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N-descritos

Published by Paroberto, 2020-03-14 13:31:40

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N descritos com rimas Sérgio Medeiros



N descritos com rimas



Sérgio Medeiros N descritos com rimas

Copyright © 2020 Sérgio Medeiros Copyright © desta edição Editora Iluminuras Ltda. Projeto gráfico, capa e editoração Paulo Roberto da Silva Caligrafia e desenhos Sérgio Medeiros Revisão Sérgio Medeiros Ficha catalográfica M488n Medeiros, Sérgio, 1959- N Descritos com rimas [Recurso eletrônico on-line] / Sérgio Medeiros. 1. ed. – São Paulo : Iluminuras, 2020. 51 p. : il. 15 x 21 cm ISBN 978-65-5519-003-8 1. Poesia visual brasileira. 2. Poemas. 3. Fragmentos. I. Título. CDU: 869.0(81)-1 Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071 2020 EDITORA ILUMINURAS LTDA. Rua inácio Pereira da Rocha, 389 – 054432-011 – São Paulo – SP – Brasil Tel./Fax: 55 11 3031-6161 [email protected] www.iluminuras.com.br

Sumário Prólogo ✴ 7 N descritos ✴ 9 Nas páginas finais de uma caderneta de descritos de 2013 leem-se estes projetos de poemas, peças, performances, histórias em quadrinhos etc. ✴ 25 Um fragmento das Galáxias de Haroldo de Campos ✴ 31 Rimas ✴ 33 Um fragmento de um poema concreto de Haroldo de Campos ✴ 47 Apêndice ✴ 51



Prólogo Wie gesagt: denk nicht, sondern schau! L. W. Ao chegar aos meus 60 anos de idade em 2019, decidi não fazer uma antologia da minha poesia, mas sim homenagear o mestre com quem aprendi tantas coisas: Haroldo de Campos. Gostaria de acreditar que dois impulsos caracterizam os poemas que reúno aqui: o jorro verbal (“N descritos”) e a concisão visual (“Rimas”). Reli recentemente o que disse Ludwig Wittgenstein sobre “parentescos” (num sentido lato), e isso me ajudou a conceber este livro, que toma Galáxias e os poemas concretos do autor paulistano como possíveis referências (o meu fluxo de detritos imagéticos “rima” com certas galáxias de Haroldo, enquanto os meus desenhos mais ou menos se repetem à maneira das palavras que rimam num poema visual do meu homenageado): “66. Observe, por exemplo, os processos a que chamamos ‘jogos’. Tenho em mente os jogos de tabuleiro, os jogos de cartas, o jogo de bola, os jogos de combate etc. O que é comum a todos estes jogos? – Não diga: ‘Tem que haver algo que lhes seja comum, do

8 N descritos com rimas contrário não se chamariam ‘jogos’’ – mas olhe se há algo que seja comum a todos. – Porque, quando olhá-los, você não verá algo que seria comum a todos, mas verá semelhanças, parentescos, aliás, uma boa quantidade deles. Como foi dito: não pense, mas olhe!” (Investigações filosóficas, tradução de Marcos G. Montagnoli). Florianópolis, 2019

Sérgio Medeiros 9 N descritos1 1 Os descritos deste livro não são “instantâneos”, ou seja, não são fotografias, mas choques entre coisas e fatos que geram, a meu ver, metamorfoses e/ou outros mundos. O símile, muito privilegiado aqui, anuncia e revela o contato tumultuoso que chamo de choque. O choque pode ocasionar um cacho de choques (fluxo de detritos imagéticos), que é o poema longo feito de descritos.



