Sara Rodi Ilustração Rita Correia
Edição: Associação Fazedores da Mudança Título: MARIA E A CASA DE PAX a cuidar da Casa Comum Autora: Sara Rodi Ilustração e Design: Rita Correia Capa e Paginação: Rita Correia Participação especial na ilustração: Jaime Correia Santos (10 anos) Revisão de Texto: Maria João Nobre e Teresa Gomes Mota Coordenação Editorial: Paula Alves Participações Especiais e Agradecimento: Dayana Andrade / Life in Sintrophy Helena Águeda Marujo / UNESCO Chair on Education for Global Peace Sustainability Projeto Roots&Shoots / Fundação Jane Goodall Rita Correia / Livro Ilumina Simão Gama / Coach de Liderança Virgilio Varela / Dragon Dreaming Coleção: Meninos de Pax 1ª Edição: Novembro 2021 Impressão: Cafilesa- Soluções Gráficas Lda. Tel: 219663502 Depósito Legal: 491815/21 Incentivamos a partilha e a reprodução de qualquer parte desta publicação, sem fins comerciais, na presente forma ou outras, com a devida comunicação à Associação Fazedores da Mudança ou aos autores. O livro pode ser encontrado para download gratuito no website da Associação Fazedores da Mudança. Reservados todos os direitos. Associação Fazedores da Mudança Website: www.fazedoresdamudanca.pt Email para contacto: [email protected]
Sara Rodi Ilustração Rita Correia
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És morada de muitas histórias por viver. Se esta que hoje te trazemos te tocar, é porque esteve sempre dentro de ti. Escuta-a com o coração. Tu, melhor do que ninguém, saberás o que fazer com ela... 50
Um “lugar mágico”, era assim que a mãe da Maria descrevia Água Formosa, a aldeia onde nascera. A verdade é que já não iam lá há tanto tempo, que a Maria já mal se lembrava de como era a aldeia. – Porque é que as crianças se esquecem daquilo que viveram? – perguntara um dia à sua mãe. – Se recordassem tudo, ficavam sem espaço para a imaginação – respondeu-lhe ela. 6
Então a Maria punha-se a imaginar a aldeia que já não recordava. Deveria ter bosques cheios de criaturas misteriosas, plantas e frutos que desenvolviam superpoderes, águas com universos a boiar... E, quanto mais imaginava, mais vontade tinha de lá voltar. Mesmo sabendo que ficava a duzentas Marias de distância, como a mãe lhe dizia, quando ela era mais pequena. Os avós já tinham feito esse percurso algumas vezes para ir ver a neta – tudo somado, já iam quase nas mil Marias! – mas também já não o faziam há tanto tempo, que a Maria começava a esquecer-se de como eles eram. Olhava as fotografias antigas no móvel da entrada, e não lhe restava outra solução senão imaginá-los, tão mágicos como a aldeia onde viviam. – Sabes que, com a idade, os caminhos ficam mais longos – explicava-lhe a mãe. E a Maria conseguia entendê-lo. Se ela estava a crescer, duzentas Marias era uma distância cada vez maior. – Não podemos ir nós visitá-los, mãe? Mas, para a mãe, também era muito longe. Cada vez mais! E não era por causa da idade, mas antes por causa do trabalho. Quando se trabalhava muito, as distâncias também eram mais longas, tinha já percebido a Maria. Havia tanta coisa a interferir com a distância, que a Maria sonhava ser cientista para inventar uma forma de todos poderem estar perto daqueles de quem gostavam, mesmo com muitas Marias de distância. Até que, um dia, depois das aulas, a mãe chegou a casa com a notícia: – Este verão vou ter poucos dias de férias. E se passasses duas semanas com os avós, lá na aldeia? 7
A Maria demorou a reagir. A mãe até sorria, mas a Maria conseguia perceber que o seu sorriso escondia alguma preocupação. – Acho que é uma boa ideia – disse por fim, para tranquilizar a mãe. – Eu tenho saudades dos avós. E a aldeia é um “lugar mágico”. – Era, no meu tempo, Maria. Depois as pessoas começaram a abandoná-lo. Agora, já quase não tem habitantes. Não vais encontrar por lá uma única criança – explicou a mãe. – E são os olhos das crianças que dão magia aos lugares. – Mas eu conto levar os meus olhos comigo – garantiu-lhe a Maria. – Alguma magia hei de encontrar. E a mãe sorriu. A filha não tinha só uns olhos mágicos, como às vezes também fazia magia com as palavras. – Os avós vão esperar-te ao autocarro. Vai ser uma longa viagem... – São só duzentas Marias, mãe – contrapôs a filha, animada com a aventura que a esperava. Tinha saudades, e como tinha saudades, não lhe parecia assim tanto. “A distância aumenta com a idade e com a quantidade de trabalho, mas diminui quando temos saudades”, concluiu. E pensou que, quando fosse cientista, haveria de fazer crescer a saudade no mundo para aproximar as pessoas que gostavam umas das outras, mesmo com muitas Marias de distância. A Maria sentia que gostava dos avós, mas não sabia muito bem do que é que gostava, ou porquê. A fotografia que tinha no móvel da entrada, tirada na última visita que eles lhe haviam feito, ajudava a colorir a memória. Mas tudo o resto, o mais importante, era da responsabilidade da sua imaginação. E se os avós também a tivessem esquecido? As crianças esqueciam para poder imaginar, mas talvez os mais velhos já não tivessem a imaginação tão apurada. Esqueciam e pronto. E se a esquecessem ao ponto de nem a reconhecerem na estação, por entre as outras pessoas que chegariam de autocarro?, questionava-se a Maria, durante a longa viagem até Água Formosa, a terra dos avós. 08
