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Aiyra Anahi: histórias indígenas para crianças

Published by wddessilva, 2023-06-10 19:02:31

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Macunaíma, o herói de nossa gente, possui uma marca linguística, o conhecido dístico “Ai! que preguiça!...”, que o distingue como personagem e o posiciona como o emblema literário da preguiça brasileira. A outra expressão, emitida reiteradamente por ele, “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são”, completa o seu perfil discursivo, ao se investir de intenção retórica e irônica e fornecer uma resposta às teses higienistas defendidas na época pelos adeptos da política de saneamento do país. (SOUZA, 2008, p. 11). Proença (1987) retoma as ideias de Alceu de Amoroso Lima que, ao situar a obra, escreveu que “não é um romance, nem um poema, nem uma epopeia. Eu diria antes, um coquetel. Um sacolejado de quanta coisa há por aí de elementos básicos da nossa psichê” (p. 7). Por outro viés, Souza (2008, p. 9) defende que “Macunaíma consiste no apelo ao estranhamento da linguagem. [...] Lê os provérbios populares, as frases feitas, as histórias infantis ao pé da letra, desconstrói seu valor simbólico e acredita na força da palavra falada, por ser muito astuta”. Souza (2008) conclui que Macunaíma possui um estilo modernista, antropofágico, pois se alimenta e mastiga de todas as fontes linguísticas e estilísticas. [...] Sua fala é a montagem de várias falas [...]. A crítica à realidade brasileira reside justamente na apresentação de um herói sem nenhum caráter, preguiçoso, malandro e esperto, o que seria a imagem também malandra do país. Mas essa interpretação é por demais complexa, pois não há, na rapsódia, nenhuma lição de moralismo em relação ao caráter do brasileiro (SOUZA, 2008, p. 9). A obra-prima de Mário de Andrade inspirou filmes, como “Macunaíma: sem caráter, mas cheio de graça”, com roteiro e direção de Joaquim Pedro de Andrade; peças de teatro, músicas, e até um quadro pintado por Tarsila do Amaral. Nesse contexto, passamos a analisar a rapsódia andradiana. MITOS INDÍGENAS EM MACUNAÍMA Mário de Andrade, além de utilizar-se de várias lendas e mitos brasileiros ou estrangeiros – africanos, por exemplo –, faz menção aos de cunho indígena, a começar por Macunaíma, personagem principal que dá nome ao livro, figura lendária da mitologia indígena que é considerado uma [e]ntidade divina [...]. Criador dos animais, vegetais e humanos [...]. Com o passar do tempo [...] Macunaíma foi-se tornando herói [...]. Tornou-se um misto de astúcia, maldade instintiva e natural, de alegria zombeteira e feliz. É o herói das estórias populares contadas nos acampamentos e aldeias 51

indígenas, fazendo rir e pensar, e um pouco despido dos atributos do deus olímpico, poderoso e sisudo (Cascudo, 2001, p. 347). O autor mesclou várias lendas e mitos e, inclusive, também inventou algumas histórias. No caso de Marajigoana, ente misterioso e anunciador da morte para os indígenas, foi transformado em Maraguigana, um sapo poderoso que fez surgir do nada um dilúvio por causa de Maanape ter matado um boto pra comerem, o sapo cunauru chamado Maraguigana pai do boto fitou enfezado. Mandou a enchente e o milharal apodreceu. Comeram tudo, até a crueira dura se acabou e o fogaréu de noite e dia não moqueava nada não, era só pra remediar a friagem que caiu. Não havia pra gente assar nele nem uma isca de jobá (ANDRADE, 2007, p. 21). Anhanga é um veado branco protetor de todos os animais terrestres dos indígenas. “No lendário indígena e popular amazônico, os guardiões da caça do campo, da mata, dos peixes e das árvores usam estratagemas de defesa, infligindo terríveis castigos e até mesmo a morte aos caçadores ou incendiários que transgridem suas leis” (RIBEIRO, 1987, p. 143). Em um de seus passeios, Macunaíma vê uma viada; inicia-se uma perseguição até que o animal acaba flechado, porém o desfecho não é o esperado pelo indígena: “[o] herói cantou vitória. Chegou perto da viada olhou que mais olhou e deu um grito, desmaiando. Tinha sido uma peça do Anhanga... Não era viada não, era a própria mãe tapanhumas que Macunaíma flechara e estava morta ali” (ANDRADE, 2007, p. 27). Para os indígenas, todas as espécies – animais, vegetais e minerais – deveriam ter uma Mãe, a chamada Ci, em Macunaíma se encontra a “Mãe do Mato” (ANDRADE, 2007, p. 31), a “Boiúna Mãe” (Ibid., p. 77), a “Mãe Vei” (Ibid., p .91), a “Mãe de Deus” (Ibid., p. 113), etc. Entre os indígenas, todos os seres também têm um pai: “Pai do Mutum’ (Ibid., p. 117), ‘Pai do boto” (Ibid., p. 21), “Pai do tucano (Ibid., p. 66), Pauí Pódole” (Ibid., p. 117), “Emoron-Pódole” (Ibid., p. 161), “Aimalá-Pódole” (Ibid., p. 165), etc, pódole significa pai, origem; daí os vários ‘pais’ que Mário de Andrade se utiliza. Uma das mais conhecidas mães é a Mãe d’água, popularmente chamada de Iara, meio mulher, meio peixe, que canta quando quer atrair um homem, sendo que este sempre acaba morrendo afogado. Na narrativa, há uma variação de nomes, a Iara é tratada pelo nome de Uiara, que tenta seduzir Macunaíma. Entretanto, “o indígena, pela sua concepção teogônica, não podia admitir a sedução sexual nas Cis, as mães, origem de tudo” (CASCUDO, 2001, p. 348). O envolvimento, por alguns instantes, entre Macunaíma e Uiara não foi nada proveitoso para ele, “[q]uando Macunaíma voltou na praia [...] estava sangrando com mordidas pelo corpo todo, sem perna direita, sem os dedões...” (ANDRADE, 2007, P.). 52

O ocorrido se deu, menos porque Macunaíma foi seduzido por uma Ci do que por ele ter deixado se encantar por Uiara. Uma figura bem lembrada é o Caipora, gênio do mal na mitologia indígena, traz má sorte encontrá-lo. Mas também há variantes do Caipora, visto que “sua ascendência é confusa. É o Curupira e é o Saci. Um Curupira com os pés direitos, ora unípede como o Saci, tendo o casal de olhos e doutra feita um só, como um arimáspio” (CASCUDO, 2002, p. 113). Uma outra definição vem do “nordeste e norte do Brasil [onde] o Caapora é a Caipora, figura de indígena pequena e forte, coberta de pêlos, de cabeleira açoitante, dona da caça, doida por fumo e aguardente. Há também o caipora macho, caboclo baixo, hercúleo, ágil...” (CASCUDO, 2002, p. 116). Na rapsódia andradiana, muitos animais são apresentados como portadores de poderes especiais. Por exemplo, quando as crianças custam a dormir, a solução é invocar a “coruja Murucututu” (ANDRADE, 2007, p. 37) nas cantigas indígenas, considerada a mãe do sono. Já o “pássaro uirapuru” (Ibid., p. 45) é famoso por seu canto atrair fortuna. “Iandu” (Ibid., p. 43) é uma aranha caranguejeira que faz parte dos mitos dos caxinauás como detentora e senhora do frio. A “anaquilã” (Ibid., p. 69) é um tipo de formiga que, segundo o mito taulipangue, é a pimenta do gigante Piaimã. Guainumbi é a denominação indígena do beija-flor; quando morre um indígena, seu coração vira beija-flor. De acordo com Ribeiro (1987), [...] os animais [...] nas fábulas indígenas aparecem como doadores da cultura e, nessa qualidade, são respeitados e temidos. Essa parece ser a lógica e a moral dos temas ligados aos “donos dos animais”, ou “mães do bichos” [..]. De qualquer forma, essas crenças e mitos são congruentes com o modo de pensar e viver de seus cultores e determinam o comportamento e a ação social (RIBEIRO, 1987, p. 143). Em Macunaíma, encontram-se mitos sobre o surgimento de alguns alimentos como o guaraná, que, originalmente no mito, surge/brota do cadáver de um pequeno indígena protetor da tribo dos Maués; o menino havia sido atacado por Jurupari. Um trecho da obra conta que “no outro dia quando Macunaíma foi visitar o túmulo do filho viu que nascera do corpo uma plantinha. Trataram dela com muito cuidado e foi o guaraná. Com as frutinhas piladas dessa planta é que a gente cura muita doença e se refresca durante os calorões de Vei, a Sol” (ANDRADE, 2007, p. 35). A mandioca, em alguns mitos indígenas, surge ao brotar do cadáver de uma menina muito branca, chamada Mani. Em uma de suas falas, Macunaíma, ao ver moças muito brancas diz: “Mani! Mani! filhinhas da mandioca” (Ibid., p. 52), relação esta, que só faria quem conhece o mito e Macunaíma parece ser conhecedor, 53

apesar do romance não dar mais detalhes. Um objeto que, devido a sua importância na narrativa, também poderia ser considerado um personagem é o muiraquitã: um amuleto, uma espécie de talismã mágico que tem o poder de preservar os indígenas de coisas ruins. Macunaíma havia ganhado esse amuleto de sua mulher e, ao perdê-lo, não sossegou até tomar posse dele novamente. Em uma dessas andanças Macunaíma “[f]oi logo perguntando si o gigante era verdade que possuía uma muiraquitã com forma de jacaré” (ANDRADE, 2007, p. 66). Um mito sobre essa cobiçada pedra conta que […] as jovens […] conheciam a força dos muiraquitãs […]. Elas sabiam que em toda noite de lua cheia a Iara surgia do fundo das águas do Amazonas […] trazendo nas mãos misteriosas as almejadas pedras verdes, os muiraquitãs. [...] [Iara] [l]evantando a mão para o céu, pareceu fazer uma prece. […] [L]ançou as pedras no espaço e mergulhou sob a chuva de muiraquitãs, de diferentes formas, cada qual representando um animal das selvas. Era esse o momento esperado. [...] Regressaram felizes, levando as pedras para ofertar aos guerreiros por elas escolhidos. As qualidades do animal que o muiraquitã reproduzia passavam ao seu portador (CASCUDO, 2001, p. 401). Um personagem já bem conhecido na cultura popular é o Saci, considerado como uma entidade da mitologia indígena, que ora se apresenta de forma maléfica, “Saci inda pára neste mundo espalhando fogueira e traçando crina de bagual” (ANDRADE, 2007, p. 210); ora graciosa e zombeteira, “— Quê que quer, saci?, — Atenção minha madrinha, me dá pão com farinha?” (ANDRADE, 2007, p. 209). O deus mais popular entre os indígenas é o Jurupari, que recebeu a designação de Diabo, o Princípio do Mal. Segundo Cascudo (2002, p. 59), “Tupã, deus que fala pelos trovões e vê pelo caracol dos relâmpagos e raios é uma criação erudita, europeia, branca, artificial. É o Princípio do Bem. Seu culto foi dirigido pelos padres da catequese” com o intuito de desprestigiar o grande poder que exercia o Jurupari. Na narrativa, a personagem Ceuci é descrita como “uma caapora velha sempre cachimbando” (ANDRADE, 2007, p. 58); ela é a companheira do gigante Piaimã. O mito original de Ceuci, e porventura muito interessante, relata que Ceuci: nome da mãe de Jurupari […] que não pode ser velado nem conhecido pelas mulheres. Jurupari proibira, sob pena de morte, que as mulheres fossem ouvi-lo durante a doutrinação aos guerreiros. Ceuci, desobedecendo, escondeu-se para ver o filho revestido com a pompa de taxaua. Morreu a um gesto mágico de Jurupari, que não reconheceu sua mãe. O reformador não lhe restituiu a vida. Levou-a para o céu, transformando-a nas Plêiades, chamadas Ceuci pelos indígenas (CASCUDO, 2001, p. 127). 54

