-laranja cresce uma protuberância que logo fica seca edura. Mas como o núcleo permanece maleável, ela abana como o badalo dumsino. – Quando sopra o vento ouvem-se centenas de sininhos com um somsuave de madeira ressequida, como se dezenas de xilofones tocassemsuavemente com sons ligeiramente diferentes. A meio do Inverno, à medida que enfraquecem, as pétalas vão caindo,também com a ajuda do badalo, que as ajuda a soltar. Depois de cair a últimapétala, cai também o badalo, restando apenas, pendurado, o núcleo dotamanho duma tangerina, cuja cor nunca se altera, com nove pequenosorifícios correspondentes aos sítios onde estiveram presas as pétalas e obadalo. – Essa bolinha não é um fruto! Esta árvore não dá frutos! Com a chegada da Primavera, essas pequenas bolas vão virando paracima. E das marcas que ficaram começam a crescer de novo as brancas eluminosas pétalas, abrindo para a luz e para o ar. Secas, as flores não têmqualquer cheiro, mas quando estão viçosas deitam um cheiro fresco eagradável, idêntico ao da serradura, mas adocicado; parecendo uma misturade madeira com mel. – Como não dá frutos, também não dá sementes! Por isso não sereproduz. Meio aparvalhado com o que acabara de ouvir, perguntei: – Então e cortando um ramo e espetando-o na terra... não pega?O homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
O oleiro abanou a cabeça à esquerda e à direita. Insisti: – Então e fazendo um golpe num ramo, envolvendo um saco com terrapara criar raiz? A resposta foi acenos de cabeça iguais aos anteriores. – Tanto num caso como noutro alimenta-se a esperança, mas caem asfolhas, caem os ramos. Fica apenas o pequeno tronco central, hirto, seco emorto. Contou-me depois que os especialistas já tentaram tudo, com terrasdiferentes, em alturas diferentes do ano, com condições diferentes dehumidade, temperatura e luz, mas nada resultou. Levaram-se ramos paradiversos locais do mundo, de ocidente a oriente, do equador aos círculospolares, mas nunca se conseguiu outra árvore como aquela. – Que nome tem esta árvore? – Tem muitos nomes. Árvore grande, árvore da vida, árvore da sorte,árvore diferente, árvore do amor. Se usarmos qualquer destes nomes, ou outroque não seja nome de árvore conhecida, toda a gente saberá que nos estamosa referir a ela. Naquela aldeia só há casamentos quando a árvore tem as floresbrancas. E nenhum casal dispensa uma série de fotografias debaixo ou juntodela. Conscientes da raridade e da beleza destas flores, ninguém ousaapanhá-las. Algumas, situadas na parte mais larga e baixa estão ao nível dorosto dos crescidos. Os pequeninos, é vê-los ao colo dos seus pais e avós,desejosos por tocar nas folhas e cheirar as flores! Mesmo quando algumafolha, flor ou pétala cai com o vento, de nada vale levá-la dali. Mesmo numajarra com água, acontece à flor o mesmo quando fica abandonada no chão dolargo. Em dois ou três dias as pétalas tornam-se negras e rijas e separam-se.Depois de soltas, em mais dois ou três dias estalam em milhares deminúsculos flocos negros facetados, sem forma definida, como se fossempequenos sólidos geométricos quebrados e amassados. – Finalmente, aqui temos a última parte do Gigante que lhe vou mostrar. Curioso, logo olhei à volta, procurando algo que não tivesse visto antesnaquele largo. Mas, não! Nenhum penedo, grande ou pequeno por ali estava.Além da árvore, apenas meia dúzia de bancos para as pessoas se sentarem, eO homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
os oito candeeiros de ferro, pintados de verde-escuro forte, colocadosestrategicamente em torno da árvore. – Venha cá, Raul. Chegámo-nos junto do tronco. – Olhe para cima! Segui a sugestão do Inácio e comentei: – Tem um tronco muito aprumado. – Direito, mesmo muito direitinho... Fez uma pausa e concluiu: – Como uma espada! Uma espada? – A espada?! Aquele tronco, que começa grossíssimo, cedo estreita e continuaestreitando, sempre bem aprumado, terminando num bico aguçado... é aespada do Gigante! Boquiaberto, olhei umas dez vezes de cima abaixo e debaixo acima, relembrando em segundos a história que me havia sido contada. Entretanto, o Inácio afasta-se um pouco e logo me chama: – Venha ver isto! Com a mão direita pega num tenro ramo com a espessura do dedomindinho. Aproximando lentamente o polegar desse ramo, toca nele ao de levecom a ponta desse dedo. Aguça o olhar na extremidade da unha, que aindamais devagar encostou ao ramo. Connosco parados e em silêncio comoestátuas, crava a unha na pele daquele fino e dócil ramo fazendo, de seguida,três minúsculos movimentos com a unha, à direita, à esquerda e à direita.Levanta o dedo e olha, expectante, para o pequeno golpe que acabara defazer. – Demora um bocadinho! Aqueles gestos e aquele olhar foram feitos como se não pudessem serde outra maneira, como se de um ritual se tratasse. Passados uns segundos,começa a formar-se uma gota escura, castanha. A gota torna-se maior ecomeça a escorrer pelo ramo, traçando um fio brilhante. Colocando a mãoesquerda aberta por baixo desse fio, espera que uma gota e depois outra aolado da primeira caiam no centro da palma. Como a sombra não deixava verbem...O homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
