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Published by Paroberto, 2022-06-29 20:38:47

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Sérgio Medeiros 1

2 John Cage no hemisfério sul

JOHN CAGE NO HEMISFÉRIO SUL uma biografia

Copyright © 2022 Sérgio Medeiros Copyright © desta edição Editora Iluminuras Ltda. Projeto gráfico, capa e editoração Paulo Roberto da Silva Ilustrações de capa e miolo Sérgio Medeiros Revisão Sérgio Medeiros Ficha catalográfica M488j Medeiros, Sérgio, 1959- John Case no hemisfério sul [Recurso eletrônico on-line] : uma biografia / Sérgio Medeiros. 1. ed. – São Paulo : Iluminuras, 2022. 62 p. : il. 21 x 29,7 cm ISBN 978-65-5519-164-6 (e-book) 1. Poesia brasileira contemporânea. 2. Poesia visual. 3. Poemas. I. Título. CDU: 869.0(81)-1 Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071 2022 EDITORA ILUMINURAS LTDA. Rua inácio Pereira da Rocha, 389 – 054432-011 – São Paulo – SP – Brasil Tel./Fax: 55 11 3031-6161 [email protected] www.iluminuras.com.br

Sérgio Medeiros JOHN CAGE NO HEMISFÉRIO SUL uma biografia 2022



Sumário PRIMEIRA PARTE: A PARTITURA 9 Versão breve (início da noite) 11 However, the works... 12 Versão longa (manhã, tarde, noite) 13 Nada a declarar... 14 SEGUNDA PARTE: O DIÁRIO VERBO-VISUAL 15 Primeiro diário (a evolução do Sol, da Lua, dos relógios e das moedas antigas) 19 Segundo diário (sons de um carnaval calado) 29 30 Diário da manhã 36 Diário da tarde 42 Diário da noite 43 Terceiro diário (fantasias do céu) 51 O biógrafo silencioso feito uma múmia (com um saco de confetes) 55 Sobre o autor



primeira parte A PARTITURA



11 Versão breve (início da noite) [Partitura de 1952, cujo original se perdeu.] Na composição 4’33” (quatro minutos e trinta e três segundos), o silêncio do pianista (em sua versão original) se torna sinônimo de não intenção, e a não intenção sinônimo de “não fazer nada”. Sérgio Medeiros

12 John Cage no hemisfério sul However, the work... may be performed by any instrumentalist or combination of instrumentalists and last any length of time I TACET II TACET III TACET NOTE: At Woodstock, N.Y., August 29, 1952, the title was 4’33’’ and the three parts were 33’’, 2’ 40’’, and 1’ 20’. It was performed by David Tudor, pianist, who indicated the beginnings of parts by closing, the endings by opening, the keyboard lid.

13 Versão longa (manhã, tarde, noite) [Partitura de 2022.] Sérgio Medeiros

14 John Cage no hemisfério sul Nada a declarar... sobre a vida de John Cage, especialmente I O SILÊNCIO BIOGRÁFICO II O SILÊNCIO BIOGRÁFICO III O SILÊNCIO BIOGRÁFICO NOTA: O pianista David Tudor estreou a obra de John Cage em 1952, sob o título 4’ 33’’. O músico, nessa ocasião, fechou a tampa do piano no início de cada movimento, numa noite úmida de verão. A obra tripartite de Cage pode alongar-se indefinidamente, com qualquer número de músicos e diversas combinações de instrumentos. Nesta ver- são, exclusivamente para biógrafos, prescindiu-se de qualquer instrumento musical, e tampouco um limite de tempo foi previamente fixado.