Outros personagens não tão conhecidos nas páginas do romance também fazem parte, como o “acutipuru” (ANDRADE, 2007, p. 39), que é uma divindade admirada pelos indígenas, pois, segundo afirmam, é um dos poucos animais que conseguem descer das árvores de cabeça para baixo, além de acreditarem também que é pela forma de acutipuru que a alma sobe ao céu; “Boto Branco” (Ibid., p. 77) é o Uiara (Iara) dos indígenas, uma espécie de Dom Juan famoso; “Icá” (Ibid., p. 80) é o demônio da mitologia caxinauá: senhor do frio, do sol e da noite; o Piaimã - gigante da mitologia taulipangue e “comedor de gente” (Ibid., p. 54) na narrativa. Em relação a essas entidades divinas, Ribeiro (1987) enfatiza que [a] função mais generalizada dessas crenças e lendas diz respeito à conservação do mundo natural. [...] No mito, no conto popular e nas supertições a eles ligados aparece o mesmo motivo, às vezes expressamente, às vezes sub-repticiamente. A presença do componente religioso – ou sobrenatural – é que imprime força, fé e credulidade ao mito e, em decorrência disso, impulsiona e justifica a conduta (RIBEIRO, 1987, p. 143). Pode-se perceber que, apesar da obra Macunaíma constituir um imenso leque de mitos, lendas e tradições, cada um destes tem a sua parcela de importância e faz desta narrativa uma das obras primas da literatura brasileira. A maioria dos personagens da mitologia indígena presentes na obra se mostra conhecida e muito bem aceita pela cultura popular brasileira, o que demonstra que a mistura das culturas indígenas com a cultura brasileira só tem a engrandecer ainda mais a nação brasileira. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os mitos sempre estiveram e estarão presentes na vida humana. Como pudemos perceber nestas breves explanações, estudar alguns conceitos e conhecer alguns mitos, simplesmente não dão conta da complexidade e da riqueza que o mito abrange. Em se tratando da mitologia indígena, ela se mostra mais viva hoje do que quando fazia parte tão somente da identidade dos povos indígenas. Neste sentido, quem também merece ser reconhecido é o escritor Mário de Andrade que, no romance Macunaíma, fez um resgate de várias culturas ancestrais que merecem reconhecimento pela sua contribuição na formação da identidade brasileira. Enfim, percebemos através da análise proposta que alguns mitos indígenas encontrados em Macunaíma são muito difundidos no território brasileiro como, por exemplo, o surgimento de alimentos como a mandioca e o guaraná, alguns seres que 55

habitam as florestas como o Curupira e a Iara, entre outros tantos exemplos de mitos. Este fato demonstra uma pequena parcela do quanto essas culturas indígenas já se agregaram e contribuíram na formação da identidade do povo brasileiro. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Agir, 2007. CAMPBELL, Joseph; MOYERS, Bill. O poder do mito. Trad. Carlos Felipe Moisés. 25. ed. São Paulo: Palas Athena, 2007. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 11. ed. São Paulo: Global, 2001. CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo, Global, 2002. CASSIRER, Ernest. Linguagem e mito. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. DURHAN, Eunice Ribeiro. O lugar do índio. In: ____. O índio e a cidadania. São Paulo: Lux Vidal, 1983. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. FARIA, Daniel. Makunaima e Macunaíma: entre a natureza e a história. Rev. Bras. Hist. [online]. 2006, vol.26, n.51, pp. 263-280. Disponível em: . Acesso em 19 out. 2010. LÉVI-STRAUSS, Claude. A estrutura dos mitos. In: ____. Antropologia estrutural. Trad. Chaim Samuel Katz. 6. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. MINDLIN, Betty. O primeiro homem e outros mitos dos índios brasileiros. São Paulo: CosacNaify, 2001. OLIVEIRA, Acary de Passos; BANDEIRA, Lêda T. Costa; SOUSA, Maria Cira J. Meireles D. Conhecendo o índio. Goiânia: UCG-Universidade Católica de Goiás, 1990. PROENÇA, Manuel Cavalcanti. Roteiro de Macunaíma. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987. RIBEIRO, Berta G. O índio na cultura brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Global, 1987. ROCHA, Everardo. O que é mito. São Paulo: Brasiliense, 2006. SOUZA, Eneida Maria de. A subversão linguística de Macunaíma. Rev. do Instituto Humanitas Unisinos. Disponível em: . Acesso em 19 out. 2010. SOUZA, Gilda de Mello. O tupi e o alaúde. São Paulo: Duas Cidades, 1979. VICO, Giambattista. Princípios de uma ciência nova: acerca da natureza comum das nações. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984. 56

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LITERATURA INFANTIL INDÍGENA CONTEMPORÂNEA: INDAGAÇÕES CONTEMPORARY INDIGENOUS CHILD LITERATURE: QUESTIONS Cássio Luan Rodrigues Da Silva¹ (Bloco 5º) RESUMO: Apresentam-se percursos e percalços atinentes à literatura infantil indígena contemporânea, no Brasil. Os questionamentos propostos pelo ensaio são organizados face a aspectos de produção e autoria, publicação e circulação e, enfim, mediação e ensino. Não se estabelecem no texto conclusões e respostas; em vez disso, procura-se contribuir com um “ajuste de foco”, que nos permita indagar com maior discernimento esse objeto relativamente recente nos Estudos Literários e Pedagógicos, a partir de contribuições de diferentes pensadores afins ao materialismo histórico e dialético. Inicialmente, contextualiza-se a Lei 11.645/2008, e evidencia-se a responsabilidade de pesquisadores e professores na superação do etnocentrismo, por meio da experiência literária. Por fim, apresentam-se propostas para o diálogo com aqueles que se dispuserem a assumir a responsabilidade para a qual esta discussão convoca. Palavras-chaves: Literatura Infantil. Literatura Indígena. Literatura Contemporânea... ABSTRACT: Routes and obstacles related to contemporary indigenous children’s literature are presented, in Brazil. The questions proposed by the essay are organized in view of the aspects of production and authorship, publication and circulation, and, at last, mediation and teaching. Conclusions and responses are not established by the text; instead, we seek to contribute to an “adjustment of focus”, which allows us to inquire with greater discernment about this relatively recent object in Literary and Pedagogical Studies, from contributions of different philosophers related to historical and dialectical materialism. Initially, Law 11.645 / 2008 is contextualized; and the responsibility of researchers and teachers in overcoming the ethnocentrism, through literary experience, is evident. Finally, proposals are presented for dialogue with those who are willing to assume the responsibility for which this discussion calls. Keywords: Children's literature. Indigenous Literature. Contemporary Literature. Breve contextualização da questão indígena face à promulgação da Lei 11.645/2008 O ano era 2008 e estávamos mais ou menos na metade do segundo mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva; o ministro da educação era Fernando Haddad. Graças à resistência renhida dos diferentes povos indígenas brasileiros em favor do reconhecimento de seus direitos e de sua participação na constituição de nosso país – que exigiu, inclusive, a denúncia a cortes internacionais do genocídio promovido contra algumas etnias –, foi promulgada a Lei 11.645/2008, que alterava a redação da Lei 10.639/2003, que por sua vez ¹ Teste de diagramação, Literatura infan l indígena contemporânea: indagações, Autor: Maria Amélia Dalv. Feito por Cássio Luan Rodrigues da Silva, 5° [email protected] ORCID: 0009-0004-5628-7183. 59

alterava a Lei 9.394/1996, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”: Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura AfroBrasileira e Indígena”. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Contexto (ISSN 2358-9566) Vitória, n. 38, 2020/2 494 Art. 1º O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. § 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. § 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (NR) Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 10 de março de 2008; 187º da Independência e 120º da República. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA, Fernando Haddad (BRASIL, Lei 11645/2008. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007- 2010/2008/lei/l11645.htm >Acesso em 30 ago. 2018). A Lei 9.394/1996 é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que foi alterada pela Lei 10.639/2003, para incluir no currículo escolar do sistema de ensino a História e Cultura Africana e Afro-Brasileira. Embora se tratasse de um avanço importante, a História e a Cultura Indígena ainda não estavam explicitamente contempladas – o que só veio a ocorrer com a Lei 11.645/2008. Como vimos no texto da Lei, citado anteriormente, o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena é obrigatório em todos os estabelecimentos de ensino fundamental e médio, sejam públicos ou privados. No que diz respeito ao tema que mais especificamente focalizamos (a saber, a questão da história e cultura indígena), é importante ressaltar que o conteúdo deve discutir: a) a participação indígena na formação da população e da sociedade brasileira; b) as lutas dos povos indígenas no Brasil; c) a cultura indígena brasileira; e d) as contribuições indígenas nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. Esses conteúdos devem perpassar todo o currículo escolar, Contexto (ISSN 2358-9566) Vitória, n. 38, 2020/2 495 com especial destaque nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. 60