O que a Maria não sabia – ou já não se lembrava – era que Água Formosa nem sequer tinha estação. O autocarro onde a Maria viajava parou em Vila de Rei, a sede do concelho, onde um táxi a esperava para a levar à pequena aldeia. E, a menos que o taxista fosse uma criança, não havia que enganar: a recém-chegada à aldeia era a neta da Alice e do Luciano, dois dos sete habitantes de Água Formosa. 9
– Bem-vinda, Maria! – exclamou a avó Alice, recebendo-a num abraço caloroso. – Que crescida que tu estás... A Maria não disse nada, mas a avó é que parecia ter encolhido. Pequenina e curvada, era agora da sua altura. Já o avô, continuava mais alto do que ela, mas o seu cabelo embranquecera, como se algum artista, num efeito de computador, lhe tivesse apagado a cor. Não os imaginara assim, fisicamente, mas os sorrisos deles faziam-na sentir-se em casa, tal e qual recordava (ou imaginava). E Água Formosa? Teria ela imaginado algo diferente do que existia? Caminhou, ladeada pelos avós, pela rua íngreme que descia a encosta, salpicada de um lado e do outro por casas de pedra que não tinham mais do que a altura de três, quatro Marias. Ali não havia prédios como os da cidade onde a Maria vivia, fachadas coloridas ou cartazes a anunciar a moda da próxima estação. Não havia grafitis nem semáforos, não havia montras de lojas nem lixo no chão. Só havia pedras – a que o avô deu os nomes de xisto e quartzito –, árvores e duas ribeiras. Os olhos da Maria viam beleza, mas não encontravam magia. Estaria ela a olhar da forma certa? – A minha mãe pediu-me para lhe ligar quando chegasse. E também para lhe enviar algumas fotografias da aldeia – recordou-se a Maria, tirando o telemóvel da mochila. – Sabes que, no tempo da tua mãe, não existiam telemóveis – contou a avó Alice. – E também não tínhamos máquina fotográfica. Então a tua mãe tinha medo de se esquecer das coisas... – As crianças esquecem-se para poder imaginar – explicou a Maria. – Isso era o que eu sempre lhe dizia. – E a boca pequenina da avó rasgou-se num sorriso terno. – Mas ela, na altura, não acreditava. E tinha tanto medo de se esquecer, que andava sempre com um pequeno caderno, a anotar tudo o que via. Os olhos da Maria encheram-se de curiosidade. – E eu posso ver esse caderno? 10
– A tua mãe levou-o, quando se mudou para a cidade. Mas ainda o tem, certamente. Se lhe pedires, ela mostra-to. A Maria encolheu os ombros: – Eu também tenho medo de me esquecer das coisas importantes. A minha mãe diz que eu me esqueço delas para poder imaginá-las, mas eu também não sei se acredito. Por isso é que lhe pedi tanto um telemóvel. Assim posso fotografá-las. A avó Alice e o avô Luciano trocaram um olhar sem palavras, porque, entre eles, elas já nem eram precisas. – Nunca é a mesma coisa, Maria – disse-lhe a avó. – As fotografias mostram o que lá está. No caderno podes pôr a maneira como as vês. Sabias que tens uns olhos mágicos? – A minha mãe também costuma dizer isso. Agora já sei com quem é que ela aprendeu. – Nós temos lá em casa um caderno vazio – recordou-se o avô, com entusiasmo. – Comprámo-lo há muitos anos, para quando a tua mãe gastasse o antigo. Talvez tu queiras fazer o mesmo que ela, e registares aquilo que não queres esquecer. – Aquilo que vires com os teus olhos mágicos, Maria, que são os olhos do coração – acrescentou a avó. A Maria não soube logo o que responder, temia que os seus olhos tivessem perdido a magia, como costumava acontecer aos adultos. Mas quando a avó lhe entregou um pequeno caderno antigo, com as folhas todas em branco, entusiasmou-se. De alguma forma que não sabia explicar, sentia que tinha nas mãos o início de uma aventura especial. 11
A casa da avó Alice era muito semelhante às restantes da aldeia. No andar de cima ficava a sala, a cozinha e os quartos, enquanto no andar de baixo se guardavam os instrumentos de trabalho, a lenha e os alimentos, assim como os animais, quando os havia. Na cidade onde a Maria vivia, os únicos animais a morar com os seres humanos eram os gatos, os cães, alguns pássaros ou tartarugas. Ali na aldeia guardavam-se junto à casa também as ovelhas, as cabras, os porcos e as galinhas, explicou-lhe a avó, enquanto desciam a rua empedrada. A Maria queria começar a escrever e desenhar no seu caderno, e para isso precisava de conhecer melhor Água Formosa e todas as criaturas que a povoavam. – No verão aparecem sempre algumas famílias que têm cá casa, ou turistas de passagem, mas no resto do ano é raro sermos mais do que sete. A Maria olhou para os dedos das mãos. Sete habitantes era o número de pessoas que viviam no apartamento em frente ao seu. E outros tantos habitavam os restantes andares do seu prédio, um dos muitos que havia no seu bairro. Para contar todos os habitantes da sua 12
cidade, era preciso milhares de mãos como a sua. – E às vezes ainda somos menos! Tirando eu e o teu avô, quem está sempre por cá é a Adelaide e o Vicente. Vais gostar de os conhecer. Antes que a avó Alice batesse à porta de um dos vizinhos, eles já assomavam à janela, curiosos com os passos desconhecidos, mais rápidos e saltitantes, da Maria. – Então é esta a vossa famosa netinha. Sê bem-vinda à nossa aldeia – disse Adelaide, deixando a janela vazia para ir cumprimentá-la à porta. Na cidade da Maria, era difícil ser-se famoso. A Maria tinha muitos amigos que queriam sê-lo, mas ainda nenhum tinha conseguido. E afinal ser-se famoso era tão simples quanto visitar os avós numa terra mais pequena. Adelaide abriu a porta de casa e tratou de envolver a Maria num abraço demorado. Como se a conhecesse de sempre. E a Maria sentiu que tudo aquilo já era uma espécie de magia. 13