15 segunda parte DIÁRIO VERBO-VISUAL Sérgio Medeiros

16 John Cage no hemisfério sul

Sérgio Medeiros 17 Neste diário verbo-visual (dividido em três seções, ou movimentos), o biógrafo registra a performance que realizou no carnaval “silencioso” da pandemia (fevereiro de 2022), tomando como referência a partitura mais recente da obra silenciosa de John Cage. NOTA: Ele escolheu o carnaval porque é uma festa de rua na qual a música, o canto e o grito de diferentes foliões se misturam casualmente, criando a “indeterminação” que o compositor norte-americano tanto valorizava e almejava. Durante a pandemia, como se sabe, o carnaval foi cancelado, mas não silenciado. Alguns foliões foram à praia, deitaram-se na areia, entraram na água etc., embora o tempo estivesse indócil, pouco propício a esse tipo de lazer. Raios atingiram alguns incautos, que ficaram inconscientes. Sentinela impassível em sua casa de praia, o biógrafo anotou tudo o que viu e ouviu. Seguiu os passos (não necessariamente carnavalescos) de John Cage, que escreveu um famoso diary, cujas partes foram inseridas em seus livros A Year From Monday (1967), M (1973) e X (1983) sob o título “How to Improve the World (You Will Only Make Matters Worse)”. *** O biógrafo de Cage também deu comida aos pássaros e fez desenhos enquanto ouvia e descrevia o ambiente. Os desenhos, todos coloridos, compõem duas séries que se completam. A primeira série (nove desenhos) acompanha os movimentos dos astros e a ação de raios e trovões ao longo do dia e de parte da noite. Registram também a evolução dos relógios (um digital e outro analógico) e a dança de certas moedas, que são confetes duros e sonoros... A segunda série (seis desenhos) capta as luzes e as sombras de um céu nublado. *** Resumidamente, o que se oferece a seguir são os três movimentos de uma performance no hemisfério sul: o primeiro, visual, foca o céu; o segundo, verbal, ecoa os sons de um carnaval que não houve em fevereiro, por causa da pandemia; e o terceiro, visual, foca outra vez o céu.

18 *** O biógrafo não descarta a possibilidade de haver, num futuro breve (quando o próximo carnaval chegar), uma reperformance ruidosa: vozes infantis e adultas poderão ler então, a qualquer hora do dia ou da noite, o movimento verbal do diário. Os desenhos das duas partes visuais poderão sugerir movimentos corporais, ou até uma música (por exemplo, a “música dos hieróglifos”, composição indeterminada do biógrafo que consiste em agitar moedas num copo). John Cage no hemisfério sul

Primeiro diário (a evolução do Sol, da Lua, dos relógios e das moedas antigas)

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Segundo diário (sons de um carnaval calado)

30 Diário da manhã — ao amanhecer um homem de boina empurra no quintal escuro uma John Cage no hemisfério sul camionete preta para trás; as rodas amassam surdamente o cascalho encharcado — a moto vem cedo em silêncio pela rua deserta, deixa em silêncio um jornal fininho na caixa do correio e com estardalhaço vai embora apressada pela rua deserta — o pescador solitário bate com o remo dentro da canoa seca como se quisesse anunciar o amanhecer, sonoramente — entre a Lua, o Cruzeiro do Sul e Vênus, os aviões madrugadores são pontos luminosos pacatos; um deles faz barulho, e parece bem mais alto do que os outros — chove mansamente no escuro amanhecer e algumas gotas batem sonoras em superfícies propícias: parecem graúdas, maiores do que as outras, que tiram dos vasos e das folhagens apenas sons discretos; subitamente a chuva recrudesce, e um veículo pesado se desloca como um trovão, indo embora mais vagaroso do que ligeiro; a calha gorgoleja como se ralhasse com os pássaros encharcados à espera de grãos coloridos como confetes — o termômetro chega a 28 graus às 5 da manhã; o barco que tenta funcionar na baía ainda escura se cala depois de duas explosões do motor — às 5 da manhã os bambus escuros estalam e até parecem trincar e cair quando as rajadas de vento os atravessam a intervalos regulares — um filete de água cai inesperadamente na pá de plástico rosa, encostada em pé na parede; parece esfregar fortemente a pá, como que para limpá-la, antes de estancar