Para atender à Lei, houve ampla e irrestrita formação para os professores em serviço, em todas as áreas do conhecimento? Houve interlocução real com as populações indígenas no sentido de ouvir delas sua visão sobre o que e como deveria ser ensinado sobre sua história e cultura? Houve altos investimentos em editais de pesquisa, no sentido de produzir e/ou sistematizar conhecimento pertinente e atualizado atinente aos conteúdos que deveriam ser ensinados doravante? Houve incentivos e orientação para a reformulação dos currículos dos cursos superiores (de graduação e de pós-graduação) destinados à formação dos profissionais da educação? Houve fomento à produção qualificada de materiais didáticos adequados e pertinentes de acesso aberto destinado às diferentes áreas do conhecimento? Houve investimento em instituições como bibliotecas, hemerotecas, filmotecas, cinemas, galerias de arte e museus públicos, para a identificação, organização e exposição de material relacionado ao escopo da Lei? Não houve, pelo menos não com a intensidade necessária. Houve iniciativas tímidas frente à grandeza do desafio: por exemplo, o incentivo à criação de cursos de graduação em Licenciatura Intercultural Indígena (como, por exemplo, o fez a Universidade Federal do Espírito Santo, em parceria com os tupinikins e os guaranis das aldeias situadas no município de Aracruz) e o edital do Programa Nacional para a Biblioteca Escolar (PNBE), em 2014, que selecionou obras literárias de temática indígena para as escolas públicas de educação básica. Mas, infelizmente, é preciso registrar: os cortes recentes perpetrados pelo atual presidente, Michel Temer, e sua equipe, no momento de escrita deste texto (a saber, segundo semestre de 2018), reduziram drasticamente o fomento aos cursos de licenciatura indígena e as bolsas de permanência que viabilizavam a formação dos professores indígenas; e os livros selecionados pelos editais do PNBE, até o presente, ainda não haviam sido adquiridos e distribuídos às escolas públicas. Contexto (ISSN 2358-9566) Vitória, n. 38, 2020/2 496 Porém, é preciso levar em conta a constituição contraditória da realidade. Se os dados objetivos parecem sinalizar que a promulgação da Lei 11.645/2008 foi muito pouco, lembremo-nos de que o relatório intitulado “Violência contra os Povos Indígenas do Brasil” (CNBB, 2014. Disponível em: < https://www.cimi.org.br/pub/Arquivos/Relat.pdf >. Acesso: 28 ago. 2018) apontou em 2014 um crescimento de situações de violência e violações contra indígenas. Em 2013, 97 indígenas foram assassinados; em 2014, foram 138. Em 2013, 693 crianças indígenas morreram por desnutrição ou doenças simples de serem evitadas/combatidas, e em 2014 esse número cresceu para 785 mortes. Já os casos de suicídio foram 73 em 2013 e 135, em 2014 – e esses suicídios não podem ser pensados como decisões individuais, mas devem ser articulados à falta de perspectivas de vida e trabalho e a situações de permanente tensão e conflito pela questão da terra. 61

Além disso, é preciso lembrar duas outras situações graves e muito pouco contempladas nas nossas discussões: a) o exponencial crescimento da dependência química (álcool e outras drogas) entre comunidades indígenas e a dificuldade de acesso a tratamento especializado que não desrespeite as especificidades culturais dessas populações (GUIMARÃES, GRUBITS, 2007; MENDES et al., 2020); e b) o avanço das chamadas “missões evangelísticas”, que, sem qualquer formação antropológica especializada, adentram aldeias e comunidades indígenas desqualificando e inferiorizando toda uma visão de mundo, e apresentando/impondo um certo repertório ideológico-religioso, contribuindo para um ainda maior desenraizamento e despertencimento dos sujeitos – processo que se arrasta desde o período colonial e que ganhou novo influxo na última década (WRIGHT, 2004; MONTERO, 2006; SUESS et al., 2009; GONÇALVES, 2011; MORAES, 2014). Também é preciso lembrar que, no momento de escrita deste texto, atendendo ao interesse de ruralistas, mineradoras e empreiteiras, tramitam nas esferas legislativa e judiciária medidas anti-indígenas: a) o Decreto 7.957/2013 Contexto (ISSN 2358-9566) Vitória, n. 38, 2020/2 497 regulamenta a atuação das Forças Armadas no combate a povos e comunidades locais que resistirem a empreendimentos em seus territórios; b) a Portaria Interministerial 60/2015 define procedimentos a serem seguidos pela Fundação Nacional do Índio para licenciamento ambiental de empreendimentos que impactam essas terras; c) o Projeto de Lei 1610/1996, da Câmara dos Deputados, regulamenta a mineração em terras indígenas, com abertura à exploração privada (o que hoje é vedado); d) a Proposta de Emenda Constitucional 215/2000 transfere ao Congresso o poder de demarcar e rever processos de terras indígenas que já foram demarcadas. Por fim, neste agosto de 2018, quase às vésperas da eleição presidencial, o candidato com maior índice de intenções de voto de acordo com as pesquisas1 declarou que, em um eventual mandato seu, indígenas serão “integrados” à sociedade, terão suas terras exploradas economicamente e não terão mais “nem um centímetro de terra”2 – e nunca manifestou qualquer pesar em relação ao sistemático extermínio de etnias inteiras, em face dos conflitos relacionados à disputa entre os interesses indígenas e os do agrobusiness. Nesse cenário delineado acima, a promulgação da Lei 11.645/2008 passa a ter uma nova dimensão – e, como professores e formadores de professores de literatura, nos convoca a uma responsabilidade com o ensino sistemático história e cultura afro-brasileira e indígena – e a chamada literatura infantil indígena, particularmente, como aspecto mais específico ao qual este texto se dedica. Embora nós mesmos, como professores em atividade e/ou formadores de professores, não tenhamos sido capacitados para tal, é necessário que (com a ajuda de nossos pares e em interlocução com os próprios povos indígenas e seus anciãos, representantes e intelectuais) aprendamos e nos dispamos de nosso insistente etnocentrismo 62

com suas consequências nefastas. Nesse sentido, este ensaio é, simultaneamente, um reconhecimento dessa responsabilidade e um esforço – embora ainda incipiente – nessa direção. Dada a amplitude do desafio, atentaremos, neste trabalho, como já anunciado, à questão da literatura infantil indígena contemporânea no contexto brasileiro. Isso porque, por exemplo, como afirmam Alcaraz e Alcaraz (2020, p. 224) em “La blanquedad como regla de humanidad en la literatura infanto-juvenil”: [...] la representación mayoritaria de personajes blancos por medio de la literatura infantil los pone como patrones de humanidad. Ya se ha cuestionado esta afirmación, sin embargo los estudios siguen indicando esta proposición como verdadera. [...] Asimismo, como hipótesis creemos que el mito de la democracia racial estructurado en Brasil actúa por medio de la colonialidad que se transpone en la adquisición de los libros literarios en el mantenimiento del racismo. A questão da humanização pela literatura e a noção de literatura infantil indígena O primeiro desafio de um professor de literatura e formador de professores de literatura é compreender a articulação entre Literatura, Alteridade e 3 “[...] a representação majoritária de personagens brancos por meio da literatura infantil os põe [brancos] como patronos da humanidade. Ainda que esta alegação já tenha sido questionada, no entanto, os estudos continuam indicando que ela segue verdadeira499 Sociedade e, assim, a radicalidade (no sentido de ir à raiz) da ideia de literatura como um direito humano e um fator inequívoco do processo que parte da hominização (espécie) à humanização (sujeito histórico-cultural). Célebres discussões sobre isso estão consignadas em Candido (1995, 2010), e são retomadas, por exemplo, por Antunes (2019), Corrêa et al. (2019), Dalvi (2019) e Dias (2019). Em síntese, a literatura, compreendida amplamente, está presente na vida tanto em formas próximas às necessidade de expressão dos sentimentos ou de organização da coletividade, na fronteira com magia e religião (ou seja: tendo uma finalidade evidentemente posta de antemão); quanto, também, em formas desligadas dos processos produtivos da vida cotidiana, com autonomia em relação à esfera do trabalho material, da magia e da religião (ou seja: havendo a suspensão de finalidades práticas definidas de antemão). Se, por um lado, a literatura foi uma esfera cultural criada pela humanidade a fim de elaborar e expressar criativamente sentimentos na dialética entre individualidade e sociedade; por outro lado, não reproduz tal e qual a realidade, pois transcende a imediaticidade, guardando o potencial de revelar a totalidade da vida na síntese entre aparência e essência (a saber, imiscuindo na forma literária as contradições históricas não captáveis à primeira vista). E qual a relação dessa concepção de literatura com a humanização? De acordo com Corrêa et al. (2019) e Della Fonte (2020), a literatura não reflete a realidade se reproduzir mecanicamente a vida, ou seja, se nos apresentar tão somente a superfície da vida cotidiana, aquela que já “conhecemos”; isso porque, como a sociedade capitalista é fetichizada, os 63

fenômenos se apresentam à observação fragmentariamente e de modo invertido; sendo assim, quando a arte “copia” a realidade imediata, ela não capta a raiz histórica dos fenômenos, ela reproduz a aparência, obnubilando a contradição constitutiva de tudo o que é humano – em síntese, não nos permite enxergar e compreender a realidade como ela é, em sua concreticidade. Aqui cabe um esclarecimento: não se trata de rejeitar ou renegar a literatura que aborde, tematize a vida cotidiana, ordinária; mas de pôr em questão a literatura de pendor “naturalista”, que não permita vislumbrar a possibilidade de ultrapassar a aparência fetichizada, invertida e fragmentada da realidade. Nesse sentido, a literatura é: [...] produzida pelo [ser humano] no seu contato com o mundo e com os outros [seres humanos] como forma de compreensão e crítica da vida social, de si mesmo e dos conflitos humanos; trata-se de uma forma que ilumina as possibilidades de o [ser humano] intervir nesses conflitos e transformá-los. Portanto, não se pode dizer que a literatura seja apenas entretenimento e nem mesmo um trabalho como os outros, pois ela é uma forma que anuncia a possibilidade de trabalho livre, aquele que resiste à automatização e à desumanização que vigoram na sociedade capitalista (CORRÊA et al., 2019, p. 18). No caso da literatura indígena – na complexidade que a denominação apresenta, e que será discutida adiante – trata-se de um movimento duplo de resistência que vigora em nossa sociedade: pois a própria afirmação de uma cosmovisão indígena é já uma negação de que a única possibilidade de vida seja essa à qual estamos todos submetidos, que nos reifica e, portanto, nos desumaniza. Ademais, é preciso considerar que, em cada um dos seres humanos, sob a mediação da linguagem, a humanidade é socialmente produzida, em um movimento dinâmico do interpsíquico em direção ao intrapsíquico (MARTINS, 2013). Isso porque: a) o signo é social e material, sendo, portanto, ideológico; b) não existe consciência humana que prescinda da realidade sígnica; e c) o signo por excelência é a palavra (VOLOSHÍNOV, 2017). Assim, considerando a literatura como manifestação simbólica de segunda ordem (que simboliza a partir da linguagem, ela mesma já uma simbolização de primeira ordem, e dá à materialidade um sentido que excede o instrumental), é preciso considerar que “[...] a reação estética suscitada pela arte é imprescindível para [...] o comportamento humano, e que o sentido, objetivado em palavras, é a categoria mais importante da consciência” (NAMURA, 2018, [s.p.]) .A esse respeito, Vigotski, em A psicologia da arte, explica que: “[na arte] o sentimento não se torna social, mas, ao contrário, torna-se pessoal, quando cada um de nós vivencia uma obra de arte, [ela] converte-se em pessoal sem com isto deixar de continuar social” (VIGOTSKI, 1998, p. 315). Desse modo, as questões linguístico-literárias assumiriam papel fundamental para se compreender a realidade, a sociedade e o psiquismo humano, seja em sua dimensão individual, seja em sua dimensão social/alteritária. 64