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– Ando a mostrar-lhe a aldeia – explicou a avó Alice. – A Maria já não vinha cá há tanto tempo... – Já a levaste a percorrer as margens das nossas ribeiras? – questionou a vizinha Adelaide. – Para conhecer bem a aldeia, é preciso descobrir os segredos destas águas. A Maria olhou intrigada para a avó, que assentiu com a cabeça. – As águas têm mesmo segredos? – perguntou. – Só para quem consegue ouvi-los – explicou-lhe a avó. – Lembras-te de eu te ter dito para olhares a aldeia com os olhos do coração? Também terás de usar o coração para escutar os segredos das águas. A Maria já não estava a perceber nada. Naquela aldeia era preciso usar o coração para tudo! Estaria o dela preparado para tanto? – Um dia destes a vizinha Adelaide leva-te a fazer uma caminhada pelas ribeiras da Corga e da Galega – prometeu a avó. – Até lá, podes ir treinando a arte da escuta com o vizinho Vicente. – Sempre que ela quiser... A Maria olhou para trás e avistou um homem sorridente a aproximar-se. Devia ter mais ou menos a idade do avô Luciano, mas o rosto era bem mais redondo e bonacheirão. Cabelo, não tinha nem um, como se tivesse passado por ele uma rabanada de vento que lhe varrera a cabeça. – Estava à espera da vossa visita – disse, olhando para a avó Alice e para a Maria, que mais uma vez se sentiu uma menina famosa. – Também vou querer ouvir a tua neta. Deve ter tantas histórias para contar, lá da cidade. – A Maria vai visitar-te um dia destes, para trocarem as vossas histórias. E prepara-te, Maria – avisou a avó. – Nesse dia vais ter tanto para escrever no teu caderno! 15
De volta a casa, o cheiro do pão ainda quente abriu o apetite da Maria, que deixou de lado o caderno para ir comer duas grandes fatias com compota de medronho, confecionada pela avó. O sumo, acabado de fazer, era de cenoura e beterraba. Em casa, a Maria queixava-se sempre dos legumes, e era um castigo para provar frutas diferentes, quando a banana se descascava tão facilmente e se desfazia na boca. Mas ali, tudo lhe apetecia e sabia bem. 16
– É tão saboroso! – elogiou. – Porque é feito com o coração – explicou a avó. “Agora o coração também cozinha?”, intrigou-se a Maria. – Foi tudo preparado com paciência e amor, desde o primeiro momento – explicou a avó. – Por isso é que é tudo mais saboroso, e também nos faz melhor. Amanhã o avô leva-te às nossas hortas, para perceberes onde tudo começou. 17
No dia seguinte, bem cedo, o avô Luciano acordou a Maria para que ela o acompanhasse às hortas dos habitantes da aldeia. Era o avô Luciano que cuidava de quase todas elas, porque era quem conhecia melhor os segredos da terra e de tudo o que nela brotava. – Sabes que os solos são como nós, Maria – explicou-lhe o avô. – Precisam de ser nutridos. Nutridos com água, sol, plantas diversas e animais que os enriqueçam de vida. Quando lhes falta alguma destas coisas importantes, desanimam, ficam secos, empobrecidos, e às vezes não é fácil recuperá-los. – É isso que tu fazes, avô? – questionou a Maria, que nunca tinha ouvido falar da terra daquela maneira. – Tu salvas os solos? – Ajudo-os quando eles precisam de mim, é verdade. Porque eu também preciso deles, e de tudo o que eles me dão. Então ajudamo-nos mutuamente. E conversamos muito, sabias? A Maria olhou para o avô, abismada. Conversar com os animais, ela compreendia. E até com as árvores e as flores, ainda que estas não respondessem. Mas conversar com a terra? – A terra é muito sábia, Maria. Já anda aqui no planeta há milhões e milhões de anos. Experimenta pôr as mãos na terra e conversar com ela. 18
Aceitando o desafio, a Maria deixou-se cair sobre os joelhos e levou as mãos à terra. Estava fresca, solta e irresistível. Não era plasticina, mas também se moldava. Não era slime, mas também a tranquilizava. A Maria só não sabia o que lhe dizer. – Não precisas de usar as palavras, Maria – disse-lhe o avô. – Experimenta só fechar os teus olhos. A Maria obedeceu e tocou na terra de olhos fechados. Continuava sem saber o que lhe dizer, mas agora sentia-se mais próxima dela. Como se fizesse parte dela e ela de si. Seria aquilo uma espécie de conversa? Talvez fosse ainda melhor do que uma conversa. – A terra é frágil, mas também é forte, avô. Acho que foi isso que ela me disse – transmitiu a Maria. – É como tu. Como todos nós – concordou o avô. – Por isso temos de olhar uns pelos outros, e todos por tudo o que nos rodeia. Porque todos temos forças e fraquezas diferentes. Complementamo-nos. A Maria reabriu os olhos, olhou para as hortas cheias de vida que a cercavam e observou depois as árvores que cobriam todo o vale, a perder de vista. Os seus olhos estavam diferentes. Seria aquilo o olhar do coração? – Aquela floresta não deve precisar de nós, avô. Parece tão forte! 19
