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"Viagens na Minha Terra", Almeida Garrett

Published by be-arp, 2020-03-23 13:03:20

Description: Literatura
Romance

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CAPÍTULO XLIX De como Carlos se fez barão. — Fim da história de Joaninha. — Georgina abadessa. — Juízo de Fr. Dinis sobre a questão dos frades e dos barões. — Que não pode tornar a ser o que foi, mas muito menos pode ser o que é. O que há de ser, Deus o sabe e proverá. — Vai o A. dormir ao Cartaxo. — Sonho que aí tem. — Volta a Lisboa. — Caminhos de ferro e de papel. — Conclusão da viagem e deste livro. — Acabei de ler a carta de Carlos, entreguei-a a Fr. Dinis em silêncio. Ele respondeu-me: — «Leu?» — «Li.» — «Que mais quer saber? Sinto que lhe posso dizer tudo: não o conheço, mas...» — «Mas deve conhecer-me por um homem que se interessa vivamente... » — «Em quê? nas eleições, na agiotagem, nos bens nacionais!» — «Não, senhor. Fui camarada de Carlos, não o vejo há muitos anos e... » — «Nem o conhecia se o visse agora: engordou, enriqueceu, e é barão!...» — «Barão!»

— «É barão, e vai ser deputado qualquer dia.» — «Que transformação! Como se fez isso, santo Deus! E Joaninha e Georgina?» — «Joaninha enlouqueceu e morreu. Georgina é abadessa de um convento em Inglaterra.» — «Abadessa?» — «Sim. Converteu-se à comunhão católica; era rica, fundou um convento em shire e lá está servindo a Deus.» — «E esta pobre senhora, a avó de Joaninha?» — «Aí está como a vê, morta de alma para tudo. Não vê, não ouve, não fala, e não conhece ninguém. Joaninha veio morrer aqui nesta fatal casa do vale, eu estava ausente, expirou nos braços dela e de Georgina. Desde esse instante a avó caiu naquele estado. Está morta, e não espero aqui senão a dissolução do corpo para o enterrar, se eu não for primeiro, e Deus queira que não! quem há de tomar conta dela, ter caridade com a pobre da demente? Mas depois... Oh! depois... espero no Senhor que se compadeça enfim de tanto sofrer e me leve para Si.» — «Mas Carlos?» — «Carlos é barão: não lho disse já?»

— «Mas por ser barão?...» — «Não sabe o que é ser barão?» — «Oh! se sei! Tão poucos temos nós?» — «Pois barão é o sucedâneo dos...» — «Dos frades... Ruim substituição!» — «Vi um dos tais papéis liberais em que isso vinha: e é a única coisa que leio dessas há muitos anos. Mas fizeram-mo ler.» — «E que lhe pareceu?» — «Bem escrito e com verdade. Tivemos culpa nós, é certo; mas os liberais não tiveram menos.» — «Errámos ambos.» — «Errámos e sem remédio. A sociedade já não é o que foi, não pode tornar a ser o que era; — mas muito menos ainda pode ser o que é. O que há de ser, não sei. Deus proverá.» Dito isto, o frade benzeu-se, pegou no seu breviário e pôs-se a rezar. A velha dobava sempre, sempre. Eu levantei-me, contemplei-os ambos alguns segundos. Nenhum me deu mais atenção nem pareceu consciente da minha estada ali.

Sentia-me como na presença da morte e aterrei-me. Fiz um esforço sobre mim, fui deliberadamente ao meu cavalo, montei, piquei desesperado de esporas, e não parei senão no Cartaxo. Encontrei ali os meus companheiros; era tarde, fomos ficar fora da vila à hospedeira casa do Sr. L. S. Rimos e folgámos até alta noite: o resto dormimos a sono solto. Mas eu sonhei com o frade, com a velha — e com uma enorme constelação de barões que luzia num céu de papel, donde choviam, como farrapos de neve, numa noite polar, notas azuis, verdes, brancas, amarelas, de todas as cores e matizes possíveis. Eram milhões e milhões e milhões... Nunca vi tanto milhão, nem ouvi falar de tanta riqueza senão nas Mil e Uma Noites. Acordei no outro dia e não vi nada... só uns pobres que pediam esmola à porta. Meti a mão na algibeira, e não achei senão notas... papéis! Parti para Lisboa cheio de agoiros, de enguiços e de tristes pressentimentos. O vapor vinha quase vazio, mas nem por isso andou mais depressa. Eram boas cinco horas da tarde quando desembarcámos no Terreiro do Paço. Assim terminou a nossa viagem a Santarém: e assim termina este livro.

Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado alguma coisa do que vi. De todas quantas viagens porém fiz, as que mais me interessaram sempre foram as viagens na minha terra. Se assim o pensares, leitor benévolo, quem sabe? pode ser que eu tome outra vez o bordão de romeiro, e vá peregrinando por esse Portugal fora, em busca de histórias para te contar. Nos caminhos de ferro dos barões é que eu juro não andar. Escusada é a jura porém. Se as estradas fossem de papel, fá-las-iam, não digo que não. Mas de metal! Que tenha o Governo juízo, que as faça de pedra, que pode, e viajaremos com muito prazer e com muita utilidade e proveito na nossa boa terra. FIM


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