Apenas para ficar no aspecto linguístico mais visível, no Brasil, atualmente, existem dois grandes troncos linguísticos indígenas, desdobrados em 45 famílias linguísticas, que, por sua vez, se ramificam em centenas de línguas e dialetos falados pelos diferentes povos indígenas brasileiros – e cada língua é, em si, um imenso universo humano. Isso, por si só, evidencia a falácia do senso comum de uma língua indígena geral (normalmente denominada impropriamente “tupiguarani”) ou mesmo a ideia de que seja possível tratar os diferentes povos de maneira unitária, como “índios” [sic] ou indígenas (como nós mesmos temos feito, neste texto), desprezando as especificidades, particularidades e modos de compreender, se relacionar, elaborar, simbolizar e transformar o real de cada aldeia, povo e nação indígena. Aquela abordagem caricata normalmente feita a partir da escola – em que aprendemos algumas palavras de origem indígena incorporadas ao léxico da língua portuguesa e em que lemos uma ou outra narrativa tradicional, identificada genericamente como “de origem indígena” – é insuficiente para compreender a riqueza do universo históricocultural indígena brasileiro. . Adentrando mais particularmente à questão da literatura infantil indígena, é preciso lidar com algumas questões difíceis, pois nos faltam até mesmo ferramentas conceituais. Um primeiro desafio ao trabalho com a dita literatura infantil indígena é compreender sem simplificações as especificidades no processo de classificação, produção, autoria, publicação e circulação. Em primeiro lugar, existem os textos indígenas (originalmente produzidos pelos diferentes povos indígenas e que são transmitidos – em geral, oralmente – de geração em geração) que tematizam questões da existência e visam a produzir explicações e orientações em relação ao mundo e à vida – mas que, na perspectiva não-indígena, passam a ser tratados como mitos, lendas etc., sem que, originalmente, se dispusessem a operar no corte específico da ficção ou da arte. Essa produção: é literatura? É literatura indígena, ainda que essa categoria “literatura” não se coloque para o povo onde esse texto nasce? Em segundo lugar, supondo que seja possível continuar falando em “literatura indígena”, é preciso reconhecer que nem toda literatura indígena é ou pode ser infantil4 – e também reconhecer que a subdivisão da literatura por “faixas etárias” ou “destinatários potenciais” é uma demanda nossa (majoritariamente induzida pelo mercado, que precisa atender a nichos delimitados de antemão), que não necessariamente encontra lastro no conjunto das comunidades indígenas, com suas diferentes realidades. Para algumas comunidades, não faz o menor sentido definir aquilo que é para adultos ou para crianças, pois todos participam da vida social de modo integrado. Em outras comunidades, há a compreensão de uma diferença, sem que, contudo, se entenda que os textos produzidos e partilhados pela comunidade devam ter especificação recepcional. Como apontam estudiosos como Ariès (2015) e Stearns (2006), mesmo em diferentes perspectivas epistemológicas, a infância não se identifica como um período (meramente) biológico – a infância e a literatura para a infância são 65

produzidas histórico-culturalmente, de modo articulado a demandas sociais e, quiçá, econômicas: e nas comunidades indígenas não é diferente (LOPES DA SILVA et al., 2002; ZOIA, PERIPOLLI, 2010). Em terceiro lugar, é preciso entender que quando se fala em “literatura indígena”, na verdade, lança-se mão de uma noção conceitual relativamente frágil e inespecífica, que informa muito pouco. Isso porque existem: a) textos tradicionais produzidos pelos próprios indígenas e que circulam nas aldeias e comunidades indígenas, transmitidos intergeracionalmente (sobretudo pela oralidade), e que não necessariamente são conhecidos por não-indígenas; b) textos autorais produzidos por indígenas (que não são textos tradicionais, passados de geração em geração) para a sua comunidade ou para a comunidade não-indígena em diferentes suportes; c) textos originalmente produzidos pelos indígenas (sejam textos tradicionais ou autorais), mas que foram coletados/recolhidos/registrados por pesquisadores (antropólogos, etnólogos, linguistas etc.) externos à comunidade e, adaptados/editados/traduzidos/transcritos/transformados, passaram a circular mais amplamente seja entre outros povos indígenas, seja entre povos não-indígenas, inclusive em suporte impresso; d) textos inspirados em produções indígenas (tomam personagens ou sequências narrativas tradicionais) ou que dialogam com uma ou várias dessas produções, mas que são autônomos em relação à tradição ou à autoria indígena; e e) textos que são produzidos por não-indígenas, mas que tematizam questões indígenas ou trazem indígenas como protagonistas. Ou seja: quando falamos de literatura infantil indígena, na verdade, dizemos muito pouco ou quase nada. Porque: 1) não sabemos com clareza se a ideia de “literatura” se sustenta (e, se se sustenta, se sustenta para quem, em que contextos?); 2) não deveríamos tomar a ideia de uma literatura para a infância (e nem mesmo a infância...) como algo óbvio, autotélico, necessário e desejável; e 3) não seria o mais indicado subsumir no rótulo “indígena” uma variabilidade imensa de etnias, experiências culturais, contextos e realidades, apagando imensas diferenças invisíveis a nosso olhar (etno)centrado em nós mesmos. A despeito de nossa pontual diferença conceitual quanto à noção de percepção, validação e letramento, é importante lembrar que, já em 2012, Janice Thiél, ao tratar especificamente da difusão escolar da literatura indígena, sinalizava: “Para que [os textos literários produzidos pelos indígenas] sejam percebidos e interpretados segundo seus critérios de validação, letramentos adequados precisam ser desenvolvidos” (THIEL, 2012, p. 98). Por fim, em quarto lugar, no que diz respeito à leitura, mediação, crítica e ensino, é importante nos perguntarmos, então, o que vamos fazer: de um lado, temos uma realidade que exige de nós um compromisso ético com a vida indígena neste lugar imaginário chamado sociedade e nação brasileiras; de outro lado, temos um dispositivo legal com todas as 66

contradições que lhes são inerentes, dispositivo este no qual estamos implicados, como professores e formadores de professores. Sob nossos pés, os problemas, dificuldades e questões que se afiguram frente à ideia de “literatura infantil indígena”. No artigo “Literaturas e infâncias: pesquisa (d)e pós-graduação como espaço político” (DALVI, 2015), sinalizamos a inarredável dimensão política inerente aos temas, recortes, abordagens e tratamentos teórico-metodológicos em estudos e pesquisas que se debruçam sobre as inter-relações entre literatura e infância. Reiterando aquele diagnóstico, acrescentamos ainda que o gesto de retomar pesquisas e estudos já efetuados sobre um dado tema é um modo de nos posicionarmos politicamente também, afirmando a necessidade do diálogo crítico e criterioso e da retomada e transformação do já-existente. Por isso, sistematizamos, no item subsequente, uma proposta de caminho inicial, para professores não-indígenas, que, como eu, não foram formados para trabalhar com história, cultura e literatura indígena, mas que compreendem a importância de assumir essa responsabilidade, visto que o tema trabalhado neste texto é relativamente novo no campo dos estudos de literatura brasileira contemporânea e da educação literária. Por onde começar? Fontes para pesquisa e estudo acessíveis A essa altura, uma pergunta parece inevitável: o que fazer? Há dois movimentos possíveis, um retrospectivo e um prospectivo, em face da produção literária indígena destinada editorialmente às crianças. No que diz respeito ao passado, Eliane Debus (2018, p. 104) pontua que “[...] como denúncia do extermínio e aculturamento [sic] dos povos indígenas” marcam as décadas de 1970/1980 títulos tais como “Apenas um curumim (1979), de Werner Zotz; Cão vivo leão morto (1980), de Ary Quintella”. Aproximando-se do presente, a estudiosa afirma que: [...] no final da década de 1990 e nas primeiras décadas do século XXI [emerge] uma literatura que tematiza a cultura indígena produzida por escritores de origem indígena. Entre os muitos títulos podemos citar A boca da noite: histórias que moram em mim (2016), [de] Cristino Wapichana; Vozes ancestrais: dez contos indígenas (2016), de Daniel Munduruku, ambos premiados pela FNLIJ no ano de 2017 (DEBUS, 2018, p. 104). Já no que diz respeito à importância da literatura indígena em contexto escolar, Nerynei Bellini e Flávia Nisco (2018, p. 206) pontuam que: A Literatura Indígena tem como uma de suas características nos transportar ao mundo dos sonhos vivenciados pela natureza física e humana e, ao mesmo tempo, nos convida[r] à reflexão acerca desse mundo. [...] O respeito pela natureza, pelo idoso, a presença do mítico, da ancestralidade são temas constantes na literatura indígena e seguramente oferecem ao leitor ferramentas que o levam a refletir sobre a pluralidade cultural, a combater o distanciamento em relação ao outro e pré-julgamentos que criam modelos estereotipados e equivocados em uma sociedade. 67

