... quero destacar ainda que, traduzido para o inglês como Henry Flower, o nome Enrique Flor é um dos codinomes de Leopold Bloom em Ulysses ... mais do que isso, existiu um segundo Enrique Flor português, o qual foi precocemente sacrificado, aos quatro anos de idade, no último in- cêndio florestal no seu país reflorestado VI) ... esses enredos mirabolantes serão desenvolvidos (espero) neste poema VII) ... ouço as badaladas do sino que os turistas tocam irreverentemente na catedral milenar 99 ✴✴✴ Sérgio Medeiros
a mais irlandesa das canções portuguesasPortugal e Irlanda no verão 1) [Enrique Flor em Lisboa]1 : atrás das amplas vidraças se movem incessantemente carros e ônibus entre aviões de cores várias; um jumbo pousa em completo silêncio na 100 tarde clara ✴✴✴ : um inseto fino e longo como uma fuselagem sem asas atravessa o piso do saguão entre duas fileiras de cadeiras; nenhum pé móvel parece roçá- lo entre farelos de comida e um ou outro guardanapo amassado 2) [Finalmente em Dublin] : a mão do velho passageiro que segura o celular junto do rosto é firme, mas a mão que ele apoia na cadeira treme visivelmente; ele fala sem parar em alemão 1 O leitor logo verá, como eu disse no prólogo, que não existe apenas um Enrique Flor em Portugal. Alguns nasceram no século passado; outros, neste século... A maioria continua viva. São todos músicos de mão-cheia. Além disso, Enrique Flor é um codinome usado ultimamente por alguns brasileiros...
Enrique flor, o velho,2 cruza Dublin de madrugada : poucos carros passam ao lado do rio Liffey, indo e vindo 101 ... ✴✴✴ : apenas um dobra a rua e vem nesta direção, vagaroso ... Sérgio Medeiros : há uma profundidade escura no rio visto daqui, mas a água brilha discretamente no fundo, como num poço ... : uma sirene soa mas se cala quase imediatamente ... : também se ouve o badalar cristalino do sino da igreja; soa uma vez só ... : e depois, bem depois, agitam-se as garrafas vazias que vão sendo des- pejadas abruptamente num caminhão; a onda se repete duas vezes, mas 2 Na verdade, acredito que seja melhor dizer que se trata de alguém fantasiado de Enrique Flor. Afinal, é época do Bloomsday, e os leitores de Joyce se vestem com roupas de 1904... para homenagear o Ulysses moderno. Enfim, não sou capaz de dizer ao certo quem é Enrique Flor, embora eu seja oficialmente o seu biógrafo.
se ouve em seguida o som de um veículo pesado que se afasta (cheio de garrafas agora calmas) ... : amanhece, é dia nublado 102 ✴✴✴ a mais irlandesa das canções portuguesas
Entre 6 e 7 : na parede penumbrosa uma longa palavra escrita que se lê ao subir a 103 escada; no fim da escada uma janela e uma mosca grande zumbindo ✴✴✴ - da janela se avista um pátio e uma casa em ruínas, com trepadeiras verdes Sérgio Medeiros : um jovem árabe na porta da lanchonete à espera de um fornecedor talvez; a música árabe típica soa às suas costas enquanto uma mosca enorme passeia no seu sapato que pisa a calçada lavada
a mais irlandesa das canções portuguesasFlor e Handel : um caminhão se aproxima bufando da janela do Handel Hotel (que fica ao lado ou ao lado e em cima do célebre Music Hall, que a história da música europeia registra) à luz agora firme do sol e estaciona diante da placa onde se lê: 104 ✴✴✴ George Frederick Handel The first performance of the “Messiah” took place in the Music Hall, Fishamble Street, On April 13th 1742 .. homens uniformizados descem cuidadosamente na calçada dois carrinhos de mão e algumas pás; num carrinho tem areia; no outro, mudas de plantas; as mudas começam imediatamente a ser plantadas em canteiros do outro lado da rua; o som de pás cavoucando a terra eleva-se até o topo do Handel Hotel...3 3 Colado ao hotel fica, como os melômanos sabem, The Contemporary Music Centre.