Sérgio Medeiros 11 Uma caderneta de descritos de 20131 ✴ – depois que alguém apagou com tinta branca uma inscrição no asfalto a lata de tinta ficou na mureta que separa as pistas – e continua no mesmo lugar há dias apesar do tráfego intenso ✴✴ – depois que alguém apagou com tinta branca uma inscrição – pendurada no meio de um poste e subitamente iluminada pelos faróis de um carro que passa acelerado uma bicicleta albina leva na noite o seu fantasma ✴✴✴ – pendurada no meio de um poste e subitamente iluminada pelos faróis de um carro que passa – no jardim há árvores reclinadas com longos troncos serpenteando na grama e os galhos verdes se contorcem muitos também tocam o chão 1 Transcrevi fielmente (evitei reelaborá-los, mas num caso ou outro reconheço que caí nessa tentação) os textos originais. Omiti, porém, as vírgulas e outros sinais de pontuação (seguindo nisso a lição de Haroldo de Campos em Galáxias), mas mantive todos os travessões; os descritos desta caderneta já utilizados em outras obras de minha autoria não foram inseridos neste poema.

12 N descritos com rimas ✴✴✴✴ – e os galhos verdes se contorcem muitos também tocam o chão – vai esfriando o continente some então surge no horizonte uma lancha mínima e espalhafatosa levantando por onde passa água branca na esmorecida baía esverdeada ✴✴✴✴✴ – espalhafatosa levantando por onde passa água branca na esmorecida baía esverdeada – em cima da carroça os galhos recém-cortados dão uma grande carapaça verde trêmula que bate os cascos no asfalto enquanto corre ágil ✴✴✴✴✴✴ – dão uma grande carapaça verde trêmula que bate os cascos no asfalto enquanto corre ágil – um saco de lixo verde transparente cheio de pedaços de cartões é deixado no meio da rua para tapar um grande buraco que abriu na faixa de pedestres ✴✴✴✴✴✴✴ – para tapar um grande buraco que abriu na faixa de pedestres – ao ar livre um copo negro de plástico rola vazio na mesa de vidro indo e vindo entre duas pilhas de livros que recebem lufadas frias numa manhã de sábado

Sérgio Medeiros 13 ✴✴✴✴✴✴✴✴ – indo e vindo entre duas pilhas de livros que recebem lufadas frias numa manhã de sábado – uma inesperada e silenciosa revoada de úmidos insetos negros que bebiam dos cachos de pimentas cor-de-rosa sobre as babosas firmes e verdes no jardim que parece agora perigosamente desperto – de repente quando a manhã esfria os passarinhos se animam a cantar todos juntos em meio a alguns pios mais altos e mais longos – as gaivotas que boiavam na baía e refletiam o sol sumiram ao mesmo tempo que o sol – ao meio-dia duas folhinhas em pé saltitam no vasto pátio da universidade avançando velozes então se lançam no chão onde ficam deitadas imóveis uma marrom e a outra verde lado a lado encarando o céu que ameaça chuva – numa curva o alto caminhão branco sai da névoa e começa a correr macio avançando por um trecho ensolarado da estrada nas primeiras horas da manhã a névoa está parada ao lado da estrada – ao meio-dia olhando a cidade nublada de quarta-feira uma velha está imóvel numa sacada do segundo andar aparentemente buscando algo no horizonte noutro prédio numa sacada do primeiro andar um homem de meia-idade segura nos dedos um palito certamente recém-almoçado – cedo ao lado de um caminhão torto que vende frutas alguns garrafões de vinho alinhados no chão vestidos de redes verdes de plástico tomam um súbito chuvisco – o pedacinho de galho envolvido num parasita rugoso de um cinza-esverdeado cai à beira da calçada como um dedo indicador enluvado brotando de súbito da terra – de chapéu grande e mole o motorista conduz o seu automóvel esporte no trânsito intenso levando na capota uma dura e pequena canoa emborcada como um velho capacete militar – uma poltrona roxa felpuda no teto de um carro baixo