Na mesma direção, Janice Thiél (2012, p. 98) afirma que a literatura indígena: “[...] deve ser incluída e estudada nos espaços institucionalizados do saber. A circulação de textos produzidos pelos índios [sic] na escola constitui a primeira etapa de promoção da diversidade de seus conhecimentos e escritura”. Para além das questões todas que já pontuamos em relação às dificuldades com as noções conceituais de “literatura”, de “infantil” e de “indígena” no tocante a essa produção que estamos provisoriamente denominando como “literatura infantil indígena”, é preciso lembrar que a incorporação dessa produção cultural em contexto escolar não acontecerá sem dificuldades. Tal processo requererá das políticas públicas e dos educadores uma atenção especial, além de formação continuada compatível com o desafio. Isso porque “[...] muitos obstáculos vêm à tona [...] para que não se crie um maior distanciamento ou equívocos em relação à cultura indígena” (BELLINI; NISCO, 2018, p. 218). Entendendo na sua complexidade o dispositivo legal atinente ao ensino de história, cultura e literatura indígena em toda a educação básica, a sugestão é buscar nas grandes e nas pequenas editoras as obras literárias indígenas (na acepção larga que discutimos anteriormente); é buscar nos canais eletrônicos vídeos, gravações, documentários de performances, improvisos, registros, memórias produzidos pelos artistas, sábios, ativistas e pensadores indígenas. É visitar as aldeias indígenas que aceitarem receber não-indígenas e dialogar (e não apenas “entrevistar”, com um roteiro pronto) com os sujeitos envolvidos nessa dimensão sociopolítica de interculturalidade (entre diferentes povos indígenas e entre indígenas e não indígenas). E, em face de todo esse conhecimento, de todo esse vivido/experienciado, abrir-se à problematização das noções conceituais e referências que, sem o devido cuidado e senso ético, temos imposto a uma produção cultural para a qual as categorias e valores já pensados não necessariamente se aplicam. Isso, inclusive, se aplica à leitura crítica deste ensaio, produzido com as “ferramentas” de que disponho neste momento, mas que, necessariamente, precisarão ser repensadas à luz do avanço de nosso conhecimento coletivo e, principalmente, de nosso processo de descentramento étnico. Crioni (2016, p. 306) faz um importante alerta sobre “contrastes entre duas formações culturais e histórico-antropológicas muito distintas”, a saber, a da universidade (com sua formação derivada da racionalidade moderna ocidental, da ciência laica e do mundo desencantado) e dos povos indígenas. Dal’Bó (2010, p. 32), por sua vez, afirma que: [...] poucos trabalhos [de pesquisa sobre a questão indígena no interior das universidades] se encorajam a refletir sobre as implicações da formação universitária na vida dos estudantes indígenas e nas próprias universidades em que eles estão presentes, e reduzem-se a argumentações pouco aprofundadas sobre temas, no entanto, bastante complexos, como “inserir conhecimentos indígenas ou ‘conhecimento tradicional’ na universidade”, “troca de 68

conhecimentos”, “interculturalidade”. A despeito desses riscos – mas cientes deles – precisamos nos lançar ao desafio de nos formarmos e formarmos os professores que atuarão não apenas na implementação efetiva da Lei 11.645/2008, mas também na sua superação: evidenciando, também, nossa disposição à contínua crítica e revisão desses esforços iniciais. Assim é que, por meio de um levantamento pela combinação entre as palavras-chave atribuídas a este texto e de nossa análise inicial, no contexto da experiência de ministrar a disciplina de “Metodologia do Ensino de Línguas” no curso de licenciatura intercultural indígena guarani e tupinikim oferecido pela Universidade Federal do Espírito Santo (e descobrindo, aí, nossa absoluta ignorância), apresentamos sugestões de fontes gratuitas, e acessíveis sem cadastro pela internet para quem quer iniciar seu percurso pelas questões da literatura na interface com a cultura indígena e com a infância: Imagens Ao olhar para estas e para quaisquer outras fontes, precisamos estar cientes dos problemas do pressuposto muitas vezes não declarado de “neutralidade”, bem como da violência étnica inscrita na ideia de que “[...] o conhecimento oferecido pela universidade soa como a evidência inconteste da forma mais bem acabada do espírito humano em uma suposta marcha histórica para o progresso” (CRIONI, 2016, p. 307). Não podemos perder de vista a reflexão de Adorno e Horkheimer (2006) de que o progresso cultural e científico tem uma relação regressiva (à luz da dialética negativa) com a barbárie, fato que traz à tona a inequívoca articulação entre conhecimento, poder e dominação. Desse modo, é preciso considerar que a socialização moderna, no interior da racionalidade hegemônica, com sua tendência alienante e desumanizadora, se espraia das relações de produção à cultura (e vice-versa). É preciso, pois, estar atento – e se fazer alerta. Considerações finais Iniciamos nosso texto sinalizando o marco legal que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura indígena em toda a educação básica brasileira, em todas as modalidades e sistemas de ensino. Destacamos os temas e os conteúdos que devem ser trabalhados nas salas de aula. Na sequência sinalizamos que o marco legal não veio acompanhado das políticas e investimentos financeiros necessários para sua consecução efetiva. Em seguida: a) trouxemos à luz aspectos da realidade brasileira recente, indiciados por meio 1 de dados estatísticos e relatórios sobre a situação indígena no país; b) mencionamos algumas mudanças legais e propostas de lei que ameaçam os frágeis direitos e garantias indígenas; e, dialeticamente, c) pontuamos que, nesse contexto, a instituição da obrigatoriedade do ensino de história e cultura indígena em toda a educação básica – mesmo desacompanhada das políticas e investimentos esperados – ganha um novo sentido. No item subsequente, retomamos a importância de que o professor de literatura compreenda a necessária articulação entre Literatura, Alteridade e Sociedade e a importância 69

de que assuma a ideia de literatura como direito humano e fator de humanização. Como argumentos, invocamos certo referencial de inspiração materialista histórica e dialética, que demonstraram o papel da linguagem e, particularmente, da literatura nesse processo. Desse ponto em diante, sinalizamos como a homogeneização dos diferentes troncos, etnias, culturas, aldeias indígenas por meio de categorias totalizadoras não atende à demanda por conhecer sua história e cultura (e, assim, sua literatura). E, como um desdobramento disso, problematizamos a pertinência ou não de aplicarmos as noções conceituais de “literatura”, de “infantil” e de “indígena” à discussão daquilo que nomeamos como “literatura infantil indígena”. Procuramos exemplificar a partir de elementos da realidade como as definições subsumem em termos totalizantes práticas e modos de relação completamente díspares. Todavia, considerando, de um lado, o marco legal instituído pela Lei 11.645/2008, e, de outro, nossas implicações éticas, políticas, estéticas com as questões que atravessam a docência e a educação contemporâneas e com a defesa da vida e da dignidade dos povos indígenas no Brasil, procuramos oferecer algumas contribuições que nos ajudem a não cair na prostração ou paralisia. A primeira delas foi sinalizar aos leitores uma visão retrospectiva e uma visão prospectiva da questão da literatura infantil indígena em contexto escolar. A segunda foi argumentar quanto à importância de se trabalhar essa produção cultural em contexto escolar, ponderando, também os riscos e desafios atinentes à tarefa. E, finalizando o percurso, oferecemos caminhos possíveis de estudo e pesquisa inicial, a partir de fontes gratuitas, de acesso livre pela internet, e que têm alguma qualidade – sem abdicar de um alerta quanto aos riscos inerentes a tal aproximação. Reforçamos, aqui, nestas considerações finais, à luz de Adorno (2010), que a sociedade burguesa, como pressuposto e desdobramento da racionalidade moderna, apresentou a possibilidade de uma formação cultural com potenciais emancipatórios (Bildung) – possibilidade que, todavia, foi corrompida por um ambiente cultural no qual a formação é alheia, por exemplo, à história, à cultura e à memória da barbárie contra não-brancos, entre os quais indígenas: o que podemos denominar como sendo, na verdade, uma semiformação (Halbbildung). Tal semiformação tende a agir de modo apologético ao mundo administrado; por isso, concordamos com Crioni (2016, p. 314), quando afirma que, “[...] se existe algum potencial crítico das culturas indígenas para oferecer resistência à barbárie estabelecida, ela apenas se tornará produtiva com o cuidado de não romantizar ou idealizar as referidas expressões culturais”. Como balanço final de percurso, cumpre sinalizar que o mérito deste trabalho está, se houver, em duas contribuições: a primeira, na problematização de qualquer avaliação monolítica do marco legal que institui o ensino de história e cultura indígena em todas séries, níveis e modalidades da educação básica, seja pública ou privada e que, em decorrência, dá lastro a 70

uma série de (não) políticas públicas. Isso porque, conforme sinalizamos em “Políticas públicas para educação literária: nem públicas, nem literárias?”: não é possível pensar em educação literária ou em ensino de literatura fora do campo educacional e não é possível desentranhar a educação das relações econômicas, sociais, políticas e culturais amplas; [...] [nem] é possível endossar literatura e práticas literárias que se orgulhem [...] de passar ao largo de pensar a conjuntura atual (DALVI, 2018, p. 24). A segunda contribuição está na organização de desafios ontológicos e epistemológicos face aos seguintes aspectos: produção/autoria, publicação/circulação, mediação/ensino, na correlação com questionamentos sobre a (im)pertinência da noção de “literatura infantil indígena”, no contexto contemporâneo. A apresentação e exemplificação das dificuldades inerentes a cada um dos termos dessa expressão nos permite vislumbrar o tamanho de nossos desafios. Entendê-lo, talvez, seja uma parte importante das ações e transformações necessárias daqui por diante. REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor. Teoria da semiformação. Trad. Newton Ramos-de-Oliveira. In: PUCCI, Bruno; ZUIN, Antonio; LASTÓRIA, Luiz A. (Org.). Teoria crítica e inconformismo: novas perspectivas de pesquisa. Campinas: Autores Associados, 2010, p. 7-40. ADORNO, Theodor. HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. ALCARAZ, Rita de Cassia; ALCARAZ, Marcelo B. La Blanquedad como regla de humanidad en la literatura infanto-juvenil. In: Contexto (Vitória), n. 37, jan.- jun.2020, p. 224-241. Disponível em: < http://periodicos.ufes.br/contexto/article/view/30164 >. Acesso em 24 jun. 2020. ANTUNES, Benedito. O ensino de literatura segundo Antonio Candido. In: Via Atlântica (São Paulo), v. 35, jul. 2019, p. 69-85. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/151702/157516. Acesso em 28 jun. 2020. ARIÈS, Phillipe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2. Ed. Rio de Janeiro: LTC, 2015. ASTROLÁBIO (portal eletrônico). A literatura dos povos indígenas. Disponível em: < http://astrolabio.org.br/literatura-dos-povos-indigenas/ >. Acesso em 18 out. 2018. BELLINI, Nerynei Meira Carneiro; NISCO, Flávia de Paula Graciano. Literatura indígena e letramento literário: uma proposta emancipadora de ensino. In: BRANDILEONE, Ana Paula Franco Nobile; OLIVEIRA, Vanderléia da Silva. Literatura na escola: contextos e práticas em sala de aula. Campinas: Pontes, 2018, p. 205-221. BRASIL. Decreto 7.957/2013. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011- 2014/2013/Decreto/D7957.htm >. Acesso em 22 out. 2018. BRASIL. Lei 11645/2008. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm >. Acesso em 30 ago. 2018. 71

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LITERATURA INDÍGENA EM DEBATE: SUPERANDO O APAGAMENTO POR MEIO DO LETRAMENTO LITERÁRIO Letícia Santos Silva2 RESUMO: Este trabalho visa refletir sobre as contribuições da literatura indígena no letramento literário de crianças para a formação de uma identidade leitora multiétnica e multicultural. Apresentamos essa literatura como parte do processo de resistência em busca do (re) conhecimento da identidade e alteridade dos indígenas, e procuramos analisar como se dá a presença (ou ausência) da temática na escola e nos Parâmetros Curriculares Nacionais, considerando a perspectiva do documento em relação ao ensino de literatura. Por fim, discutimos questões sobre a produção e recepção da temática étnico-racial na literatura infantil e juvenil, reforçando a crença de que o letramento literário realizado com a representação da diversidade de vozes contribui significativamente para a humanização e o exercício da cidadania. Palavras-chaves: Literatura; Indígena; Letramento literário; Resistência. ABSTRACT: This paper aims to reflect on the contributions of indigenous literature in literary literacy of children to form an identity reader multiethnic and multicultural. We present this literature as part of the search for resistance process of acknowledgment of the identity and otherness of the indigenous, and tried to analyze how is the presence (or absence) of the thematic in school and the Parâmetros Curriculares Nacionais, considering the perspective of document in relation to the teaching of literature. Finally, we discussed issues on the production and reception of ethnic-racial thematic in child and youth literature, reinforcing the belief that the literary literacy performed with the representation of the diversity of voices contributes significantly to the humanization and for the exercise of citizenship. Keywords: Indigenous Literature, Literary literacy, Resistance. PROLEGÔMENOS... 2Graduando em Biblioteconomia. E-mail: [email protected]. ORCID: 0009-0005-1745-7319. 75