Sérgio Medeiros 31 — sob o Cruzeiro do Sul (que já quase não se vê) há um prédio de poucos andares às escuras, porém levemente estremecido, como se nele vários motores funcionassem em surdina ao amanhecer — passa ensurdecedor um avião tão invisível quanto estão agora Vênus e o Cruzeiro do Sul no céu azul onde a Lua cada vez mais branca toma posse do seu canto baixo — Vênus, fruta disforme com casca espinhenta, vai secando e se arredondando até ser engolida fácil pelo azul voraz — no morno amanhecer o enorme urubu dá voltas sobre o jardim sem bater as asas, então outros dois ou três, bem mais altos do que ele e também sem nenhum sinal de esforço, aparecem vindos de outras direções e suas rotas se cruzam sob nuvens cada vez mais escuras — o som do jato avançando sobre os clarões rosados no horizonte soa próximo como se a viagem se desse num terreno extremamente irregular, onde o grande veículo tivesse convulsões e se debatesse muito ao tentar avançar — o Sol parece adquirir velocidade e tudo na ilha fica alaranjado num instante; o mar coalhado é, no entanto, de um azul fosco e, ao longe, a névoa clara alisa um amontoado de ondulações no continente — sob o céu silencioso as ondas caem de barriga na areia e o mar as puxa de volta pelos pés sem que protestem; elas se divertem e se lançam de novo na areia — uma invisível teia de aranha no ramo verde retém gotas de chuva — no chão, pios infantis e pios adultos, os infantis não cessam – pelo menos um deles se prolonga como o pio de uma máquina ligada — fios de pássaros diminutos se aproximam da ilha antes do Sol (talvez puxem o Sol)

32 John Cage no hemisfério sul — fios de pássaros diminutos se enrolam e rompem numa só árvore: cantam como crianças assoprando apitos num aniversário — próximos ou longínquos na manhã nublada, silenciosos ou não: são pássaros alegres — um veículo vindo ou indo soa como um filhote de trovão — um motor funciona na água encalhado: brotam bolhas gagas iguais BoLHaS SoNoRaS — reflexo da Lua cheia = bola de pingue-pongue na poça sob a cadeira branca — o som do mar se esgarça até rasgar-se em vários pedaços moles e encharcados na areia — o passarinho acelera o canto alto por um instante — as nuvens se dispersam quando perdem o seu cinza-escuro, mas a Lua, que a essa altura deveria se mantar no seu lugar no céu, não reapareceu em vão nenhum, largo ou estreito, sob o rumor prolongadíssimo das ondas que estão se chacoalhando sem frenesi na areia — de repente, dando no céu o salto que as ondas não estão dando na areia, a Lua branca surge subitamente bem acima do lugar onde deveria estar nesta hora da manhã — o tronco da palmeira estala de vez em quando tal qual um livro que se fechasse abruptamente, mas as palmas soam como páginas que indolentemente fossem folheadas — o tronco agora é a lombada de um volume, e as palmas as franjas emaranhadas do marcador

Sérgio Medeiros 33 — nesta hora, a manhã não tem nenhum lado silencioso: no canto mais duro, uma furadeira ora deixa escapar um espirro terrível, ora só o anuncia; no canto mais mole, a água empurra a água, como crianças no pátio do recreio, onde a fila volta em vez de avançar; no canto nem duro nem mole, a folhagem cozinha ao Sol, mas não ferve, pois o Sol se apaga de repente — dentre os passarinhos escuros amontoados no terraço úmido à espera de grãos coloridos, um deles lança uma só vez um guincho de ave jamais vista ali, na borda de uma poça rasa — rãs e pássaros limpam a garganta incansavelmente no jardim; ou talvez sejam insetos com a garganta sempre seca na garoa — a gralha-azul de manhã só é inequívoca graças à sua vocalização, pois não passa de um vago borrão que salta repentinamente de uma mureta para um galho próximo encharcado — a mesa de granito estremece levemente qual estivesse pousada num trovão mal desperto; como se o mais travesso dos trovões (o folião dos foliões) soasse debaixo da terra; como se a fundação de uma obra em construção nas redondezas fosse um tambor percutido neste dia de carnaval — vindo de longe, o som surdo extraiu um sinal agourento da geladeira que mais parecia um soluço — o músico amador quer que a sua percussão soe delicadamente como discos voadores de plástico carregados de cloro que batessem na borda da piscina porque o vento assoprou neles — entre os passarinhos escuros amontoados no terraço há um que parece emitir uma só vez o grito de um pássaro petulante, como se fosse um periquito recém-pousado na borda de uma das poças rasas; mas nenhum deles veste essa fantasia — rãs novamente limpam a garganta que parece sempre seca; mas talvez sejam insetos vindo à tona na garoa