– Venha ver ao sol! Parámos a olhar e logo me arrepiei. Virámo-nos um para o outro emsimultâneo. Ele, de olhos pequenos e de boca cerrada, sem sinal do seusorriso característico; eu, de olhos e boca abertos, arregalados de admiração.Antes que eu falasse ele respondeu afirmativamente com um lento e quaseimperceptível aceno de cabeça à pergunta que só a seguir fiz. – Sangue?! O Inácio, ainda inexpressivo, limpa a mão às calças e afasta-se emdirecção à sua casa. A meio do caminho conta o que faltava contar acercadesta história. – Antes de cair morto, o Gigante agarra com força a sua espada, quemanteve bem firme e vertical. No instante em que morreu, a espadatransformou-se numa árvore enorme, coberta por um manto de mil floresbrancas. Quando brancas, simbolizam o amor entre os jovens amantes;quando pretas, representam o luto pela perda de quem amavam. Acabou de dizer estas palavras quando, já perto de casa, vira de repentepor uma rua estreita, que subia mais íngreme do que qualquer outra. Nadaperguntei. Tendo a história sido dada por terminada, esperava uma surpresa.Continuámos a subir. Voltámos a sair da aldeia. A calçada deu lugar a umcaminho de terra, por onde andavam galinhas e patos. Chegados a umapequena elevação olhámos em volta. Dali avistámos de novo o Sol que, lá embaixo, já se havia posto. Em silêncio, o oleiro deu uma volta completa, girandosobre si próprio, olhando devagar todo o espaço à volta. Olhava o vale e asmontanhas, parecendo demorar-se mais quando se virava para os sítios ondeestavam os restos do Gigante. Dali também se via toda a aldeia, com as suascasas agora suavemente acinzentadas pela falta de luz. Inspirou e expiroufundo, fez uma pausa e voltou a inspirar. Quebrou o silêncio: – O Gigante, que antes fora guerreiro, morreu. E os seus restos estãopor aqui espalhados. Estendendo as mãos abertas na direcção da aldeia, uma frente à outra,como se apenas naquele espaço de três palmos agarrasse a manchinha decasas de paredes caiadas com telhas de tijolo, acrescentou: – Desses restos, duros e secos, surgiu a sua Alma.O homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
Só quando ouvi a última palavra percebi por que razão tinha a aldeiaaquele nome. Bem que podia ter percebido antes, mas não me ocorrerarelacionar as coisas de tão embevecido que estava com a história que me eracontada. Ele baixa as mãos, eu baixo a cabeça. Fecho os olhos e logo duaslágrimas empurraram suavemente as fendas pegadas, escapando velozes pelorosto para se unirem no queixo, numa só. Senti essa gota, maior, soltar-se ecair na terra entre os meus pés. Assim fiquei algum tempo. Ergui a cabeça eolhei por cima do ombro direito, atraído pela luz que sumia. Com a vista turva,vi que o Sol cor de carne tocava a crista da montanha, ali ficando por brevesinstantes, em equilíbrio.O homem que fazia círculos - 2.º capítulo António Galrinho
usada, com a camisa meio desfraldada. Usava boina com a pala levantada, umpouco de lado, mostrando a metade branca da testa. Um palito colado ao beiçoinferior ameaçava cair a qualquer momento, a qualquer dos seus passosincertos. Desliguei o carro. Saudei-o e perguntei-lhe como poderia sair dali eapanhar a estrada para a povoação que procurávamos. Cambaleando, encostoua mão direita no tejadilho do carro, com a outra tirou o palito da boca. Baixou-seligeiramente e olhou-me fixo com uns olhos muito pequeninos e húmidos.Parecia tomar coragem para começar um discurso longo. Com a mão quesegurava o palito ajeitou a boina para ficar com melhor aparência, mas ao fazê-lo picou a testa e disse: – Porra! Percebi que aquela palavra não era a resposta à minha pergunta. Alémdisso, já estivera em Portugal algumas vezes, e o esforço que fizera até aí paraaprender português já me permitia entender e fazer-me entender de formarazoável, a não ser que a conversa fosse com um surdo ou com um bêbado.Repeti a pergunta. Pelo menos o nome da povoação que eu procurava deve terpercebido, pelo que respondeu: – Vá até lá acima, volte para trás e siga em frente! Dito isto, levantou a pala da boina, prendeu o palito no único espaço entredentes onde seria possível fazê-lo, desencostou-se do carro, virou costas edesceu rua abaixo, deixando um bafo a vinho tinto novo dentro do carro. Algunspassos adiante acrescentou: – Boa viagem! Já habituado ao silêncio português, sobretudo no interior, não me admireicom esta poupança nas palavras. Mas aquela resposta era deveras incompleta etonta. Ou talvez não! Talvez eu tivesse mesmo de voltar para trás. Sem saber oque fazer após esta cena algo desconcertante, olhei para a minha mulher erimos os dois como se nos tivessem acabado de contar uma anedota. Sem razão aparente volto o olhar para a porta da taberna, de onde saía,nesse instante, um outro homem, afastando as fitas multicores de plástico, queinterditavam a entrada das moscas, com a firmeza de quem empurra uma portapesada. Como se desse continuidade a um discurso já iniciado, disse: – Mas como está muito calor, e esta não é uma hora boa para viajar,podem aproveitar para beber um copo de água fresca.O homem que fazia círculos - 1.º capítulo António Galrinho
