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1984 - George Orwell

Published by andrezeuster, 2018-06-20 22:13:33

Description: 1984 - George Orwell

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multidão. Mas pela breve olhada que lhe lançou, pareceu-lheque estava mais pálida do que do costume.- Não pode ser - murmurou, assim que julgou seguro falar. -Quero dizer, amanhã não posso.- Que?- Amanhã de tarde, não posso ir.- Por que?- Pelo motivo comum. Desta vez começou cedo. Por um momento,ele se sentiu furioso. Naquele mês, volvido desde que aconhecera intimamente, modificara-se a natureza do seudesejo. No comêço, pouca sensualidade houvera nele. Oprimeiro contacto amoroso fora simplesmente um ato devolição. Mas depois da segunda vez as coisas haviam mudado defigura. O aroma dos cabelos, o gôsto da boca, a maciez dapele pareciam havê-lo penetrado, ou envolvê-lo. Ela setornara uma necessidade física, algo que não apenas queriacomo sentia ter direito a gozar. Quando Júlia anunciou quenão poderia ir, teve a impressão de estar sendo lesado. Masnaquele momento a multidão os apertou e, acidentalmente, asmãos se encontraram. Ela apertou-lhe ligeiramente as pontasdos dedos, num gesto que parecia pedir não desejo mas afeto.Winston raciocinou que, quando se vive com uma mulher, êssetipo de desapontamento deve ser uma coisa normal, queacontece mais de uma vez; de repente, domínou-o uma profundaternura, como nunca sentira antes. Desejou que fossem umcasal com dez anos de existência em comum. Desejou passearcom ela pelas ruas, como estavam fazendo naquele instante,mas abertamente, sem medo, falando de frivolidades ecomprando pequenas bobagens para o lar. Desejou, acima detudo, que tivessem um lugar onde ficar a sós, sem sentir aobrigação de fazer o amor, cada vez que se encontravam. Nãofoi exatamente naquele instante, mas no dia seguinte, que lheocorreu alugar o quarto do antiquário. Quando sugeriu o planoa Júlia, ela concordou com inesperada presteza. Ambos sabiamser loucura. Era como se dessem, de propósito, um passo parao túmulo. Sentado na beira da cama, Wínston tornou a pensarnos porões do Ministério do Amor. Era curioso que aquelehorror predestinado se acendesse e apagasse na suaconsciência. Lá estava ele, fixado no tempo futuro,precedendo a morte com a mesma certeza que 99 precede 100.Não era possível evitá-lo, mas talvez fosse adiá-lo; e no

entanto, ao invés disso, de vez em quando, ele encurtava avida, por um ato consciente, voluntário.Naquele momento, ouviu-se um passo rápido nas escadas. Júliairrompeu no quarto. Trazia um saco de ferramentas de lonamarron crua, com que às vezes a vira entrando e saindo doMinistério. Tentou colhê-la nos braços, mas Júliadesvencilhou-se um tanto apressada, em parte por estar aindacom a bolsa na mão.- Meio segundo - disse. - Olha só o que eu trouxe. Trouxesteêsse horrendo Café Vitória? Logo vi. Podes levá-lo de volta,porque não precisamos dele. Olha.Ajoelhou-se, abriu a bolsa, e tirou algumas chaves- inglêsase de fenda que enchiam a parte superior. Por baixo haviavários pacotes de papel. O primeiro embrulho que entregou aWinston lhe pareceu, ao tato, ter uma consistência estranha eno entanto vagamente familiar. Estava cheio de uma substânciapesada, pulverulenta, que cedia onde se apertasse o papel.- É açúcar?- Açúcar de verdade. Nada de sacarina. E aqui temos um pão -um pão branco, decente, não aquela broa insôssa - e umalatinha de geléia. Uma lata de leite... e olha! Disto eu meorgulho. Tive de enrolá-lo numa estopa, Po'rque...Mas não era preciso explicar porque o enrolára. O aroma jáenchia o quarto, um aroma rico e convidativo, que lhe pareciauma emanação da meninice, mas que de vez em quando aindasentia, propagando-se por um corredor antes de uma portabater, ou espalhando-se misteriosamente numa rua cheia degente; um cheiro olfateado uns segundos e depois perdido denovo.- É café - murmurou Winston. - Café de verdade.- Café do Partido Interno. Um quilo inteiro aqui.- Como conseguiste arranjar tudo isto?- É tudo para o Partido Interno. Não há nada que aquelessuinos não tenham. Nada. Mas naturalmente os garçons e osempregados afanam as coisas e... olha, trouxe também umpacotinho de chá.Winston acocorara-se ao pé de Júlia. Rasgou um bico dopacote.- Chá mesmo. Não são folhas de amora.- Tem rodado muito chá por aí. Capturaram a Índia, sei lá -explicou ela, vagamente. - Mas escuta, querido. Quero que medês as costas três minutos. Vai sentar do

outro lado da cama. Não chegues à janela. E não olhesenquanto eu não te disser.Winston ficou olhando, distraído, através da cortina demusselina. Lá no pátio a mulher dos braços avermelhadoscontinuava marchando da tina para o varal, e vice-versa.Tirou dois prendedores de roupa da boca e cantou com profundosentimento:\"Dizem que o tempo tudo cura,Dizem que sempre se pode esquecer,Mas os sorrisos e lágrimas, anos a fio,Ainda fazem meu coração sofrer.\"Sabia de cor a estúpida' canção. A voz subia, boiando no docear estival, muito afinada, carregada de uma espécie de felizmelancolia. Tinha-se a impressão de que ficaria perfeitamentecontente se a noite de junho fosse infindável, e inesgotávelo monte de roupa suja, para ficar ali mil anos, pendurandofraldas no varal e cantarolando bobagens. E Winston achoucurioso o fato de nunca ter ouvido um membro do Partidocantar a sós, espontâneamente. Isso teria parecidoligeiramente ortodoxo, uma excentricidade perigosa, comofalar sózinho. Talvez fosse apenas quando as pessoas estãopróximas da fome que sentem desejo de cantar.- Já podes virar - disse Júlia. Ele voltou-se e, por umsegundo, quase não pôde reconhecê-la. Francamente, esperaravê-la nua. Mas Júlia não estava nua. Operara umatransformação muito mais surpreendente. Pintara o rosto.Devia ter ido a uma loja do bairro proletário e comprado umjôgo completo de cosmética. Passara baton forte nos lábios,ruge nas faces, pó de arroz no nariz; até havia, em tôrno dosolhos, um toque de tinta que os realçava. A maquilagem nãofora bem feita, mas nesse particular Winston não tinhagrandes exigencias. Não havia nunca visto ou imaginado umamulher do Partido usando cosméticos. Era espantosa a melhorado seu aspecto. Com uns retoques de cor aqui e ali Júlia nãoapenas se fizera muito mais bonita como, sobretudo, maisfeminina. O cabelo curto e o macacão masculinizante apenasdavam destaque a êsse efeito. Quando a tomou nos braços, umaonda de violeta sintética lhe invadiu as narinas. Lembrou-lhea semi-escuridão de uma cozinha no sub-solo e a bocacavernosa de uma mulher. Era o mesmo cheiro; mas nãoimportava.- E perfume, também!- Sim, querido. Perfume também! E sabes o que vou trazer dapróxima vez? Vou arranjar um vestido de verdade, vestido demulher, não sei ainda onde, e vou usá-lo em vêz destas calçashorrorosas. E vou usar meias de seda e sapatos de salto alto!

Neste quarto serei mulher, não uma militante do Partido!Jogaram a roupa para o lado e se aboletaram na vasta cama demogno. Era a primeira vez que ele se despia de todo empresença dela. Até então tivera muita vergonha do corpopálido e magro, das varizes saltadas na barriga da perna e amancha acima do tornozelo. Não havia lençóis, porém ocobertor sobre o qual se haviam deitado era poído e liso, otamanho e a elasticidade da cama os encheram de espanto.- Com certeza está cheia de percevejos, mas que importa? -disse Júlia. Não se viam mais camas de casal, exceto na casados proles. Winston algumas vezes dormira numa, na infância.Júlia jamais, tanto quanto podia se lembrar.Dali a pouco adormeceram. Quando Winston acordou os ponteirosdo relógio indicavam quase nove. Não se mexeu, porque Júliaestava dormindo com a cabeça apoiada na curva do braço dele.A maior parte da maquilagem se transferira para a cara dele eo travesseiro, porém uma mancha de ruge ainda realçava abeleza das maçãs do rosto de Júlia. Um raio amarelo do solpoente atravessava oblíquo os pés da cama e iluminava alareira, onde fervia ruidosamente a água da caçarola. Nopátio, a mulher se calara, porém débeis gritos de criançasainda flutuavam no ar, vindos da rua.Winston ficou a meditar vagamente se no passado abolido foranormal dormirem numa cama assim, na fresca de uma noite deverão, um homem e uma mulher sem roupa, fazendo o amor quandoquisessem, falando do que bem entendessem, sem sentir nenhumaobrigação de levantar, simplesmente largados no leito ouvindoos ruidos pacíficos lá de fora. Não era possível que tivessehavido uma era em que tais coisas fossem comuns. Júliaacordou, esfregou os olhos e ergueu-se num cotovelo, paraolhar o fogareiro.- Metade da água evaporou - disse ela. Daqui a um minutolevanto e faço café. Ainda temos uma hora. A que horas cortama luz no teu prédio?- Às vinte e três e trinta.- Na minha hospedaria às vinte e três. Mas precisas chegarmais cedo porque... Ei! Vai-te embora, bicho imundo!Ela de repente enredou-se na cama, apanhou um sapato do chãoe atirou-o com fôrça a um canto, com um gesto vigoroso,juvenil, como ele a vira fazer, jogando o dicionário emGoldstein, aquela manhã, durante os Dois Minutos de ódio.

Que foi? Um rato. Mostrou o focinho ali naquele buraco dorodapé. Estás vendo o buraco? Preguei-lhe um bom susto.- Ratos! - murmurou Winston. - Neste quarto!- Andam por toda parte - disse Júlia, indiferente, tornando adeitar-se. - Vivem até na cozinha da pensão. Alguns bairrosde Londres pululam de ratos. Sabias que atacam criancinhas?Pois é, atacam. Em algumas dessas ruas, uma mulher não temcoragem de deixar um filho sózinho dois minutos. São osgrandões, pardos, os piores. E o mais horrível é que -osbrutos...- Chega! - implorou Winston, cerrando os olhos.- Querido! Estás tão pálido? Que aconteceu? Tens nojo deratos?- De todos os horrores do mundo... um rato! Ela apertou-secontra ele e enrolou as pernas e os braços nele, como se paratranquilizá-lo com o calor de seu corpo. Ele não reabriu osolhos imediatamente. Por alguns momentos tivera a sensação devoltar a um pesadelo que se repetia ciclicamente na sua vida.Era sempre a mesma coisa. Estava parado diante duma muralhade trevas, e do outro lado da muralha havia algoinsuportável, algo demasiado horrível para se fazer face. Nosonho, a sua sensação mais profunda era sempre de auto-engano, porque de fato não sabia o que havia atrás da muralhade treva. Com um esfôrço fatal, como se arrancasse um pedaçodo próprio cérebro, poderia ter trazido o mistério à luz. Massempre acordava sem descobrir o que era: de certo modo,porém, ligava-se com o que dizia Júlia quando a interrompera.- Desculpa - pediu ele. - Não é nada. É que não gosto deratos e pronto.- Não te preocupes, querido, não deixarei que os bicharocosentrem aqui. Vou calafetar o buraco com aniagem, antes desairmos. E da próxima vez trago reboco e tapo o orifíciodireitinho.já fora meio esquecido o instante negro de pânico. Sentindo-se ligeiramente envergonhado de si mesmo, ele sentouse,encostando na guarda da cama. Júlia saltou, vestiu o macacãoe fez café. O cheiro que se elevou da caçarola era tãopoderoso e inebriante que êles fecharam a janela, não fossealguém senti-lo e começar a especular. Ainda melhor que osabor do café era a textura sedosa que lhe dava o açúcar, deque Winston quase esquecera após tantos anos de sacarina. Coma mão no bolso e segurando uma fatia de pão com geléia naoutra, Júlia passeou pelo quarto, dando olhadas indiferentesà estante de livros, indicando a melhor maneira de consertara mesa dobradiça, atirando-se na velha poltrona estofada paraver se era confortável, e examinando o absurdo relógio dedoze horas com uma espécie de chacota tolerante. Levou para a

cama o pêso de papéis, para examiná-lo na luz melhor. Eletomou-o, fascinado, como sempre, pelo aspecto macio, de águade chuva, do vidro secular.- Que é isto? - indagou Júlia.- Não creio que seja nada... quer dizer, não creio que tenhaservido para nada. É por isso que gosto dele. É um pedacinhode história que se esqueceram de alterar. É uma mensagem decem anos atrás, se ao menos soubéssemos lê-la.- E aquela gravura ali - Júlia indicou com a cabeça o quadrona parede oposta - também tem cem anos de idade?- Mais. Talvez duzentos. Não se sabe. Hoje em dia éimpossível descobrir a idade de qualquer coisa.Ela foi espiá-la.- Foi aqui que o bruto meteu o focinho - disse, dando umchute no rodapé, logo abaixo do quadro. - Que lugar é êsse?Já vi essa casa.- É uma igreja, ou foi uma igreja. Chamava-se S. Clemente dosDinamarqueses. - O fragmento de cantiga que o sr. Charringtonlhe ensinara voltou-lhe à memória e ele acrescentou, quasecom saudade: - Laranjas e limões, dizem os sinos de S.Clemente!Para sua imensa surpresa, Júlia continuou:- Me deves três vinténs, dizem os sinos de S. Martinho,Quando me pagarás? dizem os sinos de Old Bailey... Não melembro como é que continua. Só sei que acaba assim: Aí vemuma luz para te levar para a cama. Aí vem um machado para tecortar a cabeça!Pareciam santo e senha. Mas devía haver outro verso depois de\"os sinos de Old Bailey.\" Talvez conseguisse arrancá-lo dalembrança do sr. Charrington, se o espicaçasse bem.- Quem te ensinou isso?- Meu avô. Costumava cantar-me essa cantiga quando eu eramenina. Foi vaporizado quando eu tinha oito anos... ou pelomenos desapareceu. O que será limão? -acrescentou,inconsequente. - Já vi laranja. É uma espécie de frutaredonda, amarela, com casca grossa.- Eu me lembro do limão. Era bem comum até 1950 e pouco. Eratão azedo que só de cheirar a gente ficava com a boca amarga.- Aposto que êsse quadro tem bichos por trás - disse Júlia. -Um dia dêstes arranco-o daí e dou-lhe uma boa limpadela. Achoque já é hora de irmos embora. Preciso tirar esta tinta da

cara. Que chatura! Depois tiro o baton do teu rosto.Winston só levantou dali a uns minutos. O quarto escurecia.Voltou-se para a luz e ficou examinando o pêso de papéis. Oque lhe oferecia inexaustível interêsse não era o fragmentode coral, porém o interior do vidro em si. Tinha tremendaprofundidade e no entanto era quase transparente como o ar.Como se a superfície do vidro fosse a abóbada celeste,contendo um pequenino mundo, completo com sua atmosfera.Winston tinha a impressão de poder penetrá-lo, e que de fatoestava nele, junto com a cama de mogno e a mesa dobradiça, orelógio, a gravura em aço e o próprio pêso de papéis. O pêsode vidro era o quarto em que estava, e o coral era a vida deJúlia e a dele, fixadas para a eternidade no coração docristal.13Syme desaparecera. Um dia, faltou ao trabalho: algunslevianos comentaram sua ausência. No dia seguinte ninguémmais falou dele. No terceiro dia, Winston foi ao vestíbulo doDepartamento de Registro, examinar o indicador geral. Um dosavisos era uma lista impressa de membros do Comité de Xadrez,do qual Syme fizera parte. Tinha quase exatamente o mesmoaspecto que antes - nada fora riscado -mas faltava um nome.Bastava. Syme deixara de existir: nunca existira.Fazia um calor infernal. No labirinto ministerial, as salassem janelas, com ar condicionado, tinham temperatura normal,mas lá fora as calçadas assavam os pés da gente, e era umhorror o mau cheiro dos subterrâneos na hora de maiortráfego. Iam a pleno vapor os preparativos para a Semana doódio, e o pessoal de todos os ministérios trabalhavaextraordinário. Passeatas, comícios, paradas militares,conferências, exposições de bonecos de cera, sessõescinematográficas, programas de teletela, era precisoorganizar tudo; era preciso montar palanques, fazer efígies,inventar lemas, escrever canções, circular boatos, falsificarfotos. Os colegas de Júlia, no Departamento de Ficção, haviamsuspendido a produção de novelas e estavam redigindo umasérie de panfletos de atrocidades. Winston, além do seuserviço regular, passava longas horas, todos os dias,examinando exemplares atrasados do Times, alterando eembelezando tópicos que seriam citados nos discursos. Tardeda noite, quando bandos de proles desordeiros vagabundeavampelas ruas, a cidade tinha um ar curiosamente febril. Asbombasfoguetes caíam com maior freqüência e às vezes havia,na distância, enormes explosões, que ninguém sabia explicar,e a respeito das quais corriam cabeludos boatos.