Mas o avô não concordava. – O que vês não é uma floresta, Maria. Já o foi em tempos, e era de uma riqueza inesgotável. Agora é só uma monocultura. A Maria desconhecia a palavra. – Nós podemos ajudar os solos quando eles estão mais frágeis. Ou podemos estragá-los, e extrair deles o mais possível, até os secarmos – explicou o avô. – Foi isso que os Homens fizeram à antiga floresta. Transformaram-na numa cultura intensiva de um só tipo de árvore, de crescimento rápido, para poderem aproveitar a sua madeira. E, com isso, empobreceram os solos e a biodiversidade. Na verdade, Maria, aquela terra precisa de nós, mais do que nunca! – Mas que homens são esses? Temos de os avisar... O avô sorriu, mas era um sorriso triste, igualzinho ao da sua mãe, quando disfarçava. – Eles sabem o que estão a fazer, Maria. Mas ainda assim fazem-no para obterem mais lucro. E mais depressa. Não sentem a terra como tu e eu a sentimos. Não param para a escutar. – Então não podemos fazer nada? A Maria não costumava desistir com facilidade. – Enquanto estiveres aqui na aldeia, aproveita para escutar a terra, Maria. Talvez ela te venha a dar alguma boa ideia... 20
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No dia seguinte, bem cedo – tão cedo, que ainda estava escuro do lado de fora das janelas –, Adelaide bateu à porta dos vizinhos Alice e Luciano. Vinha buscar a Maria para um longo passeio junto às ribeiras. – Não disseste que querias conhecer os segredos das nossas águas? Querer, a Maria até queria. Mas eram 6 horas da manhã! A sua mãe acordava todos os dias àquela hora para deixar preparado o almoço da filha, a casa arrumada, a vida organizada, mas a Maria ficava sempre a dormir até mais tarde. – Aqui na aldeia acordamos bem cedo. Temos o ritmo da natureza – explicou-lhe o avô. – Não há nada melhor do que ver o sol a nascer e a natureza a despertar. 22
– A Maria está a crescer. Precisa de dormir mais do que nós – alertou a avó. – Podemos dar o passeio a outra hora. Mas as palavras do avô haviam aliciado a neta. A Maria nunca vira o sol a nascer – quando ele espreitava por detrás dos prédios do seu bairro já iluminava há muito toda a cidade –, e muito menos a natureza a despertar. “Será que a natureza se espreguiça, como eu? E haverá plantas a não querer sair da cama? Animais com mau feitio quando acordam?”. A Maria tinha de saber. E foi assim que, logo após um valente pequeno-almoço preparado pelos avós, a Maria se lançou ao caminho com a vizinha Adelaide, que parecia conhecer todas as veredas que conduziam às ribeiras. – Não foi por acaso que os povos antigos se fixaram nestas terras – contou Adelaide, enquanto a natureza se ia espreguiçando em torno delas. – Onde há água, há vida. A Maria já tinha aprendido na escola que as grandes cidades haviam nascido e crescido nas margens dos grandes rios. E que, muito, muito antes de tudo isso, as primeiras formas de vida na Terra haviam surgido na água, razão pela qual os cientistas, quando buscavam vida no espaço, procuravam planetas onde houvesse água. – Como eu quero ser cientista – revelou –, posso vir a ser eu a descobrir outro planeta com vida. E depois venho aqui dizer-lhe onde está esse planeta, para a vizinha Adelaide saber para onde olhar, quando espreitar o céu. Adelaide sorriu, satisfeita com a ideia. Mas tinha outro pedido para fazer à Maria. – Até descobrires água noutro planeta, será que me ajudas a cuidar da água da Terra? É que a água do nosso planeta é preciosa, e os Homens esquecem-se tantas vezes disso... A Maria sabia onde a vizinha Adelaide queria chegar. Também já falara da poluição das águas na escola: todo o lixo que ia parar aos rios e mares, e se acumulava por centenas ou milhares de anos, prejudicando a vida marinha. Mas ali parecia tudo tão limpinho! 23
– A vizinha Adelaide não precisa da minha ajuda para nada. Não estou a ver nenhum dos habitantes desta aldeia a atirar lixo para a água. Vocês quase nem fazem lixo – constatou a Maria. – Isso é verdade. Aqui é tudo produzido pela terra, sem embalagens nem sacos de supermercado. Os restos de comida são para os animais ou vão para a compostagem, para enriquecer os solos. E tudo o que não se degrada, tentamos que seja reaproveitado. Vais ver que, se fizeres um buraco na roupa, a tua avó não vai a correr comprar- te uma nova. Um buraco remenda-se. Os sapatos consertam-se. Os eletrodomésticos também. E, se deixarem mesmo de servir, há sempre alguém que aproveita as suas peças. 24
– Está a ver como não precisa da minha ajuda? Estas águas são tão limpas... Adelaide gostaria de lho confirmar, com toda a certeza, mas não podia. – Sabes que há agricultores, nas redondezas, que usam produtos químicos para combater pragas e ervas daninhas. Esses produtos químicos entram nos solos e chegam aos lençóis de água subterrâneos e aos rios, prejudicando todas as espécies. Incluindo a nossa. – Mas já alguém falou com eles? Para a Maria, aquele parecia um problema tão fácil de resolver! – Os pesticidas e herbicidas são usados porque facilitam o trabalho e fica mais barato, porque se reduz a mão-de-obra. Por isso é que os Homens os usam. Esquecem-se de que, aqui na Terra, tudo afeta tudo. Nada é separado do todo. Contaminar a natureza é fazermos mal a nós próprios, porque nós fazemos parte desse todo. – A vizinha Adelaide disse-me para escutar as águas. É isso que elas têm para me dizer? – Isso e muito