14 N descritos com rimas passa diante do morro verde iluminado pelo último sol – o gavião toma sol no topo do pinheiro mais alto do jardim um passarinho se remexe de vez em quando entre os galhos que estão logo abaixo dessa ave altiva que não deixa de vigiar o horizonte – no meio da noite no terraço um rapaz de cabelos já grisalhos mostra a duas idosas a lua cheia ainda difícil de ver – agachada no gazebo diante do mar e munida de uma faca pontuda uma moça estoura os balões coloridos que estão no chão a sua volta às primeiras horas da manhã provocando estrondos regulares até reduzir todos eles a retalhos moles – na prateleira da loja os potes de plástico se agigantam e vão cobrindo toda uma parede tornam-se aparentemente inadequados para levar para casa talvez não caibam em sacolas embora não pareçam pesados mas muito leves como se estivessem todos vazios – são de comida todavia – de madrugada um sujo caminhão branco deixa a gasolina escorrer toda por baixo dele morrendo no sinal mais à frente num estacionamento um carro quase limpo está parado sobre uma espuma branca abundante quando o sol aparece – como se estivesse numa roda-gigante a gaivota gira sobre as ondas encrespadas sempre prestes a mergulhar nelas mas não o faz – e some de novo – o vento frio e o mar estão passando há horas diante da casa onde um vasinho verde de plástico cheio de longos fios verdes virou de lado e assim ficou – numa manhã fria no fundo de um grande cesto de lixo azul grãos amarelos de pipoca são sacudidos e se deduz pelo som que estão prestes a estourar ou já estourando – muitos urubus giram atrás de uma árvore maciça perto da praia alguns porém saem dali e passam de repente sob a meia-lua na manhã tempestuosa – dependurada imóvel sobre o jardim a longa palma cor de melado se fecha qual um olho com cílios molhados como se o sol vagamente borrado atrás das nuvens

Sérgio Medeiros 15 o machucasse na manhã depois do temporal – quando passa baixo sobre o jardim sem bater as asas na tarde clara o urubu quase parece um chapéu negro de abas largas que tivesse voado do quintal do vizinho – enquanto se come sonolento uma torrada com geleia à noite um pedacinho branco seco e retangular sai deslizando sobre a mesa e é como se fosse o colchão novo de algum duende que estivesse indo só para a casa dele – levando nos braços um galho cheio de dedos longos e finos que arranham a calçada um garotinho caminha atrás do pai que empurra um carrinho de bebê – na curva perigosa tem um guarda de costas para o trânsito e outro que olha para cima examinando os galhos das árvores enquanto os carros fluem lentamente na manhã – fazendo vários zigue-zagues na pacífica paisagem ensolarada de junho uma aranha sobe rapidamente até um galho fino com um tufo de folhas verdes na ponta como um pequeno espanador – na forte ventania os urubus madrugadores pairam e giram quase tranquilos e por cima do sol que vai nascer um traço branco de avião substitui a lua fina que ficou invisível – como postes totêmicos atarracados (ti’ii) as coloridas latas de lixo esperam cheias à beira da estrada com sacos negros também cheios em fila atrás delas como uma cabeleira basta e brilhosa se arrastando no chão – o inseto negro que busca os braços nus mais próximos não tem som nenhum simplesmente pousa na pele levíssimo com o ferrão inativo se tentam porém afastá-lo com a mão zumbe bem perto de um dos ouvidos – três longas espreguiçadeiras brancas senhoras de si no terraço uma quarta totalmente reta parece ter sido decapitada embora esteja inteira no fim de tarde que cai rápido – na ponta do galho inclinado uma flor nova com dorso verdolengo de lesma bico de pássaro anil e orelhas de coelho alaranjadas em pé – o impecável urubu que vai no vento forte sem

16 N descritos com rimas bater as asas extremamente abertas move curioso a cabecinha esperta para os lados sem diminuir a velocidade que o leva embora em linha reta – com as mãos apoiadas nos ombros de um garoto mal agasalhado que pedala rápido a menina magra vai em pé na bicicleta com o casaco nas costas tomando o ar frio da manhã ao lado dos carros que seguem para o centro – do carro amassado parado no sinal entre vários outros surge uma cabeça de velho com bigode enterrada no pescoço que inclinada para fora da janela do motorista cospe fortemente duas vezes no asfalto recentemente iluminado pelo sol da manhã – com guindastes rígidos iluminados ao redor a bandeira do Brasil gruda escura no mastro sem dar mostras de querer se mexer na fria manhã ensolarada – feito uma grande joaninha com sete pernas curtas voltadas para cima o colchão com molas saltadas aguarda calmamente no engarrafamento estendido ao sol na carroceria de uma camionete cinza – vasto e opaco o urubu bem esticado baixa silencioso e rápido sobre o jardim mas então encurva as asas para cima para subir como uma lua negra – no domingo chuvoso a moça leva escada acima com gritos e gemidos uma pilha de roupas limpas e passadas que começa na sua cintura e vai além do seu rosto – o ronco do aviãozinho é alto no domingo molhado e ele vai embora baixo sobre o mar ou velho demais rodeado de mastros de escunas – sentado na sua trepidante poltrona com a cara grande e redonda toda exposta o motorista do ônibus avança dentro do sol da manhã pousando a mão direita sobre os olhos apertados sem se importar muito com a curva acentuada – quase no escuro o homem magro e alto corre vagaroso na direção do mato acompanhado por um cachorrinho negro e encaracolado que parece mexer muito rápido as perninhas curtas – a chuva é silenciosa mas os passos no barro são grandiloquentes assim