Cerca de vinte anos antes da publicação da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas em 2008, o crítico literário Antonio Candido discutia a questão dos direitos humanos, estabelecendo uma relação entre estes e a literatura. À época, mais precisamente em 1988, Candido apontava uma contradição, ainda presente em nossos tempos, entre o progresso e a irracionalidade. Para o autor, o máximo de racionalidade técnica e domínio sobre a natureza poderiam levar ao desenvolvimento de soluções para os problemas materiais do homem, no entanto, o que se via era o aumento da barbárie, ao excluir do progresso grandes contingentes de pessoas que ainda viviam na miséria. Associando essa discussão à questão dos povos indígenas, Graça Graúna (2013) afirma que “o chamado ‘progresso’ agride, fragmenta, desloca traçando caminhos contrários aos sonhos das sociedades indígenas” (GRAÚNA, 2013, p.25). As demarcações históricas de fronteiras advindas dos “novos tempos” retiraram os povos indígenas de suas terras, provocando uma incessante busca desses indivíduos por seu “lugar no mundo”. Ainda sobre esse aspecto, Cardoso (2011) afirma: As fronteiras do mundo capitalista e globalizado do século XXI criaram um paradoxo. Ao mesmo tempo em que as fronteiras diminuem, aumenta mais a distância entre os povos, pois os choques culturais provocam sempre a opressão daquele que é considerado inferior. No caso dos índios, temos toda uma realidade caracterizada por séculos de dominação do branco, ocorrendo assim o extermínio, bem como a usurpação de sua cultura e identidade. Vivemos uma época caracterizada pelo interculturalismo, mas isso não significa que estejamos abertos a aceitar o que é “diferente”. Ao mesmo tempo em que os povos procuram externar suas identidades, cresce o preconceito daqueles que não aceitam a mudança do status quo de dominação (CARDOSO, 2011, p.9). Mesmo diante de tais adversidades, convém retomar as ideias de Candido, ao lembrar que esse autor conseguiu observar perspectivas positivas em suas reflexões sobre os direitos humanos, afirmando que a barbárie, ao menos, não é mais elogiada, numa nova atitude que pode advir de um sentimento de culpa ou até mesmo por medo das vozes dos grupos que sempre se tentou silenciar, “porque a sociedade sentiu que eles podem ser um fator de rompimento do estado de coisas, e o temor é um dos caminhos para a compreensão” (CANDIDO, 2004, p.170). O crítico demonstra ainda uma percepção na mudança do discurso político, ao mencionar que este parece revelar o constrangimento diante da injustiça social, e que a insensibilidade dos dirigentes tem 76

sido pelo menos disfarçada, já que o sofrimento não deixa tão indiferente a média da opinião. Se ventos positivos puderam ser sentidos quando Candido percebeu no cerne da questão dos direitos humanos, a manifestação consciente de que a desigualdade é insuportável e que o semelhante precisa ser incluído no mesmo elenco de bens que reivindicamos, nos tempos atuais podemos afirmar que esses ventos continuam a soprar, ainda que lentamente. Após a promulgação da Constituição Federativa Brasileira de 1988, exemplos desses bons ventos puderam ser sentidos na publicação de diversos documentos oficiais que buscaram estabelecer padrões igualitários no tratamento das minorias, especialmente relacionados à educação. Dentre eles, numa ordem cronológica, podem ser citados: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB, promulgada em 1996; os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs, publicados em 1997 e 1998; e particularmente o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI), lançado pelo MEC em 1998. Cerca de 10 anos depois, em 2007, temos a publicação dos Cadernos da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), cujo terceiro número versa sobre a Educação Escolar Indígena. Nesse ínterim, modificações na LDB foram realizadas pela Lei 10.639/03, que trata da inserção obrigatória do ensino da História e Cultura Afro-brasileira em todos os anos de ensino e, mais recentemente, pela Lei 11.645/08, que inclui, ainda, a temática indígena em todo o currículo escolar, especialmente nas áreas de educação artística, literatura e história brasileira. Também em 2008, a ONU proclamou a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, reconhecendo a necessidade urgente de respeitar e promover os direitos intrínsecos dos povos indígenas. Ora, estabelecendo um contraponto com o ano de 1500, em que os europeus aqui chegaram, podemos nos perguntar: a promulgação de tantos documentos e leis foi realmente necessária para que o respeito aos direitos dos povos indígenas fosse declarado, cerca de 500 anos após o primeiro episódio de resistência desses povos, ao demonstrar desconfiança diante dos estranhos que aqui atracaram suas embarcações? Mesmo diante de uma vasta documentação legal, as escolas brasileiras estão preparadas de fato para lidar com as especificidades da cultura indígena, respeitando seus direitos? Como tem sido a participação da literatura nesse processo, em especial da infantojuvenil, como representação da identidade e da alteridade dos povos 77

indígenas? Este artigo pretende incitar a discussão sobre esses e outros questionamentos, sem a pretensão de promover uma análise exaustiva do tema, haja vista o crescente número de trabalhos que versam sobre a temática, particularmente nas áreas da Antropologia, História e Letras. Para tanto, defendemos que a literatura é um potencial forma de resistência, pois é fato que a arte literária instiga os leitores à revisão de posicionamentos, na medida em que reverbera as perguntas que se fazem necessárias no seu tempo. Beatriz Sarlo (2005, p.30), ao dissertar sobre essa questão, defende que o escritor de literatura “não procura respostas e sim perguntas: indaga sobre aquilo que, numa época, parece, além de todo princípio de compreensão, a resistência que o horrível, o sinistro, o sublime ou o trágico opõem a outras formas do discurso e da razão”. Se oferecesse respostas aos seus leitores, ao invés de fomentar perguntas, a literatura agiria no sentido de fixação de saberes; contudo, ela é o contrário disso, ela faz os saberes girarem, propiciando sua circulação para que eles possam ser observados a partir de outros prismas e, assim, possam ser redimensionados. Por isso, a literatura é a única forma de linguagem que pode ser capaz de fugir ao gregarismo da língua, permitindo, como ensina Roland Barthes (2007, p.16), “ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente de linguagem”. Entendemos, nesse sentido, que a literatura pode possibilitar um contato com a temática indígena de forma mais revolucionária, permitindo o deslocamento dessa temática da margem para o centro e, com isso, instigando possivelmente novas posturas dos leitores. Procuraremos, ainda, analisar como (ou se) a temática indígena tem sido adotada nas escolas e nos documentos oficiais e, também, pretendemos discutir o contexto da produção e recepção das temáticas étnico-raciais nas literaturas infantil e juvenil, por acreditarmos no letramento literário como fonte de humanização dos sujeitos e forma de ressignificar práticas sociais. LITERATURA COMO FORMA DE RESISTÊNCIA INDÍGENA: UMA BUSCA INCESSANTE POR SEU LUGAR NO MUNDO As palavras que iniciam esta seção, inspiradas nos escritos de Graça Graúna (2013), revelam a constante tentativa dos povos indígenas, após tantos processos de exclusão, de ter a demarcação e posse de suas terras e o reconhecimento das especificidades de sua cultura ao longo do tempo na busca por “um lugar no mundo”. O 78

historiador Porto Borges (2005) relaciona as lutas indígenas à expansão capitalista, e afirma que essa busca incessante, como forma de resistência, manifestou-se de diversas formas, que variavam de acordo com os desafios impostos: Historicamente os povos indígenas sempre reagiram à violação e à conquista de seus territórios tradicionais; e estas respostas variavam de acordo com o desafio imposto pelos distintos momentos da expansão capitalista, inicialmente europeia e, mais tarde, condicionada à formação econômica brasileira. [...] A resistência destes grupos era determinada tanto pela especificidade da frente de expansão quanto pela lógica cultural do povo que a sustentava. (BORGES, 2005, p.42-43). Funari e Piñon (2014) também discutem a resistência indígena do ponto de vista histórico, associando-a aos movimentos políticos e econômicos pelos quais o Brasil passou desde o contato com os europeus. No entanto, os autores apresentam uma reação indígena mais sistemática apenas no final do século XX, especialmente a partir da Anistia em 1979 e do retorno dos civis ao poder em 1985. Antes disso, contudo, no início dos anos 1970, já havia manifestações do movimento indígena na política e na literatura. Mesmo com tais manifestações, foi após o painel da chamada “política etnocida”, ocorrido em meados da década de 1980, que campanhas contra as invasões de território ganharam corpo, e as discussões em torno da elaboração da Constituição de 1988 se intensificaram. De fato, após a promulgação da Constituição Brasileira de 1988 os índios passaram a ser reconhecidos legalmente em seus direitos, conforme o artigo 231: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à união demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Tal fato promoveu um avanço do movimento indígena, com o surgimento de representações de bases diversas organizadas em numerosas associações. A literatura surge nesse cenário como uma forma de resistência que vem testemunhar a vivência indígena e valorizar a memória e a alteridade desses povos, em meio a um intenso processo de transculturação que reúne num amálgama a literatura indígena e a sociedade na qual ela se insere. Graúna (2013) considera a literatura indígena contemporânea como um lugar utópico de sobrevivência, numa confluência de vozes silenciadas. Nesse sentido, as palavras da autora vêm dizer: 79