9 - diante de uma lanchonete brasileira que vende coxinha e outros quitutes tradicionais dois buliçosos meninos orientais idênticos correm em círculos usando coroas de papel; gritam felizes sem dar ouvidos às mães, que os aguardam com paciência : são dois duendes coroados ao sol da manhã .. quase correndo o jovem alto passa sem camisa entre os pedestres exibindo sua lívida magreza joyciana 105 ✴✴✴ Sérgio Medeiros
a mais irlandesa das canções portuguesasEnrique flor, o velho, cruza Dublin no meio da manhã .. diante do restaurante tcheco uma mulher jovem dá tapas no rosto de um homem bêbado com o peito branco exposto; ele se recusa a vestir a 106 camisa ✴✴✴ : um homem magro alto usando casaco preto caminha apressado acariciando a barriga com a mão direita e mexendo nervosamente a língua na boca desdentada .. no meio de milhares de vinis ouvindo rock pai e filho aguardam olhando para os cartazes4 nas paredes enquanto o vendedor foi buscar no estoque secreto um inacreditável disco (provavelmente uma gravação pirata) de Enrique Flor : sai o sol após rápida garoa matinal; entre as faixas altissonantes que pai e filho ouvem na loja as gotas ainda batem na calçada distintamente 4 O pai está, na verdade, como que “cego”: só pensa em fantasiar-se (melhor) de Leopold Bloom; talvez ele até consiga fazer o filho vestir-se de Stephen, para completar a dupla que deseja formar com ele no Bloomsday... Onde estará a mãe? Na Primark, comprando as fantasias da família?
.. na livraria mais antiga de Dublin, com retratos de James Joyce na vitrina, os feitos de Enrique Flor continuam a ser relembrados e narrados por pelo menos um dos vendedores (sobretudo pelo homem magro desdentado que coçava a barriga) que deslizam de cá para lá entre os clientes : os feitos do músico português constam de várias edições de Ulysses alinhadas nas estantes dedicadas à ficção irlandesa .. o sinal fecha, mas uma mulher jovem (a mesma que esbofeteou o namorado ou o marido momentos ou horas atrás) não se detém: atravessa gritando a rua diante dos carros que começam a se mover com cautela 107 ✴✴✴ Sérgio Medeiros
11 : na esquina, a essa hora, diariamente se reúnem homens e mulheres agitados; um jovem sujo passeia os olhos-azuis claros ao redor, saudando com um sorriso leve alguns transeuntes fantasiados de Molly e Leopold Bloom .. a essa altura da manhã o tiroteio das gralhas atinge subitamente a janela do tranquilo Handel Hotel; elas vão substituindo definitivamente as gaivotas, que se deslocaram minutos atrás para uma das pontes do rio Liffey, de onde agora chegam apenas fiapos de gritos agudos... 108 ✴✴✴ a mais irlandesa das canções portuguesas
Meio-dia A) 109 [Primeira Martello Tower] ✴✴✴ - a torre fechada, e diante dela, roçadas pelas ondas, pedras enferrujadas; Sérgio Medeiros mar calmo (aparentemente) morno frequentado por bebês - numa praça dois pregadores gritam alternadamente ao lado de uma estátua em cujo pedestal homens obesos estão sentados, comendo e conversando B) - o sino jovial da catedral badala longamente sem excesso de entusiasmo
13 : vários homens magros em pé contra uma parede sendo interpelados por dois policiais; os seus pertences estão amontoados na calçada; o mais maltrapilho usa muleta e não parece nada desconcertado ou irritado com a revista minuciosa depois do almoço; todos estão sorrindo, inclusive um dos policiais .. um velho desdentado fala fazendo gestos exaltados a outro velho que apenas ouve; estão no meio da calçada e detêm o fluxo dos pedestres - corpos jovens tatuados passam diante da cabeça diminuta e dourada de James Joyce grudada na parede de um prédio histórico 110 ✴✴✴ a mais irlandesa das canções portuguesas
14 .. um galhinho verde flutua no rio escuro e vagaroso que parece andar para trás às vezes; povoam o seu fundo imóveis latas de cerveja grandes e gordas : as gaivotas se calaram entre o trânsito engarrafado; a água traz para junto delas – pousaram num círculo no meio do rio — um saco branco vazio de biscoito ou de batata frita; o sol se reflete na prata dentro dele - na cripta milenar sente-se forte cheiro de peixe fresco na penumbra espessa onde as peças de ouro reluzem 111 ✴✴✴ Sérgio Medeiros