No fim da frase desenhou um sorriso que quase lhe fechou os olhos. Nosegundo que decorreu entre a sugestão e a minha resposta olhei de relancepara a minha mulher, que ainda se esforçava por controlar o riso. Claro que aminha resposta só podia ser de aceitação. – Claro! Aquele ar decidido, com a alegria contagiante de um amigo bem disposto,não me permitiu outra resposta. Este homem era certamente mais velho do que o outro, mas aparentavaser mais novo, pelo aspecto saudável e alegre que tinha. Uma boina verde-cinza, bem colocada, projectava uma sombra densa que lhe cortava o rosto ameio, numa diagonal. A estatura média-baixa impressionava pela presençadecidida e calma. Vestia camisa de manga curta e calças, ambas castanhas, acamisa num tom mais claro. A barba muito bem feita evidenciava uma pele lisa,morena, rasgada apenas por alguns golpes junto dos olhos e na testa, estesmais suaves e compridos. Uma pequena barriga, comum naquela idade,sobressaía ligeiramente. Era evidente que ele não estava apenas a sugerir que eu e a minhamulher bebêssemos água. Percebi que ele queria oferecer também a suasimpatia. Por isso, quis mostrar o quanto estava decidido a aceitar a proposta eacrescentei: – Claro, está mesmo muito calor! E logo a seguir o homem ripostou: – Então, venham até ali! De início pareceu-me que ele nos queria oferecer um copo de água alimesmo, na taberna, o que era estranho, porque nas tabernas bebem-sesobretudo copos de vinho. Contudo, talvez ele nos quisesse oferecer água,sombra e frescura em sua casa. E também companhia. – Deixem o carro lá em cima, no largo. Ficou-me nítida a imagem do seu rosto, como que carimbada nos olhos.Os lábios firmes, bem horizontais quando sereno, bem curvos quando sorrindo,contrastavam com o nariz mediano, de ponta saliente e arredondada. Os olhos,pequenos e húmidos, não de vinho mas dum sorriso franco que depressapassavam de um olhar vago como a névoa para um firme como uma seta, eramencimados por umas sobrancelhas escuras, ralas, com pêlos compridos eO homem que fazia círculos - 1.º capítulo António Galrinho
desalinhados. As orelhas eram pequenas, como que coladas à cabeça, àexcepção dos lóbulos, que apontavam ligeiramente para fora. Um cabelogrisalho e denso saía por baixo da boina. A cara era cheia, sem ser gorda,apenas o suficiente para ocultar os relevos das maçãs do rosto. Só o queixoavançava ligeiramente, tímido, parecendo competir a medo com o nariz. Liguei o carro e subimos. Meio aparvalhado com tudo isto nem ofereciboleia ao homem. A minha mulher chamou-me a atenção para isso, malrecomeçámos a subida. – Oh, que chatice! Que cabeça a minha! Olhei para o lado e pelo retrovisor para ver se o via mas a rua estavadeserta, como quando havíamos chegado. Continuámos. Não percebemos se ohomem voltou a entrar na taberna ou se nos teria seguido por outra rua. Dequalquer modo esperaríamos por ele lá em cima. Era um largo muito pequeno. Nele havia espaço para o meu carro, para ooutro que já lá estava, para uma cameleira plantada bem no centro, e poucomais. Saio e olho à volta, tentando encontrar o homem. Além da rua por ondeentrámos, no largo desembocam mais duas, uma muito estreita e outra maislarga que davam continuidade uma à outra, alinhadas, quase perpendiculares àrua por onde havíamos chegado. A mais larga era curta e conduzia a outro largo,maior, deixando ver metade de uma enorme árvore, cheia de flores brancas,grandes, que adivinhava uma forma idêntica à que tem o ás de espadas. A ruamais estreita era mais longa, parecendo ser apertada pelo casario. Ao fim dessarua aparece o homem, acenando com as mãos erguidas, abanando todo ocorpo. – Venham por aqui! Olhei admirado para a minha mulher. Ambos sorrimos daquela cenadesconcertante, e seguimos caminho. De facto, não nos parecia possível queaquele homem tivesse subido duas centenas de metros tão depressa, num diade tanto calor. E que subida aquela! Ou estaríamos nós já algo alucinados pelocalor que havíamos perdido a noção da relação habitual entre o espaço e otempo! Algumas mulheres, espreitando pelas janelas, olharam-nos curiosas massem nada dizer. Tinham o olhar de quem está habituado a reconhecer as carasque por ali passam. Cumprimentámo-las com sorrisos e olás. Para fugir do solO homem que fazia círculos - 1.º capítulo António Galrinho