Sérgio Medeiros 17 como a porta do carro que de repente é fechada no fim de tarde de um dia de jogo do time feminino do Brasil – no quarto da criança adormecida o computador segue batendo como um coração compassado em meio ao silêncio da casa e à chuva fina que cai ininterrupta à noite – em cima da caminhonete que some na chuva um comprido objeto embrulhado frouxamente numa lona laranja tremula em pé e dá adeus com o corpo todo – veloz na friagem matinal o esbelto e elegante urubu parece um desenho num cartaz solto que uma lufada polar estivesse levando embora pelo céu azul – um urubu fechado outro meio aberto e um terceiro inteiramente aberto tomam sol pousados na luminária de um poste diante do mar às primeiras horas da manhã – a ventania molhada não afeta toda a grande bromélia no vaso estão rígidas no topo as suas folhas menores as maiores e as mais baixas se mexem no entanto com ruído de folhas de lata ou de solados que raspassem o chão talvez já correndo – não se ouve nada à tardinha nem se vê voo rasante sobre o jardim mas de repente dois pássaros passam com as asas tão preguiçosas quanto as nuvens molengas ao redor – dois dias depois o bicho encharcado ainda faz volume ao lado das rodas úmidas dos automóveis que passam zunindo mas agora bem inchado ele parece mais gato do que cachorro talvez mais um filhote de onça do que um gato mas no primeiro dia era tanto um gato como um cachorro – os troncos velhos estão deitados cobertos de sereno perto dos buracos que eles deixaram na grama agora cheios de flores e de minúsculos cogumelos como guarda-sóis numa praça de alimentação para duendes – a cabeça do ciclista é uma luz branca trêmula na noite escura e mal se veem as suas pernas finas fosforescentes pedalando enquanto as rodas somem rapidamente – uma aranha leve na lente de grau vira uma pesada mosca que zumbe quando um dedo se aproxima para

18 N descritos com rimas retirar os óculos do rosto – na calçada perto do canal imundo um saco de plástico branco rasgado cheio de pedras com arestas afiadas arreganhando-se como uma boca para os transeuntes que porventura tropecem nele – as escunas fantasiadas de navios piratas se aproximam devagar do muro de pedra e apontam com o dedo fino em riste para a casa que encara desde cedo um barco negro que encalhou de madrugada na praia defronte – já estava claro fazia horas quando o sol apareceu no terraço subitamente porém pálido sumiu rápido e tudo ficou mais escuro do que antes em todos os quadrantes – na palmeira que lagartas invisíveis vão devorando um pouco a cada dia um pássaro enorme está pousado com seu topete curto e o bico calado – o avião longo e baixo está estável no ar mas o sol calmo da tarde fria passa nele e parece fazê- lo estremecer todo enquanto vai seguindo em direção ao aeroporto ainda distante – nos fios da rua mais um par de tênis dependurado branco como uma lâmpada apagada embaixo um homem com uma perna só brinca com sua muleta leve e prateada que ele equilibra na própria nuca – a pequena carapaça vermelha se abre de súbito lançando no ar as asas necessárias para um voo rápido entre uma bromélia pontiaguda e uma palma verde que se balança como se dissesse “não” – por cima de um velho jornal dobrado num canto do terraço uma formiga negra escorre como se descesse por um tobogã decorado de grandes letras negras e fotos amareladas – longe na baía esmaecida a lancha está tão branca como um giz e de repente esguichando para cima água branca ela se afasta mais ainda na friagem da manhã – um helicóptero voando sobre a lancha que vem e volta é só um ponto escuro mas o clarão das câmeras de seus ocupantes e o ruído do motor chegam até a praia atraindo as atenções – o urubu voando em círculos ao meio-dia sobre o jardim e o barco barulhento movendo-se lento

