canoa, areia, força — só o velho pescador arrasta para a água — a canoa onde se lê o nome “Projetinho” 49
escrita, movimento, escrita — no livro o inseto é menor que uma letra — mas é igual a uma sílaba de asas abertas 50
sinal, sinal, sinal — perto do riacho com lixo as lanternas — traseiras do carro novo piscam longamente 51
indígena, fluxo, indígena — sem camisa e mordendo as contas do seu colar — o menino caminha ao lado do rio liso castanho 52
balé, busca, balé — a garça saltita só na água castanha e — depois estica atenta o longo pescoço 53
calor, fulgor, calor — na cobertura de vidro temperado a libélula se agita — ferozmente como uma minúscula britadeira 54
sombras, cigarras, sombras — nos caminhos do bosque montes de folhas secas — sob montes de mosquitos sob o canto das cigarras 55
palco, luz, palco — na janela do banheiro aceso no alto do prédio — pombos se misturam com frascos de shampoo 56
arrulho, anúncio, arrulho — no topo do prédio antigo um banner novo — dá visibilidade aos pombos habituais 57
paisagem, decoração, paisagem — como um crânio de vaca com dois chifres negros — o pássaro pousa contra o sol num capinzal 58
pouso, pressa, pouso — braços de motoristas pendem — sobre a rua como asas inúteis 59
chiado, chiado, chiado — no quarto frio do menino o cata-vento verde — gira sem parar no pote de lápis sobre a mesa 60
assombração, assombração, assombração — o urubu desliza baixo como uma sombra e — só seu bico branco sobressai 61
carta, selo, carimbo — às sete da manhã a lua sob a árvore — está nos dedos de um galho 62
ringue, aplausos, ringue — rodeadas por folhas que se agitam — borboletas lutam boxe sem se tocar 63
pensador, pensador, pensador — a atitude do gorila colossal é de quem medita — após largar na grama ao lado o porrete rústico 64
altura, profundeza, altura — ...reflexo lento de um pássaro na poça — onde a formiga nada veloz 65
partida, partida, partida — a pista está vazia mas lá na cabeceira envolta numa baforada — de calor uma cauda opaca gira trêmula 66
abrir, fechar, fechar — borboletas giram sobre a poça — como torneira que se fechasse 67
pouso, corrida, vitória — a sombra rápida passa pela pista silenciosamente — sem o avião grande que só toca o solo depois 68
penas, pés, pelos — sombras de pássaros ondulam de asas fechadas — como ratos correndo no terraço 69
corpo, veneno, corpo — entre galhos nus a cobra amazônica enrola o rabo e se levanta — como um parafuso que se desenroscasse lentamente 70
sobe, desce, sobe — a sombra da formiga se arredonda — no chão semelhante a uma aranha 71
pirelli, goodyear, michelin — espalhados no asfalto os pedaços de pneus — de vez em quando revoam como asas 72
epílogo 73
fantoche, espetáculo, fantoche — talvez a cabeça seja de gato ou de cachorro — mas o corpo no asfalto já se tornou um trapo 75
Esta obra foi composta em Palatino Linotype e Khand, publicado on-line pelo Autor em setembro de 2020. https://medeirossergio.blogspot.com/
Sérgio Medeiros é poeta e artista visual.
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