escaldante, andámos junto às paredes, abrigando-nos nas estreitas sombrasque os beirais salientes das casas projectavam. Entrámos num largo um poucomaior do que o anterior, no cento do qual sobressaía um penedo de granito.Junto dele, saltitava água dum bebedouro. Uma dúzia de casas idênticascontorna aquele espaço. Uma delas é a daquele homem. – Entrem, entrem! Entrámos. Era uma humilde casa de aldeia, de paredes grossas, divisõespequenas e tectos baixos. Muito agradável, com uma frescura fabulosa.Entrámos directamente numa sala onde se amontoavam os móveis, que malvimos, pois a luz lá fora era muito forte. Apenas o brilho metálico de umamáquina fotográfica colocada numa estante me chamou a atenção. Passámosde imediato para uma divisão com uma janela virada para as traseiras, ondeuma mesa e meia dúzia de cadeiras preenchiam a área central. Decidido, ohomem atravessou-a também sem nada dizer. Ao chegar à porta quecomunicava com a cozinha, e de costas voltadas para nós, disse, mostrando-nosa palma da mão esquerda: – Sentem-se aí que já lhes dou a água! Mal nos sentámos aparecem uns braços estendidos com dois copos debarro encarnado, vidrados, quase a entornar de água. – Bebam! Agradecemos e bebemos. A minha mulher comentou: – É muito fresca. – E não estava no frigorífico! É uma água admirável, é do poço que estáali no quintal. É dessa que bebemos cá em casa. Eu, para não ficar calado, rematei: – Os copos são bonitos. Aí, parecendo sentir-se mais à vontade connosco, o homem perguntou: – Que fazem por cá? Eu expliquei: – Procurávamos outras povoações... mas perdemo-nos e viemos aquiparar. A minha mulher acrescentou: – Mas valeu a pena, pois esta água é muito agradável, e o senhor é muitosimpático.O homem que fazia círculos - 1.º capítulo António Galrinho
De repente saiu-me uma pergunta estranha, que eu senti como se nãotivesse sido feita por mim: – Que faz você? Simples e curta, parecendo ser apenas uma pergunta para continuar aconversa, teve um efeito naquele homem que eu não estava à espera. Ele puxapara si a cadeira onde apoiara as mãos, senta-se, tira a boina da cabeçacolocando-a num joelho e prepara-se para responder com um ar sereno, feliz.Percebi que a pergunta, afinal, lhe agradara. – Faço círculos! Desta vez abriu bem os olhos, ao contrário do que lhe era habitual quandotinha um ar de satisfação. Como perante tal resposta o nosso ar só podia ser deadmiração, ele apressou-se a esclarecer. Estendeu a mão esquerda à frente dasnossas caras, com a palma virada para cima, bem horizontal; estendeu deseguida a outra que, com os dedos virados para baixo, rodou um pouco acimada anterior dizendo: – Faço círculos! O meu espanto foi enorme quando ouvi aquela frase pela primeira vez.Quando a ouvi pela segunda fiquei sem saber o que pensar nem o que dizer, anão ser que, afinal, deveria estar perante alguém que não estaria no seu juízoperfeito. Confesso que, por breves instantes, estive até convencido disso.Durante o meu silêncio de espanto, aquele homem vinca ainda mais o sorrisohabitual, de novo quase fechando os olhos, que humedeceram decontentamento. Era suposto certamente, senti isso!, ter-me deixado contagiarpor aquela frase, dita daquela maneira teatral mas simpática, apesar de tudo. Eudevia ter reagido de forma simpática também, talvez com um sorriso apenas,pelo menos enquanto durasse o mistério. Mas não foi isso que aconteceu,sobretudo porque eu continuava sem perceber o que queria aquele homemdizer. De qualquer modo, fiz um pequeno esforço e sorri, mas mantive-mecalado. Recolhendo os braços, o homem virou-se para mim e espetou-me oolhar com tal força que me deixou electrizado. Como que revelando finalmente osegredo, ou desfazendo o mal-entendido, disse: – Faço círculos... e depois cozo-os! Com o tom decidido que foi colocado nesta frase era suposto, desta vez,que eu ficasse esclarecido, mas não. Fiquei completamente baralhado, semO homem que fazia círculos - 1.º capítulo António Galrinho
saber o que pensar, o que dizer e até que expressão fazer, pois pareceu-meestar a dialogar com alguém que construía frases sem nexo. E como se nãobastasse, ainda acrescentou, como que para testar a minha paciência: – Às vezes zango-me com eles e até lhes dou murros! E deu um forte e sonoro soco na palma da mão, e mais dois na mesa demadeira maciça e pesada, mas que não conseguiu evitar que os copos, aindameios de água, dessem um pequeno salto. Depois daquela cena olhou para nóse quase se babou. Não me restaram dúvidas: maluco, mesmo! A minha mulher,que se ri facilmente, estava prestes a rebentar, mas controlou-se, pois tambémestava a achar estranhíssima esta conversa. Para desfazer de vez a dúvida, ohomem abana a cabeça a um lado e a outro e diz, como que desinteressado daconversa: – Oh, porra! Faço vasos, bilhas, canecas, potes! Logo a seguir avança um pouco a cabeça e abre os braços com as mãosviradas para cima, como se sustentassem uma paciência pesada, apontandocom o queixo para o centro da mesa, de novo abrindo bem os olhos. Nessaposição, e olhando para o espaço vazio entre mim e a minha mulher, como seolhasse uma terceira pessoa, remata baixinho: – Sou oleiro. Após este desfecho, olha para cada um de nós, apoia as mãos na mesa evolta à expressão infantil habitual. Este remate foi desnecessário, pois jáestávamos esclarecidos após a frase anterior. Levantando-se, aponta em silêncio para algumas peças de barro utilitárioque se encontravam num móvel e, de seguida, para os copos onde bebíamoságua, para que não restassem dúvidas. – Ah, muito bem! Foi o que eu disse, para dar mostras claras de que havia entendido. Levantámo-nos também para olhar as peças. Eram simples peças de usocomum, de barro encarnado, idênticas a muitas outras que eu conhecia. A minhamulher comentou: – São bonitas. Refeito do choque que resultou do mal-entendido, fui olhando as peças.Não estavam ali como numa exposição; estavam ali guardadas esperando serutilizadas. Enquanto ia olhando aproveitei para relacionar uma série de coisas.O homem que fazia círculos - 1.