34 John Cage no hemisfério sul — a gralha-azul é inequívoca: grita cortante na mureta do terraço, depois gira e salta como se pisasse em brasas; então, sem estardalhaço, busca um galho encharcado próximo, ataviando-se de folhas — apesar de sua vela fúnebre, o barco transporta uma batucada animada, porém os foliões não estão visíveis — a máquina trepidante soa como um aparador de grama desregulado (no barro!) ao animar o alto do prédio; chia, geme, assobia, lança no ar grandes quantidades de bolhas secas, em cachos, como confetes sonoros sobre os vizinhos dos andares inferiores — o aviãozinho que vem com seu motor esforçado parece ficar preso no aparelho de ar condicionado, grande e barulhento, que de repente começa a roncar mais alto — o dia não clareou bem nesta manhã levemente suja; um portão bate forte, fechando-se como as nuvens, que estão também barulhentas — soando como um veículo que conseguisse com muito esforço sair de um atoleiro, a máquina de espantar folhas (confetes!) chamada assoprador começa a funcionar no quintal guiada por uma jovem com enormes protetores de ouvido – não é hora nem tem clima para isso — diante do esquálido barco negro, imóvel, desliza uma vela branca imaculada, enquanto sobem da areia pombas desgrenhadas, como se um grito houvesse sido lançado na praia contra elas — as caixas de som do barco carnavalesco foram desligadas abruptamente — o barco mais escuro se move na baía sob o Sol pálido, roncando baixo como que para não despertar ou perturbar os outros barcos mais sonolentos do que ele — a pá de plástico rosa, ao recolher as gotas aceleradas que caem do velho aparelho de ar condicionado, reverbera tão alto no terraço que as gotas parecem enormes, embora sejam praticamente invisíveis à luz do Sol da manhã

Sérgio Medeiros 35 — mal ressurge o Sol por cima das nuvens escuras ouve-se na rua um apito carnavalesco vacilante, como se a criança que vem caminhando não quisesse assoprá-lo com força — um barco cheio de bandeiras coloridas vem com gente animada: os gritos do guia turístico se sobrepõem à música dos alto-falantes, que então se calam — os grãos coloridos são pequenos e escassos; os pássaros alçam voo como flechas quando a sombra da pomba surge entre eles; a pomba gorda parece uma pedra que veio para moer o que restou da comida carnavalizada — o som é de algum objeto sólido girando velozmente/ruidosamente sobre si mesmo, mas é só um pássaro que pousa intacto no chão — o barco amarelo ressurge na baía cor de chumbo; e o Sol, quando parecia dar as caras, se oculta de novo; assim, o velho barco seguirá opaco provavelmente até onde a vista alcança — a longa canoa cheia de gente corta a baía cinza-azulada como uma faca com a lâmina serrilhada para cima, enquanto as ondas algo hesitantes aparam as unhas na areia e se recolhem curtas e tímidas aos bastidores — a chuva deixou no piso do terraço um grande peixe que nada no raso; grãos ou confetes são as suas escamas; os pássaros voltam para beliscá-lo — o ronco feroz mal começou e já inquieta as folhas secas que começam a esvoaçar na grama úmida; elas não se espalham sob o Sol, mas vão todas numa só direção, onde já se forma um monte ofegante — a água empoçada na mesa redonda de vidro estremece como uma gelatina sob as palmas que se curvam cheias de dedos — ninguém está trabalhando agora, exceto as gotas de chuva... que parecem bater pregos em madeiras

36 Diário da tarde — a garoa faz tudo cantar de um jeito ou de outro (alto, baixo) diante da John Cage no hemisfério sul porta aberta: o verde, o branco, o marrom... — certas gotas martelam mais rápido e são mais sonoras em certas superfícies, talvez sejam grossas, duras ou apenas mais finas e precisas... — as ondas pesadas são indiferentes ou já se cansaram de se erguer e de se estender como línguas numa boca desmesurada — trovões nebulosos se prolongam como se não quisessem parar mais, como se houvesse muitos barcos na areia que eles estivessem empurrando abruptamente para a água só de maldade (talvez tudo seja só folia) — no telhado úmido algum pássaro grande finge que é um pato se debatendo num lago, agita-se energicamente como se sulcasse uma escura superfície líquida, então se tranquiliza — um adolescente fala ao celular, então bate o garfo no prato quase cheio (a comida esfriou, não a conversa) como se dissesse “chega!” ou “é isso mesmo!” — a pomba desce, pousa no piso, mas como está atenta, mantém a cabeça elevada — do lado de fora do quarto o rumor do ar-condicionado é o de um vento seco, um vento fantasma, contínuo, igual, sem efeito algum sobre os pássaros pequenos que perto dali beliscam os raios de Sol repletos de grãos coloridos — a meia altura o helicóptero da polícia passa sobre as ondas como pesada máquina de aparar grama, infernal