A nova toada que seria prefixo musical da Semana do ódio(Canção do Ódio, era o seu título) já fora composta e eratocada incessantemente nas teletelas. Tinha um ritmoselvagem, de latido, que não podia exatamente ser chamado demúsica, e parecia o rufar de um tambor. Entoada por centenasde vozes, ao som de passos em marcha, era aterrorizante. Osproles a haviam adotado e nas ruas, à noite, competia com asempre popular \"Foi apenas uma fantasia desesperada\". Osfilhos dos Parsons a tocavam, a qualquer hora da noite ou dodia, com um pente e um pedaço de papel higiênico. As noitesde Winston estavam mais ocupadas que nunca. Bandos devoluntários, organizados por Parsons, preparavam a rua, paraa Semana, cosendo bandeiras e faixas, pintando cartazes,fixando paus de bandeira nos telhados e arriscando o pescoçopara esticar fios através da rua, para suster as faixas.Parsons gabava-se de que só a Mansão Vitóría exibiriaquatrocentos metros de fita agaloada. Sentia-se no seuelemento e andava alegre que só um periquito.O calor e o trabalho manual lhe haviam dado pretexto parausar shorts e camisa aberta. Andava por toda parte,empurrando, puxando, serrando, martelando, improvisando,alegrando todo mundo, incitando os camaradas com exortações esoltando, de cada dobra do corpo, uma nuvem inesgotável decheiro acre de suor.De repente, aparecera por toda Londres um novo cartaz. Nãotinha legenda, e representava simplesmente a monstruosafigura de um soldado eurasiano, de três ou quatro metros dealtura, avançando com enormes botas e uma cara mongólica semexpressão, apontando uma metralhadora portátil apoiada noquadril. De onde quer que se olhasse o cartaz, o cano dametralhadora, ampliado pela perspectiva, parecia apontar paraa gente. O cartaz enchera todos os espaços livres, tornando-se mais numeroso do que os retratos do Grande Irmão. Osproles, normalmente apáticos em relação à guerra, estavamsendo incitados a um dos cíclicos frenesis de patriotismo.Como que para se harmonizar com a atitude geral, as bombas-foguetes matavam mais gente do que de costume. Uma caiu emStepney, num cinema cheio, sepultando várias centenas devítimas nas ruinas. Tôda a população da vizinhança saiu àrua, para um longuíssimo cortejo fúnebre, que durou horas efoi, na verdade, um comício de indígnação. Outra bomba caiusobre um terreno baldio usado como parque infantil, e fezpicadinho de várias dezenas de crianças. Houve outras

demonstrações de raiva, Goldstein foi queimado em efígie,centenas de cartazes do soldado eurasiano foram rasgados ejogados nas fogueiras, e uma porção de lojas foram pilhadas,na confusão; correu então um boato de que os espiões estavamdirigindo as bombasfoguete por meio de ondas de rádio, e umvelho casal, suspeito de ser de origem estrangeira, teve acasa incendiada e morreu sufocado.No quarto em cima da loja do sr. Charrington, quandoconseguiam ir lá, Júlia e Winston ficavam deitados, lado alado, na cama debaixo da janela, nus por causa do calor. Orato não voltara mais, porém os percevejos se haviammultiplicado nefandamente. Não parecia lhes importar. Sujo oulimpo, o quarto era o paraíso. Assim que chegavam,polvilhavam tudo com pimenta comprada no mercado negro,tiravam a roupa e faziam o amor com o corpo suado, adormeciame despertavam para verificàr que os percevejos haviam reagidoe se agrupavam para o contra-ataque.Durante o mês de junho encontraram-se quatro, cinco, seis...sete vezes. Winston abandonara o hábito de beber gin a todahora. Parecia não precisar mais dele. Engordara, a varizulcerada sarára, deixando apenas uma nódoa parda na pele,acima do tornozelo; não sofria mais de acessos de tosse demadrugada. O processo da vida cessara de ser intolerável, enão sentia mais ímpetos de fazer caretas para a teletela nemde gritar nomes feios. Agora que possuíam um esconderijoseguro, quase um lar, já não lhes parecia tão mau encontrar-se freqÜentemente, e apenas por algumas horas. O queimportava era a existência do quarto sobre a loja doantiquário. Saber que estava lá, inviolado, era quase o mesmoque estar nele. O quarto era um mundo, uma redoma do passado,onde sobreviviam animais extintos. O antiquário, pensavaWinston, era outro animal extinto. Geralmente se detinha unsminutos para conversar com ele, antes de subir. O velhoparecia sair raramente, ou nunca, e tampouco parecia terfregueses. Levava uma existência fantasmal entre a lojinhaescura e uma cozinha ainda menor onde preparava as refeiçõese que continha, entre outras coisas, um gramofoneincrivelmente antigo, com uma enorme trompa. Parecia contentede poder conversar. Perambulando no meio do seu estoque defrioleiras, com o nariz comprido, os óculos espessos, e osombros arcados metidos num paletó de veludo, tinha sempre umar vago mais de colecionador de que de mercador. Comdesbotado entusiasmo acariciava uma velharia insignificante -uma tampa de porcelana para garrafa, um pedaço pintado decaixa de rapé, um medalhão de pechisbeque contendo um anel decabelo de alguma criança morta - sem nunca pedir a Winstonque comprasse nada, mas apenas que admirasse. Conversar com

ele era como ouvir uma caixa de música já gasta. Tirara doscantos da memória outros fragmentos de cançonetas esquecidas.Havia uma que falava de vinte e quatro gralhas, outra arespeito duma vaca de chifre partido, e ainda outra sobre amorte do pobre pintarroxo.- Pensei que o sr. poderia se interessar - dizia, com umarisadinha de desculpas, sempre que apresentava novofragmento. Mas nunca podia lembrar mais do que alguns versosde cada canção.Winston e Júlia sabiam - de modo que nunca baniam do espírito- que não podia durar muito o que estava acontecendo. Haviaocasiões em que a morte vindoura parecia tão palpável quantoa cama que ocupavam, e então se agarravam com uma espécie dedesesperada sensualidade, como uma alma danada se agarra aoúltimo bocado de prazer quando faltam apenas cinco minutospara soar a hora. Mas havia também ocasiões em que tinham ailusão não apenas de segurança como de permanência. Tinham aimpressão de que, enquanto estivessem naquele quarto, nenhummal lhes poderia advir. Chegar até lá era difícil e perigoso,mas o quarto era um santuário. Era como se Winston olhassedentro do pêso de papel, com sensação de ser possívelpenetrar aquele mundo de vidro, e que, uma vez dentro dele, otempo se ímobilizaria. Com frequencia se entregavam a sonhosescapistas conscientes. A sorte haveria de ajudá-los,indefinídamente, e continuariam a aventura até o fim da vidanatural. Ou Katherine morreria e, com auxílio de manobrassutis, Winston e Júlia conseguiriam casar. Ou então sesuicidariam juntos. Ou desapareceriam, alterando asfisionomias de modo que ninguém os reconhecesse, aprenderiama falar com sotaque proletário, arranjariam emprêgo numafábrica e viveriam até o fim numa ruela obscura. Tudo tolice,como bem sabiam. Na verdade, não havia fuga. Não tinhamintenção de executar nem o único plano praticável, osuicidio. Viver dia a dia, semana a semana, esticando umpresente que não tinha futuro, parecia um instintoirresistível, como os nossos pulmões sempre procuraminspirar, enquanto existe ar.Às vezes, falavam também de se dedicar à rebelião ativacontra o Partido, sem a menor noção de como dar o primeiropasso. Mesmo que a fabulosa Fraternidade existisse, havia oproblema de encontrar o caminho dos seus quadros. Contou aJúlia a estranha intimidade que existia, ou parecia existir,entre ele e O'Brien, e o impulso que às vezes sentia, decomparecer simplesmente à presença de O'Brien, anunciar-secomo inimigo do Partido e pedir-lhe auxílio. Curioso que istonão parecesse a Júlia nada de impossivelmente audacioso.Estava acostumada a julgar as pessoas pela fisionomia, e lhe

parecia natural que Winston acreditasse e confiasse emO'Brien, por causa de uma simples olhada. Além do mais,parecia-lhe ponto pacífico que todo mundo, ou quase, odiavasecretamente o Partido e haveria de quebrar suas leis, seacreditasse poder fazê-lo em segurança. Mas recusava-se aacreditar que existisse, ou pudesse existir, oposiçãogeneralizada, organizada. As caraminholas a respeito deGoldstein e o seu exército clandestino, dizia ela, nãopassavam de besteiras que o Partido inventara, para serviraos seus propósitos, e que os militantes fingiam crer. Vezessem conta, em comícios do Partido e demonstraçõesespontâneas, ela gritara a plenos pulmões, pedindo a execuçãode gente cujos nomes nunca ouvira e em cujos supostos crimesnão acreditava de modo algum. Quando se haviam realizado osjulgamentos públicos, ocupara o seu lugar nos destacamentosda Liga da Juventude que circundavam o tribunal, de manhã ànoite, entoando ritmicamente \"Morte aos traidores!\" Duranteos Dois Minutos de ódio sempre superava os outros nosinsultos a Goldstein. Entretanto tinha idéia muito obscura dequem fosse Goldstein e que doutrinas pregava. Crescera depoisda Revolução e era moça demais para se lembrar das batalhasideológicas de 1950 a 1970. Era coisa que não podia imaginarum movimento político independente: e depois, o Partido erainvencível. Sempre existiria, e seria sempre o mesmo. Só erapossível rebelar-se contra ele por desobediência secreta ou,no máximo, por atos isolados de violência, como assassinaralguém, dinamitar alguma coisa.De certo modo era muito mais alerta do que Winston, emuitíssimo menos suscetível à propaganda do Partido. Uma vez,quando ele mencionou a guerra contra a Eurásia, a propósitode qualquer coisa, ela o espantou dizendo, com todaa naturalidade que, na sua opinião, não havia guerra alguma.As bombas-foguete que caíam diàriamente sobre Londres eramprovavelmente disparadas pelo govêrno da própria Oceania, \"sópara amedrontar a turma.\" Era uma idéia que jamais ocorrera aWinston. Também provocou -uma espécie de inveja nelecontando-lhe que durante os Dois Minutos de ódio tinha grandedificuldade para não estourar em gargalhadas. Porém só punhaem dúvida os ensinamentos do Partido quando a interessavampessoalmente. No mais, estava disposta a aceitar a mitologiaoficial, simplesmente porque a diferença entre verdade e

mentira não lhe parecia importante. Acreditava, por exemplo,e porque o aprendera naescola, que o Partido inventara o aeroplano. (Quando eleestava na escola, recordava Winston, antes de 1960, o Partidosó afirmava ter inventado o helicóptero; doze anos maistarde, no tempo de Júlia, já reclamava o avião; dali a umageração com certeza se apossaria da máquina a vapor.) Equando ele disse que os aviões existiam antes dele nascer, emuito antes da Revolução, o fato pareceu a Júlia totalmentesem interêsse. Afinal, que importava o inventor dosaeroplanos? Foi choque maior para ele descobrir, por umcomentário passageiro, que ela não se lembrava de que, quatroanos atrás, a Oceania estivera em guerra com a Lestásia, e empaz com a Eurásia. Era verdade que considerava a guerra umafarça; mas aparentemente não notára nem a mudança do nome doinimigo. \"Pensei que sempre estivéssemos em guerra com aEurásia,\" exclamou, evasivamente. Isso o amedrontou um pouco.A invenção dos aeroplanos sucedera antes de Júlia nascer, masa reviravolta da guerra ocorrera havia apenas quatro anos,quando já era adulta. Discutiu com ela durante um quarto dehora talvez. No fim, conseguiu forçar-lhe a memória arecordar vagamente que, outrora, o inimigo fora a Lestásia enão a Eurásia. Todavia, isso não lhe parecia significativo.- Que importa? - indagou, impaciente. - É sempre uma horrívelguerra depois da outra, e a gente sabe que o noticiário étodo falso mesmo.Às vezes ele lhe falava do Departamento de Registro e dasimpudentes falsificações que lá executava. Essas coisas nãopareciam horrorizá-la. Não sentia o abismo abrindo-se aosseus pés, ao pensar nas mentiras que se transformavam emverdades. Ele contou-lhe a história de Jones, Aaronson eRutherford, e do momentoso papelzinho que um dia tivera entreos dedos. Não a impressionou grandemente. Na verdade, aprincípio, ela nem compreendeu a situação.- Eram teus amigos?- Não, nunca os conheci. Eram membros do Partido Interno.Além disso, eram muito mais velhos do que eu.Pertênciam ao passado, vinham de antes da Revolução. Eu malos conhecia de vista.- Então por que te preocupas? Não vivem matando gente o tempotodo?Tentou fazê-la compreender.- Foi um caso excepcional. Não foi apenas um assassínio.Percebes que o passado, a partir de ontem, foi abolido? Sesobrevive nalguma parte, é em alguns objetos sólidos, sempalavras ligadas a ele, como naquele pedaço de vidro. Já nãosabemos quase nada sobre a Revolução e os anos anteriores à