º capítulo António Galrinho
Questionei, em silêncio, como é que ali tínhamos ido parar. De facto, foi fruto demuitos acasos. Perdemo-nos algumas vezes no caminho. Sem saber, o oleirointerrompia os meus pensamentos. – Podem ver à vontade! Havíamos parado o carro em frente de uma taberna, donde saiu aprimeira pessoa que vimos nesta aldeia, bêbada. Entretanto a minha mulher jáagarrava e virava à vontade tudo o que via. Lembrei-me de uma frase que osportugueses usam referindo-se às pessoas que, sem autorização, pegam nascoisas para as poderem ver melhor: “Como os espanhóis, não sabem ver semmexer!” Mas a autorização logo veio. – Podem mexer à vontade! E lá continuei na minha renda mental, pensando como era tambémestranho que logo a seguir tenha saído da mesma taberna um homem tão lúcidoe que, de forma tão decidida, tenha oferecido água a um casal dedesconhecidos que ele acabara de ver naquele instante. De facto, tambémestranho foi termos aceite de forma tão natural. – Essa foi das primeiras que fiz, há muitos anos. Vagueando os olhos pelas peças, tentei não perder o fio aospensamentos nem deixar de ouvir as indicações que ele ia dando. Fruto de umasérie de acontecimentos casuais, viemos aqui parar, a casa deste homem, que éoleiro. É certo que eu conheci muitos artesãos por acaso, ao passar por tantossítios ao longo de vários anos. Mas, algo mais me intrigava além da sucessão deacasos. Este homem falava com palavras límpidas e precisas e com poesia!“Faço círculos e depois cozo-os!” Esta frase ganhava agora outro significado. Quando terminávamos a volta à pequena sala ouvimos uma grandeagitação e cacarejar de galinhas. Perguntei: – Algum cão que as assusta? – Não! É a minha mulher que anda atrás delas. Vai matar uma! A minha mulher olhou para mim, preocupada. Poderia desmaiar seassistisse à morte de uma galinha. Por essa razão, afasta-se sempre desseritual. Olhar para as galinhas já mortas, mesmo com as goelas abertas e acabeça quase separada do resto do corpo, já não lhe faz impressão. Mas aquelacoisa de pisar as asas, agarrar na cabeça, virá-la para trás, arrancar as penasdo pescoço com a faca e, de seguida, cortá-lo..., já não é coisa que lhe agrade.O homem que fazia círculos - 1.º capítulo António Galrinho
Pior ainda é o escorropichar de sangue e os sons gargarejantes e aflitos dopobre animal. A mim também não é coisa que me cative, mas não me faz mudarde cor. – Venham ver, tenho aqui um quintal bonito! É escusado dizer que esta proposta era a última coisa que a minhamulher desejava ouvir naquela altura, pois era do quintal que vinha aquelebarulho. Só por ouvir essas palavras, começou a ficar branca. – Bem... Ela hesitou, mas o oleiro não percebeu o seu embaraço, ou fez que nãopercebeu, e insistiu: – Venham, temos aqui umas sombras muito frescas. Vão gostar! A minha mulher respirou fundo, deu-me a mão por um segundo e encheu-se de coragem; ou melhor, tentou convencer-se de que a iria arranjar, pois acoragem não pode ser daquela cor. Por uma estreita porta passámos para oquintal, seguindo o dono da casa. – Maria! – Uh! A mulher respondeu de dentro do galinheiro, com uma enorme galinhacastanha agarrada pelas asas, com a mão esquerda. – Larga a galinha e vem cá! Percebendo que tinha visitas, ela assim fez. Saiu do espaçoso galinheiro,onde se agitavam assustadas umas dez galinhas e um galo. Ao fechar a portade rede de arame, virando-se para a galinha que acabara de largar, diz: – Não penses que te vais safar. Eu já aqui volto. De facto, um alguidar e uma faca gasta de tanto ser amolada e usadaestavam ali perto, à sombra cerrada de um enorme pinheiro manso. Entretanto,olhei para a minha mulher que já recuperara as cores rosadas e o sorrisohabitual. A Maria era uma autêntica mulher do campo. O lenço, com manchas demuitas cores espalhadas sobre um fundo azul celeste, atado na nuca, aindadeixava ver algumas ondas de um cabelo quase todo branco, farto e bonito,muito bem penteado. A roupa estava gasta de tanto ser usada mas sem sinaisde sujidade. Blusa de manga curta, laranja; saia de ganga, cinzenta, passandoum pouco abaixo do joelho; avental de riscas verticais, finas, de várias cores. OsO homem que fazia círculos - 1.º capítulo António Galrinho