Sérgio Medeiros 37 — ressoam comandos à beira do mar verde depois da chegada dos policiais, enquanto no quintal defronte da praia filhotes famintos solicitam às mães alto e bom som os confetes coloridos do lanche da tarde — cresce um clamor súbito de torcida satisfeita na areia, porém não dura mais do que os comandos militares, que prosseguem como se a praia fosse um pátio de quartel — eis o assobio ininterrupto da geladeira: é o som agudo de garrafinhas tremelicantes de Kombucha se debatendo lá no fundo — zumbindo como besouro monstruoso, o alucinado jet ski salta e bate na água e gira várias vezes, como se contornasse uma flor deveras suculenta no meio da tarde — a máquina gripada espirra no alto do prédio em reforma sob nuvens que se juntam sem rumor audível, embora, no horizonte mais distante, algo já comece a gargarejar — os trovões se manifestam imponentes (são barrigas famintas) ao redor da alegria arisca dos pássaros que vieram catar confetes no terraço — as árvores piam discretamente sob a trovoada — será uma máquina gripada assoando o nariz ou uma longa corrente que se arrasta nos altos do prédio? — uma farinha fininha que vai se espalhando... — o Sol reaparece em meio à chuva que quer (mas não pode) recrudescer, o trovão se dobra como um tapete duro (o caminhão de shows e eventos o leva embora); a luz do crepúsculo se senta literalmente no silêncio para descansar: chega de tumulto!

38 John Cage no hemisfério sul — o trovão já vai longe num túnel onde, mesmo dobrado, ele mal cabe e se arranha todo ao se chocar contra as paredes e o teto abaulados — a pomba que parecia atolada no cimento levanta voo fácil — duas pombas brancas idênticas levantam voo do telhado, dão uma volta e, num voo rasante, retornam com uma pomba preta no meio; pousam alhures — o jovem músico experimenta no primeiro andar instrumentos de percussão (sobretudo latas com tampa de plástico) usando canetas envolvidas em fita adesiva como baquetas; o som da batucada crescente desce a escada capengando e encobre o tamborilar da chuva, mas ao chegar ao térreo ali escorrega (como se o piso estivesse liso) e cai sem evoluir mais — uma marcha percussiva sobe as escadas majestosa... — não se sabe de aeroportos por perto, mas se ouve o assobio de uma turbina cada vez mais próxima, como se o avião, já pousado, agora se acercasse do terminal de passageiros — no alto de uma construção tem algo misterioso que assopra, como se um animal de grande porte ressonasse; talvez um folião que em carnavais passados costumava se fantasiar de urso e que agora simplesmente hiberna — quando os pássaros levantaram voo juntos tresloucadamente (eram centenas), o som que produziram foi o de um espirro, como se um urso velho (parece haver pelo menos dois deles nas redondezas) estivesse gripado; depois fez-se silêncio — um mistério: algo escuro imóvel na areia da praia deserta – como um cão – ou peças de roupa – ou uma toalha — de repente, o choro lancinante de um bebê vindo não se sabe de onde