Revolução. Todos os registros foram destruidos oufalsificados, todo livro reescrito, todo quadro repintado,toda estátua, rua e edifício rebatizado, toda data alterada.E o processo continua, dia a dia, minuto a minuto. A históriaparou. Nada existe, exceto um presente sem-fim no qual oPartido tem sempre razão. Eu sei, naturalmente, que o passadoé falsificado, mas jamais me seria possível prová-lo, mesmosendo eu o autor da falsificação. Depois de feito o serviço,não sobram provas. A única prova está dentro da minha cabeça,e não sei com certeza se outros seres humanos partilhamminhas recordações. Apenas naquele caso, em minha vida toda,possuí prova real, concreta, depois do acontecimento... anosdepois.- E de que adiantou?- Não adiantou nada, porque a joguei fora uns minutos depois.Porém se a mesma coisa acontecesse hoje, eu guardaria aprova.- Ora, eu não! Estou disposta a correr riscos, mas só porcoisas que valham a pena, não por causa de pedacinhos depapel. Que poderias fazer com o recorte, se o guardasses?- Pouca coisa, talvez. Mas era prova. Poderia ter semeadoalgumas dúvidas, aqui e ali, supondo que ousasse mostrá-lo aalguém. Não creio que possamos alterar coisa alguma nestavida. Mas posso imaginar pequenos nódulos de resistênciabrotando aqui e ali... pequenos grupos de gente que se reune,e vão crescendo, e deixando algumas notas, de modo que ageração seguinte possa continuar a obra.- Não estou interessada na próxima geração, querido. Estouínteressada em nós.- És rebelde só da cintura para baixo - disse ele. Ela achouesta frase excepcionalmente jocosa e atirou os braços emtôrno dele, deliciada.Tampouco tinha Júlia o menor interêsse pelas ramificações dadoutrina do Partido. Sempre que ele começava a falardosprincípios do Ingsoc, duplipensar, a mutabilidade do passadoe a negação da realidade objetiva, e a usar palavras deNovilíngua, ela ficava aborrecida, confusa, e dizia não terjamais prestado atenção a essas coisas. Sabia que era tudolixo, portanto para que se preocupar com ele? Sabia quandoaplaudir e quando vaiar, e era toda a ciência de queprecisava. Quando ele persistia em falar de tais assuntos,

Júlia tinha o hábito desconcertante de adormecer. Era umadessas pessoas que podem adormecer a qualquer momento, emqualquer posição. Falando com ela, Winston percebeu como erafácil aparentar ortodoxia, sem ter a menor noção do que fosseortodoxia. De certo modo, o ponto de vista do Partido seimpunha com mais êxito às pessoas incapazes de compreendê-lo.Aceitavam as mais flagrantes violações da realidade porquejamais percebiam inteiramente a enormidade do que se lhesexigia, e não estavam suficientemente interessadas paraobservar o que acontecia. Graças à falta de compreensãopermaneciam sãs de juizo. Apenas enguliam tudo, e o queenguliam não lhes fazia mal, porque não deixava resíduo, domesmo modo que um grão de milho passa, sem ser digerido, pelocorpo de uma ave.14Por fim acontecera. Chegara a esperada mensagem. Pareceu-lheque a vida toda estivera esperando aquilo.Caminhava pelo longo corredor do Ministério e estava quase nolocal onde Júlia lhe metera o bilhete na mão quando percebeuque o seguía alguém, mais encorpado que ele. Essa pessoa,fosse quem fosse, tossiu um pouco, como um prelúdio à fala.Winston parou abruptamente e voltou-se. Era O'Brien.Afinal encontravam-se face a face, e pareceu-lhe que o seuúnico impulso era fugir. O coração martelava furiosamente.Não conseguiria falar. O'Brien, todavia, continuara no mesmomovimento, colocando a mão por um momento no braço deWinston, de modo que agora caminhavam lado a lado. Começou afalar com a solene cortesia característica que tanto odiferenciava da maioria dos membros do Partido Interno.- Tinha esperança de poder-te falar - disse. - Li outro diano Times um teu artigo em Novilíngua. Tens um interesse deerudito na Novilíngua, não é?Winston recuperara um pouco do seu auto-controle.- Erudito, não. Sou um mero amador. Não é o meu forte. Nuncative nenhuma interferência na construção do idioma.- Mas o escreves com muita elegância - insistiu O'Brien.- E não é apenas minha opinião. Recentemente, conversei comum amigo teu, que é um perito. No momento, foge-me da memóriao nome dele.O coração de Winston tornou a pular, doloridamente. Erainconcebível que aquelas palavras não fossem referência aSyme. Porém Syme não estava apenas morto, fora abolido, erauma impessoa. Seria mortalmente perigoso fazer-lhe

uma referência identificável. A observação de O'Briendeveria, evidentemente, ser tomada como sinal, código.Dividindo uma pequena crimidéia, os dois tornavam-secúmplices. Tinham continuado pelo corredor, mas de repenteO'Brien se deteve. Com a amistosidade curiosa e desarmanteque sempre lograva comunicar ao gesto, recolocou os óculos nonariz. E continuou:- O que eu de fato queria te dizer, a propósito do artigo, éque notei o uso de duas palavras obsoletas. Que se tornaramobsoletas muito recentemente. Já viste a décima edição doDicionário de Novilíngua?Não. Não creio que já tenha sido publicado. No Departamentode Registro ainda usamos a nona.- Creio que a décima edição só será publicada daqui a algunsmeses. Mas foram preparados alguns exemplares especiais, deamostra. E eu recebi um. Talvez gostasses de examiná-lo?- Apreciaria imenso - disse Winston, percebendo imediatamenteaonde levava a conversa. Algumas novidades são muitoengenhosas. A redução do número de verbos, por exemplo...creio que gostarás de ver isso. Vejamos, mando-te ummensageiro te entregar o dicionário? O pior é queinvariàvelmente me esqueço de tudo. O melhor, talvez, seriaires buscá-lo no meu apartamento, à hora que quisesses.Espera, que já te dou meu enderêço. Estavam parados dianteduma teletela. Um tanto distraido, O'Brien procurou em doisbolsos e deles tirou um pequeno canhenho de capa de couro euma lapiseira-tinta, de ouro. Logo abaixo da teletela, emposição tal que pudesse ser lido por quem estivesse deplantão no outro extremo do fio do aparelho, ele rabiscou umenderêço, arrancou a página e deu a Winston.- Em geral estou em casa à noite - disse ele. - Se nãoestiver, minha empregada te entregará o Dicionário.E afastou-se, deixando Winston com o pedaço de papel que,desta vez, não havia necessidade de esconder. Não obstante,decorou-o cuidadosamente e algumas horas mais tarde jogou-ono buraco da memória, com um maço de outros papéis.Tinham conversado um par de minutos, no máximo. O episódio sópodia ter um significado. Fora engendrado como meio de dar aWinston o enderêço de O'Brien. Isto era necessário porque,exceto pela pergunta direta, não era nunca possível descobrironde morava uma pessoa. Não havia guias nem indicadores deespécie alguma. \"Se queres me ver, podes me encontrar aqui,\"era o sentido da mensagem de O'Brien. Talvez até houvesse umrecado oculto no Dicionário. Fosse como fosse, uma coisa eracerta. A conspiração com que sonhava existia, e ele alcançara

a sua periferia.Sabia que mais cedo ou mais tarde obedeceria ao chamado deO'Brien. Talvez amanhã, talvez após longa espera... não tinhacerteza. O que estava acontecendo era apenas odesenvolvimento de um processo iniciado muitos anos antes. Oprimeiro passo fora um pensamento secreto, involuntário, osegundo fora o início do diário. Passara das idéias àspalavras, e agora das palavras aos atos. O último passo eraalgo que teria lugar no Ministério do Amor. Ele o aceitara. Ofim estava contido no comêço. Mas era assustador; ou maisexatamente, era um prenúncio de morte, como se estivessemenos vivo. Até mesmo falando com O'Brien, um tiritar de friose apossara do corpo de Winston, quando o significado daspalavras calou. Tivera a sensação de pisar na terra úmida deum túmulo, e não era consôlo algum saber que o túmulo láestava, à sua espera.15Winston acordara com os olhos rasos dágua. Júlia rolousonolenta para ele, murmurando algo que poderia ser Que foi?Sonhei - começou ele. E calou-se. Era complexo demais paratraduzi-lo em palavras. Havia o sonho em si e havia, ligada aele, uma lembrança consciente, que penetrara no seu espíritoalguns segundos depois de acordar.Deixou-se ficar de costas, olhos fechados, ainda embebido daatmosfera do sonho. Era um vasto sonho luminoso em que toda asua vida parecia estirar-se diante dele como uma paisagemnuma tarde de verão, depois da chuva. Tudo acontecera dentrodo pêso de papel, mas a superfície do vidro era a abóbadaceleste, e dentro da abóbada estava tudo inundado de luzclara e suave na qual se podia enxergar distânciasintermináveis. O sonho também estava incluido - com efeito,de certo modo consistira nisso - por um gesto do braço feitopor sua mãe, e repetido trinta anos mais tarde pela judía quevira no cinema, tentando proteger o filhinho contra as balas,antes que os helicópteros fizessem explodir os dois.- Sabes - perguntou - que até êste momento eu acreditava tera'ssassinado minha mãe?- Por que a assassinaste? - indagou Júlia, quase a dormir.- Não a assassinei. Não fisicamente. No sonho, recordara-seda sua última visão da mãe, e alguns minutos após despertarhavia voltado à mente um bando de pequenos acontecimentos com

ela relacionados. Era uma lembrança que ele devia terdeliberadamente excluido da consciência durante muitos anos.Não tinha certeza da data, mas não podia ter menos de dezanos, talvez doze, quando sucedera.O pai sumira havia algum tempo; quanto tempo antes, não podiaprecisar. Lembrava-se melhor das circunstâncias agoniadas daépoca: os pânicos periódicos dos ataques aéreos, a corrida àsestações do trem subterrâneo, as pilhas de escombros por todaparte, as proclamações ininteligíveis pregadas nas esquinas,os bandos de rapazes todos de camisa da mesma cor, as filasenormes diante das padarias, o metralhar intermitente nadistância - e acima de tudo, o fato de nunca haver o bastantepara comer. Lembrava-se de longas tardes passadas com outrosmeninos remexendo em latas de lixo e montes de refugo,catando os talos de folhas de repolho, cascas de batatas, àsvezes até pedaços de côdea de pão velho que limpavamcuidadosamente das cinzas. e também da espera da passagem decaminhões que faziam determinado itinerário, carregandocomida para o gado e que, sacolejando nos trechos de maucalçamento, às vezes derrubavam fragmentos de torta dealgodão.Quando o pai desapareceu, sua mãe não demonstrou nenhumasurpresa ou mágua violenta, porém uma repentina mudança aacometeu. Parecia ter perdido a fibra. Era evidente, até paraWinston, que ela esperava algo que deveria acontecer. Faziatodo o necessário - cozinhava, lavava, remendava, fazia acama, varria, espanava - sempre muito devagar e com umacuriosa economia de gestos supérfluos, como uma figura criadapor um artista e que se movesse por si mesma. O corpo grandee bem proporcionado pareceu cair num marasmo natural. Durantehoras a fio ficava sentada quase imóvel na cama, cuidando dafilhinha, uma criança miúda, enfermiça, muito calada, de doisou três anos, e a quem a magreza dera feições de símio. Deraro em raro, tomava Winston nos braços e apertava-o contra oseio longo tempo, sem dizer nada. E ele percebia, apesar dapouca idade e do seu egoismo, que esta atitude era ligada auma coisa imencionável que não tardaria a ocorrer.Lembrava-se do quarto em que moravam, um aposento escuro,abafado, que parecia cheio, pela metade, com uma cama decabeceira branca. Na guarda da lareira havia um fogareiro agás, e uma prateleira onde ficavam os gêneros. No patamar,fora do quarto, havia uma pia de louça marrom, comum a váriasfamílias. Lembrava-se do corpo estatuesco de sua mãe,inclinado sobre o fogareiro, mexendo a caçarola.

Sobretudo lembrava-se da sua fome contínua, e das brigasencarniçadas e sórdidas às refeições. Perguntava a sua mãe,chocarreiramente, milhares de vezes, porque não havia maiscomida, gritava e esbravejava com ela (recordava-se até dostons de sua voz, que estava começando a mudar prematuramentee de vez em quando reboava de maneira especial), ou tentavauma nota patética e nasal, num esfôrço de ganhar mais que oseu quinhão. E ela estava disposta a darlhe mais que oquinhão. Considerava natural que ele, \"o rapaz\", recebesse amaior porção; por mais que lhe desse, porém, eleinvariàvelmente pedia mais. Em cada refeição ela lhe pediaque não fosse egoista e lembrasse que a irmãzinha doentetambém precisava de alimento, mas era inútil. Ele chorava deraiva quando a mãe parava de servi-lo, tentava arrancar-lhedas mãos a caçarola e a colher, furtava bocados do prato dairmã. Sabia que assim as condenava à fome, mas não podiaevitá-lo; sentia-se até com direito a agir dessa forma. Afome clamorosa que tinha na barriga parecia justificá-lo.Entre as refeições, se a mãe não vigiasse, ele constantementepilhava as magras provisões da prateleira.Um dia, foi distribuida uma ração de chocolate. Havia semanasou meses que não se via chocolate. Winston lembrava-se commuita clareza daquele precioso pedacinho de chocolate. Erauma barra de duas onças (naquele tempo ainda se falava emonças) para os três.' Evidentemente, devia ser dívidida emtrês partes iguais. De repente, como se ouvisse a voz deoutrem, ele se ouviu exigindo, com voz grossa e forte, quelhe dessem a barra toda. A mãe respondeu-lhe que não fosseguloso. Houve uma longa e incômoda discussão, que durouhoras, com gritos, uivos, lágrimas, queixas, acordos. Airmãzinha, agarrada à mãe com as duas mãos, exatamente comoum filhote de macaco, olhava-o com grandes olhos doridos. Porfim, a mãe quebrou a barra em quatro pedaços iguais, dandotrês a Winston e o último à menina. A garota apanhou e ficoua olhá-lo, feito água parada, talvez sem saber o que fosse.Winston observou-a um momento. Depois, com um bote repentinoe célere, arrancou o pedaço de chocolate da mão da irmã ecorreu para a porta.- Winston, Winston! - chamou sua mãe. - Volta e devolve ochocolate da tua irmã!Ele parou, mas não voltou. Os olhos ansiosos de sua mãe ofixavam. Naquele momento ela estava pensando na coisa que elenão sabia o que fosse, mas que deveria acontecer. A menina,consciente de ter sido furtada, gemia dèbilmente. A mulher