grossos sapatos, muito usados, calçados com o propósito de entrar nogalinheiro, traziam dejectos de galinha cravados nas solas, como lama. – O que é que se passa? A mulher fez a pergunta olhando para nós, sorrindo enquanto ajeitava ocabelo para dentro do lenço. O seu rosto tinha as formas bem delineadas. Tenteiimaginá-lo aos trinta anos; depois imaginei que a esse rosto tinham sidoacrescentadas as rugas, no decorrer dos trinta anos seguintes. As sobrancelhasclaras, a pele rosada, os lábios rosa bem desenhados e os olhos azuis eram osde uma lindíssima rapariga loira. – Trouxe este casal cá a casa para beber água. – São bem vindos! Fiquem à vontade! Eu estava agora para matar umagalinha, mas posso deixar isso para mais tarde. Ao ouvir tal, a minha mulher suspirou de alívio. – Ora essa, não queremos atrapalhar. O oleiro apontou para dois bancos de madeira e propôs: – Sentemo-nos! Está muito calor para fazer seja o que for, mas debaixodestes pinheiros está sempre fresco, mesmo que a terra grete com o sol. Os bancos eram corridos, sem encosto, e estavam junto da parede dacasa, que a larga copa do pinheiro grande já acinzentava com a sua sombra.Encostada a essa parede, estendida no chão junto aos bancos, estava tambémuma comprida escada de madeira, pronta para qualquer serviço. Naturalmente,cada casal pegou num banco e o deslocou ligeiramente até ficarem paralelos eassim nos pudermos ver melhor. Sentámo-nos, e mal endireitávamos as costas,a mulher do oleiro perguntou: – Como se chamam? Respondi eu: – Eu chamo-me Raul, a minha mulher chama-se Carmen. Somosespanhóis. E vocês como se chamam? O “somos espanhóis” saiu-me de forma impensada e desnecessária. Ooleiro respondeu: – Chamo-me Inácio, a minha mulher chama-se Isabel. Trocámos apertos de mão e sorrisos, e a partir daí sentimo-nos amigos.Mas eu não deixaria passar um pormenor que achei estranho. – Isabel?! Então não é Maria?O homem que fazia círculos - 1.º capítulo António Galrinho
– Não! Maria é o que ele me chama quando grita por mim. Depois de feito o esclarecimento, a Isabel questionou: – A sua mulher é de poucas palavras ou está envergonhada? A Carmen sorriu ante esta pergunta inesperada e respondeu apenas comuma palavra nada esclarecedora. – Não. Eu continuei: – Não. Ela diz pouca coisa em português e atrapalha-se. Sacudindo uma pequena pena que teimava em se segurar ao avental, aIsabel sugere: – Então fale espanhol, nós percebemos. A minha mulher nada disse, substituindo as palavras por mais um sorrisoe um tímido aceno de cabeça afirmativo. Daí surgiu um breve silêncio, durante o qual aproveitámos para melhorsentir a sombra fresca do pinheiro e o agrado por estarmos juntos, ali, apesardesse agrado ser acompanhado por aquele ligeiro desconforto que se costumasentir quando se está pela primeira vez junto de alguém, mesmo que essealguém seja tão simpático quanto o Inácio ou a Isabel. Esse silêncio foirecortado de forma intermitente por alguns reparos relativos ao tempo, tãoquente que estava, ou ao quintal grande que tínhamos em frente, com as suasdiversas árvores. Durante esse período, em que nos apeteceu apenas sentir oestar ali, fui olhando em volta, vendo um ou outro pormenor que as palavrasdificultam ver quando correm umas a seguir às outras: uma pequena cicatriz porbaixo do queixo do oleiro, mais um gesto delicado da sua mulher, um melro quecorre ali próximo e se afasta voando, cortando o ar com um assobio, umapequena porta no telhado da casa, uma casinha curiosa no fundo do quintal,algumas árvores por ali espalhadas, umas flores aqui, outras acolá. Durante estes silêncios, o Inácio e a Isabel aproveitaram também paranos mirarem discretamente as feições e os gestos. Olharam algumas vezes derelance para o meu bigode fino e horizontal, do comprimento das duassobrancelhas juntas, negro como o cabelo, este curto e farto. No meio, o narizlongo e afiado acentua mais ainda o rosto magro e chupado. Quando fechada, aminha boca é quase invisível, pois os lábios colam-se um no outro quase natotalidade. Os olhos azuis bastante claros destacam-se da pele morena eO homem que fazia círculos - 1.º capítulo António Galrinho
parecem não fazer parte do conjunto. Aliás, no meu rosto tudo parece seremprestado, tudo parece ter sido colocado ao acaso. Reparei que acharamgraça ao aspecto levemente cómico que resulta deste conjunto, onde apenas asmedianas orelhas parecem estar dentro das normas. Da Carmen ressaltava openteado extravagante, um dos muitos que sabe fazer, assim como a meticulosamaquilhagem. O cabelo pintado de castanho quase encarnado formava volumesassimétricos e de dimensões variadas, estando tudo preso como que por magiaapenas por uma pequena mola, escondida algures. As sobrancelhas finas,levemente aparadas, jogavam com as pestanas longas, azuis escuras. Umligeiro colorido rosado nas pálpebras alivia o vermelho forte dos lábios. Coresessas que acabam por ter mais realce devido ao facto de a pele ser clara. Onariz levemente arrebitado parece contrabalançar o lábio inferior, um