Sérgio Medeiros 19 pela baía se dirigem ambos de repente com determinação para o mesmo ponto longínquo entre montes e árvores verdes – da janela de um carro veloz salta uma folha de jornal amarelada e de outro carro mais alto e maior voa um pedacinho de papel branco – a margem da estrada os recolhe ávida sob a pressão das rodas que não deixam nenhum resíduo no seu caminho – todo o continente desaparece sob a chuva fina que começa diante da bromélia cor de carne verdosa numa rigidez acima de tudo altiva – às três da madrugada o gato preto surge no jardim agarrado ao tronco de uma palmeira sob a luz de um holofote ele logo salta para o gramado e se afasta correndo aparentemente fugindo da luz que o denunciou – ao meio-dia um avião invisível deixa sobre o jardim um traço branco que se apaga fácil no mais absoluto silêncio e sem ter maculado o céu sempre limpo – as palmas verdes curvadas para baixo cercam o grande guarda-sol fechado como touros ensaiando cabeçadas no ar – esperam que o guarda-sol se abra de repente e com os seus muitos braços longos tente afastá-los ou afugentá-los – a gaivota e o urubu dividem a mesma luminária no poste escuro na manhã limpa – o urubu se parece com uma folha negra mole enquanto se coça enfiando a cabeça sob a asa, mas a gaivota sempre elegante ergue a cabeça para deixar no sol o bico amarelo – rodeada de livros e controles remotos a mulher não lê nem assiste TV apenas cochila na cama com as pernas no sol envoltas numa manta branca como se fosse uma sereia quase albina – o jardineiro doudo e pouco assíduo quando por fim aparece todo agasalhado está cabisbaixo e olha para cada folha seca na grama do jardim então começa a recolhê-las sem levantar a cabeça uma só vez até concluir a limpeza – o grande carro negro morre quando deixam de empurrá-lo na rua então um menino vai e volta do portão até o carro e do carro até o portão várias vezes

20 N descritos com rimas fazendo exercícios no asfalto indiferente à perplexidade do velho motorista agora parado em pé na calçada sem saber o que fazer – a direção do avião que emite reflexos agudos corta ao meio a baía e o jardim mas não é a direção das elevadas gaivotas e dos baixos urubus que vão e vêm entre os galhos floridos e a água ofuscante – os urubus são atirados para trás todos juntos e quando um deles bate bem as asas para ir avante mais depressa e mais leve ele volta para o seu bando sobrevoando o quintal do vizinho entre bambus e palmeiras agitados ao sol – na tarde fria e ensolarada um guarda- sol lilás e uma cadeira de praia listrada à beira da estrada anunciam a loja de piscinas azuis que ficam expostas todas em pé entre os carros estacionados – a gaivota no topo do poste se mexe entre lufadas abanando o rabo depois abrindo as asas coça afoitamente sob elas defronte de palmas que se balançam esparramadas no ar cinzento como se acabassem de acordar amassadas e em desordem no alto dos trêmulos troncos escuros – no jardim encharcado o boné alaranjado e quase cintilante do jardineiro doudo cruza o verde opaco chamando a atenção de um sensor que aciona imediatamente o alarme estridente – sob as palmas retorcidas desce o tronco com uma capa verde lisa de onde salta um tufo áspero de numerosos filamentos amarelos que tomam chuva gelada – sob o estrondo de um único foguete que enche o domingo tiritante os caniços da praia começam a se mover tateantes atrás do muro de pedra o seu ruído tenso desperta os peixes escuros – depois que os pescadores se foram da diminuta ilha o continente longínquo também começou a desaparecer e da água cor de chumbo o seu reflexo se retirou completamente – os canos que pendem na fumaça atrás da camionete têm amarrados na sua ponta sacos de plástico balouçando como grandes luvas de boxe albinas dando adeus aos carros que no trânsito caótico ficaram