passou o braço em tôrno da filha e apertou-lhe o rosto contrao peito. Naquele gesto havia algo que revelou a Winston: suairmã estava morrendo. Fez meia-volta e disparou escadaabaixo, o chocolate a melar-lhe os dedos.Nunca mais tornara a ver a mãe. Depois de devorar ochocolate, sentira-se um tanto envergonhado de si mesmo eficara na rua várias horas, até a fome lhe indicar o caminhode casa. Quando chegou, a mãe desaparecera. Naquela época,isso já-se estava tornando normal. Nada sumira do quarto,exceto a mulher e a filha. Não tinham levado roupa alguma,nem mesmo o capote da mãe. Até aquele dia, Winston não sabiacom certeza se ela estava morta ou não. Era perfeitamentepossível que a tivessem apenas enviado a uma coloniacorrecional. Quanto à irmã, poderia ter sido mandada, comoWinston, a um dos orfanatos surgidos em consequência daguerra civil; ou podia ter sido levada para o campo com suamãe, ou meramente abandonada nalguma parte, para morrer.O sonho ainda estava vívido no seu espírito, especialmente ogesto protetor do braço no qual parecia se conter todo o seusignificado. Winston lembrou-se de outro sonho, de dois mesesantes. Na posição exata em que sua mãe sentara na camamiseranda, de colcha branca, com a filha agarrada ao peito,ela aparecera no navio naufragado, bem abaixo dele, eafundando cada vez mais, sempre a fitá-lo através da águaescura.Contou a Júlia a história do desaparecimento de sua mãe. Semabrir os olhos, ela rolou sobre si mesma e instalou-se emposição mais confortável.- Eu te vejo como uma fèrinha diabólica, naquela época -disse ela, indistintamente. - Tôdas as crianças são féras.- São, mas o importante da história... Pela sua respiraçãopausada tornou-se evidente que ela adormecera de novo. Elegostaria de ter continuado falando da mãe. Não supunha, peloque ainda se lembrava dela, que tivesse sido mulher fora docomum, e muito menos inteligente; e no entanto possuira umaespécie de nobreza, de pureza, simplesmente porque obedecia acânones que eram seus próprios. Seus sentimentos eram delamesma, e nãopodiam ser alterados pelas circunstâncias externas. Não lheocorreria que um ato ineficaz se tornaria, por isso mesmo,sem sentido. Quando se ama alguém, ama-se, e quando não se

tem nada mais para lhe dar, ainda se lhe dá amor. Acabado ochocolate; a mãe agarrara a menina. Era inútil, não adiantavanada, não produzia mais chocolate, não evitava nem a morte damenina nem a sua; mas parecia-lhe natural fazê-lo. Arefugiada do navio também cobrira o menininho com o braço,que não era mais defesa contra as balas do que uma folha depapel. O que o Partido fizera de terrível era persuadir osseus membros de que meros impulsos, meras sensações, nãotinham importância, ao mesmo tempo que lhes roubava todopoder sobre o mundo material. Uma vez no jugo do Partido, oque a pessoa sentisse ou não, o que fizesse ou deixasse defazer, literalmente não fazia diferença. Acontecesse o queacontecesse, o indivíduo sumia, e nem ele nem seus atos eramjamais mencionados. Era banido do rio da história. E noentanto, aos cidadãos de apenas duas gerações atrás, isto nãoteria parecido importante, porque não tentavam alterar ahistória. Eram governados por lealdades particulares que nãopunham em dúvida. O que importava eram relações individuais,e podia ter valor em si um gesto completamente irrelevante,um abraço, uma lágrima, uma'palavra dita a um moribundo. Derepente, ocorreu-lhe que os proles tinham continuado assim.Não eram leais a um partido, país ou ideologia, eram leaisaos seus semelhantes. Pela primeira vez na vida não desprezouos proles nem pensou neles apenas como fôrça inerte que umdia ganharia vida e regeneraria o mundo. Os proles tinhamcontinuado humanos. Não se haviam endurecido por dentro.Haviam conservado as emoções primitivas que ele própriotivera de reaprender por esfÔrço consciente. E assimraciocinando ele se lembrou, sem ligação aparente, de comovira, havia algumas semanas, uma mão amputada na rua e como achutara para a sargeta, como se fosse um talo de couve.- Os proles são seres humanos - disse ele, em voz alta.- Nós não somos humanos.- Por que? - quis saber Júlia, que acordara outra Vez. Elemeditou uns instantes.- Já te ocorreu que o melhor que temos a fazer é simplesmenteir embora daqui, antes que seja tarde demais, e nunca maisnos vermos?- Sim, querido, já me ocorreu diversas vezes, Mas não, nãovou sair, e pronto.- Temos tido sorte - disse ele - mas não pode durar muitotempo. És jovem. Pareces normal e inocente. Se te afastas degente como eu, podes viver mais cinqüenta anos.- Não. Já pensei em tudo. O que fizeres, eu faço também. Enão te afobes. Tenho jeito para viver.- Podemos ficar juntos mais seis meses... um ano...não há maneira de saber. No fim, é certo que nos separem.

Percebes como seremos solitários? Quando nos peguem, nãohaverá nada, literalmente nada, que possamos fazer um pelooutro. Se eu confessar, êles te fusilam, e se eu recusarconfessar, te fusilam do mesmo modo. Nada que eu possa dizerou fazer, ou proibir-me de dizer, te adiará de cinco minutosa hora da morte. Nem ao menos saberemos se o outro estarámorto ou vivo. Ficaremos completamente inermes. A única coisaque importa é que não atraiçoemos um ao outro, embora nemisso faça a menor diferença.- Se te referes à confissão, ah, isso confessaremos. Todomundo sempre confessa. Não podes evitar. Êles torturam agente.- Não, não é confessar. Confissão não é traição. O que digasou faças não importa. O que importa são os sentimentos. Seconseguirem me obrigar a deixar de te amar... isso seriatraição.Ela raciocinou.- Isso não podem fazer. É a única coisa que não podem. Podemte fazer dizer« qualquer coisa. .. tudo... mas não podem teobrigar a acreditar. Não penetram na gente.- Não - ele concordou, um pouco mais esperançado.- É verdade. Não penetram na gente. Se podes sentir que valea pena continuar humano, mesmo que isso não dê o menorresultado, terás vencido os torturadores.Ele pensou na teletela com seu ouvido insone. Podiam espionaro indivíduo noite e dia, mas se ele não perdesse a cabeçaainda conseguia ludibriá-los. Com toda a sua sagacidade, nãotinham jamais conquistado o segrêdo de descobrir o que pensaoutro ser humano. Talvez isso fosse menos verdade quando ocídadão lhe caisse nas unhas. Não se sabia o que aconteciadentro do Ministério do Amor, mas era possível adivinhar:torturas, drogas, delicados instrumentos que registravam asreações nervosas do paciente, e o desgaste gradual pela faltade sono, a solidão, o interrogatório persistente. Pelo menos,seria impossível ocultar fatos. Podiam ser encontrados pelapergunta, e arrancados pela tortura. Mas se o objetivo eranão tanto continuar vivo como continuar humano, que diferençapoderia fazer, no fim? Não podiam alterar os sentimentos doindivíduo: nem ele próprio o consegue, mesmo que o deseje.Podiam desnudar, nos mínimos detalhes, tudo quanto houvessefeito, dito ou pensado; mas o imo do coração, cujofuncionamento é um mistério para o próprio indivíduo, continuava inexpugnável.16Haviam resolvido, por fim se haviam resolvido! A sala em queestavam era comprida e suavemente iluminada. A teletela forareduzida a um murmúrio; a maciez e espessura do tapete azul

dava a impressão de se andar no veludo. No extremo da sala,O'Brien estava sentado a uma mesa, sob uma lâmpada de abajurverde, com um monte de papéis de cada lado. Nem se dignaralevantar o olhar quando o criado introduziu Júlia e Winston.O coração de Winston batia com tanta fôrça que duvidava poderfalar. Haviam resolvido, haviam-se resolvido afinal, era tudoque conseguia pensar. Fôra ousadia ir à casa de O'Brien, epura loucura chegar à sua porta com Júlia; embora fosseverdade que tivessem ido por caminhos diferentes apenas seencontrando diante da porta. Mas era preciso muita coragem eesfôrço nervoso para entrar num lugar dêsses. Só em ocasiõesmuito raras se viam por dentro as residências do PartidoInterno, ou se visitava o bairro em que moravam os chefes.Tôda a atmosfera do enorme edifício de apartamentos, ariqueza e a vastidão de tudo, os cheiros fora do comum de boacomida e bom fumo, os elevadores silenciosos e incrivelmenterápidos, disparando para cima e para baixo, os criados dejaqueta branca, sempre apressados - era tudo intimidante.Embora Winston tivesse um bom pretexto de ali estar, a cadapasso assombrava-o o medo de que um guarda de farda negraaparecesse de repente, ao dobrar uma esquina, exigisse seuspapéis e o mandasse embora. O criado de O'Brien, porém,admitira os dois sem titubear. Era um homenzinho de cabeloescuro,paletó branco, cara losangular, inteiramente semexpressão, e que poderia passar por chinês. O corredor peloqual osguiou era atapetado, e tinha paredes creme, com rodapébranco, tudo imaculadamente limpo. Era de dar medo.Winston não se lembrava de ter visto um corredor cujasparedes não fossem marcadas da sujeira do contacto de corposhumanos.O'Brien tinha um pedaço de papel entre os dedos e pareciaestudá-lo atentamente. O rosto largo, inclinado de modo quese podia ver a linha do naríz, parecia ao mesmo tempoformidável e inteligente. Dur ante talvez vinte segundos elecontinuou imóvel. Depois puxou o falascreve para perto editou um recado no jargão híbrido dos Ministérios: - Itens umvírgula cinco vírgula sete aprovados completos ponto sugestãocontida item seis dupliplus ridícula quase crimidéia cancelarpontos incontinuar construtivo anteobtendo pluscompletoorçamento máquinas extracustos ponto fim mensagem.

Levantou-se deliberadamente da cadeira e aproximou-se deles,sem ruido, andando pelo tapete espesso. Com as palavras emNovilíngua, parecia ter deixado para trás um pouco da suaatmosfera oficial, porém a sua catadura era mais fechada doque de costume, como se estivesse aborrecido com ainterrupção. Ao terror que Winston já sentia misturou-se derepente um traço de embaraço comum. Pareceu-lhe perfeitamentepossível que houvesse cometido um êrro estúpido. Na verdadeque prova tinha de que O'Brien fosse um conspirador político?Nada, além de uma chispa no olhar e uma única observaçãoequívoca: fora isso, só a sua imaginação secreta, fundada numsonho. Não podia ao menos fingir que fora pedir o Dicionárioemprestado, pois nesse caso seria impossível explicar apresença de Júlia. Quando O'Brien passou pela teletela, umpensamento pareceu vir-lhe à mente. Deteve-se, voltou-se eapertou um comutador na parede. Houve um estalido sêco e avoz parou.Júlia soltou uma pequena exclamação, uma espécie de guinchode surpresa. Mesmo em meio ao seu pânico, Winston ficou tãoadmirado que não pôde deixar de exclamar:- Desligou a teletela!- Sim - disse O'Brien - desliguei. Nós temos êsse privilégio.Estava na frente deles. O corpanzil sólido dominava o casal,e a expressão fisionômica continuava indecifrável. Estavaesperando, severo, que Winston falasse, mas do que?Era bem concebível que não passasse de um homem ocupado,surpreendido e irritado com a interrupção. Ninguém falou.Depois de calar-se a teletela a sala parecia quieta como umtúmulo. Os segundos passaram, enornes. Com dificuldade,Winston continuava a fixar seus olhos nos de O'Brien. Derepente, a carranca se dissolveu no que poderia ser o começodum sorriso. Com seu gesto característico, O'Brien recolocouos óculos no nariz.- Falo eu, ou falas tu?- Eu falo - ofereceu-se Winston prontamente. - Aquilo estámesmo desligado?- Está. Tudo desligado. Estamos sós.- Viemos aqui porque... Fez uma pausa, percebendo pelaprimeira vez como eram vagos os seus motivos. Como não sabiaque espécie de auxílio esperava de O'Brien, não era fácildizer a que fora. Continuou, consciente de que suas palavrasdeviam parecer fracas e pretenciosas:- Acreditamos que existe alguma conspiração, algumaorganização secreta trabalhando contra o Partido, e que estásenvolvido nela. Queremos também trabalhar nela. Somosinimigos do Partido. Não acreditamos nos princípios doIngsoc. Somos ideocriminosos. Também somos adúlteros. Conto

tudo isto porque queremos nos entregar à tua mercê. Se queresincriminar-nos de qualquer outra forma, estamos prontos.Calou-se e olhou sobre o ombro, com a impressão de que aporta se abrira. De fato, o criado de cara amarela surgirasem bater. Winston viu que ele trazia uma bandeja com umfrasco de cristal e copos.- Martin é dos nossos - disse O'Brien, impassível. -Traz a bebida aqui, Martin. Põe a bandeja na mesa redonda.Temos cadeiras suficientes? Então sentemos e conversemoscomodamente. Traz uma cadeira para ti, Martin. Falamos denegócios. Podes deixar de ser criado durante dez minutos.O homenzinho sentou-se, completamente à vontade, e no entantoainda com ar de servo, o ar de um criado de quarto que gozade um privilégio. Winston considerou-o de soslaio. Ocorreu-lhe que a vida toda do homem era desempenhar um papel, e queachava perigoso abandonar, por um momento que fosse, suafalsa personalidade. O'Brien tomou a garrafa de cristal pelopescoço e encheu os copos com um líquido vermelho escuro.Provocou em Winston vagas memórias de algo que vira haviamuito tempo numa parede ou num tapume - uma vasta garrafa -composta de luzes que pareciam borbulhar e despejar oconteúdo num copo. Visto de cima, o líquido parecia quasenegro, mas no frasco brilhava como um rubi. Tinha um cheiroagri-doce. Viu Júlia apanhar o copo e cheirá-lo com cândidacuriosidade.- Chama-se vinho - informou O'Brien, com a sombra dumsorriso. - Sem dúvida leste a respeito do vinho, nos livros.Mas não são muitos do Partido Externo que o conhecem. - Orosto solenizou-se de novo, e ele ergueu o copo:- Creio que devemos beber um brinde. À saúde do nosso chefe,Emmanuel Goldstein.Winston agarrou o copo com certa ânsia. Vinho era algo comque sonhára e sobre o qual lera. Como o pêso de papel ou ascantigas semi-esquecidas do sr. Charrington, pertencia aopassado, desaparecido e romântico, o tempo de dantes, comogostava de chamá-lo secretamente, nos seus pensamentos. Semsaber por que motivo, sempre acreditara que o vinho tinhasabor intensamente doce, como de geléia de amora, e um efeitoinebriante imediato. Mas quando o enguliu, a bebida lhecausou uma decepção. A verdade èra que, depois de beber gindurante anos, mal podia prová-lo. Depôs na mesa o copo vazio.- Então Goldstein existe?- Sim, existe, e está vivo. Onde, não sei.- E a conspiração... a organização? Existe? Não é merainvenção da Polícia do Pensamento?- Existe, sim. Chama-se a Fraternidade. Nunca saberás muitomais a respeito da Fraternidade, exceto que existe e que

pertences a ela. Voltarei ao assunto daqui a pouco. - Olhou orelógio-pulseira. - É imprudente, mesmo para os membros doPartido Interno, desligar a teletela mais de meia-hora. Nãodevias ter vindo com a moça, e tereis de sair separados. Tu,camarada - e índicou Júlia com a cabeça - sairás antes. Temosuns vinte minutos à nossa disposição. Compreendeis que devofazer algumas perguntas. Em termos gerais, a que estaisdispostos?- A qualquer coisa de que formos capazes - respondeu Winston.O'Brien voltara-se um pouco na cadeira, de modo que estava defrente a Winston. Quase não considerava Júlia, parecendoachar que Winston falava por ela. Piscou repetidamente, ecomeçou a fazer as perguntas em voz baixa, sem expressão comose fosse uma rotina, uma espécie de catecismo, cujasrespostas já lhe fossem conhecidas.- Estás disposto a dar a vida?- Estou.- Estás disposto a assassinar?- Estou.- A cometer atos de sabotagem que poderão causar a morte decentenas de inocentes?- Sim.- A trair tua pátria às potências estrangeiras?- Sim.- Estás disposto a fraudar, forjar, fazer chantagem,corromper a mente infantil, distribuir entorpecentes,incentivar a prostituição, disseminar dôenças venéreas -fazer tudo quanto possa causar a desmoralização e debilitar opoder do Partido?- Sim.- Se, por exemplo, servisse aos nossos interesses atirarácido sulfúrico no rosto duma criança, farias isso?- Faria, sim.- Estás disposto a perder tua identidade e viver o resto datua vida como garçon ou estivador?- Estou.- Estás disposto a te suicidar, se e quando isso te forordenado?- Sim.- Estais dispostos, os dois, a vos separardes e nunca maisvos tornardes a ver?- Não! - irrompeu Júlia. A Winston pareceu haver uma longapausa antes de responder. Por um momento até lhe pareceuestar privado da fala. A língua movia-se sem som, formandoprimeiro a sílaba de uma palavra, depois de outra, inúmerasvezes. Até pronunciá-la, não sabia ao certo o que diria.- Não - repetiu, por fim.