poucopendente, mas dando-lhe ao mesmo tempo um ar cómico. Nesse dia a minhamulher levava uns brincos simples, umas argolas de prata redondas que sedestacavam apenas pelas grandes dimensões. Os brincos, aliás, mereceram umolhar sorridente do homem que faz círculos, que parece ter-se lembrado dasfrases que havia dito minutos antes. No conjunto, este aparato causava algumaadmiração. Este período sem diálogo foi interrompido por uma pergunta decididada Isabel. – Querem ver a olaria? A olaria, claro! Ainda não se tinha falado dela. E nela poderiam estartantas peças, tantos círculos, afinal. Eu sou apaixonado por artesanato e estavaansioso por vê-la. Que peças guardaria? Estaria alguma surpresa mais à nossaespera? Perdido nestes pensamentos, foi a minha mulher quem respondeu. – Não se preocupem! Viemos só beber um copo de água! Aquela resposta irritou-me. Embora fosse essa a verdade, ela não deviater respondido aquilo, uma vez que a pergunta da Isabel era também um convite.Eu sei que a minha mulher entendeu isso, querendo com a sua resposta mostrarum certo humor, subtil, mas também atrapalhar-me um pouco. Bem a conheço!Parece que os nossos interlocutores perceberam a brincadeira e não deramseguimento à frase. Que sorte! É que, por instantes, me pareceu que àquelaresposta eles poderiam ter retorquido qualquer coisa como “então, bebam maisum” e, após isso, nos desejassem uma boa viagem. Fiquei irritado com aquilo.Preocupou-me também o facto de a resposta da minha mulher parecer conterO homem que fazia círculos - 1.º capítulo António Galrinho
uma espécie de rejeição do convite subjacente à pergunta. De qualquer modo,eu não me devia ter preocupado com isso, pois mesmo que tivesse havido ummal entendido ele seria corrigido facilmente. O oleiro manteve um sorriso de espanto, observando a minha inquietação,mas logo se levanta, decidido. – A olaria, claro! Venham daí vê-la! Lá dentro está fresquinho. Logo os meus pensamentos infundados refrescaram também. O queaquele homem mais desejava nesse instante era, de facto, mostrar-nos a olaria,assim como eu a desejava ver. O quintal tinha à direita uma sebe irregular e densa, composta pordiferentes arbustos, cujos ramos mais altos subiam acima da altura dos beirais,de modo que não se via o que estava do outro lado. Percebia-se que essesarbustos tinham crescido livremente, sem nunca terem sido podados. Entre aparede e o arbusto mais chegado a esta havia uma passagem estreita que semantinha aberta pelo uso. Passámo-la. Alguns gatos de várias cores fugiram com grandes saltos e rápidascorridas, cada um por um caminho diferente. Escutaram tudo o que dissemos dooutro lado, à sombra da sebe, os malandros!, sem que nos tivéssemosapercebido das suas presenças. Só um macho, de pêlo cinzento-pardo luzidio,não fugiu e, curioso, parecia convidar-me a aproximar. Agachado no chão, àsombra fresca daqueles arbustos, olhava-me de olhos bem abertos. Aproximei-me devagar. Estendi-lhe a mão direita. Estando esta a um palmo do seu nariz,que me cheirava, levantou-se e espreguiçou-se de olhos fitos na minha mão. Derepente desinteressa-se, dá meia volta com uns passinhos curtos e lentos, eafasta-se empertigado, numa marcha contínua, direita, apenas perturbada poralgumas sacudidelas enérgicas de rabo, como se enxotasse moscas invisíveis.Olhámos uns para os outros e largámos sonoras gargalhadas. Algumas parreiras altas e com grossos troncos estendiam os seus ramose folhagens sobre uma estrutura de tubos metálicos e arames, vergada pelopeso dos gordos cachos de uvas quase maduras, lilases. À sombra esfarrapadadessas parreiras, espalhadas pelo chão, estavam dezenas de peças de barroencarnado, de carácter utilitário. Apesar de alguma desordem, dava paraperceber que se pretendia que as peças estivessem colocadas por tipos etamanhos. Potes, vasos, pratos, canecas, tachos, alguidares, eram algumas dasO homem que fazia círculos - 1.º capítulo António Galrinho
peças que por ali se encontravam; vidradas umas, outras não, mas todas debarro encarnado, por vezes quase castanho. – Isto aqui é o que vê! Fomos contornando aquelas peças com interesse e simpatia, enquanto ooleiro ia dizendo algumas frases soltas, como se se sentisse na obrigação dedizer algo. – Coisas sem graça! Apesar de aquelas peças serem iguais a muitas outras e de estaremmuito empoadas, por haver muito tempo sem chuva, não eram propriamentecoisas sem graça. Ao lado estava um monte de cacos, para onde o homemolhou e apontou. – As que se partem ou saem defeituosas é para ali que vão. Até voam! Obarulho que fazem ao cair é o sinal de um reencontro pacífico com a terra. A mulher corta bruscamente com as saídas do marido. – Do que ele gosta mesmo é dos bonecos! Aqui, os meus olhos levantam-se do monte de cacos e colam-se nos dooleiro, interrogativos. Ele olha-me, fixo também, talvez esperando que eudissesse algo. Num segundo, questionei em silêncio se iria encontrar nessesbonecos alguma relação com uma certa maneira de ver as