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"Antologia Poética", Fernando Pessoa

Published by be-arp, 2020-03-24 19:11:43

Description: Poesia

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Florem em esguia glória marginal Os girassóis do império que morri...

VERDADEIRAMENTE Verdadeiramente Nada em mim sinto. Há uma desolação Em quanto eu sinto. Se vivo, parece que minto. Não sei do coração Outrora, outrora Fui feliz, embora Só hoje saiba que o fui. E este que fui e sou, Margens, tudo passou Porque flui.

VINHA ELEGANTE, DEPRESSA Vinha elegante, depressa, Sem pressa e com um sorriso. E eu, que sinto co a cabeça, Fiz logo o poema preciso. No poema não falo dela Nem como, adulta menina, Virava a esquina daquela Rua que é a eterna esquina... No poema falo do mar, Descrevo a onda e a mágoa. Relê-lo faz-me lembrar Da esquina dura - ou da água.

VI PASSAR, NUM MISTÉRIO CONCEDIDO Vi passar, num mistério concedido, Um cavaleiro negro e luminoso Que, sob um grande pálio rumoroso, Seguia lento com o seu sentido. Quatro figuras que lembrando olvido Erguiam alto as varas, e um lustroso Torpor de luz dormia tenebroso Nas dobras desse pano estremecido. Na fronte do vencido ou vencedor Uma coroa pálida de espinhos Lhe dava um ar de ser rei e senhor.

VELO, NA NOITE EM MIM Velo, na noite em mim, Meu próprio corpo morto. Velo, inútil absorto. Ele tem o seu fim Inutilmente, enfim.

VEM DO FUNDO DO CAMPO, DA HORA Vem do fundo do campo, da hora, E do modo triste como ouço, Uma voz que canta, e se demora. Escuto alto, mas não posso Distinguir o que diz; é música só, Feita de coração, sem dizer: Murmúrio de quem embala, com um vago dó De o menino ter de crescer.

VENTO QUE PASSAS Vento que passas Nos pinheirais Quantas desgraças Lembram teus ais. Quanta tristeza, Sem o perdão De chorar, pesa No coração. E ó vento vago Das solidões Traze um afago Aos corações.

À dor que ignoras Presta os teus ais, Vento que choras Nos pinheirais.

VOU COM UM PASSO COMO DE IR PARAR Vou com um passo como de ir parar Pela rua vazia Nem sinto como um mal ou mal-estar A vaga chuva fria... Vou pela noite da indistinta rua Alheio a andar e a ser E a chuva leve em minha face nua Orvalha de esquecer ... Sim, tudo esqueço. Pela noite sou Noite também E vagaroso eu vou, Fantasma de magia.

No vácuo que se forma de eu ser eu E da noite ser triste Meu ser existe sem que seja meu E anônimo persiste ... Qual é o instinto que fica esquecido Entre o passeio e a rua? Vou sob a chuva, amargo e diluído E tenho a face nua.

POEMAS PARA LILI Pia, pia, pia O mocho. Que pertencia A um coxo. E meteu o mocho Na pia, pia, pia... *** Levava eu um jarrinho Para ir buscar vinho Levava um tostão Para comprar pão: E levava uma fita

Para ir bonita. Correu atrás De mim um rapaz: Foi o jarro para o chão, Perdi o tostão, Rasgou-se-me a fita... Vejam que desdita! Se eu não levasse um jarrinho, Nem fosse buscar vinho, Nem trouxesse uma fita Pra ir bonita, Nem corresse atrás De mim um rapaz Para ver o que eu fazia, Nada disto acontecia.

POEMA PIAL Casa Branca - Barreiro a Moita (Silêncio ou estação, à escolha do freguês) Toda a gente que tem as mãos frias Deve metê-las dentro das pias. Pia número UM Para quem mexe as orelhas em jejum. Pia número DOIS, Para quem bebe bifes de bois. Pia número TRÊS, Para quem espirra só meia vez.

Pia número QUATRO, Para quem manda as ventas ao teatro. Pia número CINCO, Para quem come a chave do trinco. Pia número SEIS, Para quem se penteia com bolos-reis Pia número SETE, Para quem canta até que o telhado se derrete. Pia número OITO, Para quem parte nozes quando é afoito. Pia número NOVE, Para quem se parece com uma couve.

Pia número DEZ, Para quem cola selos nas unhas dos pés. E, como as mãos já não estão frias, Tampa nas pias!

QUADRAS AO GOSTO POPULAR A quadra é o vaso de flores que o Povo põe à janela da sua alma. Da órbita triste do vaso escuro a graça exilada das flores atreve o seu olhar de alegria. Quem faz quadras portuguesas comunga a alma do povo, humildemente de todos nós e errante dentro de si próprio. Fernando Pessoa Cantigas de portugueses São como barcos no mar - Vão de uma alma para outra Com riscos de naufragar. *** A terra é sem vida, e nada

Vive mais que o coração E envolve-te a terra fria E a minha saudade não! *** O moinho de café Mói grãos e faz deles pó. O pó que a minha alma é Moeu quem me deixa só. *** Se eu te pudesse dizer O que nunca te direi, Tu terias que entender Aquilo que nem eu sei.

*** O teu vestido porque é teu, Não é de cetim nem chita. É de sermos tu e eu E de tu seres bonita. *** Vem cá dizer-me que sim. Ou vem dizer-me que não. Porque sempre vens assim Para ao pé do meu coração. ***

Tenho um segredo a dizer-te Que não te posso dizer. E com isso já te o disse Estavas farta de o saber... *** Dona Rosa, Dona Rosa, De que roseira é que vem, Que não tem senão espinhos Para quem só lhe quer bem? Dona Rosa, Dona Rosa, Quando eras inda botão Disseram-te alguma coisa De flor não ter coração?

*** Trazes uma cruz no peito. Não sei se é por devoção. Antes tivesses o jeito De ter lá um coração.


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