Sérgio Medeiros 21 para trás – uma cabecinha humana escura e veloz passa rente ao muro de pedra numa manhã enevoada que é um freezer sem pássaros na praia e quase sem balanço de palmas no jardim – / de manhã cedo a canoa ficou lá meio obnubilada no vão lerdo entre dois troncos de palmeira à tardinha com o dourado do sol ela reapareceu no mesmo lugar bem mais leve e em seguida percorreu a água um tanto encrespada saindo da moldura de madeira /







Sérgio Medeiros 25 Nas páginas finais de uma caderneta de descritos de 2013 leem-se estes projetos de poemas, peças, performances, histórias em quadrinhos etc. ✴ Pelas costas – a personagem passa e é (ou não é) notada por: – pessoas – insetos – plantas – planetas – galáxias ... E todos (na peça) falam bem/mal dela ou de outra coisa qualquer

26 N descritos com rimas ✴✴ [FALAÇÃO: falar bem ou mal de alguém] PELAS COSTAS – o livro registrará tudo o que se disser de uma personagem que sai de casa e, muito depois, retorna (ou não)... Essas conversas não estarão necessariamente relacionadas com ELA! ✴✴✴ – o que as pessoas dizem atrás da personagem principal, que nunca (ou quase nunca) é NOTADA! ✴✴✴✴ DOIS LIVROS ESTRANGEIROS – reunião do livro que lançarei em Portugal em 20141: VIAGENS E PASSEIOS FANTASMAGÓRICOS E DO LIVRO QUE LANCEI NO PARAGUAI TEMPOS ATRÁS: TOTEM & SACRIFÍCIO ✴✴✴✴✴ VIAGENS & PASSEIOS FANTASMAGÓRICOS Livro de poesia sobre embarcações, veículos – tudo meio “estranho”, “gótico”, “fantasmagórico” 1 Esse livro nunca foi lançado em Portugal.

Sérgio Medeiros 27 ✴✴✴✴✴✴ Dos urubus para baixo – um livro no qual toda vez que aparecem pássaros/insetos usa-se o verso; aparecendo o homem, usa-se a prosa ✴✴✴✴✴✴✴ Poemas incompletos – [a história em quadrinhos] contém fragmentos... ✴✴✴✴✴✴✴✴ – 10 escunas – 20 urubus sobrevoando as 10 escunas – 30 insetos comendo as 10 escunas Uma viagem em três poemas – 10 escunas – 20 urubus – 30 insetos ✴✴✴✴✴✴✴✴✴ Superpopulação Três poemas sobre o olhar Séries

28 N descritos com rimas ✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴ 3 estudos que se alongam e 2 canções que encolhem 3 estudos alongados e 2 canções enxaguadas ✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴ – Revista Raios X – três estudos [que se alongam] 1) Água/escuna 2) Vento/urubu 3) Terra/inseto ✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴ Poema / esfoliação – um poema para ser descascado, parte por parte, até que se exponha o seu cerne, a folha em branco com um longo traço, uma coluna infinita ✴ Esfoliação da coluna infinita



30 N descritos com rimas ✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴✴ Beliscando a corda !/!/! – um contrabaixo: ✴ – tira-se dele um S Ou vários

Sérgio Medeiros 31 Um fragmento das galáxias de haroldo de campos “o ovo do voo o vazio do voo o voo do voo”



Sérgio Medeiros 33 Rimas1 1 Nestes poemas visuais as formas que rimam entre si são harpas (liras), contrabaixos, violoncelos, violas, violinos talvez, e também ondas (sonoras) e madeira (instrumentos de sopro) com os seus ramos e as suas flores que dançam. Os caracóis de metal são (também) trompas. (Matisse, o velho Matisse, foi a minha referência.)



























Sérgio Medeiros 47 Um fragmento de um poema concreto de haroldo de campos “o o o ô” [Isto é um totem sonoro e visual que pode ser lido de cima para baixo e de baixo para cima.]


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