- Fizeste bem de me dizer - disse O'Brien. - É necessáriosaber tudo.Voltou-se para Júlia e acrescentou, com voz um pouco maisexpressiva:- Compreendes que, mesmo que ele sobreviva, talvez sejapessoa diferente? Pode ser que tenhamos de dar-lhe novaidentidade. Seu rosto, seus movimentos, a forma de suas mãos,a cor do cabelo... até a voz poderão ser diferentes. E tutambém podes te transformar numa pessoa diferente. Nossoscirurgiões podem alterar as pessoas, torná-lasirreconheciveis. Às vezes é necessário. Às vezes chegamos aamputar um membro.Winston não pôde impedir outra olhada de soslaio ao rostomongol de Martin. Não havia cicatrizes visíveis. Júliaempalidecera um pouco, e suas sardas se destacavam mais,porém olhava O'Brien nos olhos. Murmurou algo que parecia serassentimento.- Bom. Então está resolvido. Havia uma caixa de cigarros, deprata, sobre a mesa.Com ar distraído, O'Brien ofereceu-a aos outros, serviu-se edepois levantou-se, pondo-se a passear de um lado para outroda sala, como se pensasse melhor de pé. Eram cigarros muitobons, bem feitos e firmes, de papel extraordinàriamentesedoso. O'Brien tornou a olhar o relógio-pulseira.- Melhor voltares à cozinha, Martin - disse ele. -Vou ligar daqui a um quarto de hora. Examina bem a caradêstes camaradas antes de ires. Hás de revê-los. Eu talveznão.Exatamente como fizera à porta, o homenzinho de olhos escurosos fitou com firmeza. Não havia em seus modos uma fagulha deamabilidade. Estava aprendendo de cor as fisionomias, porémnão sentia interesse por êles. Winston imaginou que um rostosintético talvez fosse incapaz de mudar de expressão. Semfalar nem fazer qualquer cumprimento, Martin saiu, fechando aporta atrás de si, em silêncio. O'Brien continuava passeandopela sala, uma das mãos no bolso do macacão negro, a outrasegurando o cigarro.- Compreendeis que lutareis no escuro? Estareis sempre noescuro. Recebereis ordens e obedecereis, sem saber porque.Mais tarde vos mandarei um livro do qual aprendereis averdadeira natureza da sociedade em que vivemos, e aestratégia pela qual a destruiremos. Quando tiverdes lido olivro, sereis membros integrais da Fraternidade. Mas entre osobjetivos gerais pelos quais lutamos, e as tarefas imediatasdo momento, nada sabereis. Digo-vos que existe aFraternidade, mas não posso dizer-vos se conta com cemmembros, ou dez milhões. Pelo vosso conhecimento pessoal, não

podereis dizer que chega a uma dúzia. Tereis três ou quatrocontactos, que serão renovados de tempos em tempos, à medidaque desaparecerem. Como êste foi vosso primeiro contacto,será conservado. Quando receberdes ordens, será de mim. Seconsiderarmos necessário comunicar-nos convosco, será pormeio de Martin. Quando fordes por fim presos, confessareis. Éinevitável. Mas tereis pouquíssimo para confessar, além devossas próprias ações. Não conseguireis trair senão umpunhado de gente sem importância. Provàvelmente não traireisnem a mim. A essa altura, já estarei morto, ou terei metransformado em pessoa diferente, com cara diferente.Continuou a caminhar de um lado para outro sobre o tapetemacio. Apesar do volume do seu corpo, havia uma graça notávelnos seus movimentos. Destacava-se até no gesto que metia amão no bolso, ou manipulava um cigarro. Mais do que de fôrça,dava a impressão de confiança e de compreensão, colorida deironia. Por mais sério que fosse, não tinha nada daparcialidade estreita que distingue o fanático. Quando falavade assassínio, suicídio, moléstias venéreas, membrosamputados e rostos alterados, era com um ligeiro ar dezombaria. \"Isto é inevitável,\" parecia dizer o seu tom devoz. \"Isto é o que temos de fazer, sem piedade. Mas não é oque faremos quando a vida de novo valer a pena ser vivida.\"Uma onda de admiração, quase de adoração, fluiu de Winston.Esquecera-se da figura remota de Goldstein. Quando se olhavapara os ombros poderosos de O'Brien e sua cara de feições tãomaciças, tão feia e no entanto tão civilizada, era impossívelacreditar que pudesse ser derrotado. Não havia estratagemaque ele não pudesse vencer, nenhum perigo que não pudesseprever. Até Júlia parecia impressionada. Deixara o cigarroapagar e agora escutava atentamente. O'Brien continuou:- Já ouviste boatos da existência da Fraternidade. Sem dúvidajá tens ídéia dela. Imaginaste, provavelmente, um vasto mundoclandestino de conspiradores, reunindo-se secretamente, emporões, rabiscando mensagens nas paredes, reconhecendo-se pormeio de códigos ou gestos especiais. Nada disso existe. Osmembros da Fraternidade não têm meio algum de se reconhecer eé impossível a qualquer um conhecer a identidade de mais queoutros poucos. O próprio Goldstein, se caisse nas mãos daPolícia do Pensamento, não poderia fornecer uma listacompleta dos conspiradores, nem informação que permitissecompilá-la. Não existe essa lista. A Fraternidade não podeser eliminada porque não é uma organização no sentido comumda palavra. Nada a cimenta, exceto uma idéia, uma idéiaindestrutível. Jamais terás

nada para te sustentar, exceto, a idéia. Não teráscamaradagem nem incentivo. Quando por fim fores apanhado, nãoterás socorro. Nunca ajudamos nossos militantes. No máximo,quando é absolutamente necessário que alguém silencíe,conseguimos às vezes meter uma lâmina de barba na cela doprêso. Terás que te acostumar a viver sem resultados e semesperança. Trabalharás algum tempo, serás prêso, confessaráse morrerás. São os únicos resultados que verás. Não hápossibilidade de se dar uma mudança perceptível durante nossavida. Nós somos os mortos. Nossa única vida verdadeira estáno futuro. Nela tomaremos parte como punhados de pó eesquírolas de ossos. Mas a que distância está êsse futuro,não há meio de saber. Pode ser daqui a mil anos. No momento,nada é possível, exceto alargar aos poucos a zona de sanidademental. Não podemos agir coletivamente. Só podemos expandirnosso conhecimento de indivíduo a indivíduo, geração apósgeração. Em face da Policia do Pensamento, não há outro modo.Parou e pela terceira vez olhou para o relógio.- Já é quase hora de saires, camarada - disse a Júlia.- Espera, o frasco ainda está pela metade. Encheu os copos eergueu o seu pela haste.- A que brindaremos, desta vez? - perguntou, ainda com amesma leve sugestão de ironia. - À confusão da Polícia doPensamento? À morte do Grande Irmão? À humanidade? Ao futuro?- Ao passado - arriscou Winston.- O passado é mais importante - concordou O'Brien,gravemente. Esvaziaram os copos, e dali a um momento Júlialevantou-se. O'Brien tirou uma caixinha do alto de um armárioe deu-lhe uma pastilha branca, que recomendou dissolver naboca. Era importante, disse ele, não sair cheirando vinho: osascensoristas eram muito observadores. Assim que a porta sefechou sobre a moça pareceu esquecer que ela existia. Deumais uma ou duas passadas e deteve-se.- Há minúcias a providenciar. Tens um esconderijo qualquer?Winston explicou que tinha o quarto da loja do sr.Charrington.- Bastará, por enquanto. Mais tarde, arranjaremos algo paraos dois. É importante mudar de esconderijo frequentemente.Entrementes, vou mandar-te um exemplar do livro... - eWinston reparou que até O'Brien parecia pronunciar aquelapalavra como se estivesse em grifo - o livro de Goldstein,compreendes, assim que for possível. Talvez se passem algunsdias antes de eu conseguir um. Não há muitos exemplares, como

podes imaginar. A Polícia do Pensamento procura-os e destrói-os quase no mesmo ritmo em que são produzidos. Faz poucadiferença, porém. O livro é indestrutível. Se o últimoexemplar sumisse, poderíamos reproduzi-lo quase palavra porpalavra. Levas uma pasta de couro ao escritório? - indagou.- Em geral, levo.- Que jeito tem?- É preta, muito surrada. Com duas alças.- Preta, duas alças, muito surrada... bom. Um dia, no futuropróximo - não posso fixar a data - uma das mensagens da tuatarefa matutina conterá um erro de imprensa, e terás quepedir repetição. No dia seguinte, irás à repartição sem apasta. Nesse dia, na rua, um homem tocará teu braço e dirá\"Acho que derrubaste esta pasta.\" E a que te entregar conteráum exemplar do livro de Goldstein. Deves devolvê-lo dentro decatorze dias.Calaram-se ambos por uns instantes.- Temos um par de minutos, ainda - disse O'Brien.- Tornaremos a nos encontrar... se nos encontrarmos...Winston levantou o olhar para ele.- Onde não há treva? - perguntou, hesitante. O'Brien fez quesim, sem aparentar surpresa.- Onde não há treva - repetiu, como se reconhecesse a alusão.- E agora, queres dizer alguma coisa antes de sair? Dar umrecado? Fazer uma pergunta?Winston raciocinou. Não parecia haver nenhuma outra perguntaa que desejasse resposta; e menos ímpulso ainda de pronunciargeneralidades altissonantes. Em vez de coisas diretamenteligadas a O'Brien ou à Fraternidade, surgiu-lhe na mente umaespécie de figura composta do quarto escuro onde sua mãepassara os últimos dias, o quartinho por cima da loja do sr.Charrington, o pêso de papéis, e a gravura em aço na moldurade pau-rosa. Quase sem querer, perguntou:- Conheces uma cantiga muito velha que começa Laranjas elimões, dizem os sinos de S. Clemente?De novo O'Brien fez que sim com a cabeça. Com uma espécie degrave cortesia, completou a quadra:\"Laranjas e limões, dizem os sinos de S. Clemente,Me deves três vinténs, dizem os sinos de S. Martinho,Quando me pagarás? dizem os sinos de Old Bailey,Quando eu ficar rico, dizem os sinos de Shoreditch.\"

- Sabes o último verso! - exclamou Winston.- Sei, sim. E agora, creio que é hora de te retirares. Esperaum pouco. É melhor te dar uma destas pastilhas.Quando Winston se levantou, O'Brien estendeu a manopla.Apertou-lhe a mão com fôrça, quase quebrando os ossos deWinston. De saída, olhou para trás, mas O'Brien já pareciaestar entregue à tarefa de bani-lo do seu espírito. Estavaesperando, com a mão no comutador da teletela. Por trás dele,eram visíveis a escrivaninha com o abajur verde, o falascrevee as cestas de arame cheias de papéis. O incidente estavaencerrado. Dali a trinta segundos, O'Brien mergulharia no seutrabalho interrompido e de grande importância para o Partido.17Winston estava gelatinoso de cansaço. Gelatinoso era apalavra certa. Ocorreu-lhe espontâneamente. O corpo pareciater não apenas a debilidade da gelatina, como a suatranslucidez. Tinha a impressão de que, se erguesse a mão,conseguiria ver a luz do outro lado. Todo o sangue e a linfase haviam esgotado, num imenso deboche de trabalho, deixandoapenas uma frágil estrutura de nervos, ossos e pele. Tôdas assensações pareciam ampliadas. O macacão roçava-lhe os ombros,a calçada comichava-lhe sob os pés, e até abrir e fechar amão era um esfôrço que fazia as juntas estralarem.Em cinco dias, trabalhara mais de noventa horas. E o mesmoacontecera com todo mundo no Ministério. Agora, estava tudoacabado e, literalmente, não havia mais o que fazer, nenhumatarefa do Partido até o dia seguinte, pela manhã. Podiapassar seis horas no esconderijo e nove na própria cama.Lentamente, à luz do sol moderado daquela tarde, tomou poruma rua suja, na direção da loja do sr. Charrington, semprede olho no aparecimento de alguma patrulha, porémirracionalmente convencido de que aquele dia não havia perigode que o detivessem. A pesada pasta que levava chocava-secontra seus joelhos a cada passo, provocando uma sensação deformigamento na perna. Dentro dela estava o livro, que jáestava em seu poder havia seis dias, e que ainda nãoconseguira abrir, nem mesmo olhar.No sexto dia da Semana do ódio, depois das passeatas,discursos, gritaria, cantoria, bandeiras, cartazes, filmes,esculturas em cera, rufar de tambores e guinchar de clarins,reboar de pés em marcha, ronco das esteiras dos tanques,zumbido dos aviões no ar, troar dos canhões - depois de seisdias de atividade, quando o grande orgasmo se aproximavatrêmulo do clímax e o ódío geral contra a Eurásia secondensara em tamanho delírio que a multidão teria certamenteesquartejado com as unhas os doís mil prisioneiros de guerraeurasianos cujo enforcamento público se realizaria no último

dia - exatamente nesse momento, fora anunciado que a Oceanianão estava em guerra com a Eurásia. Estava em guerra com aLestásia. A Eurásia era aliada.Evidentemente, não se admitiu modificação alguma. Apenas sefez saber, com extrema inesperabilidade e em tÔda parte aomesmo tempo, que a inimiga era a Lestásia e não a Eurásia.Winston estava participando de uma demonstração numa praçacentral de Londres quando o fato ocorreu. Era noite, e osrostos brancos e as bandeiras escarlates estavam banhadas naluz dos refletores. A praça fora tomada por vários milharesde pessoas, inclusive um bloco de mil escolares com ouniforme dos Espiões. Na plataforma enfeitada de vermelhoarengava à massa um orador do Partido Interno, homenzinhomagro com braços desproporcionadamente longos, e umacabeçorra calva sobre a qual dançavam algumas melenas. Figurade um conto fantástico, contorcido de ódio, agarrava com umadas mãos o pescoço do microfone, enquanto com a outra, enormeno extremo do braço ossudo, gadunhava o ar, ameaçadoramente.A voz, metalizada pelos amplificadores, catalogavaincessantemente atrocidades, massacres, deportações,pilhagens, violações, tortura de prisioneiros, bombardeio decivis, propaganda mentirosa, agressões injustas, tratadosdesrespeitados. Era quase impossível escutá-lo sem se deixarconvencer, primeiro, e depois enlouquecer. Com intervalo dealguns momentos a fúria da multidão fervia e a voz do oradorera afogada por um rugido feroz, selvagem, subindoincontrolável de milhares de gargantas. Os berros maisselvagens eram os dos escolares. Havia uns vinte minutos quefalava quando um mensageiro subiu à plataforma e um pedaço depapel foi passado às mãos do demagogo. Ele desenrolou-o semparar; nada se alterou na sua voz, nem nos gestos, nem noconteúdo do que dizia. Mas de repente mudaram os nomes. Semque uma palavra fosse pronunciada nesse sentido, uma onda decompreensão percorreu a massa. A Oceania estava em guerra coma Lestásia! No momento seguinte houve uma tremenda comoção.As faixas, bandeiras e cartazes que adornavam a praça estavamtodos errados! Cerca da metade ostentava caras erradas! Erasabotagem! Os agentes de Goldstein tinham agido! Houve umruidoso interlúdio durante o qual os cartazes foramarrancados das paredes, as bandeiras rasgadas e pisadas. OsEspiões executaram proezas admiráveis, marinhando sobre ostelhados e cortando as faixas presas às chaminés. Dentro deum minuto ou dois tudo acabou. O orador, ainda agarrado aomicrofone, ombros arcados para frente, a mão enorme aindaameaçando, continuara o discurso. Dali a um minuto, os urrosde féra da multidão furiosa de novo rasgaram os ares. O ódiocontinuou exatamente como antes. Apenas o alvo fora mudado.

