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Design Português Anos 70 3
Índice 4 6 10 14 28 34 38 42 46 4
Enquadramento Histórico Cronologia Design Português Anos 70 Design em Portugal Um tempo Um modo Crise e Design Anos 70 José Brandão E o design gráfico Cruz de Carvalho Criador da Altamira Sebastião Rodrigues Emancipação e influências estrangeiras Victor Palla Arquiteto, fotógrafo, pintor e gráfico 1
“Adparrore,, d 2
e, ncodmereapnandneheai-n“Aprendeanadar,companheiro,apren- hde a nadar companheiro/Que a maré se vai levantar, que a maré se vai levantar/ Que a Liberdade está a passar por aqui/ nque a Liberdade está a passar por aqui/ Maré alta, Maré Alta.” p aSérgio Godinho, letra da canção Maré Alta incluída no disco d,aaruceoma pmtaar,rqéOsSobreviventes,1971. 3
Enquadramento Histórico Embora seja possível identificar antecedentes do design em Portugal no contexto das grandes expo- sições oitocentistas e dos anos 1920-30, na Arte Nova e nas artes decorativas , na caricatura e ilus tração, nas artes gráficas e mes mo nalgumas ex- pressões das vanguardas artísticas da primeira metade do século XX (cf. Souto, 1991, 1992, 2000 e 2009; Santos, 1995 e 2000; Fior, 2005; Almeida, 2009; Martins, 2000; Lobo, 2009; Fragoso, 2012; Pinto, 2013), apenas a partir da década de 1950 surge na sociedade portuguesa “uma consciência mais clara do papel do design e do designer na so- ciedade, generalizada a um leque alargado de sec- tores: as indústrias, os projectistas, a instituições” (Souto, 1992: 26). O impulso inicial está estreitamente ligado à apos- ta do Estado Novo na divulgação internacional da indústria e comércio nacionais e na moderniza- ção, desenvolvimento e alargamento do mercado nacional, ao nível turístico, industrial e comercial (Pessoa, 2010; Almeida, 2009).6 Es tas iniciativas de divulgação e promoção do des ign, sobretudo industrial, resultaram nalgumas oportunidades pontuais de trabalho para designers em empresas nacionais (Almeida, 2009; Tostões e Martins, 2000). Há ainda uma gradual aproximação do design à arquitectura, surgindo novas preocupações com o mobiliário, arranjo de espaços exteriores e imagem gráfica (Tostões e Martins, 2000). Este estímulo inicial do Estado e do “mercado” foi acompanhado por uma profunda ligação do design português (sobretudo o gráfico) às artes plásticas. Deste modo, são frequentemente incorporadas nos trabalhos de design referências a movimentos artísticos de diferentes quadrantes: uns ligados ao Estado Novo (modernismo); outros próximos da re- sistência comunista (neorrealismo); outros ainda associados a formas de resistência contraculturais (surrealismo) (Almeida, 2009; Fragoso, 2012). Durante o Estado Novo, o ensino de design realiza- va-se em escolas técnicas e profissionais – a Soa- res do Reis, no Porto, e a António Arroio, em Lisboa, sendo frequentemente acompanhado por uma 4
design em Portugal, seja como disciplina científica, seja como profissão (Lopes, 2000). Dá-se a expansão da oferta de ensino profissional e superior em design, reflexo da crescente aposta nesta área, bem como do aumento do nível de es- pecialização (Gomes, 2003). Consequentemente, também o número de designers em Portugal au- menta de forma notável8, não tendo sido, contu- do, acompanhado por um igual ritmo de produção científica nesta área, que se revelou exígua até fi- nais do século XX. aprendizagem de cariz informal, em atelier, numa tradição iniciada em Portugal por Frederico Ge- orge, nos anos 1950. Assim, somente no contexto democrático é que o ensino do design se consoli- da em Portugal, com o surgimento, em 1975, das primeiras licenciaturas nas Escolas Superiores de Belas-Artes de Lisboa e Porto (Souto, 1991; Almei- da, 2009; Gomes, 2003).7 As décadas seguintes caracterizam-se por profun- das transformações que vieram alterar a sociedade portuguesa, em múltiplos e diversificados planos. É também neste contexto que se vai operar uma gra- dual expansão, consolidação e legitimação do 5
Cronologia Inauguração da Galeria Ogiva Foi criado o gabinete de Revolução de 25 de Abril em Óbidos design da CP - Caminhos de Criação dos cursos de Ferro Portugueses, liderado design nas escolas de Belas Manuel Rosa inicia a sua por José Santa-Bárbara artes de Lisboa e do Porto atividade profissional como A revista Binário dedica o responsável pela imagem e Joé Carlos Rocha fundou a número 190-91 ao Design grafismo da Assírio & Alvim Letra, Estúdio Técnico de Comunicação Visual. 1974 1971 1973 1970 1972 1.ª Exposição de Design II Exposição de Design Português, na fil em Lisboa Português, organizada pelo e no Palácio da Bolsa no Núcleo de Design Industrial Porto, organizada pelo do inii e pela Praxis na fil Núcleo de Design Industrial do Instituto Nacional de Foi criado o Ar.Co – Centro Investigação Industrial, e de Arte e de Comunicação pela Interforma Visual em Lisboa Saiu o primeiro número da revistaColóquio Artes dirigida por José-Augusto França 6
Constituíção a Associação Saiu o primeiro número da Portuguesa de Designers revista ArteOpinião Exposição 300 anos do Publicação de Caricaturas Cartaz em Portugal na Portuguesas dos anos de Biblioteca Nacional Salazar da autoria de João Abel Manta 1975 1977 1979 1976 1978 1980 José Brandrão cria a Foi publicado o desdobrável Fernando Coelho primeira imagem do Fetival O lugar do Design para redesenhou o Diário Internacional de Cinema da apresentação da apd de Notícias para a sua Figueira da Foz. passagem ao formato Sebastião Rodrigues tablóide Manuel Rosa inicia a sua desenha um cartaz sobre o atividade profissional como 25 de Abril para a Secretaria Foi impresso o primeiro responsável pela imagem e de Estado da Cultura jornal Correio da Manhã grafismo da Assírio & Alvim com a direcção gráfica inicial de Vítor da Silva 7
O design surge em Portugal em meados do século passado, desenvolvendo-se timidamente e sob um forte impulso do Estado Novo. A progressiva insti- tucionalização da disciplina dá-se no contexto de- mocrático, pós-1974. Desde então o design desen- volveu-se bastante em Portugal, a diversos níveis, acompanhando a tendência internacional que o tornou num elemento-chave da economia contem- porânea. Desde meados da década de 1990, tem- -se assistido à recuperação, seleção e divulgação da história do design em Portugal e de alguns dos 197seusprotagonistas. 8
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Design Português Anos 70 Do ponto de vista de uma compreensão do design quitetura à escala do cartaz, e que fazem a ponte em Portugal na década de 1970, o acontecimento para a segunda geração de designers nascidos nos que tende a marcar pelo menos os primeiros anos anos 1920 e 30, onde se destacam um conjunto de dessa década, sobretudo do ponto de vista da ins- gráficos inovadores como Sebastião Rodrigues, titucionalização e autonomização da disciplina, foi ele mesmo um profícuo colaborador do SNI, Victor a Quinzena de Estética Industrial que teve lugar no Palla, Fernando Azevedo, Lima de Freitas, Cândido Palácio Foz em Lisboa em 1965. A partir da Quinze- Costa Pinto, Câmara Leme, Armando Alves, alguns na conseguem-se identificar, em larga medida, as perpetuando a tradição de design total como Palla, intenções, os protagonistas e o ambiente que, em Sena da Silva, António Garcia, Daciano da Costa ou clima de primavera marcelista, catalisavam com um Paulo Guilherme. certo entusiasmo crítico o pequeno contexto do de- sign nacional. Quando no interior do INII – Instituto Nacional de Investigação Industrial é criado o Núcleo de Arte e Nos anos 1960, França (particularmente Paris) con- Arquitectura Industrial, estávamos em 1960, já as tinuava a ser a principal referência internacional aulas de Frederico George educavam há uma dé- para um pequeno grupo que, girando maioritaria- cada alunos no reconhecimento da autonomia do mente em torno de Frederico George, se revelava design. Os ateliers de Conceição Silva, Sena da interessado na institucionalização do design por- Silva e Daciano (criado em 1959) eram igualmente tuguês, seja pela via da industrialização, seja pela espaços de formação e discussão projectual, Nes- via do ensino. A noção de esthétique industrielle sa altura, já vários designers gráficos, na casa dos surgia, nesse contexto, devidamente teorizada por trinta anos, tinham reconhecimento interno e ex- Jacques Viénot que, durante a década de 1950, di- terno, como Sebastião Rodrigues e António Garcia, rigiu a associação e revista Esthétique Industrielle. ambos publicados, no início da década de 1960, no Who’s who in Graphic Arts, e finalmente já se ani- A corrente dos estetas industriais, como nos anos mava o contexto cultural português muito por via da 1970 ainda se apresentavam alguns designer por- renovação do meio editorial, sobretudo através da tugueses, não sendo hegemónica no Portugal de Ulisseia, mas também do meio literário e artístico, 60 e 70, possibilita-nos um certo mapear do con- do teatro e do cinema. Novos ares parecem respi- texto português de design da época. rar-se, coexistindo um neo-realismo consolidado com experiências de poesia experimental. Poucas Alguns dos mais notáveis representantes da pri- semanas depois de ter tomado posse, o novo go- meira geração do design português, e simultane- verno extingue o SNI (Secretariado Nacional da In- amente da segunda geração da arte portuguesa formação), acontecimento natural dentro da restru- moderna, permanecem ativos para além da saída turação dos aparelhos do estado levada a cabo por de António Ferro da direção do SNI e do progressi- Marcelo Caetano mas absolutamente simbólico do vo enfraquecimento da qualidade dos projetos (do ponto de vista da história do design português. design editorial ao design cenográfico passando pelo design de espaços, maioritariamente exposi- O início da década de 1970 é igualmente um pe- tivos, de natureza efémera) desenvolvidos por este ríodo de crescimento das galerias comerciais. Em organismo. 1962 existem em Portugal apenas 3 galerias (a Al- varez e a Divulgação no Porto; a Diário de Notícias São os casos de Bernardo Marques, Tom, Roberto em Lisboa). Em 1973 já havia 15 galerias em Lisboa, Araújo, Conceição Silva, José Espinho e do próprio 11 no Porto e perto de uma dezena em outras locais Frederico George (colaborador de António Soares no país, destacando-se a acção da Cooperativa Ár- nos anos 1930) todos eles designers totais com vore (criada em 1963) no Porto, a Bucholz e a Qua- capacidade para projetarem desde a escala da ar- drande (criadas em 1966) e a Galeria Ogiva 10
inaugurada em Óbidos em 1970 e cujo primeiro democrática, a revista Binário dedica o seu número catálogo constitui um dos objectos editoriais mais 190-91 ao Design. Dirigida por Aníbal Vieira e pen- interessantes da primeira metade da década. sada na perspectiva do design por João Constanti- no, é um número absolutamente anacrónico, num Em Abril de 1974, Daciano da Costa e José Cruz de discurso, ideologicamente neutro, que defende Carvalho assinam a escritura daquela que se pro- que “o design e o marketing devem articular-se na punha ser a maior e mais integrante empresa de obtenção de frutos, procurarem assegurar a melhor design em Portugal: a Risco. Mas com o 25 de Abril aceitação do processo industrial em curso.” de 1974 e o processo revolucionário decorrido en- tre 1974 e 1976, a vida política, social, económica Em Lisboa, no Porto ou em Coimbra, os três prin- e cultural portuguesa altera-se radicalmente. Entre cipais polos dinamizadores do design português, 1974 e 1982, data da exposição Design & Circuns- é à geração de 40 que ganha protagonismo. A par tância, Portugal é marcado com um complexo pro- de nomes já consolidados na primeira metade da cesso político: o golpe de estado militar de 25 de década como José Brandão, a segunda metade da Abril de 1974; uma revolução política e social en- década reforça ou projecta uma série de outros tre 1974 e 75; uma contra-revolução democrática designers na casa dos 30 anos: Cristina Reis (com entre o final de 1975 e 76 ano em que se aprovou 29 anos por altura do 25 de Abril), Carlos Rocha a Constituição, realizaram-se eleições legislativas, (31 anos) e, no Porto, Dario Alves (34 anos), Jorge presidenciais e municipais e foi formado o primeiro Afonso (34 anos), João Machado (32 anos) e Beatriz governo democrático; um período de normalização Gentil (32 anos). democrática até à revisão da constituição em 1982. Com a gradual consolidação do ensino, em 1976 a Com o pós-25 de Abril a vasta nacionalização de tão discutida e anunciada Associação Portuguesa sectores produtivos e empresariais, associada ao de Designers é constituída. A lista de sócios funda- fim das exportações para África e ao a Portugal 650 dores reflete uma nova ordem no design português, 000 portugueses vindos das ex-colónias deixa o notando-se as ausências, por razões ideológicas país numa asfixia económica só ultrapassada com ou pessoais, de Victor Palla, Paulo Guilherme ou a chegada dos apoios europeus após efectivada a João Constantino e por razões, dir-se-iam discipli- integração na CEE – Comunidade Económica Euro- nares João Abel Manta, e a presença da principal peia em Janeiro de 1986. figura transgeracional, que faz a ligação possível entre a geração-SNI e a geração do novo design Por outro lado, a revolução trouxe a oportunidade português: Sebastião Rodrigues. Os outros sócios de uma maior intervenção democrática por parte fundadores foram: José Brandão, Rogério Ribeiro, de artistas e designers, ao mesmo tempo de politi- Fernando Libório Pires, Madalena Figueiredo, Da- zou os discursos e mobilizou ideologicamente prá- ciano da Costa, Robin Fior, Américo Silva, Carlos ticas e linguagens. Trazer a arte e o design para a Rocha, Luís Carrolo, Salette Tavares, Vítor Mana- rua não foi, contudo, iniciativa apenas de artistas e ças, Armando Alves, António Nunes, Ana Tainha, designers. Foi, sobretudo, um processo que mobili- José Santa Bárbara, Beatriz Gentil, Maria Assunção zou autores anónimos, que inspirou o que Umberto Vitorino, Sena da Silva e António Garcia. Eco chamara de guerrilha semiológica, a encherem os muros e as paredes com inscrições, pinturas morais e grafitis e a utilizarem democraticamente os materiais impressos, sobretudo cartazes e pan- fletos, tornando as ruas numa meio, vivo e dinâmi- co, por vezes caótico, de comunicação. Em Julho/ Agosto de 1974, três meses depois da revolução 11
Sebastião Rodrigues - Designer 12
“ Em 1974 são criados os cursos de design nas escolas de Belas Artes de Lisboa e do Porto. O sur- gimento dos cursos de design gráfico, associado ao contexto social da segunda metade da década, conduz a um desaceleramento dos projectos de design de interiores e de design industrial (a Lon- gra extingue-se; Conceição Silva alvo de tentativa de assassinato parte para o Brasil; o atelier de Da- “ciano Costa conhece acentuada retração) e a uma nova energia, vinda sobretudo do sector cultural, dos trabalhos gráficos. Fonte desconhecida 13
Design em Portugal Um Tempo Um Modo Há dois “objectos” exemplares no despertar do per- curso de institucionalização do design em Portugal, bem como no encontro desta geração de designers com o ‘novo modernismo’, em resposta às transfor- mações operadas no Modernismo: o livro fascicula- do LISBOA “Cidade triste e alegre” de Victor Palla e de Costa Martins e a revista Almanaque, ten- do ambos o ano de 1959 como início de publicação. O livro de Victor Palla e de Costa Martins é o regis- to de um trabalho que ecoa os sons do neo-realis- mo, ora de forma naïve, no perfeito conhecimento do território e das expe- riências tradicionais, ora de forma subtil, no modo como reproduz o ‘olhar’ contempo- râneo que vinha, sobretudo, de Cartier Bresson, de Robert Frank (The Americans, 1958), do realismo americano e do cinema contempo- râneo. Por sua vez, a Almanaque surge como res- posta do editor Figueiredo Magalhães ao facto de terem censurado o projecto da revista A Semana. Magalhães, com José Cardoso Pires, apresentam um novo projecto e contornam o lápis-lazúli da cen- sura com a Almanaque, apesar da corrosibilidade dos textos delineados num ambiente particular- mente criativo: “de manhã [iam] diluir o ál- cool da véspera e, no fim da tarde, encontravam-se, como num café, para pôr em dia os boatos e as conspira- ções correntes” (Oliveira, 2006). Com a revista Almanaque, em ambiente de co-edi- ção com os escritores, autores dos textos e gráfi- cos, colaboraram Sebastião Rodrigues, Abel Manta (1888-1982), Alexan- dre O’Neill, José Cardoso Pi- res, Luís de Sttau Monteiro (1926-1993), Augusto Abelaira (1926-2003) e outros, naquilo que se tor- nou uma referência estética, criativa e ética pre- cursora de uma tendência cultural cosmopolita que emergia em Portugal. A relação de Sebastião Rodrigues com a Almana- que insere-se nesse espírito, cujo las- tro vem das gerações de modernistas que a partir da chegada ao país de Fred Kradolfer (1927), foram encontran- do formas para uma criatividade específica – a do artista gráfico (Cf. Tavares, 1995). A fenomenologia da criatividade em Sebastião pressupunha a inves- 14
tigação e a experimentação, até à exaustão, da ma- téria comunicacional na sua relação com o sujeito e com o objecto. À semelhança da Almanaque, destaca-se, também, um ‘objecto’ igualmente relevan- te para o panora- ma da arquitectura e do design que é a revista Bi- nário. Com início da publicação em 1958, sob a di- recção de Manuel Tainha (n. 1922), a revista debate a inca- pacidade do discurso do Movimento Moder- no de entender a importância das narrati- vas locais. Com a saída, em 1961, do Inquérito à Arquitectura Popular, promovido pelo Sindicato Nacional dos Ar- quitectos, surge a possibilidade dos arquitectos co- meçarem a olhar e a entenderem a paisagem cons- truída na sua dimensão cultural, social, económica e ambiental. Apesar da receptividade ao Inquérito não ter sido expressiva, a revista Binário e alguns nomes da arquitectura, acreditaram que residia no interesse antropológico e sociológico, i.e., cultural pela produção das pequenas comunidades, a nova vocação da actividade criativa. Esta predilecção dos arquitectos mais jovens pelo imaginário popu- lar insere-se naquilo que Frampton (1980) designa por “regionalismo crítico”68. 15
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Revista Binário - arquitectura 17
“ “O consumidor pode contentar-se com um produ- to menos bom, se não conhecer melhor; e é ao de- sign que compete, continuamente, procurar esse “melhor que proporcione maior satisfação àqueles a quem se destinam esses produtos.” Fernando Seixas 18
Podemos dividir o percurso do design em Portugal em dois períodos: um situado entre os anos sessen- ta e meados de setenta e outro (já fora dos limites cronológicos deste trabalho), que tem o seu ponto de partida nos finais dos anos oitenta, princípios de noventa. 1º O primeiro período integra aquelas que considera- mos ser a primeira e segunda gerações de desig- ners portugueses. A primeira geração é constituída por os que nasceram entre 1925 e 1930 e a segun- da, por os que nasceram entre 1935 e os primeiros anos da década de quarenta e, ainda, por aqueles que, nascidos em finais do anos quarenta princípio de cinquenta, vão também dedicar a sua actividade ao design. O segundo período, que, como dissemos, se encon- 2º tra fora dos limites cronológicos do nosso trabalho, terá como protagonistas os licenciados pela Esco- la Superior de Belas Artes de Lisboa, que iniciam a sua actividade profissional já nos anos noventa. 19
No primeiro período considerado, temos dois acon- tecimentos importantes a delimitá-lo: a 1ª Quinzena de Estética Industrial (1965), por ter sido a primeira iniciativa com visibilidade organizada pelo INII, e a 2ª Exposição de Design Português (1973), por ter sido o último evento ligado ao design antes de Abril de 1974. Podemos, no entanto, encarar como pa- râmetros mais definidores da evolução do design português deste período dois outros acontecimen- tos: a 1ª Exposição de Design Português (1971) e a Exposição Design e Circunstância (1982) realizada pela Associação Portuguesa de Designers (APD). A Exposição de 1971, porque pela primeira vez se reúne numa iniciativa deste tipo muitos daqueles que, nesse tempo, se dedicavam à actividade do design; a de 1982, porque de certa maneira encer- ra esse período, o que, aliás, é confirmado pelos seus organizadores quando exprimem no catálo- go a intenção de “glosar alguns motes sugeridos pelas primeiras Exposições de Design Português, tratando-se de uma manifestação relativamente conformista, em que são apresentados alguns dos exercícios com que os designers têm de se confor- mar para assegurar a sua subsistência.”1 Nela esti- veram presentes, para além de alguns (poucos) que não estiveram representados nas exposições ante- riores, os que voltaram a Portugal depois do 25 de Abril de 1974 e que iniciaram as suas actividades na Grã-bretanha. Em Portugal, para além de um grupo restrito de pessoas, só a partir dos anos 60 se começa a fa- lar de design, quando o então chamado Núcleo de Arte e Arquitectura Industrial (só mais tarde se pas- sou a denominar Núcleo de Design Industrial) do INII2, dirigido pela escultora Maria Helena Matos, e do qual tinha sido primeiro director o arquitecto Rui Guerra, O INII foi criado em finais dos anos 50, tendo “[...] a sua instalação [vindo] a concretizar-se no início do período de vigência do II Plano de Fomento (1959- 64) do qual fazia parte como um dos instrumentos de uma política industrial que se anunciava mais activa. [...] “Cabiam a este instituto as funções de ‘promover, auxiliar e coordenar a investigação e a assistência que interessam ao aperfeiçoamento e desenvolvimento industrial do País.’” José Tor- res Campos, in Instituto Nacional de Investigação Industrial (INII), p. 485. O INII teve como primeiro director e principal dinamizador o engenheiro An- tónio Magalhães Ramalho. Maria Helena Matos nasceu em Lisboa no ano de 1924, frequentou a EADAA onde tirou o curso de Pintura Cerâmica e, a partir de 1945, é mestra de cerâmica da mesma Escola. Frequentou o curso de Escultura da ES- BAL, diplomando-se em 1945. Foi bolseira da FCG (1958-1959) com o propósito de estudar, na Mari- nha Grande, as possibilidades de renovação dos 20
objectos em vidro. Colabora, a partir de 1959, com a Fábrica-Escola Irmãos Stephens, colaboração que se intensifica a partir de 1969. Em 1960 entra para o INII, assumindo a direcção do Núcleo de De- sign de 1969 a 1976 em substituição do arquitecto Rui Guerra. À frente do Núcleo teve papel significa- tivo para a divulgação do design em Portugal. Tomou-se algumas iniciativas no sentido de dar a conhecer uma actividade que considerava significa- tiva para o desenvolvimento e inserção da indústria portuguesa nos mercados internacionais. Constitu- íram a equipa do Núcleo, em diferentes períodos, Alda Rosa (1936), Cristina Reis (1945), Conceição Espinho, Eduardo Sérgio (1937), José Santa-Bárba- ra, Margarida Reis (1947) e Regina Andrade. Assim, a partir de meados dos anos sessenta, as iniciativas levadas a cabo no campo do design estão ligadas a algumas modificações operadas na política econó- mica portuguesa, o que é confirmado por António Amaro de Matos, presidente do Fundo de Fomento de Exportação, num dos textos publicados no ca- tálogo da 2ª Exposição de Design Português, ao falar da necessidade “[…] de um serviço de apoio à indústria exportadora nacional […] em perfeita ar- ticulação com os próprios industriaisexportadores, e tendo em vista a análise e captação dos grandes mercados externos.” No mesmo sentido vão outras afirmações feitas no referido catálogo, como as contidas num pequeno texto em que se analisa e justifica a exposição. É preocupante o facto de es- cassas afirmações continuarem válidas passados que são quase trinta anos em que se operaram pro- fundas modificações políticas, sociais e económi- cas, no Mundo e em Portugal, tais como a de que o design pretende responder “...a problemas mais sérios que o alinhamento gratuito ou a competição comercial do equipamento doméstico,” ou que o “design é uma actividade que compromete indiscri- minadamente tanto os industriais, quanto os qua- dros técnicos, os responsáveis políticos, consumi- dores ou os profissionais do design [...] O design que há reflecte a responsabilidade de todos eles. Alguns dos produtos apresentados constituem hoje ícones da história do design, dos quais subli- nhamos produtos projectados por designers tão significativos como os finlandeses Timo Sarpaneva (1926) e Tapio Wirkkala, o francês Roger Tallon e o italiano Marcello Nizzoli. Dos portugueses citare- mos a presença de Cruz de Carvalho, de Daciano da Costa e do Gabinete de Estudos das Constru- ções Metalomecânicas Mague, com direcção do engenheiro A. Sousa Catita, que apresentava, em projecto e documentação fotográfica, os guindas- tes portuários em produção desde 1963. 21
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Anúncios portugueses anos 70 23
“ No período de transição após os anos de revolu- ção de 1974-76, em 1977 instituiu-se a democracia em Portugal. Nas ruas, respirava-se o ar da liber- dade. E com ela veio a Coca‑Cola, como publicou o então Diário de Lisboa com o título “Começou a distribuição da Coca‑Cola” Começava, então, a “distribuição de Coca‑Cola na Grande Lisboa. No Porto, apenas passado uma semana e, após quin- ze dias, no Algarve. Fonte desconhecida 24
Anúncio com a chegada da Coca-Cola a Portugal 25
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Compilação de selos dos anos 70 27
Crise e Design Anos 70 Se há uns dez anos muito pouca gente (para além para dar a ideia que o velho regime era moderno dos portugueses) sabia que Portugal existia, agora e progressista, através de grandiosas exposições, qualquer pessoa minimamente atenta o conhece. campanhas e publicações de propaganda, mas O problema é que também conhece a Grécia, a Ir- também no sentido oposto, como uma forma de landa e a Islândia. Portugal é um país que não só resistência ao regime, tentando produzir uma es- está em crise (sempre esteve, de uma maneira ou tética inclusiva, que trouxesse qualidade de vida a outra) como é a própria crise, ou pelo menos um todos e não apenas às elites. Foi durante estas qua- dos seus campos de batalha. Quando se escreve tro décadas que surgiram nomes clássicos como um artigo sobre o design num país, numa cidade Sebastião Rodrigues, Vitor Palla, Paulo Guilherme, ou numa década há sempre uma lista comentada Fred Kradolfer ou Thomaz de Mello, Daciano da de nomes, de designers, de estúdios, de publica- Costa e Sena da Silva. ções. Neste caso, é preciso ter a consciência que todos eles estão, neste preciso momento, a lidar Com o fim da ditadura, em 1974, o design ganharia com uma reestruturação violenta da economia e da a nova função de produzir a identidade de um país própria sociedade portuguesa. que se vira para a Europa, para a tecnologia, para os serviços. O design de equipamento e de produto O que tem a crise a ver com o design? Muito. O seria uma forma de tornar o tecido industrial portu- design é uma actividade económica, um serviço guês, até então consituído por pequenas fabrique- prestado a outros serviços. Não havendo muito di- tas quase artesanais, em algo competitivo. O pró- nheiro, será uma das primeiras coisas a cortar. Em prio design gráfico vai deixando de ser uma espécie Portugal, o design mais interessante das últimas dé- de gestão estética do processo industrial que era cadas tem sido feito para a cultura e esta depende a impressão em tipografia para se ir tornando num em grande parte do apoio do Estado, que também serviço, a gestão interna e externa da comunicação costumava ser o melhor cliente que um designer e imagem de instituições e empresas. podia ter em Portugal. Da política local aos grandes eventos e instituições de alcance internacional, o Durante as décadas seguintes, apesar do objecvo Estado assegurava um fluxo regular de encomen- de fundo para o design português ser sempre a das a toda uma legião de profissionais. Mesmo que criação de uma imagem moderna para a indústria não se trabalhasse directa ou indirectamente para exportadora, o que foi conseguido dentro do design o Estado, era comum complementar-se o trabalho de equipamento e de produto, com criadores como comercial com o ensino da profissão em escolas, Fernando Brízio e Marco Sousa Santos, os maiores politécnicos e universidades. Porém, os últimos estúdios de design gráfico – Henrique Cayatte, Sil- governos têm tentado combater a crise económica va! Designers, B2, entre outros – trabalham sobre- através de ferozes políticas de austeridade, cortan- tudo para o Estado, produzindo a imagem gráfica do radicalmente na despesa pública. Cortando no de eventos culturais e institucionais, logótipos e Estado, corta-se no design e no seu ensino. Assim, campanhas publicitárias para repartições, museus devido à crise, o design português tem sido obriga- e ministérios. Se a peça central da identidade cor- do a mudar drasticamente os seus hábitos e a sua porativa é o logótipo, o Estado português, logótipo própria identidade. a logótipo, vai ficando cada vez mais parecido com uma empresa. O design foi e ainda é um dispositivo Em Portugal, o design ainda é uma actividade nova. central na deriva neoliberal que acabaria por levar Só começou a ser ensinado nas universidades na o país e a Europa à crise económica. Pelo caminho, década de 1970. Nessa altura, tentou-se fazer dele iria perdendo os seus ideais sociais, de trazer quali- uma estratégia crucial na modernização de um país dade de vida às massas, tornando-se num sinónimo rural, atrasado, a sair de quase quatro décadas de de luxo e empreendedorismo privado. O computa- ditadura. Já havia algum design no país, sobretudo dor e mais tarde a internet desempenharam um 28
papel fundamental nestes processos. Reduzindo tels, muitos deles criados e mantidos por designers, os custos de produção, qualquer pequeno negócio, artistas e arquitectos. As dimensões reduzidas da mesmo empresas de uma pessoa só, podia agora bagagem de mão ditam os produtos mais bem su- ter design. De grandes ateliers com dezenas de cedidos – comida, bebida, roupa, música, mas tam- colaboradores vai-se passando para o modelo do bém publicações de pequeno formato, dedicadas designer solitário com o seu portátil, trabalhando ao design, à fotografia e à ilustração, que, não usan- em casa ou, mais frequentemente, como uma es- do muito texto, são facilmente consumíveis por um pécie de secretário gráfico em empresas que não público internacional. Na cidade abriram três gale- têm nada a ver com design. Ao lado de estúdios de rias dedicadas à ilustração, a Dama Aflita, a Ó! Gale- pequenas dimensões como a Drop Design, os R2, ria e a Mundo Fantasma. Estes espaços permitem Martino e Jaña, Barbara Says, os Bolos Quentes e a novos e velhos ilustradores mostrarem (e vende- os VivóEusébio, começam a aparecer designers rem) o seu trabalho. Embora muitos ilustradores solitários como Vera Tavares, Pedro Nora, Manuel portugueses, como André Carrilho, João Fazenda, Granja ou Rui Silva, e também profissionais que João Maio Pinto, André da Loba, publiquem com trabalham dentro das hierarquias de empresas regularidade em jornais e revistas internacionais – e instituições de maior dimensão, sem com isso New York Times, Vanity Fair, Esquire, etc. – em Por- perderem qualquer capacidade criativa. Um bom tugal, os jornais usam cada vez menos o desenho exemplo da tendência é Márcia Novais, a designer preferindo a fotografia. da Faculdade de Belas Artes do Porto, que para além de assegurar todos os cartazes e material Depois da crise, a tendência para exportar o design gráfico da instituição, tanto a sua concepção como acentuou-se. Com o corte da despesa pública, não por vezes a sua execução em serigrafia, ainda con- há encomendas locais, e muitos designers viram- segue tempo para comissariar exposições de de- -se para novos mercados como Angola, uma antiga sign e de artes plásticas. Ganha pouco mais do que colónia africana com uma economia em expansão o salário mínimo e trabalha mais de 40 horas por graças ao petróleo. Trabalham a partir de Portugal, semana mas o seu trabalho aparece regularmente produzindo identidades corporativas, livros, manu- em sites de design e revistas internacionais como a ais escolares, etc. Os próprios designers portugue- Print. São estes contrastes que se tornaram típicos ses têm circulado com cada vez mais à vontade, à dentro do design português. procura de emprego e de oportunidades. Não é tan- to uma emigração como uma migração permanen- Rapidamente, estes jovens designers descobririam te, sustentada pelas viagens de avião relativamente que, se foram treinados na escola para produzirem baratas. Alguns trabalham em ateliers internacio- a identidade gráfica de uma empresa, o seu logóti- nais ou criam as suas próprias firmas: na Holanda, po, o seu site e a sua publicidade, e se enquanto fre- Susana Carvalho formou, com o designer e criador elancers e estagiários aprendem a organizar-se a de fontes Kai Bernau, o estúdio Carvalho & Bernau; si mesmos como se fossem empresas, pouco mais em Londres, Pedro Cid Proença é um dos edito- precisavam para se tornarem eles mesmos peque- res da revista Circular, para além de colaborar em nos empresários. vários projectos com nomes históricos do design como Richard Hollis; em Berlim, Maria Nogueira, E tem sido isso de facto que aconteceu. Com a cri- depois de ter passado pelo estúdio nova-iorquino se, são cada vez mais os pequenos negócios cria- de Stefan Sagmeister, produz ilustração e filmes dos e geridos por designers: restaurantes, linhas de animados. Todos estes designers fazem regular- produtos biológicos, gurmê ou de luxo. Na cidade mente design para eventos, publicações e objectos do Porto, no Norte do país, que vive agora um boom portugueses, mantendo uma ligação muito forte. de turismo, a tendência é perfeitamente visível. O turismo low cost é sustentado por dezenas de hos- 29
Apesar dos sucessivos cortes orçamentais, o ensi- no do design atingiu a maturidade no final da dé- cada de 1990, quando começaram a ser criados mestrados e doutoramentos na área. A critica e a escrita regular sobre design também se tornariam comuns, tanto como resultado da investigação aca- démica, divulgada em comunicações nacionais e internacionais, como em blogues, conferências, ex- posições, debates e revistas. Nesta produção, des- taca-se a escrita de Frederico Duarte ou a de José Bártolo, que nos últimos anos tem editado a revista de arte e design Pli. O grande evento do design por- tuguês tem sido a bienal Experimenta Design, ape- sar de um percurso polémico marcado tanto por gastos considerados excessivos como por cortes orçamentais repentinos, que já quase a forçaram a encerrar. Neste contexto de investigação e reflexão públicas, o passado do design português começa a ser in- vestigado em profundidade pela primeira vez, não apenas com as ferramentas da História mas usan- do o próprio design enquanto metodologia. Dino dos Santos, por exemplo, cria as suas fontes, usa- das em jornais como o New York Times, a partir de um conhecimento profundo da história da tipogra- fia e caligrafia portuguesas. O director de arte Jorge Silva, que já trabalhou em jornais nacionais como o Público, tem usado a sua experiência a dirigir o trabalho de designers, ilustradores, editores e es- critores para produzir a Colecção D, uma série de livrinhos dedicados a designers portugueses. O es- túdio Joana & Mariana tem comissariado inúmeras exposições sobre a história do design português, as suas figuras e as suas publicações. O colectivo Barbara Says tem feito um trabalho de investigação e recuperação da obra de Paulo de Cantos, um auto-didacta da tipografia próximo tanto do moder- nismo da Bauhaus como do delírio dos dadaístas e futuristas, cujo trabalho, feito entre a década de 1910 e a de 1970, tinha caído num esquecimento quase total. Muitos destes designers têm participado de uma tendência internacional ligada à edição experimen- tal, criando publicações e revistas usando técnicas tradicionais de impressão de escritório, stencil, im- pressoras Riso, etc. Pequenas editoras como a Bra- ço de Ferro, ou a dupla Sofia Gonçalves e Marco Ballesteros,¹ produzem publicações intrincadas, às vezes quase abstractas, outras quase enciclopédi- cas. Em alguns casos, como o da Oficina Arara e do jornal Buraco, uma publicação que muda de forma- to a cada número, o objectivo é a denúncia da situ- ação politica, usando para isso também cartazes, t-shirts, etc. De resto, tornou-se comum encontrar nas constan- tes manifestações contra as políticas de austerida- de cartazes, símbolos e slogans concebidos por 30
Victor Palla - Designer 31
Revolução dos Cravos - 25 de Abril de 1974 32
Esta é a madrugada que eu esperava O dia inicial inteiro e limpo Onde emergimos da noite e do silêncio “ E livres habitamos a substância do tempo “Sophia de Mello Breyner Andresen 33
José Brandão E o design gráfico Aos dois anos, veio para Lisboa, onde cresceu num ria de La Salette Tavares Aranda, também ela desig- ambiente familiar cultural e eclético, com uma vi- ner, com quem partilha a vida familiar e profissional. são integradora do conhecimento ainda que muito em torno das humanidades e das artes, ao mesmo Em 1976, após a Revolução de 25 de Abril, regres- tempo que lhe era reconhecida a natural e exce- sou a Portugal e começou a trabalhar, como inde- cional aptidão para o desenho. Descobria, nessa pendente, em projetos de artistas que, como ele, altura, através da influência do universo fantástico reconquistavam a voz que a censura lhes proibira de Hieronymus Bosch (c. 1450-1516) e da obra de Dessa altura, muito marcada pela combinação en- Francisco de Goya (1746-1828), o gosto pelo de- tre design e desenho, ficaram as capas dos discos senho, criando paisagens surreais povoadas de de José Afonso, Sérgio Godinho, Fausto, Janita Sa- monstros avassaladores e ameaçadores que, de lomé ou dos livros publicados pela P&R (Perspeti- tempos a tempos, voltam a emergir num universo vas e Realidades), como a de O triunfo dos porcos, criativo muito próprio. de George Orwell. Por isso, aos dezasseis anos, ingressou na Faculda- Também nessa altura, no contexto da fundação da de de Belas-Artes, ao mesmo tempo que começava Associação Portuguesa de Designers, em 1976, a trabalhar em ateliers de arquitetura e a fazer as conheceu Sebastião Rodrigues, com quem man- primeiras incursões no domínio das artes gráficas. teve um Dando provas de uma originalidade capaz O convívio com Frederico George Rodrigues, sobri- de levantar o sobrolho aos melhores ilustradores da nho do arquiteto Frederico George, e com Daciano nossa actualidade, José Brandão (nascido em 1944) Costa, em confronto com o academicismo fasci- regressou duma prestigiada escola de design lon- zante da Faculdade, despertaram-lhe o gosto pelo drina para marcar os anos 1970 portugueses com design, uma disciplina ainda emergente em inícios capas de livros e discos ou cartazes, eles próprios da década de 1960. determinantes da década. Refiro-me a Os Passos em Volta de Herberto Helder (1970), O Triunfo dos Em 1966, a situação política do país e, em particu- Porcos de George Orwell (1976), Por este Rio Aci- lar o conceito da arte como atividade elitista e, em ma de Fausto (1982), Coro dos Tribunais de José certa medida, fútil e mercantil, em absoluta contra- Afonso (1975), Pano-Cru de Sérgio Godinho (1978), dição com as suas convicções, motivou-o a partir e do festival de cinema da Figueira da Foz de 1978. para o estrangeiro. Depois de uma breve estadia Foi assim o início duma longa e singular carreira, em Paris, fixou-se em Londres, onde estudou no que este livro de 400 páginas agora regista, comen- Ravensbourne College of Art and Design, como ta e elogia. bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, obten- do o grau de B.A. em Design Gráfico, com a clas- Publicado pela mesma Fundação Calouste Gul- sificação máxima, que lhe permitiu a creditação benkian que lhe concedera uma bolsa para estar como Licenciate pela Society of Industrial Artists em Londres de 1967 a 1970, e à qual prestou depois and Designers (atualmente, Chartered Society of serviços relevantes, o livro tem coordenação de A. Designers). Teve como professor, entre outros, Ge- Jaime Ceia, mas foi construído pela mão mais ou offrey White, um dos signatários do manifesto First menos invisível do próprio José Brandão, que con- things first [1], e recebeu a influência de designers fiou a concepção gráfica à sua principal discípula e como Ken Garland e Tadanori Yokoo e do Push Pin colaboradora, Teresa Olazabal Cabral, e assina uma Studios, fundado em 1954 por Milton Glaser e Sey- página final de agradecimentos a colaboradores «e mour Chwast, e que se mantêm como referências a todos os clientes e amigos». O «egocentrismo» constantes ao longo de toda a sua carreira. E é ain- da publicação — aceitável num «livro-testamento» da durante a estadia em Londres, que convive com como este — é ainda reforçado pelo facto, inespe- os artistas portugueses em diáspora e conheceMa- rado numa obra de crítica, que ele também é, de o 34
prefácio ser assinado por Jorge Sampaio, um amigo ração SPN», a que Mário Moura chama grosseira- de longa data que enquanto presidente da repúbli- mente «protodesigners»!, p. 151), cujo trabalho final ca o distinguiu como grande oficial da Ordem do para a Fundação Gulbenkian ele pôde acompanhar Infante D. Henrique, mas nada disso enfraquece a de perto. Sebastião havia sido nas décadas 1960-70 relevância do livro, em que sobressaem os ensaios um caso raro de maestria oficinal, cuja fecundidade dos jovens professores e historiadores de design é ainda hoje digna da maior admiração e espanto. José Bártolo e Mário Moura, protagonistas centrais Brandão não pode ser considerado herdeiro directo da actual tentativa de credibilização e problemati- e exclusivo de Rodrigues — nem creio que se ava- zação do trabalho e da função dos designers. lie como tal —, mas recebeu dele em primeira mão lições fulgurantes, que o tornariam um organizador A idêntico propósito dedicou, de resto, José Bran- visual de particular excelência, orquestrando como dão não poucas energias ao longo de décadas en- poucos materiais variados para um efeito erudito. quanto fundador da associação portuguesa dos O desdobrável do Museu Gulbenkian «Queda e as- mesmos e professor, tornando-se sem dúvida uma censão da estética clássica», de 1987 (pp. 268-69) figura central da história do design gráfico portu- podia ser uma obra dos dois, e Alma Africana, de guês (desenhou até, em 2003, a série de selos pos- 2009 (pp. 360-61), para o Museu Berardo, também. tais «Design em Portugal»…). Como o livro explici- A ousada lição de Sebastião reaparece ainda, em ta claramente, até em depoimentos dos próprios, homenagem, diria eu, na capa de At the Edge: A odesigner-professor atraiu ao seu ateliê B2 alguns Portuguese Futurist, Amadeo de Souza-Cardoso dos seus melhores alunos na Escola de Belas-Artes (1999), que nos lembra uma capa feita pelo amigo ou na Faculdade de Arquitectura, com eles co-as- para um livro sobre Almada, identificado apenas sinandosinando um elevado número dos muitos por um auto-retrato dele (Acarte, 1985), ou até na trabalhos que lhe foi dado realizar. Essa partilha sobrecapa sem letras de O Mundo de Ruben A. coincidiu com uma época propícia ao laboratório (1996), e pelas mesmas razões. contato muito pró- contínuo que o trabalho criativo de design afinal é, a ximo até à sua morte. Não sendo propriamente um da introdução do desktop publishing, que veio per- discípulo de Sebastião Rodrigues, a quem conside- mitir que os olhos de vários criadores associados ra como o maior talento da sua geração, acaba por avaliassem num único ecrã as progressivas aproxi- lhe suceder no prestígio e relevância, mantendo mações ao resultado final dum produto, melhoran- os mesmos padrões de rigor e qualidade nos tra- do-o exponencialmente. A essa imensa revolução balhos e seguindo-o na profunda convicção acerca de tecnologia e métodos de trabalho somaram-se daquilo que distingue o trabalho do designer pro- duas circunstâncias inesperadas e benfazejas: um fissional. tempo de vacas gordas para museus e novas insti- tuições culturais, como a Comissão dos Descobri- A carreira de designer completa-se através da pe- mentos Portugueses (1986-2002), e o transbordar dagogia que sempre exerceu como se essa fosse a consequente de uma enorme cornucópia de admi- sua forma natural de estar e de ser. É Professor, para ráveis fundos patrimoniais, até então praticamente lá de qualquer título que lhe seja atribuído, porque ocultos, e que pediam exposição e publicação grá- é assim que é, com um discurso onde a convicção fica amadurecidas para que se deixasse para trás, se alia a uma extrema cordialidade. E é Emérito no de uma vez por todas, a desgraça visual que haviam sentido mais lato do termo, em que se misturam os sido as edições da XVII Exposição Europeia de Arte, sentidos de versado e perito, de ilustre ou egrégio, Ciência e Cultura (1983). aquele que sabe e é admirado pela sabedoria que transmite. José Brandão foi particularmente decisivo nessa re- novação essencial, colhendo os ensinamentos de Sebastião Rodrigues (descendente virtuoso da «ge- 35
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Compilação de obras de José Brandão 37
Cruz de Carvalho Criador da Altamira Contemporâneo e membro de uma importante ge- ração da disciplina do design em Portugal, é co-fun- dador do Atelier Risco de Daciano Costa durante a década de 1970, e foi correligionário do recente- mente falecido António Garcia, de Nuno Portas, de Conceição Silva ou de Eduardo Afonso Dias. Com o seu trabalho, pôs em prática pela primeira vez em Portugal “uma política integrada e coerente de design a nível empresarial”, segundo o investi- gador Diogo dos Santos Coelho, citado pela Lusa. Santos Coelho, autor de uma tese de mestrado de 2013 sobre o percurso de Cruz de Carvalho, defen- de que o designer “contribuiu para a identidade do design português”, com uma “obra pioneira rele- vante e premiada”. O seu nome não será, contudo, mais conhecido do grande público do que o das lojas e marcas que fundou (sempre com sócios) - criou a marca Alta- mira em 1955-57 e uma década depois a Interfor- ma. Segundo o designer Carlos Rocha, colaborador de Eduardo Anahory e docente, “Cruz de Carvalho é muito importante. Começa na Altamira e desen- volve não só a área projectual como também a área de negócio e de organização empresarial”, como disse a Victor de Almeida para a sua tese de 2009 O Design em Portugal, um Tempo e um Modo - A ins- titucionalização do Design Português entre 1959 e 1974. A partir de uma pequena e inicial fábrica na zona do Estoril, que depois ganharia maior dimensão indus- trial, a Altamira trabalhava sobretudo em madeira, um material de paixão para Cruz de Carvalho desde a sua frequência do Liceu Pedro Nunes - história contada no livro Altamira: 50 Anos, de José Manuel das Neves. A Altamira, cujo logótipo é desenhado por Cruz de Carvalho, distingue-se inicialmente na produção de sistemas modulares para o mercado doméstico mas também empresarial, com preços acessíveis mas também produzindo peças únicas e/ou à me- dida. Dividia, aliás, o tipo de mobiliário que fabrica- vam em três classes – muito simples e madeiras ba- 38
ratas para a classe um, mobiliário mais robusto pa- ção por ter participações nacionalizáveis. Cruz de raa classe média (dois) e mais autoral para a classe Carvalho afasta-se temporariamente da Interforma alta (três). Tudo para “alcançar maior amplitude de para depois continuar a trabalhar para a empresa clientela”, disse a Ana Encarnado. durante as duas décadas seguintes, primeiro atra- vés do Risco e depois em exclusivo. Na época, a influência do design escandinavo fez- -se sentir em Portugal mas Cruz de Carvalho garan- José Cruz de Carvalho foi ainda um dos fundado- tiu ao amigo e designer João Constantino que até res da Associação Portuguesa de Designers, em 1963 “nunca a Altamira importou qualquer móvel 1976, uma de duas associações representativas nórdico ou de outra origem”, defendendo a origem da profissão em Portugal, apesar de, como tantos portuguesa da marca durante a sua permanência membros da sua geração, ter começado por outras na empresa. artes. Era inicialmente conhecido como pintor – formado na então Escola Superior de Belas Artes A Interforma nasce então em 1967, mais de seis de Lisboa, actualmente a FBAUL –, tendo depois, e anos depois de ter abandonado a Altamira em dis- segundo a biografia patente na tese de Diogo dos cordância com a administração da empresa (que Santos Coelho, experimentado também a decora- viria a entrar em dificuldades e a renascer após o ção, a arquitectura, o desenho, a carpintaria, a do- 25 de Abril). Na Interforma, fundada em Lisboa e cência e foi até mestre-de-obras. com loja na Avenida Casal Ribeiro cujos interiores concebeu, os designers trabalham, coordenados Participou ainda na concepção de várias expo- por José Cruz de Carvalho, na concepção de mo- sições nos museus nacionais de Arte Antiga, do biliário para produção em série ou nas réplicas de Traje, e do Palácio da Ajuda, em Lisboa, e do paço clássicos. ducal de Vila Viçosa. A Associação Portuguesa de Museologia (Apom) atribuiu-lhe em 2013 o prémio É na esteira do trabalho da Interforma – que, se- de Personalidade do Ano. gundo a tese de Diogo dos Santos Coelho pôs em prática “novas filosofias de produção e design, com sucesso em Portugal e no estrangeiro” – que, em 1971, Cruz de Carvalho é o ideólogo, com o desig- ner João Constantino, da 1.ª Exposição do Design Português. Ambos foram curadores na mostra or- ganizada em plena Primavera Marcelista por Ma- ria Helena Matos, responsável do Núcleo de Arte e Arquitectura Industrial. Na antiga FIL na Lisboa ribeirinha, reuniram-se 67 designers e seus projec- tos para mostrar o que se fazia no sector e nesta disciplina emergente, associada ao tecido empre- sarial. O lema: O design como “democratização do útil-agradável, do útil-confortável que deixa de ser um privilégio de escóis [elites]”. Anos mais tarde cederia parte das suas quotas na Interforma, que segundo o próprio tinha até sido contactada pela sueca Ikea com vista a uma cola- boração - mas com preços demasiado baixos -, e que viria a ser gerida pelo Estado no pós-revolu- 39
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Altamira empresa de móveis decoração e artes plásticas de Cruz de Carvalho 41
Sebastião Rodrigues Emancipação e influên- cias estrangeiras Sebastião Rodrigues é o designer a quem a curta e aberta história do design em Portugal mais reco- nhece o mérito de ter sabido reinterpretar alguma iconografia tradicional em projectos de linguagem moderna. Por oposição ao folclore empacotado (Fior, 1995, p. 47), Sebastião Rodrigues procurou as fontes da verdadeira cultura tradicional que trans- formou em recursos gráficos com os quais compôs peças icónicas da história do design português. Sebastião Rodrigues reconheceu a tempo o ter- ritório onde vivia e trabalhava. Sabia também que ser culto é ser de um sítio. Sítio de onde se parte para outras terras que iremos ver com os olhos com que nascemos. (...) É na confrontação regular com o meio onde nascemos e no interesse permanente pelas coisas próximas e distantes, que podemos encontrar o sentido da cultura que vamos cons- truindo. (Sena da Silva, 1995, p.24) Foi de facto do interesse pelas coisas próximas e distantes que Sebastião Rodrigues fez derivar uma síntese revivificada entre tradição e contempora- neidade. A década de 50 permite-lhe viajar em tra- balho ao Brasil, Itália e Bruxelas. No final da década casa com uma cidadã finlandesa, país que visita em 1959. O mundo também lhe chega através de re- vistas, como a Perspectives, desenhada por Alvin Lustig, cuja linguagem virá a exercer uma grande influência no seu trabalho. Para além destas, Se- bastião Rodrigues declara ainda a influência de Victor Palla. A sua actividade enquanto designer gráfico come- çara em 1946. Dois anos depois inicia uma colabo- ração prolongada com o SNI. A partir do artesanato e da arquitectura regional constituirá um vastíssimo arquivo de referências gráficas que usará de forma sistemática desde essa altura, “nas suas interroga- ções às formas e ao tempo português. Símbolos, siglas, elementos totémicos, tudo isso viria depois a influenciar as suas composições, enriquecendo- -as de novidade e identificando-as ainda mais com a nossa tradição cultural.” (Pires, 1995, p.15) É pre- cisamente a esta novidade apontada por José Car- doso Pires que nos referimos quando utilizamos a 42
expressão emancipação para introduzir Sebastião Rodrigues nesta brevíssima digressão histórica. Ao serviço do mesmo SNI que edita a Vida e Arte do Povo Português, paradigma da estilização e instru- mentalização iconográfica ao serviço de uma ideo- logia política, vai tornar sua a linguagem tradicional, recusando a fórmula do estilo português programa- do por Ferro. Na geração modernista se há, e houve, a invenção nacional do folclore e do popular, bem no fundo, não há muito mais posto nisso do que a manifes- tação inventiva –e oportuna– de um gosto; mas, verdadeiramente, não haverá um crédito. Com Se- bastião Rodrigues há, a esse respeito e por respeito seu, acima de tudo, um crédito para essas catego- rias; não uma manipulação. O popular (a arte) e o folclore (os costumes) acedem, da superficialidade anteriormente imposta, ao valor dos mitos, isto é, passam a valer as imagens residuais, culturalmente profundas e assim justificadas, por si trazidas para a individualização e categoria dos sinais gráficos. (Fernando de Azevedo, 1995) Neste sentido diríamos que Sebastião Rodrigues é pioneiro da atitude que nos importa caracterizar. É uma motivação interior que o leva às origens. Não a espectacularidade de um programa político, não a superficialidade de um desígnio comercial, mas um desassossego íntimo com a raíz das imagens. 43
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Compilação de obras de Sebastião Rodrigues 45
Victor Palla Arquiteto, fotógrafo, pintor e gráfico Victor Manuel Palla e Carmo nasceu em Lisboa em 1922. Era filho de um caracterizador de Teatro e fo- tógrafo amador. Na capital, começou a estudar Arquitetura (1939), curso que veio a terminar no Porto, em 1948. Du- rante a sua estada na cidade Invicta dirigiu a “Gale- ria Portugália” (1944) e integrou as Exposições dos Independentes (1943-1950) com Fernando Lanhas e Júlio Pomar, entre outros. De regresso à capital, associou-se às Exposições Gerais de Artes Plásticas, entre 1947 e 1955, e à re- novação da Arquitetura nacional, ao aderir ao Estilo Internacional, em concreto à arquitetura brasileira. Snack-bar Cunha, PortoPublicou artigos teóricos e de divulgação em revistas como a “Arquitectura”, que começou a dirigir em 1952, e riscou obras ar- quitetónicas inovadoras em parceria com Joaquim Bento d’ Almeida, arquiteto com quem partilhou um atelier durante 25 anos. Deste gabinete conjunto saíram modernos espa- ços comerciais, cafés, em particular, mas também os primeiros snack-bares de Portugal (Terminus, Pic-Nic, “Noite e Dia” e Galeto, em Lisboa, e o “Cunha”, no Porto). Escola Primária n.º 175, LisboaPalla riscou muitos outros projetos de grande dinamismo espacial e material, recetivos às inovações nas áreas do mobi- liário e da iluminação, e adaptados à vida moderna. Entre eles contam-se fábricas, a Escola do Vale Es- curo (1953) e a Escola n.º 175 de Lisboa, nos Olivais Norte, e a aldeia das Açoteias, em Albufeira, traça- da a título individual nos anos 60. Capa de Livro de Victor PallaEste talentoso e multi- facetado profissional também se dedicou a outras áreas artísticos e culturais, como a Pintura (desde os anos 40 que participou em exposições, se ligou a galerias do Porto e de Lisboa e promoveu as Ex- posições Gerais de Artes Plásticas, organizadas entre 1946 e 1956), a Cerâmica, o Design Gráfico (concebeu graficamente várias publicações e cen 46
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