mais, Maria. Vem comigo. Vamos escutá-la na fonte. Adelaide segurou a Maria pela mão e desceu com ela os degraus de pedra que conduziam à nascente. Ali a água era pura e refrescante, e o barulho que fazia a jorrar da pedra parecia impor o silêncio à sua volta. Apetecia ficar a escutá-la, sem palavras. E, sim, era como se a água lhes falasse, e lhes pedisse que olhassem à volta, daquele ponto, e percebessem como a água cumpria um ciclo perfeito de vida. Da que evaporava daquelas ribeiras para formar as nuvens, que depois se precipitavam sob a forma de chuva sobre os solos, alimentando árvores, plantas e animais... Quem era o Homem para estragar tamanha beleza e perfeição? – Consegues escutá-la com o coração? E a Maria assentiu. Começava a perceber que o seu coração tinha realmente olhos e ouvidos para sentir tudo de outra forma. Só ainda não sabia o que fazer com isso. 25
A visita ao Sr. Vicente aconteceu poucos dias depois, já a Maria havia enchido várias páginas do seu caderno com tudo o que tinha aprendido até então. Foi isso que começou por contar ao “vizinho Vicente”, como a avó lhe chamava, enquanto este lhe partia umas nozes, a secar desde o outono do ano anterior. – A avó diz que o vizinho Vicente também tem muita coisa para me ensinar. – Eu? Ora essa! Nasci e cresci nesta aldeia, nunca conheci o mundo. Só aprendi a ler e a escrever porque, em pequeno, tinha um amigo que ia à escola a Vila de Rei. Numas férias, ele ensinou-me tudo o que sabia, a troco de eu pastar as cabras dele. Sabes quem ele era? O teu avô. A Maria não fazia ideia. Não sabia nada sobre a infância dos avós. – Naquele tempo, os mais novos tinham de levar o gado a pastar, e ajudar nas hortas. Mas o teu avô conseguiu ir à escola, e a tua avó também. Ela queria muito continuar os estudos para ser professora, mas os teus bisavós não permitiram. E os dois ficaram na aldeia, onde mais tarde casaram e deram à luz a tua mãe. – Eles podem não ter estudado muito, mas parecem tão sábios! – E são – confirmou o Sr. Vicente. – O teu avô sabe muito sobre a terra, as plantas e os animais. E a tua avó parece conhecer os segredos de tudo o que existe. Observa, escuta, e descobre as respostas. 26
– Eu sei porquê – arriscou a Maria. – Ela olha e escuta com o coração. O Sr. Vicente esboçou um sorriso sincero. A Maria também já sabia umas quantas coisas importantes! – E o vizinho Vicente? É especialista em quê? – questionou ela, agora já mais à-vontade. – Sempre fiz de tudo um pouco, mas os meus vizinhos dizem que o meu maior talento é contar histórias. Quando tinha a tua idade, inventava- -as. Entretanto já vivi tanto, que me basta contar aquilo que me aconteceu. E não é que as pessoas continuam a achar que eu estou a inventar? A Maria aninhou-se no banco de madeira, como se estivesse a preparar-se para uma sessão de cinema. Não tinha pipocas, mas as nozes acabadas de partir eram ainda mais apetitosas. – Sabes que, quando eu era pequeno, às vezes ia roubar ovos aos ninhos que os pássaros faziam nos ramos mais altos das árvores. Como eram ovos pequeninos, eu chegava a pôr dois e três na boca, para poder descer da árvore sem que eles se partissem. Mas certo dia aconteceu algo especial: enquanto descia a árvore, senti que alguma coisa muito estranha se passava no interior da minha boca. Só quando cheguei ao chão é que percebi: de um dos ovos tinha saído um passarinho. Ele tinha nascido na minha boca! Era minúsculo, e devia precisar tanto da mãe, que trepei novamente à árvore para o devolver ao ninho. Foi a última vez que roubei ovos... 27
A Maria ouvia o vizinho Vicente com os olhos muito abertos. Aquela era só a primeira das muitas histórias mirabolantes que ele tinha para lhe contar nessa tarde. Histórias de um tempo em que se brincava na natureza, com brinquedos construídos com paus e pedras, e bolas de futebol feitas de meias velhas. No inverno, conversava-se à lareira e, quando o calor apertava, as crianças mergulhavam nas ribeiras. Eram tempos difíceis para os pais, mas os filhos tinham tudo o que precisavam para serem felizes: tinham campo, e espaço para a imaginação. – Se as crianças eram tão felizes aqui, porque é que já não há nem uma? – perguntou a dada altura a Maria, intrigada. – Hoje em dia é preciso mais do que uma aldeia para educar uma criança –explicou-lhe o Sr. Vicente, da forma que podia e sabia. – É preciso haver escolas, bibliotecas, hospitais, pavilhões desportivos, instrumentos musicais... e aqui na aldeia não temos nada disso. – Mas têm outras coisas de que as crianças também precisam: têm campo e espaço para a imaginação. As crianças podiam vir cá de vez em quando para brincarem em liberdade, treparem às árvores, nadarem nas ribeiras, sentirem a natureza e ouvirem as suas histórias. E talvez, se elas gostarem de aqui estar, se construam escolas, bibliotecas, hospitais, se arranjem pavilhões desportivos e instrumentos musicais, para que elas possam cá ficar. E o Sr. Vicente voltou a sorrir, embevecido. – Talvez não tenhas vindo cá por acaso, Maria. A tua avó ensinou-te a ver e a ouvir com o coração. Agora só tens de descobrir o que fazer com isso... 28