Em retrospecto, o que impressionara Winston, fora ter oorador passado de um inimigo a outro no meio da frase, nãoapenas sem pausa: sem a menor ofensa à sintaxe. Mas, nomomento, tivera outras coisas a preocupá-lo. Fôra no momentoexato das desordens que um homem, cujo rosto não pôde ver,lhe deu um tapinha no ombro e disse: \"Desculpe, acho quederrubaste tua pasta.\" , E Winston a tomara distraido, semfalar. Sabia que alguns dias se passariam, sem oportunidadede abri-la. No instante em que a demonstração acabara, foradireto ao Ministério da Verdade, embora já fosse quase vintee três horas. Todo o pessoal do Ministério fizera o mesmo.Não havia necessidade das ordens emitidas pelas teletelas,chamando-os aos seus postos.A Oceania estava em guerra com a Lestásia: a Oceania sempreestivera em guerra com a Lestásia. Grande parte da literaturapolítica dos últimos cinco anos tornara-se completamenteobsoleta. Relatórios e reportagens de todo gênero - jornais,livros, panfletos, filmes, faixas sonoras, fotografias - tudoprecisava ser retificado com a velocidade do raio. Emboranenhuma ordem específica, sabia-se que os chefes doDepartamento tencionavam que, dali a uma semana, nãoexistisse em parte alguma qualquer referência à guerra com aEurásia, ou à aliança com a Lestásia. O trabalho eraestafante, e mais ainda porque o processo não podia serchamado pelo seu nome legítimo. No Departamento de Registrotodos trabalhavam dezoito horas cada vinte e quatro, comapenas duas sonecas de três horas. Tinham trazido colchões doporão e armado pelos corredores: as refeições consistiam desanduiches e Café Vitória levados em carrinhos pelosempregados da cantina. Cada vez que Winston parava para irdormir, procurava deixar a escrivaninha limpa, mas cada vezque voltava, de olhos remelentos e doloridos, encontrava maisum monte de cilindros de papel, quelhe cobriam a mesa como uma nevada, quase tapando ofalascreve e transbordando para o chão, de modo que aprimeira tarefa era sempre pô-los em ordem, para ter lugaronde trabalhar. - O pior era que o trabalho não era todopuramente mecânico. Com freqüência, bastava substituir apenasum nome por outro, mas qualquer notícia detalhada exigiacautela e imaginação. Era considerável, o próprioconhecimento de geografia necessário para transferir a guerra

de uma a outra parte do mundo.No terceiro dia, seus olhos doíam insuportàvelmente eprecisava limpar os óculos repetidas vezes. Era como selutasse contra uma esmagadora missão física, algo que podiarecusar e que, no entanto, tinha ânsia neurótica de realizar.Tanto quanto podia se lembrar, não o perturbava o fato de seruma cinica mentira cada palavra que murmurava no falascreve,cada rabisco do seu lápis-tinta. Tinha a ânsia de todos oscolegas do Departamento de realizar uma falsificaçãoperfeita. Na manhã do sexto dia diminuiu o chorrilho depapeletas. Durante quase meia-hora, nada saiu do tubo; depoiscaiu um cilindro, e depois nada. Ao mesmo tempo o trabalhoamainava em toda parte. Um profundo suspiro, embora secreto,levantou-se em toda a repartição. Encerrara-se uma formidandaproeza, que nunca poderia ser mencionada. Era agoraimpossível a qualquer ser humano provar documentadamente quehouvera uma guerra com a Eurásia. Às doze em ponto, anunciou-se inesperadamente que todos os funcionários do Ministérioestavam de folga até a manhã seguinte. Winston, ainda levandoa pasta que continha o livro, e que tivera aos pés enquantotrabalhava, e sob o corpo enquanto dormia, foi para casa,barbeou-se e quase adormeceu no banho, embora a água nãoestivesse mais do que tépida.Com uma espécie de voluptuoso estralar de juntas, subiu aescada da loja do sr. Charrington. Estava cansado, mas nãotinha mais sono. Abriu a janela, acendeu o sujo fogareiro deóleo e encheu dágua uma caçarola, para o café. Júlia nãodevia demorar; enquanto não viesse, leria o livro. Sentou-sena poltrona esfiapada e abriu a pasta.Um pesado volume negro, numa encadernação tosca, sem nome nemtítulo na capa. O tipo também parecia ligeiramente irregular.As páginas estavam gastas nas margens, e se destacavam comfacilidade, como se o livro tivesse passado por muitas mãos.No frontispício havia o título: TEORIA E PRÁTICA DOCOLETIVISMO OLIGARQUICOporEmmanuel GoldsteinWinston pôs-se a ler:Capítulo IIgnorância é FôrçaDesde que se começou a escrever a história, e provavelmentedesde o fim do Período Neolítico, tem havido três classes nomundo, Alta, Média e Baixa. Têm-se subdividido de muitasmaneiras, receberam inúmeros nomes diferentes, e sua relaçãoquantitativa, assim como sua atitude em relação às outras,variaram segundo as épocas; mas nunca se alterou a estruturaessencial da sociedade. Mesmo depois de enormes comoções e

transformações aparentemente irrevogáveis, o mesmo diagramasempre se restabeleceu, da mesma forma que um giroscópio emmovimento sempre volta ao equilíbrio, por mais que sejaempurrado deste ou daquele lado.Os objetivos dêsses três grupos são inteiramenteirreconciliáveis. . .Winston parou de ler, principalmente com o fito de apreciar ofato de estar lendo, em confôrto e segurança. Estava só: nemteletela, nem orelha no buraco da fechadura, nem impulsonervoso de espiar por cima do ombro ou de tapar a página coma mão. O ar doce do verão soprava-lhe na face. De algum lugardistante vinham amortecidos gritos de crianças: no quarto nãohavia ruido além da voz de inseto do relógio. Ele afundoumais ainda na poltrona e pousou os pés na guarda da lareira.Era a felicidade, a eternidade. De repente, como às vezesfazemos com um livro que temos a certeza de ler e reler,palavra por palavra, abriu-o numa página diferente eencontrou-se no Capítulo III. Continuou:Capítulo IIIGuerra é PazA divisão do mundo em três grandes super-estados foiacontecimento que poderia ter sido, e deveras foi, previstoantes de meados do século vinte. Com a absorção da Europapela Rússía e do Império Britânico pelos Estados Unidospassaram a ter existência efetiva duas das três grandespotências, a Eurásia e a Oceania. A terceira, a Lestásia, sósurgiu como unidade distinta após outra década de lutasconfusas. As fronteiras entre os três super-estados sãoarbitrárias nalguns pontos, e noutros flutuam segundo asfortunas da guerra, mas de modo geral obedecem linhasgeográficas. A Eurásia compreende toda a parte setentrionaldos continentes europeu e asiático, de Portugal ao estreitode Béring. A Oceania compreende as Américas, as ilhas doAtlântico, inclusive as Britânicas, a Australásia e a partemeridional da África. A Lestásia, menor que as outras, e defronteiras ocidentais menos'definidas, compreende a China eos países ao sul da China, as Ilhas do Japão e uma grandeporém cambiante porção da Mandchúria, da Mongólia e do Tibé.Numa ou noutra aliança, êsses três super-estados estãopermanentemente em guerra, e assim tem sido nos últimos vintee cinco anos. A guerra, contudo, não é mais a luta

desesperada e aniquiladora que costumava ser nas primeirasdécadas do século vinte. É uma luta de objetivos limitadosentre combatentes incapazes de destruir um ao outro, semcausa material para guerrear e sem mesmo qualquer genuinadivergência ideológica. Isto não significa que as operaçõesde guerra, ou a atitude em relação a ela, se tenham tornadomais cavalheirescas ou menos sanguinárias. Ao contrário, ahisteria guerreira é contínua e universal em todos os países,e atos tais como estupros, pilhagens, matança de crianças eescravização de povoações inteiras, e represálias contraprisioneiros que chegam a incluir a morte pela água ferventee o enterramento de seres vivos, são considerados normais, eaté merítórios, quando cometidos pelos amigos, e não peloinimigo. Materialmente, porém, a guerra envolve número muitopequeno de cidadãos, principalmente peritos de altaespecialização, e causa relativamente poucas vítimas. Ocombate, quando há combate, trava-se nas vagas fronteirascuja localização, o indivíduo comum só pode imaginar, ou emtôrno das Fortalezas Flutuantes que guardam os pontosestratégicos das rotas marítimas. Nos centros de civilizaçãoa guerra não significa senão escassez constante demercadorias de consumo, e a queda ocasional de umabombafoguete, que talvez cause algumas dezenas de mortes. Comefeito, a guerra mudou de aspecto. Mais exatamente, mudaramde ordem de importância as razões pelas quais se faz aguerra. Os motivos já parcialmente presentes nas grandesguerras do início do século vinte tornaram-se, dominantes esão agora reconhecidos conscientemente, e levados emconsideração.Para compreender a natureza da guerra atual porque, apesar doreagrupamento que se dá a intervalos, é sempre a mesma guerra- deve-se perceber, em primeiro lugar, que não pode serdecisiva. Nenhum dos três super-estados poderia serdefinitivamente vencido, nem mesmo pelos dois outros juntos.O equilíbrio é muito grande, e formidáveis suas defesasnaturais. A Eurásia é protegida por suas vastas massas deterra, a Oceania pela imensidade do Atlântico e do Pacífico,a Lestásia pela fecundidade e a industriosidade dos seushabitantes. Tampouco existe, sempre do ponto de vistamaterial, nada, que valha a pena. Com o estabelecimento deeconomias auto- suficientes, nas quais a produção e o consumose equilibram, a luta pelos mercados - causa principal dasguerras anteriores - desapareceu, ao passo que a procura dasmatérias primas não é mais caso de vida ou morte. Cada um dostrês super-estados é tão vasto que possui em seu próprioterritório quase todos os materiais de que necessita. Namedida em que a guerra tem objetivo econômico direto, é uma

guerra pela mão de obra. Entre as fronteiras dos super-estados, e não permanentemente de posse de nenhum, há umtosco quadrilátero cujos ângulos são Tanger, Brazzaville,Darwin e Hong Kong, contendo aproximadamente um quinto dapopulação da terra. É pela Posse dessas regiões densamentepovoadas, e da calota polar setentrional, que as trêspotências vivem em guerra. Na prática, nenhuma jamaiscontrola toda a área contestada. Partes dela mudam de mãosconstantemente, e é a casualidade de se apoderar deste oudaquele fragmento, por um repentino golpe de traição, quedita a incessante modificação dos aliados.Todos os territórios disputados contêm valiosos minerais, ealguns produzem importantes produtos vegetais, tais comoborracha, que nos clímas mais frios é necessário sintetizarpor métodos relativamente caros. Acima de tudo, porém, contêmuma prodigiosa reserva de mão de obra barata. Quem quer quecontrole a África equatorial, ou os países do Oriente Médio,ou a índia meridional, ou o arquipélago indonésio, dispõetambém de massas de dezenas ou centenas de milhões de peõesdiligentes e mal-pagos. Os habitantes dessas regiões,reduzidos mais ou menos abertamente à condição de escravos,passam continuamente de conquistador a conquistador e sãogastos, como o carvão ou o petróleo, na corrida para produzirmais armamentos, capturar mais território, controlar maisbraços, para produzir mais armamentos, para capturar maisterritório e assim infinitamente. Cumpre notar que a luta, naverdade, nunca se alastra além da periferia das áreascontestadas. As fronteiras da Eurásia oscilam entre a baciado rio Congo e a margem norte do Mediterrâneo; as ilhas doOceano índico e do Pacífico são constantemente capturadas erecapturadas pela Oceania ou pela Lestásia; na Mongólia alinha divisória entre Eurásia e Lestásia não é estável; emtôrno-do Polo as três potências reclamam enormes territóriosem grande parte desabitados e inexplorados; mas o equilíbriode forças mantém-se sempre na mesma, e permanece inviolado oterritório que forma o núcleo de cada super-estado. Alémdisso, o trabalho dos povos explorados que vivem no Equadornão é realmente necessário para a economia do mundo. Nadaacrescentam à riqueza da terra, desde que só produzem parafinalidades bélicas, sendo o propósito de fazer guerra estarsempre em melhor posíção para fazer outra guerra. O trabalhoescravo permite a aceleração do ritmo guerreiro. Se nãoexistisse, a estrutura da sociedade mundial, e o processopelo qual se mantém, não mudaria essencialmente.O objetivo primário da guerra moderna (segundo os princípiosdo duplipensar, essa meta é simultaneamente reconhecida e nãoreconhecida pelos cérebros orientadores do Partido Interno) é