Nesse processo de reflexão, a voz do texto mostra que os direitos dos povos indígenas de expressar seu amor à terra, de viver seus costumes, sua organização social, suas línguas e de manifestar suas crenças nunca foram considerados de fato. Mas, apesar da intromissão dos valores dominantes, o jeito de ser e de viver dos povos indígenas vence o tempo: a tradição literária (oral, escrita, individual, coletiva, híbrida, plural) é uma prova dessa resistência. (GRAÚNA, 2013, p.15). Sobre essa literatura, Capriles (Apud GRAÚNA, 2013, p.20) afirma que “foi sistematicamente negada até bem avançado o século XX”, permanecendo às margens da tradição literária. Apesar da negação, autores e autoras indígenas têm preservado suas origens por meio da percepção de que a literatura é uma das formas de representar a memória, a auto-história e a alteridade de seus povos. Por meio da escrita de suas tradições orais, os indígenas conseguem atingir leitores que dantes desconheciam sua cultura ou a conheciam apenas sob a ótica historicizada branca. A respeito dessa ótica, cabe mencionar como a figura do índio geralmente foi tratada na literatura do passado, e em parte ainda no presente, numa perspectiva idealizada. Associando essa questão ao contexto das literaturas infantil e juvenil, Lajolo e Zilberman (1993) comentam a entrada do índio como personagem no cenário da literatura infantil no início do século XX, afirmando que, na grande maioria das vezes, os personagens brancos são representados como heróis, e “o índio, porém, está sempre do lado errado, a não ser quando se civiliza, convertendo-se ao cristianismo e aliandose aos brancos” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1993, p.131). Ora, essa visão do índio que se converte e alia-se aos brancos é uma constante em boa parte da nossa literatura. Já na Carta de Pero Vaz de Caminha fala-se sobre a “inocência e docilidade” de nossos índios, a quem poderia imprimir-se facilmente qualquer cunho que lhe quisessem dar, especialmente o cunho cristão. Na Carta, os índios são dóceis, inocentes, seres que habitam um paraíso. Essa falaciosa inocência do índio e a ausência de uma vinculação deste com instituições como o Estado e a religião, por exemplo, é que deram origem, alguns séculos mais tarde, ao mito do bom selvagem de Jean-Jacques Rousseau. Obviamente, temos que ressaltar que a Carta não se configura como um texto literário propriamente dito, e é por esse motivo que ela se insere, na historiografia literária, no âmbito da literatura de viagem, compreendendo-se, nesse caso, a palavra 80

literatura concernente ao seu significado geral: conjunto de textos escritos (como é o caso da literatura jurídica e da médica, por exemplo). Mas o texto da Carta figura erroneamente na historiografia literária para suprir a ausência de uma literatura naquele período no Brasil. Todavia, foi justamente esse caráter idealizado atrelado aos índios que se tornou a base da literatura indigenista de cunho romântico, escrita principalmente por Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães e José de Alencar, em cujas obras são retratados índios repletos de características idealizadas, como bravura, coragem, fidelidade e dedicação às tradições (mas também ao homem branco), na busca de uma figura que representasse a identidade nacional do povo brasileiro e numa falsa valorização de nossas origens. Antonio Candido trata da questão e diz que os românticos “civilizaram” a figura do índio, injetando-lhe os padrões do cavalheirismo convencional, enquanto os modernistas procuraram no índio e no negro o primitivismo, “que injetaram nos padrões da civilização dominante como renovação e quebra das convenções acadêmicas” (CANDIDO, 1999, p.70). É fato que muitos autores modernistas buscaram desconstruir paradigmas de cunho eurocêntrico em relação ao índio, buscando uma revisão das representações literárias canônicas, mas as literaturas infantil e juvenil em geral não compartilharam desse propósito. Vale destacar que alguns autores, como Joel Rufino dos Santos, conseguiram ficcionalizar a imagem do índio sem estereotipá-lo ou idealizálo. Entretanto, temos, de modo geral, os índios representados na literatura seguindo uma visão estereotipada, contribuindo para a valorização do herói branco, numa perspectiva marcada pela visão eurocêntrica. O resultado disso é a representação da voz do índio subordinada à voz do branco. Não há, até o final do século XX, obras literárias infantis e juvenis assinadas por autores indígenas, até porque a literatura produzida por índios muitas vezes foi (ou ainda é) escrita em sua língua nativa e, quando isso acontece, o público-alvo é reduzido, demonstrando a carência dessas produções em Língua Portuguesa até alguns anos atrás (THIÉL, 2014). Assim, ao abordar a autoria de obras literárias, destinadas aos públicos infantil e juvenil, feitas por índios antes do final do século XX, podemos falar não apenas em uma marginalização, e sim, num quase total apagamento. No entanto, mesmo diante de todos os processos de exclusão, se pensarmos na questão hoje, veremos como a resistência 81

do movimento indígena se configurou na literatura, na qual “podemos considerar a existência de uma produção diferenciada, voltada ao público infantil e juvenil, cuja voz autoral pretende assumir a construção da identidade indígena” (MARTHA, 2012, p.328). Sobre esse aspecto, Boudreau (1993) afirma que o amor à terra dos ameríndios alimenta esses autores e autoras na configuração de um espaço de denúncia, no qual buscam expressar não só sua identidade, mas sua alteridade por meio da literatura, que implica uma forma de sobrevivência para as nações indígenas e de resistência para os “brancos”. Na configuração da literatura indígena contemporânea brasileira, nomes de autores e autoras como os de Daniel Munduruku, Graça Graúna, Eliane Potiguara e Kaká Werá Jecupé caminham para compor uma tradição literária, numa luta pelo reconhecimento das especificidades de sua cultura: Os aspectos intensificadores da literatura indígena contemporânea no Brasil remetem à auto-história de resistência, [...] à esperança de um outro mundo possível, com respeito às diferenças. O reconhecimento desses aspectos perpassa na contribuição de escritores(as), pesquisadores(as) e artistas que se empenham em transmitir e “traduzir” com apurada sensibilidade a poética de tradição oral dos povos indígenas no Brasil e na Ameríndia. (GRAÚNA, 2013, p.64). No entanto, essa contribuição não terá sentido se não tiver reverberações sociais. E aqui entra o papel da escola como locus privilegiado de interação social e “elemento capital na conformação das imagens a respeito dos indígenas” (FUNARI; PIÑON, 2014, p.115). Diante disso, cabe discutir como tem sido feito o ensino de literatura nas instituições escolares, considerando ainda a perspectiva dos Parâmetros Curriculares Nacionais do conteúdo de Língua Portuguesa sobre esse ensino e a temática indígena, caso haja a presença desta no documento. A PRESENÇA (OU AUSÊNCIA) DA TEMÁTICA INDÍGENA NA ESCOLA E NOS PCNS LÍNGUA PORTUGUESA: COMO TEM SIDO FEITO O ENSINO DE LITERATURA? Ao fazer uma perspectiva histórica a respeito da chegada da escola ocidental ao Brasil, é impossível negar que tal instituição tenha servido como instrumento de opressão 82

do sujeito dominante às culturas indígenas. Sob a égide da civilização, os colonizadores europeus transfiguraram etnicamente nossas origens, “pela desindianização forçada dos índios” (RIBEIRO, 1995, p.13). Do projeto jesuíta aos tempos de República, muitos foram os processos de exclusão dos indígenas, seja por tentativas de aculturação ou de apagamento – tentativas porque, na percepção indígena, não se pode negar a existência da cultura de alguém, mesmo que se tenha tido contato com o outro: o índio não deixa de ser ele mesmo. A escola teve papel fundamental nesse processo, pois, como mencionamos, muito contribuiu e influenciou na formação das imagens que se tinha (e ainda se tem) sobre os indígenas, condicionadas à perspectiva do branco. Sobre tal aspecto, Funari e Piñon (2014) dizem: a escola foi importante, tornando historicamente significativo o fato de ter, por muito tempo, excluído a figura do índio da representação do país, da sua língua, história e ambiente, quando não o apresentou, de forma oblíqua, como atraso bárbaro a ser superado. Quando, finalmente, a figura do índio foi incorporada, manteve em grande parte o caráter exótico e externo à sociedade brasileira, tomada por uma unidade relativamente homogênea. Apenas nos últimos anos é que houve a inclusão da pluralidade como um valor positivo e o consequente reconhecimento dos indígenas como parte importante da nossa sociedade e sua cultura como significativa na conformação da nacionalidade brasileira. Entretanto, esse processo não deixa de apresentar contradições, com políticas escolares que a um só tempo defendem a pluralidade e mantêm esquemas de classificação que excluem o índio da sociedade brasileira. (FUNARI e PIÑON, 2014, p.115). Quando os autores mencionam a inclusão da pluralidade como valor positivo e a adoção de políticas escolares que defendem essa ideia nos últimos anos, podemos pensar na publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em 1997 e 1998, para orientar o ensino nos níveis Fundamental I e II, como um exemplo que propôs mudanças nas práticas escolares desenvolvidas até então. Na apresentação do documento, comum a todas as áreas, menciona-se que sua elaboração procurou respeitar a pluralidade ao mesmo tempo em que considerava necessária a definição de referências nacionais para o ensino: 83

Os Parâmetros Curriculares Nacionais foram elaborados procurando, de um lado, respeitar diversidades regionais, culturais, políticas existentes no país e, de outro, considerar a necessidade de construir referências nacionais comuns ao processo educativo em todas as regiões brasileiras. (BRASIL, 1998, p. 5). O documento também menciona os objetivos do Ensino Fundamental, relacionados, dentre outros aspectos, à compreensão do valor da cidadania e ao posicionamento crítico frente a diferentes contextos sociais e ao meio ambiente. Desses objetivos, dois nos parecem particularmente pertinentes à discussão do presente trabalho: (1) conhecer características fundamentais do Brasil nas dimensões sociais, materiais e culturais como meio para construir progressivamente a noção de identidade nacional e pessoal e o sentimento de pertinência ao país; (2) conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais (BRASIL, 1998, p.7). Especificamente no caso dos PCNs Língua Portuguesa, esses dois importantes objetivos não se traduziram em sugestões de propostas de ensino, mostrando que as temáticas étnico-raciais não estão devidamente abordadas no documento. Tal afirmação pauta-se ainda na inobservância, em todas as 106 páginas dos referidos PCNs, de termos como “étnico”, “índio”, “indígena”, “negro” ou “afrodescendente”. Além disso, o próprio termo “pluralidade” é citado apenas duas vezes: a primeira no objetivo mencionado acima e a segunda ao citarem a expressão “pluralidade cultural” como tema transversal. Sendo assim, as principais mudanças observadas para o ensino de Língua Portuguesa referem-se principalmente à nova concepção de linguagem adotada, que passa a valorizar a voz do discente em sala de aula e considerar a língua em funcionamento, no lugar da simples decodificação e excessiva valorização das regras da gramática normativa. Nesse sentido, os PCNs sugerem que a língua “é um sistema de signos específico, histórico e social, que possibilita a homens e mulheres significar o mundo e a sociedade” (BRASIL, 1998, p.20), numa perspectiva pragmática da natureza 84