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Era a última massa de pão que a Maria preparava com a avó Alice, antes de regressar à cidade. As férias na casa dos avós tinham passado a correr, ainda que a Maria sentisse que o tempo, em Água Formosa, passava sempre mais devagar. Parecia uma contradição, mas talvez não fosse, porque a Maria já percebera que o tempo, assim como a distância, dependiam de tantas variáveis! – Não é uma despedida, Maria – procurava confortá-la a avó, enquanto dividia a massa em porções pequenas e lhes dava uma nova forma. – Vens cá sempre que quiseres. Mas as palavras da avó, desta vez, não a confortavam. Maria sentia-se agitada por dentro, de uma forma que não sabia explicar. Tudo aquilo que vira, ouvira e sentira naquelas férias ressoava dentro dela como sinos ao vento. Se fora tão feliz naqueles dias, porque é que se sentia tão inquieta? – Depois de deixarmos o pão a cozer no forno comunitário, vamos dar um passeio – sugeriu a avó. – Acho que te vai fazer bem caminhar um pouco na natureza. Ela ajuda-nos a escutar o nosso coração. Além de olhos para ver e ouvidos para escutar, o coração também parecia ter boca para falar, registou a Maria. Teria o seu, no meio de tanta agitação, alguma coisa para lhe dizer? – Como é que consegues estar sempre em paz, avó? – perguntou a Maria, enquanto cobriam a massa para a deixar fermentar antes de a levarem ao forno. 30
– Eu não estou sempre em paz, Maria – confessou-lhe a avó, depois de pensar um pouco. – Mas percebi que fico mais em paz quando ajudo os outros a encontrar a sua. É como se fosse a minha missão. Era realmente um dom que a avó tinha, pensou a Maria. Mas, naquele dia, nem a paz da avó conseguia serená-la. – E eu, avó? O que é que eu preciso de fazer para encontrar a minha paz? Não sei se consigo levá-la aos outros. – Talvez não seja essa a tua missão, Maria. – Eu também tenho uma “missão”? A palavra agitava ainda mais os sinos que ressoavam dentro da Maria. – Uma missão é tudo aquilo que tu sentes que precisas de fazer, a cada momento. Às vezes uma vida inteira. Mas acontece com frequência andarmos perdidos, sem conseguirmos ouvir a voz do nosso coração. – O coração conhece a nossa missão? Se a Maria, alguma vez, sonhara que, dentro de si, havia tantas respostas... Ela que tinha sempre tantas perguntas! – Quando nos sentimos perdidos, não adianta andarmos às voltas, a experimentar de tudo ou a falar com toda a gente. Às vezes, o mais importante é parar, respirar, e ouvir o que nosso coração tem para nos dizer. O forno já estava quente, preparado para receber a massa dos habitantes da aldeia. Enquanto a massa se transformaria em pão, a Maria daria um passeio para escutar o seu coração. 31
Caminharam em silêncio, avó e neta, com a natureza a brindá-las com todos os seus sons: o canto dos pássaros, a água a correr na ribeira, o vento a embalar as copas das árvores... A avó tinha razão, pensou a Maria. Ouvir a natureza serenava-a. E, ao serenar, tudo dentro de si parecia falar-lhe de forma mais clara. – Queres descansar um pouco naquela sombra? – sugeriu-lhe a avó, apontando para um sobreiro antigo e frondoso que estava a poucos metros dali. Já estavam a caminhar há algum tempo, uma paragem sabia-lhes bem. E a Maria acomodou-se na erva que cercava o tronco, repousando a cabeça na sua cortiça, enquanto olhava à volta. Era tudo tão bonito! Não queria esquecer aquele lugar, nunca o imaginaria tão perfeito. Teria de o levar consigo no coração. Procurou abrir-lhe os olhos e os ouvidos. E fechou os seus próprios olhos, para o escutar. – Maria... Maria... Os olhos da Maria abriram-se devagar, primeiro um, depois o outro. Adormecera, sem dar conta. E sonhara. Como sonhara! – Passou quanto tempo? O pão já deve ter queimado! – lembrou-se ela, levantando-se num salto. – Só fechaste os olhos durante alguns minutos – descansou-a a avó. – Ainda vamos a tempo de tirar o pão do forno. “Só alguns minutos?”. A Maria tinha dificuldade em acreditar. O seu sonho fora tão longo... E vinha-lhe agora à memória com mais clareza. – Parecia tão real, avó! E, enquanto regressavam à aldeia, a Maria contou-lhe o que sonhara: os quatro habitantes com quem convivera durante aqueles dias – os avós, a vizinha Adelaide e o vizinho Vicente – estavam sentados à mesa, numa casa toda feita de pedra. A Maria até sabia o nome da casa, porque os quatro habitantes a tinham mencionado no início da reunião. Chamaram- -lhe “Casa de Pax”, e aquela reunião servia para que cada um dos presentes explicasse a sua missão. 32
Começaram por fazer um minuto de silêncio, de gratidão à Terra, e depois falaram sobre as alterações climáticas, e de como elas já estavam a afetar o dia-a-dia da aldeia. O avô Luciano referiu a sua preocupação com os solos, e o que era preciso fazer para os preservar, enquanto a dona Adelaide estava empenhada em proteger as águas, para o bem de todos. Já o senhor Vicente falou na importância de preservar os saberes antigos, as histórias e os costumes. E a avó Alice coordenava sabiamente a reunião, garantindo a paz. 33
A Maria não se lembrava de todos os pormenores, não sabia ao certo o que cada um dos presentes havia dito, mas recordava-se que, a dada altura, todos olharam na sua direção, perguntando qual era, afinal, a sua missão. E a Maria já tinha uma resposta para lhes dar. Sabia exatamente o que tinha de fazer. – Então o que é, Maria? – perguntou-lhe a avó, impressionada com o sonho da neta. 34
– Ainda não te posso dizer. Preciso, primeiro, de o pôr em prática. Mas posso garantir-te que já descobri a minha missão. A avó era a Guardiã da Paz, o avô o Guardião dos Solos, a dona Adelaide a Guardiã das Águas, e o senhor Vicente o Guardião do Tempo. – Eu sou a Guardiã da Mudança, avó. Por isso é que, às vezes, ando tão agitada. Preciso de mudar aquilo que tem de ser mudado. Preciso de fazer a minha parte. E a avó, tão pequenina e tão curvada, esticou-se um bocadinho para lhe dar um abraço apertado e sussurrar-lhe ao ouvido: – A tua mãe também tinha essa missão. Por isso é que ela teve de sair daqui. Depois abraçou a missão do amor, quando tu nasceste. Mas agora tem andado um bocadinho perdida. Talvez tu consigas ajudá-la a encontrar-se. 35
Passaram-se os dias, os meses e as estações. As folhas caíram, as ribeiras acolheram a água das chuvas e os animais recolheram às suas tocas, para depois tudo florescer, devagar, e os animais deixarem os abrigos para virem receber o sol. Na aldeia, tudo parecia seguir o seu curso. Luciano cuidava da terra. Adelaide zelava pelas águas. Vicente procurava preservar o tempo. Alice garantia a paz. A verdade é que, após a passagem da Maria pela aldeia, nada nem ninguém parecia igual. Maria deixara na aldeia uma semente de mudança. – Ela sonhou que nos reuníamos numa casa de pedra, Luciano – recordou um dia Alice, quando, já deitada na cama, tentava, em vão, adormecer. – Sonhou com uma casa que fosse de todos, onde todos pudéssemos trabalhar em conjunto para o bem comum, cada um com a sua função. Luciano também ainda não deixara de pensar no sonho da neta. E, de uma forma que não sabia explicar, sentia-se realmente o Guardião dos Solos, tal como a neta o sonhara. Tivera já oportunidade de contar o sonho aos vizinhos Vicente e Adelaide, e também eles se sentiam agora com uma maior responsabilidade. Queriam fazer mais e melhor. Só não sabiam ao certo como. – Aquilo que ensinámos à Maria, podíamos ensinar a outras crianças – continuou a pensar a avó Alice, às voltas na cama. – A importância da ligação à natureza, do cuidar, do silêncio... E aprender o que 36
elas têm também para nos ensinar. – Se tivéssemos uma casa como a que a Maria sonhou, podíamos abrir-lhe as portas para receber mais crianças. E também adultos com vontade de mudança – acrescentou Luciano. Luciano e Alice foram ruminando aquela ideia, sem saber como lhe dar forma. Até que, um dia, algo mágico aconteceu. – Compraram a casa em ruínas, a última a caminho da fonte – contou Luciano à mulher, assim que chegou a casa. Quem lho dissera fora Adelaide, que falara ao telefone com a vendedora, uma prima sua que se mudara há muitos anos para a cidade. – Ela não sabe quem é que a comprou. Só sabe que é alguém que quer reconstruir a casa para a pôr ao serviço da aldeia e do Planeta. Parece que sonhou com isso... E a avó Alice levou a mão ao peito, com dificuldade em conter a emoção. – Tu queres ver que a nossa aldeia é mesmo mágica, como a Maria dizia? Mal suspeitavam os avós que a neta Maria, a duzentas Marias de distância, também estava cada vez mais convicta disso. Deixara uma semente de mudança na aldeia, mas levara outra consigo. E, no tempo certo, a magia aconteceu... 37
Foi nos últimos dias de primavera, já com sabor a verão. Luciano acabara de sair de casa, para ir trabalhar a terra, quando avistou o autocarro, no cimo do monte. Não era um autocarro como os que circulavam no concelho. Era diferente, maior e mais barulhento. Parou bem lá no cimo, nos limites da aldeia, e dele começaram a sair crianças. Umas a seguir às outras. Muitas, como Luciano já não via há muitos anos. – Alice, anda cá ver isto! Alice passou a soleira da porta, ainda de chávena de chá na mão, e ficou abismada com o que viu. Crianças, às dezenas, desciam a encosta, alegremente, rindo e cantando, correndo e pulando. Que invasão seria aquela? – Andarão perdidos? – questionou Luciano, sem sequer lhe passar pela cabeça que aquelas crianças pudessem estar de visita à sua pequena aldeia. Adelaide e Vicente também saíram de suas casas, alertados pelo barulho inesperado. De onde viria tamanha confusão? A resposta chegou bem depressa, assim que os quatro habitantes da aldeia avistaram a Maria por entre as outras crianças. Era ela quem os conduzia, encosta abaixo, e lhes ia explicando tudo aquilo que aprendera, enquanto ali estivera. – Maria! Assim que viu os avós, a Maria correu a abraçá-los. E abraçou também os vizinhos Adelaide e Vicente. Estava mais crescida, mas não perdera o seu olhar curioso nem a sua energia mágica. Muito pelo contrário! E a Maria tinha tantas coisas para lhes contar... 38
– Quando me fui embora, tinha o meu caderno cheio de aprendizagens. Como as registei, nunca mais me esqueci delas. E mostrei- -as aos meus colegas e aos meus professores, que ficaram curiosos acerca desta aldeia. De repente, já todos falavam dos Guardiões dos Solos e da Água, do Tempo e da Paz... E todos queriam conhecer-vos. Os quatro habitantes da aldeia olharam então para as crianças que tinham à sua frente, todas igualmente curiosas e carregadas de uma energia mágica. Estariam ali por causa deles? Seria verdade? – Eu disse-lhes que Água Formosa tinha tudo aquilo que era importante, menos crianças. E que era uma pena, porque os mais novos têm muito a aprender com os mais velhos. Contei-lhes o sonho que tive, e a missão que, nele, me foi entregue: trazer as crianças de volta à aldeia. Então, começámos a pensar num plano para vos vir visitar... 39
No meu sonho, os quatro Guardiões disseram-me que eu tinha a missão de trazer as crianças de volta à aldeia. Eu era a Guardiã da Mudança. Começaria por esta aldeia, mas depois teria de olhar pelas outras. E isso só podia acontecer se encontrasse outras crianças e jovens para me ajudarem. 40
Quando falei nisto aos meus colegas, eles ficaram tão entusiasmados, que quiserem logo ajudar-me. Mas era preciso pensar no que fazer e como. Abri o meu caderno para explicar melhor como tudo acontecera... incluindo a visão do meu sonho. 41
Para isso, os professores ajudaram. Convidaram pessoas que nos ensinaram a fazer um Dragon Dreaming*, apresentaram-nos o Roots & Shoots*, e até levaram à escola a representante da cátedra da Unesco*, para nos falar sobre a Paz. Depois de pensarmos no que podia ser feito, distribuímos tarefas, para que todos participassem com aquilo que sabiam fazer melhor. * Vais conhecê-los mais à frente. 42
O primeiro passo era visitar a aldeia, para que todos pudessem conhecer os Guardiões e perceber a importância de cuidar dos solos, da água, do tempo e da paz. Ou seja, cuidar de Portugal e da nossa Casa Comum. 43
Os avós não podiam estar mais felizes com a iniciativa da neta. De repente, e sem contarem, tinham a aldeia cheia de crianças, e um dia inteiro pela frente para lhes ensinarem tudo o que sabiam. Cada uma delas podia ser a semente para novas e importantes mudanças. E Água Formosa, apenas a primeira aldeia a acolhê-las. Mas os avós também tinham uma surpresa para a Maria. Enquanto o vizinho Vicente contava histórias do seu tempo e dos saberes antigos a um grupo de crianças, e a vizinha Adelaide levava outro grupo a conhecer os segredos das ribeiras, a avó Alice e o avô Luciano dirigiram-se com a neta à futura Casa de Pax. A casa que entrara no sonho dela, e que começava a tomar forma, pouco a pouco. 44
– Ainda nos custa a acreditar, mas parece que houve alguém que também sonhou com esta casa, e está a tentar reconstruí-la para cumprir o vosso sonho – contou a avó Alice. – E, logo por coincidência, ficou de vir hoje à nossa aldeia. Vai ficar tão contente quando a vir cheia de crianças! Tens de a conhecer, Maria – sugeriu o avô Luciano. – Mas vocês não a conhecem? Não fazem ideia nenhuma de quem ela seja? – questionou a Maria, com ar misterioso. – Porquê? Tu sabes quem é? Mas a Maria não respondeu. Apetecia-lhe dizer apenas que não há coincidências, mas resolveu esperar pelo momento certo. 45
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E, depois de um bom almoço partilhado entre todos, o momento certo chegou. A nova proprietária da antiga casa da aldeia estava a chegar, e era preciso ir recebê-la. A Maria ofereceu-se para ir também, juntamente com a avó Alice e o avô Luciano. É que ela não podia perder o momento em que os avós descobririam, finalmente, que a pessoa que comprara a casa em ruínas, para nela criar a Casa de Pax, era nem mais nem menos do que a filha deles, ou seja, a mãe da Maria! – Não consegui acompanhar, desde o início, a excursão à aldeia. Mas, assim que consegui despachar o meu trabalho, pus-me ao caminho – explicou ela, enquanto abraçava os pais. Continuava a mesma pessoa de sempre, atarefada, sempre a correr de um lado para o outro, mas agora com um ar muito mais feliz. – Era hoje o dia certo para vos contar toda a verdade. Alice e Luciano ainda estavam sem palavras. Nunca haviam suspeitado que a filha se pudesse interessar pela aldeia. Ela que tinha sempre tanta dificuldade em ir visitá-los... – O sonho da Maria acordou-me para o que tinha de fazer. Mudei- -me há muitos anos para a cidade porque queria mudar o mundo, mas hoje sei que o mundo também se muda com pequenos gestos, à nossa volta, com aqueles que estão ao nosso lado. Eu e a Maria somos Fazedoras da Mudança, e faz-nos muito sentido fazer a mudança aqui, convosco. Os olhos da avó Alice encheram-se de lágrimas. Durante muito tempo, achara que a filha andava um pouco perdida, mas agora entendia que não havia um só caminho. Nem um só momento. A filha perdera-se para se encontrar. E a mudança dela acontecera pela via do amor. Maria, a neta inquieta, conseguira, afinal, trazer a paz de volta à aldeia. E tudo aquilo era mágico. 47
Mas este foi só o início de uma mudança maior e mais profunda, que continuará a crescer nos pequenos gestos e aprendizagens, com aqueles que a vida for juntando. Uma mudança da qual tu agora também fazes parte. Sim, TU. Se chegaste até aqui, é porque também fazes parte disto. Queres um planeta com águas limpas e solos regenerados, que sejam habitat de muitas plantas e animais? Um mundo onde todos se alimentem de forma mais saudável, com alimentos livres de pesticidas e herbicidas? Um mundo onde todos tenham mais saúde? Um mundo onde as gerações mais velhas transmitem os seus saberes às gerações mais novas, aprendendo também com elas a mudança? Um mundo de paz, onde todos reconhecem a importância do silêncio, do sonho e do trabalho em equipa? Estás preparado/a? 48
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