usar os produtos da máquina sem elevar o padrão de vidageral. Desde o fim do século dezenove, foi latente nasocíedade industrial o problema de dar fim ao excesso deartigos de consumo. Atualmente, que poucos seres humanos têmbastante para comer, êsse problema evidentemente não urge, eassim poderia vir a ser, mesmo sem a intervenção de umprocesso destruidor artificial. O mundo de hoje é um planetanu, faminto e dilapidado, em comparação com o que existiaantes de 1914, e ainda mais se comparado com o futuroimaginário aguardado pelos seus habitantes daquela era. Nocomêço do século vinte, a visão de uma sociedade futuraincrivelmente rica, repousada, ordeira e eficiente - umrefulgente mundo antissético de vidro, aço e concreto brancode neve - fazia parte da consciência de quase toda pessoaalfabetizada. A ciência e a tecnologia se desenvolviam numritmo prodigioso, e parecia natural imaginar que continuassemse desenvolvendo. Isto não ocorreu, todavia, em parte porcausa do empobrecimento causado por longa série de guerras erevoluções, em parte porque o progresso científico e técnicodependia do hábito empírico do raciocínio, que não podiasobreviver numa sociedade estritamente regimentada. No seuconjunto, o mundo é hoje mais primitivo do que era cinqüentaanos atrás. Certas zonas atrasadas progrediram, e váriosdisposítivos, sempre ligados à guerra -e à espionagempolicial, foram de@senvolvidos, mas já não há experiência neminvenção, e nunca foram completamente reparados os estragosda guerra atômica de 1950 e pouco. Não obstante, persistem osperigos inerentes à máquina. Desde o momento em que a máquinasurgiu, tornouse claro a todos que sabiam raciocinar quedesaparecera em grande parte a necessidade do trabalho braçaldo homem e, portanto, a da desigualdade humana. Se a máquinafosse deliberadamente utilizada com êsse propósito, a fome, oexcesso de trabalho, a sujeira, o analfabetismo e a doençapoderiam ter sido eliminados em algumas gerações. E naverdade, sem ter sido usada com êsse propósito, porém por umaespécie de processo automático - produzindo riqueza que àsvezes se tornava impossível deixar de distribuir - a máquinaelevou grandemente o padrão de vida do ser humano comum, numperíodo de uns cinqüenta anos, ao fim do século dezenove e nocomêço do vinte.Tornou-se também claro que o aumento total da riqueza ameaçaa destruição - com efeito, de certo modo era a destruição -de uma sociedade hierárquica. Num mundo em que todostrabalhassem pouco, tivessem bastante que comer, morassemnuma casa com banheiro e refrigerador, e possuissem automóvelou mesmo avião, desapareceria a mais flagrante e talvez maisimportante forma de desigualdade. Generalizando-se, a riqueza

não conferia distinção. Era possível, sem dúvida, imaginaruma sociedade em que a riqueza, no sentido de posse pessoalde bens e luxos, fosse igualmente distribuida, ficando opoder nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Mas naprática tal sociedade não poderia ser estável. Pois se olazer e a segurança fossem por todos fruidos, a grande massade seres humanos normalmente estupidificada pela misériaaprenderia a ler e aprenderia a pensarpor si; e uma vez isso acontecesse, mais cedo ou mais tardeveria que não tinha função a minoria privilegiada, e acabariacom ela. De'maneira permanente, uma sociedade hierárquica sóé possível na báse da pobreza e da ignorância. Regressar aopassado agrícola, como imaginaram alguns pensadores no comêçodo século vinte, não era solução praticável. Entrava emconflito com a tendência para a mecanização, que se tornárapouco menos que instintiva em quase todo o mundo, e alémdisso, qualquer país que permanecesse industrialmenteatrasado ficaria indefeso militarmente e estaria fadado a serdominado, direta ou indiretamente, pelos rivais maisprogressistas.Tampouco era solução satisfatória manter as massas na misériarestringindo a produção de mercadorias. Isto aconteceu, emgrande parte, durante a fase final do capitalismo, mais oumenos entre 1920 e 1940. Permitiu-se que estagnasse aeconomia de muitos países, a terra deixou de ser arroteada, omaquinário básico permaneceu na mesma, grandes setores dapopulação foram impedidos de trabalhar e mantidos semivivospor meio de caridade estatal. Mas isto também provocavadebilidade militar, e como fossem evidentementedesnecessárias as privações, tornavam inevitável a oposição.O problema era manter em movimento as rodas da indústria semaumentar a riqueza real do mundo. Era preciso produzirmercadorias, porém não distribui-las. E, na prática, a únicamaneira de o realizar é pela guerra contínua.O essencial da guerra é a destruição, não necessàriamente devidas humanas, mas dos produtos do trabalho humano. A guerraé um meio de despedaçar, ou de libertar na estratosfera, oude afundar nas profundezas do mar, materiais que doutra formateriam de ser usados para tornar as massas demasiadoconfortáveis e portanto, com o passar do tempo, inteligentes.Mesmo quando as armas de guerra não são destruidas, sua

manufatura ainda é um modo conveniente de gastar mão de obrasem produzir nada que se possa consumir. Uma FortalezaFlutuante, por exemplo, contém trabalho suficiente paraconstruir várias centenas de navios cargueiros. Depois dealgum tempo é demantelada, por obsoleta, sem ter trazidobenefício material a ninguém, e com novo e enorme esfôrço,constrói-se outra. Em princípio, o esfôrço bélico é sempreplanejado de maneira a consumir qualquer excesso que possaexistir depois de satisfeitas as necessidades mínimas dapopulação. Na prática, as necessidades da população sãosempre subestimadas, e o resultado é haver uma escassezcrônica de metade dos essenciais mas isto é consideradovantagem. É uma política consciente manter perto dosofrimento até os grupos favorecidos porquanto o estado geralde escassez aumenta a importância dos pequenos privilégios eassim amplia a distinção entre um grupo e outro. Pelospadrões do início do século vinte, até mesmo um membro doPartido Interno leva vida austera e laboriosa. Não obstante,os poucos luxos de que goza, o apartamento espaçoso e bemmobiliado, a melhor qualidade da sua roupa, a superioridadeda sua comida, bebida e fumo, seus dois ou três criados, seuautomóvel ou helicóptero particular, o colocam numa esferadiferente de um membro do Partido Externo, que por sua veztem vantagens semelhantes em comparação com as massassubmersas a que chamamos \"proles\". A atmosfera social é deuma cidade sitiada, onde a posse de um pedaço de carne decavalo diferencia entre a riqueza e a pobreza. E, ao mesmotempo, a consciência de estar em guerra e portanto em perigo,faz parecer natural a entrega de todo o poder a uma pequenacasta: é uma inevitável condição de sobrevivência.Veremos que a guerra não apenas realiza a necessáriadestruição como a efetua de maneira psicológicamenteaceitável. Em princípio, seria bastante simples gastar oexcesso de mão de obra construindo templos e pirâmides,cavando buracos e tornando a enchê-los, ou mesmo produzindograndes quantidades de mercadorias e queimando-as. Mas issosó daria a base econômica, mas não a emocional, de umasociedade hierárquica. Trata-se aqui não do moral das massas,cuja atitude não tem importância, contanto que sejam mantidasno trabalho, mas do moral do Partido. Espera-se que até mesmoo mais humilde membro do Partido seja competente, industriosoe inteligente, dentro de estreitos limites, Porém é tambémnecessário que seja um fanático crédulo e ignorante, cujasreações principais sejam medo, ódio, adulação e triunfoorgiástico. Em outras palavras, é necessário que tenha amentalidade apropriada ao estado de guerra. Não importa quede fato haja uma guerra e, como não é possível uma vitória

decisiva, pouco importa que a guerra vá bem ou mal. O queimporta é que possa existir o estado de guerra. A divisãointelectual que o Partido exige dos seus membros, e que émais fácil de obter numa atmosfera de guerra, é agora quaseuniversal, porém, quanto mais se sobe nos quadros,mais nítida se torna. É precisamente no Partido Interno que ahisteria de guerra e o ódio ao inimigo são mais fortes. Nasua posição de administrador, muitas vezes é necessário a ummembro do Partido Interno saber se esta ou aquela notícia deguerra é falsa, e muitas vezes, ele pode perceber que aguerra inteira é espúria e que, ou não está sendo travada, ouestá sendo travada por objetivos diferentes dos declarados:mas essa conciência é fàcilmente neutralizada pela técnica doduplipensar. Entrementes, nenhum membro do Partido Internohesita por um instante na sua crença mística de que a guerraé real, que está fadada a terminar pela vitória, ficando, aOceania senhora indisputável do mundo inteiro.Todos os membros do Partido Interno crêem, como num artigo defé, nessa vitória futura. Será obtida quer pela aquisiçãogradual de território e, consequentemente, acúmulo deesmagadora preponderância de força, quer pelo descobrimentode uma nova arma irrespondível. A busca de novas armasprossegue sem cessar, e é uma das poucas atividades restantesem que o espírito inventivo ou especulativo se pode expandir.Atualmente, na Oceania, a ciência quase cessou de existir, nosentido antigo. Em Novilíngua não existe palavra para\"ciêncía\". O método empírico de raciocínio, no qual sebasearam todos os desenvolvimentos científicos passados, seopõe aos princípios fundamentais do Ingsoc. E mesmo oprogresso tecnológico só se verifica quando os seus produtospodem ser, de alguma forma, utilizados para limitar aliberdade humana. Em todas as artes úteis o mundo ou estáparado ou retrocede. Os campos são cultivados com arados detração animal, enquanto os livros são escritos por máquinas.Mas nos assuntos de importância vital - ou seja, a guerra e aespionagem policial - ainda é incentivado o sistema empírico,ou pelo menos tolerado. As duas metas do Partido sãoconquistar toda a superfície da terra e extinguir de uma vezpara sempre qualquer possibilidade de pensamentoindependente. Há, portanto, dois grandes problemas que oPartido deve resolver. Um deles é descobrir o que pensa outro

ser humano, e o outro é matar várias centenas de milhões depessoas em alguns segundos, sem dar aviso prévio. Êste é oassunto da pesquisa científica que ainda subsiste. Ocientista de hoje ou é uma mistura de psicólogo e inquisidor,estudando com extraordinária minúcia o significado dasexpressões faciais, dos gestos, e tons de voz, e verificandoos efeitos reveladores das drogas-da-verdade, terapia dechoque, hipnose e tortura física; ou é quimico, físico oubiólogo só interessado pelos ramos da sua profissão ligados àsupressão da vida. Nos vastos laboratórios do Ministério daPaz, e nas estações experimentais ocultas nas florestasbrasileiras ou no deserto australiano, ou nas ilhas perdidasda Antártida, os grupos de peritos continuam sua missão,infatigáveis. Alguns se ocupam, simplesmente, de planejar alogística de futuras guerras; outros de inventar maiores eainda maiores bombas-foguete, explosivos cada vez maispoderosos, blindagens mais e mais resistentes; outros buscamnovos gases, mais letais, ou venenos solúveis capazes de serproduzidos em quantidades tais que destruam a vegetação decontinentes inteiros, ou culturas de germes maléficosimunizados contra todos os anticorpos possíveis; outros seesforçam para produzir um veículo que abra caminho sob aterra como um submarino por baixo dágua, ou um aeroplano tãoindependente da base como um navio de vela; outros aindaexploram possibilidades mais remotas, tais como focalizar osraios do sol através de lentes suspensas a milhares dequilômetros da terra, ou provocar terremotos e maremotosartificiais pela alteração do calor no centro do planeta.Mas nenhum dêsses projetos jamais se aproxima da realização,e nenhum dos três super-estados obtém dianteira significativasobre os outros. O que é mais notável é que as três potênciasjá possuem, na bomba atômica, uma arma muito mais poderosa doque as suas atuais pesquisas lhes permitirão descobrir.Conquanto o Partido, segundo seu hábito, reivindique essainvenção, as bombas atômicas apareceram em mil novecentos equarenta e poucos, e foram usadas em larga escala cerca dedez anos mais tarde. Nessa ocasião, algumas centenas debombas foram lançadas contra os centros industriais,principalmente da Rússia europeia, Europa ocidental e Américado Norte. O efeito foi convencer os grupos dominantes detodos os países que algumas bombas atômicas maissignificariam o fim de toda sociedade organizada e, portanto,do seu próprio poder. Daí por diante, embora não se fizesse,nem se insinuasse qualquer tratado formal, as bombas-A nãoforam mais jogadas. As três potências continuam produzindobombas atômicas, e as guardam à espera da oportunidadedecisiva que aguardam para mais cedo ou mais tarde.

Entrementes, a arte da guerra permaneceu quase estáticadurante trinta ou quarenta anos. Usam-se mais helicópteros doque antigamente, os aviões debombardeio foram em grande parte substituidos por projé teisauto-impelidos, e o frágil encouraçado móvel deu lugar àquase insubmergível Fortaleza Flutuante; fora isso, foipequeno o desenvolvimento. O tanque, o submarino, o torpedo,a metralhadora, e até o fusil e a granada de mão continuamsendo usados. E apesar dos infindos morticínios comunicadospela imprensa e as teletelas, nunca se repetiram as batalhasdesesperadas das guerras anteriores, em que centenas demilhares e até milhões de homens eram às vezes mortos emalgumas semanas.Nenhum dos três estados tenta qualquer manobra que envolva orisco d'uma séria derrota. Quando empreendem uma operação degrande envergadura, é em geral um ataque de surpresa a umaliado. É a mesma a estratégia seguida pelas três potências,ou pelo menos as que fingem seguir.O plano prevê, pela combinação de luta, trocas e oportunosgolpes de traição, a aquisição de uma série de bases quecircundem completamente um ou outro rival, e então assinar umpacto de amizade com êsse rival, permanecendo em paz com eleo tempo suficiente para que as suspeitas esmoreçam. Duranteêsses anos de espera, foguetes carregados de bombas atômicaspodem ser acumulados em todos os pontos estratégicos; serãopor fim disparados simultaneamente, com efeitos tãodevastadores que é impossível retaliar. Surge então o momentode assinar um tratado de amizade com a terceira potênciamundial, preparando outro ataque. Êste plano, evidentemente,é puro castelo no ar, impossível de realizar. Além disso, nãohá combate algum, exceto nas zonas contestadas, em tôrno doEquador e do Polo Norte; jamais se empreende qualquer invasãode território inimigo. Isto explica o fato de seremarbitrárias em muitos pontos as fronteiras entre os super-estados. A Eurásia, por exemplo, poderia fàcilmenteconquistar as Ilhas Britânicas, que geogràficamente fazemparte da Europa, e por outro lado seria possível a Oceanialevar suas fronteiras até o Reno ou o Vístula. Mas istoviolaria o princípio de integração cultural, respeitado portodos os lados, embora jamais formulado. Se a Oceaniaconquistasse as regiões outrora conhecidas por França e