coisas, que serevelava através das frases meio enigmáticas e poéticas que iam saindo da bocado homem. Para quebrar o pequeno embaraço que se criou com aquela troca deolhares, fiz uma pergunta desnecessária: – Também faz bonecos? Talvez eu tenha feito esta pergunta para ganhar algum tempo com aintenção de preparar outra mais inteligente, que na altura não me ocorreu. – Aqui está muito calor. Lá dentro está-se melhor! O oleiro preferiu conduzir-nos directamente aos bonecos. Entrámos numacasa que, por fora, era idêntica à anterior, embora mais pequena. Mas, e maisuma vez passado o tempo necessário para que a vista se acomodasse àdiferença de luz, reparei que se tratava de um espaço único que parecia ter sidoem tempos uma casa de habitação, transformada em olaria depois de retiradasas paredes interiores. A mulher abriu algumas janelas. O tecto era de madeira, eO homem que fazia círculos - 1.º capítulo António Galrinho
parecia ser relativamente recente. No centro, um pilar redondo, também demadeira, ajudava a sustentar aquele tecto. – É muito agradável estar aqui. Perante esta frase da minha mulher, a Isabel olhou-a e sorriu, parecendopreparar algo que não chegou a dizer. O homem ia andando à nossa frente, devez em quando exibindo o seu sorriso, cada vez mais aberto. Ia desviandoalgumas peças do chão, para que passássemos mais à vontade, e ajeitavaoutras colocadas nas bancadas e prateleiras, para que as víssemos melhor. Olhei à volta. Estava no meio duma típica olaria, com duas rodas a umcanto, uma artesanal e outra eléctrica, junto às janelas que davam para o largo.Duas tinas de cimento com tampas de madeira guardavam o barro fresco.Algumas bancadas de trabalho apresentavam-se com a habitual desarrumaçãoe sujidade própria desta actividade. Por todo o lado se arrumavam peças, umascozidas, outras por cozer, umas secas, outras a secar. Para não continuar mais tempo sem nada dizer, e tentando puxar pelolado poético que este enigmático homem já havia revelado, virei-me para ele edisse uma frase banal, pois mais uma vez não me ocorreu outra. – Vejo que esta casa é um mundo, o seu mundo! Ele respondeu: – É apenas uma casita pequena, normal. Fez uma pausa varrendo o espaço com os olhos, formando um grandesemicírculo com os braços, como se agarrasse uma enorme bola, e continuou. – O mundo é muito grande! Isto aqui é coisa pequena, sem importância. Terminou o seu longo e lento gesto com um estender de dedos, como sesacudisse água. Eu comecei uma volta que percorreu todos os recantos. Aspeças que por ali estavam eram, na quase totalidade, iguais às que se viam noquintal. Umas vidradas, outras não, não apresentavam qualquer colorido oudecoração adicional. A minha atenção percorria o espaço, saltitando de peça empeça. Agarrei em várias, para lhes tomar o peso e sentir o tacto. Mais do que ele, a mulher parecia ansiosa por mostrar os bonecos. – Mostra os bonecos! – Ah, os bonecos! São coisas tontas, que eu faço de vez em quando. Nãotêm graça!O homem que fazia círculos - 1.º capítulo António Galrinho
Desta vez, o sorriso com que terminou a frase foi tão vincado que lhe fezfechar os olhos. Era uma expressão que revelava claramente o quanto eleansiava mostrá-los, mas que ao mesmo tempo parecia dizer que não tinhapressa, retardando de propósito a chegada do momento mais alto. – Diz sempre o mesmo! A sua mulher não desistia. Parecia que estávamos perante uma pequenapeça de teatro já representada muitas vezes, onde os actores se sentem aptos aimprovisar a qualquer momento. – Onde estão? Foi a minha mulher quem perguntou, pois a partir de certa altura, preferiser um espectador silencioso. O oleiro finalmente cedeu. – Estão aqui, dentro destes armários. Dirigiu-se para dois móveis iguais, de aspecto pesado, de madeira escurae gasta, algo grosseiros devido ao uso e ao tempo que por eles passou. Essesmóveis altos ladeavam a janela maior que dava para o quintal. Cada um tinhaduas portas grandes na metade superior e várias gavetas pequenas na metadeinferior. Abriu as portas do primeiro móvel e exclamou: – Há vários dias que não vêem luz. Logo após, um relâmpago desenhou suavemente os contornos dosbonecos. Abriu as do segundo dizendo mais baixo, como se receasse incomodá-los: – Coitados, também precisam de apanhar ar! Nesse instante rebenta um trovão distante, fazendo tilintar suavementealguns deles, que haviam ficado encostados. Eu estava a uma distância que nãome permitia ver bem os bonecos. Aproximava-me de olhos vidrados, ansioso decuriosidade, quando uma mancha cinzenta se moveu de repente no parapeito dajanela, desviando-me a atenção. O tal gato, que uns minutos antes me deixaraaproximar, apareceu ali com um salto e ali ficou a olhar-me fixo nos olhos, comofizera antes, mas desta vez assustado. O oleiro olhou também para o animal, riu e disse: – Ah, ah! É o Artista! Eu sorri e virei de novo o olhar para os bonecos.O homem que fazia círculos - 1.º capítulo António Galrinho
Search
Read the Text Version
- 1 - 38
Pages: