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"Assobiando à Vontade", Mário Dionísio

Published by be-arp, 2014-11-05 10:09:44

Description: 8ºano

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Assobiando à Vontade (In O Dia Cinzento e Outros Contos) (Mário Dionísio) Àquela hora o trânsito complicava-se. As lojas, os escritórios, algumas oficinas,atiravam para a rua centenas de pessoas. E as ruas, as praças, as paragens dos eléctricos, quetinham sido planeadas quando não havia nas lojas, nos escritórios e nas oficinas tanta gente,ficavam repletas dum momento para o outro. Nos largos passeios das grandes praças haviaencontrões. As pessoas de aprumo tinham de fechar os olhos àquele desacato e não viamremédio senão receber e dar encontrões também e praguejar algumas vezes. Os eléctricosapinhavam-se na linha à frente uns dos outros. Seguiam morosamente, carregados até aosestribos e por fora dos estribos, atrás, no salva-vidas, com as tais centenas de pessoas quesaltavam àquela hora apressadamente das lojas, dos escritórios, das oficinas. Além disso, nosdias bonitos como aquele, as ruas da Baixa enchiam-se de elegantes que iam dar a sua volta, àscinco horas, pelas lojas de novidades e pelas casas de chá, para matar o tempo de qualquermaneira, ver caras conhecidas, cumprimentar e ser cumprimentadas, e só voltavam a casa àhora de jantar. A multidão propunha uma confraternização à força. Era preciso pedir desculpa aomarçano que se acabava de pisar, implorar às pessoas penduradas no eléctrico que seapertassem um pouco mais para se poder arrumar um pé, nada mais que um pé, num cantinhodo estribo, muitas vezes sorrir para gente que nunca se tinha visto antes e apetecia insultar. Oselegantes e as elegantes achavam naturalmente tudo isto muito aborrecido. Sobretudo anecessidade absoluta de seguir naquelas plataformas repletas em que não viajavam sócavalheiros, mas muitos homenzinhos pouco correctos e onde esses mesmos homenzinhos emulheres vulgares deitavam um cheiro insuportável. Que fazer, no entanto, senão atirar-se umapessoa também para aquele mar de gente que empurrava, furava, pisava e barafustava atéchegar ao carro? Que fazer senão empurrar, furar, pisar e barafustar também? O carro seguia morosamente e repleto como os outros. Felizmente, ainda haviaalguns homens correctos na cidade e algumas mulherezinhas que conheciam o seu lugar. Só

graças a isso as senhoras que tinham arriscado os seus sapatos e os seus chapéus naquelarefrega e alguns cavalheiros respeitáveis conseguiam sentar-se. Nos primeiros momentos de viagem, as pessoas voltavam-se nos bancos,preocupadas, tentando ver se o marido, uma amiga, um filho, não teriam ficado em terra. Osque seguiam de pé ousavam dar um passo no interior do carro, a ver se teria ficado algum lugarvago por acaso. Havia logo protestos na plataforma. Depois as pessoas acomodavam-se omelhor que podiam, punham os braços no ar para livrar os embrulhos do aperto, fechavam bemos casacos e as malas onde levavam o dinheiro, o condutor puxava energicamente o cordão dacampainha muitas vezes, lotação completa, e o carro arrastava-se em silêncio. Os senhores respeitáveis, com compreensível e muda zanga dos companheiros dolado, começavam a desdobrar os jornais da tarde e a ler as notícias por alto. As senhoras,visivelmente mal dispostas, compunham os chapéus e as golas dos casacos. Tiravam osespelhinhos da mala e passavam tudo em revista: o chapéu, os cabelos, os olhos, os lábios. Eraincrível. Uma tinha ficado com o chapéu completamente de banda, outra perdera uma luva naconfusão. Depois guardavam os espelhos, acomodavam-se melhor, percorriam com os dedos osanéis duma mão e da outra, para ver se estavam no lugar, se estavam todos. Olhavam umaspara as outras, muito sérias, como quem não repara em nada. Recuperavam pouco a pouco adignidade que aquele despropósito da subida para o carro evaporara. Nas curvas, as rodas chiavam nas calhas, debaixo do grande peso. Silêncio enfim -embora de vez em quando cortado pela campainha, quando alguém tinha a triste ideia dequerer descer, pelo desdobrar dos jornais, pela voz dos populares, encaixados na plataforma dafrente. Tudo voltara à normalidade. A marcha do carro, a cobrança dos bilhetes, a separaçãoentre as pessoas, que rigorosamente não conseguiam separar-se umas das outras umcentímetro que fosse. E, assim, morosamente, por curvas e rectas, por ruas e praças, aquelecarro cumpria o seu destino de acarretar gente e ser insultado, numa das várias linhas queligavam o centro da cidade aos bairros relativamente novos, onde a separação entre a chamadaclasse média e as camadas mais baixas da população não fora ainda convenientementeestabelecida.

Em dada altura, porém, na plataforma de trás levantou-se burburinho. Protestos.Indignação. Cabeças voltaram-se no interior do carro. E viu-se um homenzinho a empurrar todaa gente e a dizer que havia lugares à frente, que o deixassem passar. Em vão lhe asseguravamque não havia lugar nenhum, que não podia passar, que não fosse bruto. O homem empurravae teimava que havia lugares à frente. Tanto empurrou que furou. Tanto furou que conseguiuentrar no interior do eléctrico, avançou e foi sentar-se num lugar de lado que estavaefectivamente vago lá à frente, ao lado duma senhora por sinal opulenta. Foi um espanto geral e silencioso. Ninguém tinha reparado no lugar. E menos queninguém, como é fácil de compreender, a própria senhora opulenta. Todos os atrevidos têmsorte. O homem, que usava um chapéu coçado e um sobretudo castanho bastante lustrosonas bandas, não se sentou propriamente. Enterrou-se no lugar, com as mãos enfiadas pelasalgibeiras dentro. Que sujeito! Devia ser mais novo do que parecia por causa do cabelo grisalhoe da barba por fazer. A senhora opulenta franziu a testa e remexeu-se no lugar, se assim sepode dizer, como quem procura ocupar menos espaço. Na verdade, apenas se instalou melhor.A sua intenção era fazer o homenzinho reparar na inconveniência da atitude que tomara. Masele não viu nada disso ou fingiu que não viu. Olhou vagamente as pessoas que tinha na frente,estendeu os lábios e começou a assobiar. A assobiar muito à vontade no interior do carro! Primeiro, foi um assobio baixinho, pouco seguro, imperceptível quase. Depois, apouco e pouco, o sujeitinho entusiasmou-se. E o assobio aumentou de intensidade. Ouvia-se jáem todo o eléctrico. Os passageiros, que tinham recuperado com tanto custo a sua dignidade,fingiam que não davam pelo homem nem pelo assobio. E sossegaram quando o condutor sedirigiu ao recém-vindo. Ia aconselhá-lo a calar-se, com certeza. Mas qual! Com o maço dosbilhetes na mão e de alicate espetado, limitou-se a dizer: «O senhor?» O passageiro tirou a mãoda algibeira e, sem deixar de assobiar, estendeu-a com a palma voltada para cima. Esperou quelhe levassem a moeda, recebeu o bilhete e tornou a enfiar a mão pela algibeira dentro. Toda agente seguia a cena, interessada. Mas, quando o homem olhou as pessoas, ao acaso, voltaramtodas os olhos como se ele afinal não existisse.

O assobio, umas vezes, era baixo, mal se ouvia, outras vezes, alto, muito alto, comtrinados ridículos e irritantes. Ninguém sabia o que ele assobiava. E o homem também não.Qualquer coisa que lhe apetecia que fosse assim mesmo. Às vezes repetia os sons como umestribilho. Outras vezes, porém, a maior parte das vezes, passava a novas combinações, orabrandas, ora violentas, sem querer saber para nada das que ficavam para trás. As pessoascomeçavam a olhar umas para as outras à socapa. Já se tinha visto coisa assim? Um ou outrocavalheiro levantava os olhos do jornal, franzia a testa, fitava com dureza o homem do chapéucoçado e sobretudo castanho, na esperança de que ele, envergonhado, parasse com aquilo. Asenhora opulenta, no auge do espanto, nem se atrevia a olhar para lado nenhum, vexadíssimaporque, sem ter culpa nenhuma, se encontrava em plena zona do escândalo. A que uma pessoaestá sujeita! E, no silêncio do carro, o assobio aumentava de volume. Talvez, no fundo, aquelegorjeio ridículo não fosse desagradável de todo. Simplesmente, um eléctrico não é o local maispróprio para exibições daquelas. Porque não interferiria o condutor? O condutor era a autoridadedo carro. Porque não interferiria? Estava-se a ver. Era tão bom como ele. A verdade, porém, éque não se conhecia nenhum regulamento que impedisse os passageiros de assobiar. Coladosaos vidros do eléctrico, havia papéis que proibiam fumar, cuspir no carro. Era proibido abrir asjanelas durante os meses de Inverno. Mas nem uma palavra a respeito de assobios. De repente, uma criança que ia sentada junto duma janela e já se sentia enfastiadade olhar para a rua interessou-se pelo homem. Achava-lhe tanta graça, com o seu chapéucoçado, o seu sobretudo castanho, o seu assobio... Era uma criança muito pálida, de cabeloslouros e encaracolados, vestida de azul. Interessou-se tanto pelo homem que começou a baterpalmas. Mas uma senhora nova e bonita, que ia ao lado dela, segurou-lhe as mãos comgentileza e afastou-lhas. Devia ir calada e quietinha. Era muito feio fazer barulho no eléctrico.Uma menina bonita não fazia barulho. «Que disse eu à minha filha?» No entanto, a senhoranova e bonita não antipatizava com o homem. Olhava os embrulhos de papel vistoso que trazianos joelhos e pensava: se não pudesse mais e começasse também a assobiar? No fundo,admirava a sem-cerimónia do homem do chapéu coçado. Não seria adorável ela própria, umasenhora casada e mãe de uma garota de cinco anos, começar a assobiar num eléctrico se lhe

apetecesse? Quando era da idade da filha, a senhora bonita ia muitas vezes ao campo vestidacom coisas velhas para poder atirar-se para a relva à vontade. Tinha uma voz muito suave emuito fresca, gostava de fazer precisamente aquilo que uma menina bonita não deve fazer Osamigos do pai pegavam-lhe ao colo, atiravam-na ao ar E ela ria, ria, ria até ficar sufocada. Amãe dizia «Pronto, pronto, vamos a ter juízo, não se ri assim dessa maneira» E, quanto mais lhodiziam, mais lhe apetecia rir, rir, rir. De vez em quando, um passageiro saía. A plataforma do carro ia-se esvaziando. E,pouco a pouco, os que ficavam foram-se habituando àquele estúpido assobio Os cavalheirostinham esquecido os jornais Algumas senhoras sorriam Já se vira um disparate assim?Principalmente a senhora opulenta não podia mais. Apertava os lábios. Sentada num banco delado, encontrava os olhos de toda a gente. Era irresistível. E a senhora bonita pensava em arlivre e nos tempos da infância. Na escola aprendera a assobiar e a lançar o pião. Havia vozesque tinham ficado dentro dela. «Uma menina a assobiar, Nini?» Em dada altura, o homem, sem deixar de assobiar, levantou-se e puxou o cordão dacampainha. Era um homenzinho insignificante, ainda novo e já de cabelos grisalhos, chapéucoçado, sobretudo castanho muito lustroso nas bandas. Mas havia nele uma indiferençasoberana pelo eléctrico inteiro Toda a gente o olhava Com desprezo? Com ironia? Com inveja?Abriu a porta, fechou-a e saltou com o carro ainda em andamento. As pessoas voltaram-se então umas para as outras, não resistiram mais e rirammesmo. Que homenzinho patusco! Desculpavam-se, explicavam-se sem palavras Entendiam-seUm minuto de simplicidade e simpatia iluminou-as A criança que batera palmas limpou com amão o vidro embaciado da janela à procura do estranho passageiro Viu-o atravessar a rua,seguir pelo passeio agarrado às casas, desaparecer. Só então a senhora nova e bonita, que era a mãe da criança, abriu os olhos. Ninguémhoje lhe chamava Nini. Nini era a filha Ela agora é que dizia à filha «Uma menina a assobiar,Nini! Uma menina bonita não faz barulho.» Ficara nos lábios e nos olhos de todos um sorriso de bondosa ingenuidade o Depoisesse sorriso foi-se apagando Morreu As pessoas tomaram consciência da sua momentâneaquebra de compostura Lembraram-se dos seus embrulhos, dos seus anéis, dos seus jornais Que

patetice! Não havia outra palavra para aquilo Que patetice! Os cavalheiros recomeçaram a ler ostítulos das notícias. As senhoras deram um toque nas golas dos casacos A criança tornou a olharpara a rua. Tudo voltou, pesadamente, a encher-se de silêncio e dignidade.In http://contosdeaula.blogspot.com/2008/09/assobiando-vontade.html (acedido em 10.10.2010)


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