15 : uma velha surda se aproxima sorrindo desdentada fantasiada de trêmula Molly Bloom; fala confusamente sobre frutas e verduras com turistas que não estão celebrando o Bloomsday mas buscam o mercado mais próximo .. faz frio ao redor da torre longínqua; o mar vai ficando de um azul mais escuro - o sol se reflete na vidraça de um prédio baixo; os rumores vêm amortecidos de longe; mas, de repente, a porta de uma carroceria na rua deserta se abre ruidosa; as pombas esvoaçam lançando sombras nas paredes 112 ✴✴✴ a mais irlandesa das canções portuguesas
16 113 ✴✴✴ I) [Segunda Martello Tower] Sérgio Medeiros - diante da death mask de James Joyce o pai fantasiado de Bloom percebe que ele parecia sorrir, como se quisesse dizer que novamente e logo iria reabrir os olhos - a mãe, fantasiada de Molly Bloom, se reconhece imediatamente num retrato de Lucia Joyce: loura, elegante, madura, serena, muito mais linda do que quando era moça alucinada e cortava o fio de telefone para impedir que o pai falasse com os leitores de Ulysses - no caminho que leva à praia, um copo de plástico entre as pedras úmidas, como um focinho de porco tomando sol II) - as pequenas flores lilases com aroma delicado soam talvez como música perfumada de Enrique Flor; algumas desembrulhadas, outras embrulhadas, todas num galho que aponta para cima comandando o mar ao redor - a aguardada (pelo pai, pela mãe, pelo filho) música aromática de Enrique Flor provém inequívoca de uma moita na ponta mais afastada e elevada de um gramado ao longo da praia - crianças gritam dentro e fora da água fria com os braços cruzados no peito; lançam os gritos favoritos de Enrique Flor - abelhas se movem nos tufos de música aromática; o som das pétalas é contínuo
- as flores se acumulam lilases num jardim; umas moitas são fortemente lilases, outras apenas levemente lilases; são tantas pétalas sobrepostas que elas ficam borradas nos canteiros, sem contorno: é como se a sua cor fosse o aroma que se elevasse delas - o que há é silêncio, (ainda que) cheio de aromas evanescentes? - ou é ruído de rua? 114 ✴✴✴ a mais irlandesa das canções portuguesas
Um brasileiro5 fantasiado de Sérgio Medeiros Henry Flower (codinome de Leopold Bloom) lê para seu filho fantasiado de Stephen Notícias/manchetes sobre um apocalíptico incêndio florestal 115 ✴✴✴ - Portugal mourns as forest fires kill more than... - THIS REGION HAS HAD FIRES... - but we cannot remember a tragedy of these proportions - THE SKY IS LIT UP BY FLAMES AT PENELA IN THE COIMBRA DISTRICT OF CENTRAL PORTUGAL 5 Como tem brasileiro em Dublin! Este e seu filho, por exemplo, que não moram na cidade (parecem turistas), estão celebrando o Bloomsday, uma festa literária que será tão popular no Brasil (prevejo) como o nosso velho Carnaval.
a mais irlandesa das canções portuguesas- Portugal has declared three days of national mourning after the deadliest forest fires in recent memory raged across central areas of the country, killing at least [...] people - Families burnt in their cars as forest fire kills... - Enrique Flor6 (4) one of four children that perished in forest inferno7 - I am close to the dear people of Portugal - I am close to the dear people of... *** - eis o nosso... - inferno português! - [Silêncio cheio de aromas evanescentes] 116 ✴✴✴ 6 Naturalmente, um homônimo do nosso herói, Enrique Flor, que por sorte se encontrava em Dublin no momento mais crucial do incêndio florestal: quando se contavam os mortos que eram retirados das chamas. 7 O nosso herói Enrique Flor, o velho, não teria sido por acaso substituído, neste poema, (à minha revelia, talvez), pelo menino de quatro anos (dessa imagem trágica (um músico potencial)) que pereceu barbaramente queimado no inferno português?
Duas definições de Portugal (segundo um hebdomadário satírico) - País mais desmatado da Europa no início do século XX. (O segundo 117 país mais desmatado da Europa naquela época era a Irlanda de Leopold, ✴✴✴ Molly e Stephen Dedalus.) - País reflorestado na Europa mais devorado por incêndios neste início Sérgio Medeiros do século XXI. (Hoje Dublin está particularmente florida, luminosa e aromática, e o português do Brasil soa sem pudor em todas as esquinas.)
a mais irlandesa das canções portuguesas17 : enquanto no pub toca-se jazz saído do baú, nas janelas do prédio em frente as flores coloridas estremecem sem parar sobre a calçada .. um homem magérrimo e deformado segue saltitando pela calçada, cada vez mais agitado, ao lado de uma velha calada e séria, que absorve suas palavras ásperas e gritadas; ele é a caricatura do Chapeleiro Doudo (Mad Hatter) : a carroça sem turistas se afasta com um balde pendurado atrás; a mancha no dorso do cavalo alerta é mais branca do que o balde balouçante que se apequena na rua .. ao atravessar a rua, o velho ciclista, feliz e avoado, bate numa senhora vestida de Molly Bloom na esquina; ela cai sentada na calçada com seu grande chapéu de organza; ele a ajuda a pôr-se de pé e, quando outras 118 pessoas (fantasiadas ou não de personagens joycianas) começam a se ✴✴✴ reunir em volta deles, o ciclista abandona a senhora aturdida e se afasta empurrando a bicicleta entre os transeuntes : as penas coloridas estremecem sem parar nos chapéus de organza 18 [Concerto de Enrique Flor (o velho ou o novo?) no Phoenix Park] :: sob o céu cinza escuro os galhos (levemente) (brevemente) (continuamente) se movem; o tempo muda; arbustos verdes evocam tepees na planície com chocalhos soando dentro :: tufos de alcachofra e copos-de-leite estão como que em outro lugar... :: {eis quatro sementes de trevo; são pequenas assim mesmo} ::
:: campainhas brancas, lilases, indecisas, todas voltadas para o chão; 119 atrás delas, o som alto de galhos cheios, fartos; as copas fervilham ✴✴✴ :: de repente os galhos soam mais forte ao redor e é como se o obelisco no outro lado da rua fosse uma torrente de água e despencasse no parque; Sérgio Medeiros então o vento cessa :: sons mecânicos (de uma fênix futurista) brotam de dentro da copa de um veludo negro; na verdade, copa berinjela; ou copa vinho (escuro na garrafa) :: do meio dos canteiros exageradamente floridos se avista do outro lado da cidade uma montanha sonolenta (anêmica, ela não desperta); o sol sobre os caminhões de cerveja reluzentes (seguem em fila, saindo da fábrica, e a fila é mais longa do que a montanha) chama a atenção :: {estas sementes foram guardadas dentro de um saquinho de plástico transparente} :: :: {estas sementes foram ofertadas à fênix mecânica por Enrique Flor; estas sementes (um tributo pagão, já se vê) são a sua música plastificada} ::8 :: {estas sementes (lançadas ao solo depois de rasgado o saco de plástico) poderão vir a ser quatro trevos-de-quatro-folhas; trevos ainda muito pequenos} :: 8 “According to ancient Irish legend finding a four leaf clover would bring good fortune”.
Teoria do romance - A ação de Ulysses se passa sempre em 1904, em Dublin, ao longo de mais ou menos umas 17 horas, conforme o leitor verifica quando percorre o romance... 120 - Todos os anos, no dia 16 de junho, as pessoas (algumas) se fantasiam ✴✴✴ de Enrique Flor, que é tanto o nome do extravagante músico português que fez furor em Dublin em 1904 como o codinome (quando traduzido a mais irlandesa das canções portuguesas para o inglês) do (e)terno Leopold Bloom, autor de mensagens amorosas a pelo menos uma mulher misteriosa, que não era, evidentemente, a cantora Molly, com quem estava casado... - Neste ano, foi sacrificado em Portugal um menino chamado Enrique Flor... - Coincidentemente, o filho de Molly e Leopold (Henry Flower) morreu muito novo, parece-me que viveu apenas 11 dias...9 9 Stephen, que não entrou de gaiato no enredo, é um possível avatar onírico desse bebê tão pranteado pelo casal Bloom.
- De repente, o seu fantasma (o do menino português, não o do menino 121 dublinense) de quatro anos pode estar agora celebrando o Bloomsday ✴✴✴ 2017 em Dublin, como uma forma de protesto... - Um protesto contra o pavoroso incêndio florestal em Portugal neste Sérgio Medeiros verão que o vitimou... Ele se dirige particularmente aos portugueses e brasileiros que abarrotam a cidade neste dia festivo e nostálgico... -- Todos celebram o Bloomsday fantasiados... e Enrique Flor, o novo, está vestido de Enrique Flor, o velho -- Enrique Flor, o novo, é um músico evanescente, mas que ainda envia um som verdadeiro (mantém ativo o seu instrumento) na rua, no parque, na Martello Tower... -- Talvez Enrique Flor, o velho, seja hoje em dia um buquê de flores numa feira, no Glasnevin Cemetery ou numa das mesas do The Bailey Bar... 19 : a luz estoura no Glasnevin Cemetery e ilumina a inscrição quase apagada na parte mais baixa do monumento: P. GERARDUS HOPKINS .. P(ATER)! : uma pedra grande como um pão do Guinness Book 2017; pão que estaria exalando calor; não estivesse à sombra de uma árvore; as pessoas se sentam em bancos aquecidos pelo sol para olhar a trouxa na grama sombreada, lendo várias vezes o nome histórico gravado nela como numa peça de roupa (de um gigante?) aparecendo num rasgão intencional na trouxa: parnell10 10 Acho que Joyce teria escrito também esse nome em minúsculas.
20 .. uma senhora obesa com sacolas enormes infladas desce cuidadosamente (perigosamente) a escadaria de uma loja de suvenires; na calçada, sob o sol que não se porá tão cedo neste dia, suas amigas, gordas apenas, conversam em voz baixa, sem olhar para ela senão com o canto do olho... : o pai, a mãe e o filho de 14 anos, que saíram há instantes desolados de uma montagem fracassada de Beckett, agora apreciam (com o canto do olho também) a descida da senhora obesa cujas sacolas infladas nos braços parecem balões brancos... 21 : o chapéu com fiapos de papel esvoaçantes brancos e pretos e flores de papel vermelhas, azuis, brancas, verdes se agita numa cabeça ao ar livre diante do The Bailey Bar; a dona do chapéu está lendo em voz alta 122 para ouvintes casuais (alguns são chineses, guiados por uma moça que ✴✴✴ caminha de braço erguido) um trecho do monólogo de Molly Bloom: a mais irlandesa das canções portuguesas “where I was a Flower of the mountain yes when I put the rose in my hair like the Andalusian girls used...” .. a rua do calmo Handel Hotel é ruidosa, tanto de dia como de noite; de repente, grupos grandes ou pequenos de turistas passam rindo e falando alto na calçada e na rua; não são quietos como os chineses idosos que ouviram em pé (alguns examinavam mapas) a nossa suave (suave demais) Molly de chapéu festivo
O crepúsculo -- na TV dublinense estão falando gaélico animadamente enquanto ao 123 longo do rio Liffey o tráfego persiste lançando sopros a jato atrás de ✴✴✴ sopros a jato; a família deixa o hotel e caminha até o rio... -- às 21 horas os carros iluminados pelos raios do sol baixo passam com Sérgio Medeiros os faróis acesos, aproximando-se ou afastando-se do crepúsculo que mal se anuncia embaciado -- a motorista de táxi confessa aos três que não entende gaélico, só algumas palavras; mas garante que o seu filho já é fluente no idioma -- pai, mãe e filho vão de táxi ver o show da Radiohead... ou de outra banda, pois o show da Radiohead na verdade já começou (ou está para começar), mas o dessa outra banda (espera-se) não... -- então os três vão ver o show de uma banda (ou de um bando) de Flores...
22 : diante da arena onde a Radiohead canta mulheres palestinas com a cabeça coberta protestam contra o show que a banda inglesa fará em breve em Israel; elas seguram bandeiras e distribuem panfletos para quem comprou ingresso falso e não pôde entrar; um grupo de brasileiros ficou do lado de fora, no sereno, e é consolado por um curitibano que mora há anos em Dublin; ele não para quieto e irrita todo mundo... .. diante da arena onde o bando de Flores vai cantar mulheres portuguesas caladas pedem ajuda para apagar o incêndio florestal em Portugal; a contribuição é copiosa e sonora : “Portugal battles to control worst forest fires in living memory!” grita de repente um coro de mulheres portuguesas 124 ✴✴✴ a mais irlandesa das canções portuguesas
Flores, os novos Livro rêmora11 [A] 125 [Flashes do show da Radiohead em Dublin] ✴✴✴ - músicos e cantores de turbante em pé e sentados na abertura à moda indiana (não indígena) Sérgio Medeiros - agora o som da banda inglesa bate no peito e desce para as pernas dos fãs; depois todo o assoalho da arena cheia (ingressos esgotados) estremece enquanto o cantor, baixinho, agitando três maracas, dança com deleite, a barba por fazer e um rabo malfeito no cocuruto [B] [As letras da música do bando de Flores] FIRES FIRES ON THE TOURIST ISLAND OF MADEIRA FIRES fires FIRES 11 No meu livro A idolatria poética ou a febre de imagens (2017) propus a seguinte definição: “um livro rêmora é como um peixe rêmora que se fixa em outro peixe para viajar; um livro dentro do livro seria uma obra RÊMORA”.
Meia-noite e meia : Dizem que à meia-noite um coral veio caminhando da catedral e parou diante do antigo Music Hall; os membros do coral ficaram em pé na rua e cantaram trechos da cantata de Handel; depois o coral se foi conversando animadamente e deixou o pequeno Handel Hotel imerso 126 novamente em silêncio (o pai, a mãe e o filho ainda não haviam voltado ✴✴✴ do show da Radiohead e/ou do show de um bando de Flores) a mais irlandesa das canções portuguesas
1 u m .. R O X O : n o .. p a l c 127 o ✴✴✴ v Sérgio Medeiros a z i o e .. u m :
v a mais irlandesa das canções portuguesas a P O R : L E v e .. b r o t 128 a ✴✴✴ n d o : e .. u m .. r u m o r :
c o n t í n u o .. [O sussurro dos fãs quase encobre qualquer manifestação prematura no/do palco quase quase :] 129 ✴✴✴ Sérgio Medeiros
Enrique Flor, quatro anos Canção onírica cantada por uma criança irlandesa chamada Henry Flower X: 7 instrumentos de percussão 130 XX: 4 instrumentos de sopro ✴✴✴ XXX: 2 ondas martenot a mais irlandesa das canções portuguesas XXXX: aroma de flores XXXXX: sons de flores XXXXX THIS REGION HAS HAD FIRES, BUT XXXXX XXXXX but we cannot remember a tragedy of these proportions XXXXX XXXXX XXXX X
XXXXX 131 XXXX ✴✴✴ XXXXX DRY CONDITIONS XX Sérgio Medeiros XXX ENRIQUE SAID THE DEVASTATION CAUSED BY THE FIRE XX had been made worse XX X by the dry conditions XXXX DRY XXXXX Last August fires on the tourist island of Madeira 1,000 [750] miles South of Lisbon in the Atlantic killed [...] people while over the course of 2016 about 40 homes were destroyed and 5,400 hectares of land
burned X XXX XX XXXX XXXXX XXXX XXX A RAGING forest fire A RAGING FOREST fire 132 A RAGING FOREST FIRE ✴✴✴ X a mais irlandesa das canções portuguesas A RAGING forest fire “Something Extraordinary XX has taken place and XXX we have to wait
for technicians XXXX to properly determine XXXXX its causes determine its causes 133 ✴✴✴ Sérgio Medeiros
a mais irlandesa das canções portuguesasHenry Flower, quatro anos Canção onírica cantada por uma criança portuguesa chamada Enrique Flor ..: Duas sementes 134 .:: Três sementes ✴✴✴ ::: Quatro sementes -: Sulco na terra12 .. um bafo árido envolve os recém-chegados os viajantes que descem 12 Todos estes sinais já apareceram anteriormente; nada é novo neste sonho.
do avião (não é o maior) 135 (nem o menor) ✴✴✴ :: em Lisboa Sérgio Medeiros .. os recém-chegados os viajantes sob as asas :: : .: - Entram apressados num ônibus e só então as primeiras gotas frias molham os vidros :: .: :: .. -
O maior avião do mundo os alcança - .. : .: ... o ônibus agora úmido e abarrotado o avião passa adiante suavemente - .: :: :: :: :: :: .: 136 - ✴✴✴ .. a mais irlandesa das canções portuguesas :: .: Na sala de espera de Dublin (antes da partida?) (sim e não) - na sala de espera
um japonês albino com basta cabeleira branca - vai e volta de mãos abanando entre crianças com latinhas verdes de sementes entre passageiros ociosos ou aturdidos .. .: :: 137 ✴✴✴ Sérgio Medeiros
Apêndice O olhar das plantas Deixe a natureza olhar.13 Yves Klein 13 A epígrafe é falsa, mas poderia ser verdadeira. Seguindo os passos de Yves Klein, eu desmaterializei a minha poesia, tal como ele desmaterializou os seus azuis; a seguir, mostrei os meus poemas em branco para o meu jardim. Então eu disse para mim mesmo, repetindo Wittgenstein: “[Agora] apenas deixe a natureza falar”. (Yves Klein não era somente um “desmaterializador”; ele fez também pinturas convencionais, ou quase: deixou a natureza marcar parte da sua obra, ao usar, por exemplo, os vegetais como pincéis autônomos. Não sei, porém, se ele mostrou depois essas telas para a natureza.)
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