Sérgio Medeiros 39 — agora, o miado lancinante de uma gata — ao deslizar sobre rodas com roupas longas e curtas em volta, o velho guarda-sol azul parece um grande jabuti na areia; é admirado por potenciais compradores de saídas de banho; então se vê que o bicho tem pescoço e rosto humanos; a expressão é ansiosa porque banhistas são raridade — as ondas apenas se coçam na areia, tão mansas como pets; vozes humanas chegam de longe; crianças falam baixo; quem é chamado não responde — o avião branco que buzina na tarde voando baixo exibe, presa à cauda, uma longa faixa bem esticada repleta de dizeres e desenhos nebulosos — num dos cantos mais profundos da piscina mãe e filha cochicham com a água até o pescoço — profusão de vozes espalhadas na praia e uma música longínqua que não é carnavalesca e não sai do lugar, não marcha, não avança ou recua; quem faz evoluções espalhafatosas é o vento, enfiando-se nas palmas verdes e nos cachos de flores amarelas do jardim, que são o seu salão de baile — o helicóptero passa baixo sobre a praia como uma curta serpentina que evolui ondulando — na água crespa o pequeno jet ski preto lança para trás uma longa serpentina branca, espumosa, que se desenrola numa velocidade incrível — a música potente serra a tarde; um pó branco logo se levanta e se espalha borrando o continente — com o rabo para cima o irrequieto e diminuto passarinho corre sobre o muro de pedra como um camundongo maratonista (não carnavalesco); sem pretensão de levantar voo, oculta-se entre flores amarelas imóveis — um canto começa: algum inseto assopra com força um apito

40 John Cage no hemisfério sul — no mar cinza-claro o motor velho custa para pegar, mas depois a embarcação faz evoluções na água, perto, longe, perto de novo – e, como um ferro de passar, deixa o mar mais liso — as ondas curtas não alcançam a areia mais abundante; umas ainda se esforçam e dão um salto para a frente ou para o lado — a sombra silenciosa que passou sobre o jardim é o grande urubu em pessoa — o guincho do recém-chegado gavião abala a tarde morna; os insetos estrilam baixo e todo o resto, se não voa, se cala — o avião invisível sobre o mar é uma onda rumorosa que logo se afasta definitivamente — a câmera de vigilância do portão não capta a motocicleta que já buzinou duas ou três vezes pedindo passagem; é escassa a luz da tarde — na garoa fina o pesado helicóptero é passageiro como um trovão — acima das nuvens baixas o avião é outro trovão em fuga — a máquina ronca e espanta folhas secas, que rolam e se amontoam no barro do quintal; os pássaros vêm de lá e pousam no terraço uns sobre os outros para catar confetes coloridos espalhados entre as poças — na baía enrugada só se vê um barquinho que parece de papel amassado lançado em solo áspero: essa cena cinzenta se vê da biblioteca onde o biógrafo toma chá e medita sobre elétrons e confetes — palavras esparsas de gente jovem, sem ênfase nem esboço de riso; não se sabe se elas se despedem, se se separam aos poucos; ou se agora vão se reunir; pelo menos uma risada curta, mas o silêncio se segue; então, quando as vozes voltam a soar, estão espalhadas, longínquas

Sérgio Medeiros 41 — os cães estão mudos, mas as maritacas parecem latir no lugar deles e o Sol vespertino já vai se escondendo outra vez; prosseguem os latidos das aves estrangeiras — também agora as gaivotas latem enquanto correm no ar carregado; a que vai na frente leva no bico uma guloseima e as outras a perseguem implacavelmente, descendo e subindo colinas e fazendo curvas sobre palmeiras desenxabidas — o rapaz bate em duas latas e tira delas o som de pipocas graúdas dentro de grandes panelas; o mar espuma perto da janela — o jardim fervilha e um cavalo trota dentro de casa: eis as percussões da chuvinha constante e do rapaz que bate latas — de repente o aparador de grama incauto se move e, sujando-se de barro, parece um coração batendo de emoção no jardim que cintila sob um Sol que poderá ser breve — confetes — elétrons — grãos — então? — então? — então? — quase cinco, quase seis

42 Diário da noite [O biógrafo ficou ouvindo indolentemente os sons noturnos, mas sem acender a luz; não pôde, assim, anotar nada na sua caderneta de descritos; fez só uns desenhos, uma “partitura”, cujas páginas estão reproduzidas mais adiante.] NOTA: descobriram-se uns descritos noturnos completos na caderneta do biógrafo. — enquanto se aguarda o som do trovão, um anônimo tosse baixo no escuro — quando soa o trovão, mais parece o chiado de um peito congestionado; depois desse ensaio humano, porém, ele se manifesta inumanamente: retumba uma, duas, três vezes — trovão estrondoso, a casa balança, porém nada sai do lugar; tudo calmo agora, tudo quente de novo e um jovem bebe água no gargalo da garrafa e depois amassa ruidosamente o plástico enquanto as ondas também se amassam na areia John Cage no hemisfério sul

Terceiro diário (fantasias do céu)

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