da linguagem que tem em vista o processo de interlocução realizado nas diferentes práticas sociais, em diferentes situações comunicativas. A linguagem, capaz de levar o indivíduo a inserir-se socialmente, sob esse ponto de vista pragmático, pode levar ao desenvolvimento da competência discursiva em relação aos textos informativos, mas do ponto de vista do texto literário, outros aspectos se fazem importantes. Considerando o tratamento dos PCNs a respeito desses textos, veremos que a discussão feita no documento deixa muito a desejar, pois não se debruça a tratar especificamente a promoção do letramento literário, limitando-se apenas a citar que o texto literário possui singularidades, além do fato de que este texto não pode ser tomado como pretexto para o tratamento de questões outras que não contribuem para a formação de leitores familiarizados com as sutilezas das construções literárias. Da perspectiva do letramento literário, o caráter pragmático de abordagem dos gêneros não é capaz de contemplar a necessidade de fruição estética e humanização pertinente à obra literária. Regina Zilberman (2007) discute a questão e toma como referência os PCNs, por estes “representarem uma tendência no âmbito do ensino” (p.259). A respeito dos objetivos do documento, especificamente em relação ao ensino de Língua Portuguesa, a autora diz que remontam à Retórica e sua tradição, por lidarem com o uso público da linguagem, num processo em que a literatura aparece enquanto possibilidade de texto ou gênero de discurso: Até um certo período da história do Ocidente, ele [o aluno] era formado para a literatura; hoje, ele é alfabetizado e preparado para entender textos, ainda orais ou já na forma escrita, como querem os PCNs, em que se educa para ler, não para a literatura. Assim, nem sempre a literatura se apresenta no horizonte do estudante, porque, de um lado, continua ainda sacralizada pelas instituições que a difundem, de outro, dilui-se no conceito vago de texto ou discurso (ZILBERMAN, 2007, p.265-266). Zilberman afirma ainda que se antes, nos modelos escolares da Grécia Antiga, a literatura ficava no fim do processo de leitura, como uma meta de perfeição a ser atingida, já, nas escolas brasileiras, ela não está em parte alguma. Apesar de seu importante papel enquanto expressão plurissignificativa da linguagem capaz de humanizar e formar leitores críticos (CANDIDO, 2004), na escola, a literatura está relegada a um segundo plano, e parece não ter a importância que lhe é devida nas práticas de letramento. Os PCNs, com o objetivo de levar o estudante a ter domínio de 85

uso da linguagem nos mais diversos gêneros orais e escritos, refletindo um trabalho pragmático com textos, fazem com que o livro literário fique à margem do processo de letramento, quando não está fora desse processo. A situação se agrava ainda mais quando se trata da literatura indígena: onde ela aparece na educação básica? Apenas nas comemorações do dia 19 de abril? Se os PCNs sugerem que os gêneros devem ser trabalhados como objetos de ensino associados às diferentes práticas sociais, e se a linguagem é utilizada como mediadora dessas práticas, nas diversas representações do mundo feitas por meio dela, diferentes grupos sociais devem estar representados nos materiais didáticos usados para promover um ensino que realmente contribua para a plena e efetiva participação social do ser humano nessas práticas. A inserção das vozes tidas como minoritárias é fundamental para a inclusão social e para o desenvolvimento da competência discursiva do aluno na produção e recepção dos diversos discursos, especialmente o literário. De qualquer forma, mesmo com uma dada interdição acerca do letramento literário nos PCNs, é verificável que esse importante processo tenha se fortalecido em algumas práticas escolares no presente século, conforme pontua a pesquisadora Graça Paulino: Na escola ou fora dela, a experiência estética, na qual se inclui a leitura literária, compondo o letramento, esse processo ininterrupto e sempre imperfeito de formação de identidade, está sendo mais valorizada neste novo século, como modo de humanizar as relações enrijecidas pela absolutização de mercadorias (PAULINO, 2013, p.23). No caso da produção de livros infantojuvenis voltados para a realidade indígena, espera-se que eles possam atuar no letramento literário de modo a revelar o encontro de identidades e a propiciar um olhar mais crítico do jovem leitor sobre a cultura tão diversa de seu país, um olhar que desvele o índio como um “ser” do presente, real, portador não só de diferenças, mas de igualdades. Tal comentário se faz pertinente, já que uma das consequências do processo de idealização e paralelo apagamento do índio na realidade social brasileira é a forma como os índios costumam ser representados nos livros didáticos. O verbo no pretérito imperfeito é uma constante, porque de forma geral os índios “eram”, raramente eles “são”. Costumamos ler nesses livros que os índios “moravam” em ocas, que o tacape “era” uma de suas armas de guerra. O pretérito 86

imperfeito imprime a atmosfera mítica que, muitas vezes, ainda se constrói em torno do índio, apartando-o do momento presente, da realidade contemporânea da criança leitora do livro didático. Diante disso, novas perspectivas de inserção da temática indígena na escola precisam ser refletidas, partilhando, por meio do letramento literário e da valorização da experiência estética – a que se refere Graça Paulino – na constituição da identidade leitora das crianças. Finalizando este trabalho, nos ateremos a discutir tal questão. LITERATURA INDÍGENA NAS PRODUÇÕES INFANTIS E JUVENIS: ATANDO IDEIAS Martins e Cosson (2008), ao discutirem a política da representação e a estética da identidade nas produções infantojuvenis, apresentam dois sentidos para o conceito de representação: o primeiro refere-se à noção de mimesis, e o segundo está ligado ao exercício do poder, quando a relação dos indivíduos com o Estado é mediada por alguma forma de representação. Para os autores, esses dois sentidos parecem fundir-se, especialmente quando relacionados às discussões étnico-raciais: as representações literárias, de qualquer ordem, são politicamente localizadas, e grupos tidos como minoritários, como indígenas e negros, por exemplo, recusam o estabelecido pelo outro e reivindicam a autoria na representação de sua identidade. Nesse sentido, a literatura desempenha papel importante, em especial a literatura infantil e juvenil, por sua contribuição na construção de tal identidade: [...] a questão da identidade é igualmente essencial para se compreender a discussão das abordagens sociais dos textos literários. [...] Além disso, uma das premissas do ensino da literatura é que por meio da leitura dos textos literários se promove e fortalece a identidade cultural dos alunos, sobretudo em termos de identidade nacional. Mais especificamente, a literatura estimula mecanismos de identificação positiva que podem ser usados para a ação política, ou seja, “para os membros de grupos historicamente oprimidos ou marginalizados”, a literatura proporciona “a identificação com um grupo potencial e trabalha no sentido de fazer do grupo um grupo, mostrando-lhes quem ou que poderiam ser” (CULLER, 1999, p.113 apud MARTINS e COSSON, 2008, p.58). Dessa forma, a literatura indígena surge como forma de superar o apagamento e como ponto de encontro entre a política da representação e a estética da identidade, sobretudo se direcionada às crianças, na formação de sua identidade leitora, dando a elas a possibilidade de revisitar a história e repensar valores, e aos personagens novos 87

espaços, tempos e movimentações a partir de criações autóctones, “na denúncia dos preconceitos presentes em obras canonizadas e validação da produção contemporânea comprometida com a identidade positiva” (MARTINS e COSSON, 2008, p.59), sem perder de vista que esse ponto de encontro requer dos indivíduos e dos grupos o reconhecimento de si mesmos em suas igualdades e diferenças. Por fim, as palavras de Street (2007) vêm corroborar esse pensamento, ao revelar que diferentes práticas de letramento constituem a identidade e geram expectativas sociais acerca de comportamentos e papéis a desempenhar: Diferentes letramentos, portanto, são associados a diferentes pessoalidades e identidades. [...] Quando frequentamos um curso ou uma escola, ou nos envolvemos num novo quadro institucional de práticas de letramento, por meio do trabalho, do ativismo político, dos relacionamentos pessoais, etc., estamos fazendo mais do que simplesmente decodificar um manuscrito, produzir ensaios ou escrever com boa letra: estamos assumindo – ou recusando – as identidades associadas a essas práticas. A ideia de que as práticas de letramento são constitutivas de identidades fornece-nos uma base diferente – e eu argumentaria: mais construtiva – para compreender e comparar as práticas de letramento em diferentes culturas (STREET, 2007, p.470). Pensar o letramento literário como uma fonte de experiência estética de humanização sob a perspectiva da pluralidade étnico-racial é pensar num ensino capaz de respeitar a diversidade da construção identitária do povo brasileiro, em toda sua alteridade. Disponibilizar espaços, tempo e condições para efetivar o letramento literário a partir da literatura indígena constitui um quadro de resistência, em meio a uma “selva urbana” onde o amor à Mãe Terra traduzse numa bela demonstração de humanidade, contribuindo para o verdadeiro exercício da cidadania. REFERÊNCIAS: Barthes, Roland (2007). Aula. São Paulo: Cultrix. Borges, P. H. P. (2005). O movimento indígena no Brasil: histórico e desafios (Vol.88, n. 80, p. 42-48). São Paulo: Princípios. 88

Boudreau, D. (1993). Histoire de la littérature amérindienne au Québec. Montreal: l’Hexagone. Brasil (1998). Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais - Língua Portuguesa. Brasília. Candido, Antonio. (1999). Iniciação à Literatura Brasileira (3a ed). São Paulo: Humanitas/ FFLCH/USP. ______. (2004). Vários escritos (4a ed.). Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul. Cardoso, R. E. (2011). A recente literatura indígena: a história que não nos contaram. Trabalho de Conclusão de Curso Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Licenciatura em Letras). In http://hdl.handle. net/10183/40393. Acesso em dezembro/ 2014. Funari, P. P. & Piñon, A. (2014). A temática indígena na escola. São Paulo: Contexto. Graúna, Graça. (2013). Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições. Lajolo, M.; Zilberman, R. (1993). Um Brasil para crianças – para conhecer a literatura infantil brasileira: histórias, autores e textos (4a ed.). São Paulo: Global. Martha, A. A. P. (2012). Autoria indígena na produção infantojuvenil contemporânea. In: Anais do Seminário Internacional de História da Literatura (Vol. 1, p. 324-334). In http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/Ebooks/ Web/978-85-397-0198-/Trabalhos/3.pdf. Acesso em julho/ 2014. Martins, A. & Cosson, R. (2008). Representação e identidade: política e estética étnico-racial na literatura infantil e juvenil. In: Paiva, A. & Soares, M. (Org.) Literatura infantil: políticas e concepções (p. 53-78). Belo Horizonte: Autêntica. Paulino, Graça. (2013). Formação de leitores: a questão dos cânones literários. In: Gama-Khalil, Marisa Martins; Andrade, Paulo Fonseca. As literaturas infantil e juvenil... ainda uma vez. Uberlândia: GPEA; CAPES. Ribeiro, D. (1995). O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (2a ed.). São Paulo: Companhia das Letras. Sarlo, Beatriz. (2005). Paisagens imaginárias. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Street, Brian. (2007). Perspectivas interculturais sobre o letramento (n.8, p. 465- 488). Revista de Filologia e Linguística Portuguesa da Universidade de São Paulo. Thiél, J. (2014). Uma literatura em ascensão. Revista Carta Fundamental (n. 58, p. 8-11). 89

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