Alemanha, seria necessário, ou exterminar os habitantes,tarefa de enorme dificuldade física, ou assimilar umapopulação de uns cem milhões de pessoas que, no que se refereao desenvolvimento técnico, estão mais ou menos no nível daOceania. O problema é o mesmo para os três super-estados. Éabsolutamente necessária, para sua estrutura, que não hajacontacto com estrangeiros, exceto, limitadamente, comprisioneiros de guerra e escravos de cor. Mesmo o aliadooficial de hoje é considerado com suspeita. Além dosprisioneiros de guerra, o cidadão médio da Oceania jamais põeolhos num cidadão da Eurásia ou da Lestásia, sendo-lheproibido aprender línguas estrangeiras. Se lhe fossepermitido o contacto com os forasteiros, descobriria que sãocriaturas semelhantes e que é mentira a maior parte do queouviu a respeito deles. Acabar-se-ia o mundo fechado em quevive, e se evaporariam o medo, o ódio, e o sentido de razãopermanente, de que depende o seu moral. É portanto admitidopor todos os lados que, não obstante a freqüência com que aPérsia, o Egito, Java ou Ceilão mudam de mãos, as fronteirasbásicas não devem nunca ser atravessadas, salvo pelas bombas.Atrás disto tudo há um fato que se não menciona jamais em vozalta, mas que é tàcitamente compreendido e usado comoorientação: ou seja, o de que as condições de vida, nos trêssuper-estados, são mais ou menos as mesmas. Na Oceania, afilosofia dominante é chamada Ingsoc, na Eurásia é chamadaNeo-Bolchevismo, e na Lestásia é conhecida por uma palavrachinesa em geral traduzida por Adoração da Morte, mas que sepoderia melhor chamar Obliteração do Ego. O cidadão daOceania não pode saber coisa alguma a respeito dosfundamentos das outras duas filosofias, aprendendo porém aexecrá-las como bárbaros ultrages à moralidade e ao sentidocomum. Na verdade, as três filosofias mal se distinguem umasdas outras, e os sistemas sociais de que são base não sedistinguem de modo algum. Por toda parte há a mesma estruturapiramidal, a mesma adoração de um chefe semi-divino, a mesmaeconomia que existe para a guerra contínua. Segue-se que ostrês super-estados não só não podem vencer um ao outro, comonão levariam vantagem se o fizessem. Ao contrário, enquantocontinuarem em conflitos, amparam-se uns aos outros, comotrês fusis num sarilho. E, como é praxe, os grupos dominantesdas três potências ao mesmo tempo sabem e ignoram o que estãofazendo. Dedicam a vida à conquista do mundo, mas tambémsabem que é necessário continuar a guerra, sem fim e semvitória. Entrementes, o fato de não haver perigo de conquistatorna possível a negação da realidade que 'é a característicaprincipal do Ingsoc, e dos sistemas rivais de raciocínio.Neste ponto é necessário repetir o que já dissemos: que a

guerra, tornando-se contínua, mudou fundamentalmente decaráter.No passado a guerra era, quase por definição, algo que maiscedo ou mais tarde chegava ao fim, em geral em inconfundívelvitória ou derrota. Também no passado, a guerra era um dosinstrumentos pelo qual as sociedades humanas se mantinham emcontacto com a realidade física. Todos os governantes detodas as épocas têm tentado impôr aos seus adeptos uma falsavisão do mundo, mas não podiam se dar ao luxo de encorajarnenhuma ilusão que tendesse a prejudicar a eficiênciamilitar. Considerando que a derrota signíficava a perda deindependência, ou outro resultado geralmente julgadoindesejável, era preciso tomar sérias precauções contra aderrota. Não se podia ignorar os fatos físicos. Na filosofia,religião, ética, ou política, dois e dois podem ser cinco,mas quando se desenha um canhão ou um' aeroplano, somamquatro. As nações ineficientes eram vencidas, mais cedo oumais tarde, e a luta pela eficiência era inimiga das ilusões.Além do mais, para ser eficiente, era necessário saberaprender do passado, o que exigia conhecimento bastante exatodo que sucedera nesse passado. Naturalmente, os jornais elivros sempre foram parciais, e coloridos por diversos pontosde vista, mas seria impossível a falsificação da espécie e naescala hoje praticada. A guerra era uma firme salvaguarda desaúde mental e, no que se referia às classes dominantes,provavelmente a mais importante de todas as salvaguardas.Enquanto era possível perder ou ganhar guerras, nenhumaclasse dominante podia ser completamente irresponsável.Mas quando a guerra se torna literalmente contínua, cessatambém de ser perigosa. Quando a guerra é contínua, nãoexiste necessidade militar. O progresso técnico pode cessar eos fatos mais palpáveis podem ser negados ou desprezados.Como vimos, as pesquisas que poderiam ser chamadascientíficas são ainda levadas a cabo, com finalidadesbélicas, mas são, em essência, um sonho vão, e não importaque não dêem o menor resultado. A eficiência não mais énecessária, nem mesmo a eficiência militar. Nada é eficientena'Oceania, exceto a Polícia do Pensamento. Já que cada umdos super-estados é invencível, cada qual é, com efeito, umuniverso separado dentro do qual se pode praticar sem riscoqualquer perversão mental. A realidade só exerce a suapressão através das necessidades da vida cotidiana - comer ebeber, morar e vestir, evitar engulir veneno, cair de janelasdo último andar, e coisas semelhantes. Entre a vida e amorte, e entre o prazer físico e a dor física, ainda há umadistinção, mas é só. Sem contacto com o mundo externo e com opassado, o cidadão da Oceania é como um homem no espaço

interestelar, que não tem meios de saber que direção levapara baixo ou para cima. Os governantes dêsse estado sãoabsolutos como os faraós e os césares não puderam ser. Sãoobrigados a evitar que os seus correligionários morram defome em quantidades tais que se tornem inconvenientes, e sãoforçados a permanecer no mesmo baixo nível de técnica militarque os seus rivais; uma vez atingido esse mínimo, porém,podem torcer a realidade e dar-lhe a forma que lhes aprouver.A julgar pelos padrões das guerras passadas, a guerra de hojeé, portanto, uma impostura. É como os combates entre certosruminantes, cujos chifres são dispostos em ângulo tal que nãopódem ferir um ao outro. Entretanto, apesar de irreal, elatem sentido. Devora os excedentes dos artigos de consumo, eajuda a conservar a atmosfera mental especial que umasociedade hierárquica exige. A guerra, como veremos, é agoraassunto puramente interno. No passado, os grupos dominantesde todos os países, não obstante pudessem reconhecer seuinterêsse comum e, em consequência, limitassem o poderdestruidor da guerra, de fato combatiam, e o vencedor sempresaqueava o vencido. Em nossos dias, êles não combatem uns aosoutros. A guerra é travada, pelos grupos dominantes, contraos seus próprios súditos, e o Seu objetivo não é conquistarterritórios, nem impedir que os outros o façam, porém manterintacta a estrutura da sociedade. Daí, o se haver tornadoequívoca a própria palavra \"guerra.\" Seria provavelmentecorreto dizer que a guerra deixou de existir ao se tornarcontínua. A pressão que exerceu sobre os seres humanos entrea Idade Neolítica e o comêço do século XX desapareceu e foisubstituida por algo bem diferente. O efeito seria mais oumenos o mesmo se os três super-estados, ao invés de seguerrearem, concordassem em viver em paz perpétua, cada qualinviolado dentro das suas fronteiras. Pois nesse caso aindaseria um universo contido em si próprio, para sempre livre dainfluência moderadora do perigo externo. Uma pazverdadeiramentepermanente seria o mesmo que a guerra permanente. Êste- embora a vasta maioria dos membros do Partido só ocompreendam num sentido mais raso - é o significado profundodo lema do Partido: Guerra é Paz.Winston parou de ler por um momento. Na distância remota umabomba-foguete estourou. Ainda não sumira a deliciosa sensação

de se sentir só com o livro proibido, num quarto semteletela. A solidão e a segurança eram sensações físicas, decerto modo misturadas com o cansaço do seu corpo, a maciez dacadeira, a brisa gentil que tocava o rosto, soprando pelajanela. O livro fascinava-o ou, mais exatamente, dava-lhenova tranquilidade. De certo modo, nada lhe dizia de novo,mas isso fazia parte do seu atrativo. Dizia o que ele diria,se lhe fosse possível pôr ordem nos seus pensamentosdesataviados. Era produto de um cérebro semelhante ao seu,porém -enormemente mais poderoso, mais sistemático, menosmedroso. Ele percebia que os melhores livros são os que dizemo que já se sabe. Voltara ao Capítulo 1 quando ouviu o passode Júlia na escada e levantou-se para lhe sair ao encontro.Ela largou a bolsa de ferramentas no chão e atirou-se aosbraços dele. Fazia mais de uma semana que não se viam.- Recebi o livro - anunciou ele, quando se soltaram.- Recebeste? Que bom! - exclamou ela, sem maior interêsse, eimediatamente se ajoelhou ao pé do fogareiro de óleo parafazer café.Não voltaram ao assunto senão depois de terem estado meiahora na cama. A noite refrescara um pouco, levando-os a puxara colcha. Lá de baixo vinham os ruidos familiares de botinasarrastando no lageado, e cantoria. A mulheraça de braçosvermelhos, que Winston Vira na sua primeira visita, pareciafazer parte do pátio. Parecia não haver hora do dia em quenão estivesse marchando entre o tanque e o varal, ora tapandoa boca com prendedores de roupa, ora abrindo os pulmões comgôsto. Júlia deitara-se de lado e parecia estar a ponto deadormecer. Ele apanhou o livro, que depusera no soalho, eacomodou-se, encostando na cabeceira da cama.- Deves lê-lo - disse ele. - Tu também. Todos os membros daFraternidade devem lê-lo.- Tu lês - disse ela com os olhos fechados. - Lê alto. É omelhor. E assim vais explicando ao mesmo tempo.os ponteiros do relógio marcavam seis, indicando as dezoito.Ainda tinham três ou quatro horas pela frente. Ele apoiou olivro nos joelhos e pôs-se a ler:Capítulo IIgnorância é FôrçaDesde que se começou a escrever a história, e provavelmentedesde o fim do Período Neolítico, tem havido três classes nomundo, Alta, Média e Baixa. Têm-se subdividido de muitasmaneiras, receberam inúmeros nomes diferentes, e sua relaçãoquantitativa, assim como sua atitude em relação às outras,variaram segundo as épocas; mas nunca se alterou a estruturaessencial da sociedade. Mesmo depois de enormes comoções etransformações aparentemente irrevogáveis, o mesmo diagrama

sempre se restabeleceu, da mesma forma que um giroscópio emmovimento sempre volta ao equilíbrio, por mais que sejaempurrado deste ou daquele lado.- Júlia, estás acordada? - indagou Winston.- Estou, meu amor. Estou escutando. Vai lendo. É maravilhoso.Ele continuou a ler: Os objetivos dêsses três grupos sãointeiramente irreconciliáveis. O objetivo da Alta é ficaronde está. O da Média é trocar de lugar com a Alta. E oobjetivo da Baixa, quando tem objetivo - pois écaracterística constante da Baixa viver tão esmagada pelamonotonia do trabalho cotidiano que só intermitentemente temconsciência do que existe fora de sua vida - é abolir todasas distinções e criar uma sociedade em que todos sejamiguais. Assim, por toda a história, trava-se repetidamenteuma luta que é a mesma em seus traços gerais. Por longosperíodos a Alta parece firme no poder, porém mais cedo oumais tarde chega um momento em que, ou perde a fé em siprópria ou sua capacidade de governar com eficiência, ouambas. É então derrubada pela Média, que atrai a Baixa ao seulado, fingindo lutar pelaliberdade e a justiça. Assim que alcança sua meta, a Médiajoga a Baixa na sua velha posição servil e transforma-se emAlta. Dentro em breve, uma nova classe Média se separa dosoutros grupos, de um deles ou de ambos, e a luta recomeça.Das três classes, só a Baixa nunca consegue nem êxitotemporário na obtenção dos seus ideais. Seria exagêro dizerque não se registra na história progresso material. Mesmohoje, neste período de declínio, o ser humano comum éfisicamente melhor do que há alguns séculos. Mas nenhumprogresso em riqueza, nenhuma suavização de maneiras, nenhumareforma ou revolução jamais aproximou um milímetro aigualdade humana. Do ponto de vista da Baixa, nenhumamodificação hístórica significou mais do que uma mudança donome dos amos.Por volta dos fins do século dezenove, a recorrência do ciclose tornára óbvia- a muitos observadores. Surgiram entãoescolas filosóficas que interpretavam a história como umprocesso cíclico e protestavam que a desigualdade era a leiinalterável da vida humana. Essa doutrina, naturalmente,sempre teve seus adeptos, mas na maneira pela qual foi entãoexposta havia uma transformação significativa. No passado,

fora uma doutrina especificamente da Alta a necessidade deuma forma hierárquica de sociedade. Fôra pregada por reis,aristocratas e sacerdotes, advogados, etc., que aparasitavam, e fora geralmente amaciada por promessas derecompensa num mundo imaginário de além-túmulo. A Média,enquanto lutou pelo poder, sempre fez uso de termos tais comoliberdade, justiça e fraternidade. Agora, todavia, o conceitode fraternidade humana começou a ser atacado pelos que não seencontravam em posição de mando, porém esperavam conquistá-las dentro em breve. No passado a Média fizera revoluções soba bandeira da igualdade, estabelecendo nova tirania assim quederrubava a antiga. Com efeito, os novos grupos Médiosproclamavam antecipadamente sua tirania. O socialismo, teoriaaparecida no ínício do século dezenove é o último élo dumacadeia de pensamento que se iniciava nas rebeliões dosescravos antigos, ainda estava profundamente infeccionadopelo Utopismo do passado. Mas em cada variante de Socialismoque apareceu de 1900 para cá, o propósito de estabelecer aliberdade e a igualdade ia sendo abandonado cada vez maisabertamente. Os novos movimentos, que apareceram em meados doséculo, o Ingsoc na Oceania, o Neo-bolchevismo na Eurásia, aAdoração da Morte, como é comumente chamado, na Lestásia,tinham o propósito consciente de perpetuar a desliberdade e adesigualdade. Êsses novos movimentos, naturalmente, surgiramdos mais antigos e tenderam a conservar o nome e a rendertributo à sua ideologia. Mas o propósito de todos era deter oprogresso e congelar a história num dado momento. O movimentofamiliar do pêndulo deveria ter lugar mais uma vez, e entãoparar. Como de hábito, a Alta devia ser posta abaixo pelaMédia, que então se tornaria a Alta; desta vez porém a Alta,por meio de uma estratégia consciente, conseguiria manterpermanentemente sua posição.As novas doutrinas nasceram em parte por causa do acúmulo deconhecimento histórico, e o crescimento do sentido histórico,que mal existira antes do século dezenove. O movimentocíclico da história era agora inteligível ou parecia ser; e,sendo inteligível, era alterável. Mas a causa principal,subexistente, era que, desde o comêço do século vinte, aigualdade humana se tornara tècnicamente possível. Verdadeainda que os homens não eram iguais nos seus talentos inatose que as funções tinham de ser especializadas de maneira quefavoreciam uns indivíduos contra outros; porém não havia maisnenhuma necessidade real de distinção de classe nem degrandes diferenças de fortuna. Em épocas anteriores, asdistinções não tinham sido apenas inevitáveis comodesejáveis. A desigualdade era o preço da civilização.Todavia, com o desenvolvimento da produção à máquina,

alterou-se o caso. Mesmo que ainda fosse necessário aos sereshumanos desempenhar diferentes tipos de profissão, já não erapreciso que vivessem em díferentes níveis sociais oueconômicos. Portanto, do ponto de vista dos novos grupos queestavam a pique de tomar o poder, a igualdade humana não eramais um ideal a atingir, era um perigo a evitar. Em épocasmais primitivas, quando de fato não era possível umasociedade justa e pacífica, fora bem fácil acreditar nela. Aidéia de um paraíso terreno em que os homens vivessem juntosnum estado de fraternidade, sem leis nem trabalho brutal,incendiara durante milhares de anos a imaginação humana. Eessa visão tinha certo fascínio mesmo sobre os grupos querealmente se beneficiaram de cada mudança histórica. Osherdeiros das revoluções inglêsas, francesa e americanahaviam parcialmente acreditado nas suas próprias frases arespeito dos direitos do homem, liberdade de palavra,igualdade perante a lei, e quejandas, e até haviam permitidoque sua conduta fosse por elas influenciadas, dentro decertos limites. Mas ao advir a quarta década do século vinte,eram autoritárias todas as principais correntes de pensamentopolítico. O paraíso terreno se desacreditara no momento exatoem que se tornára realizável. Cada nova teoria política,fosse qual fosse o seu rótulo, conduzia de novo à hierarquiae à regimentação. E no endurecimento geral de atitudesverificado por volta de 1930, práticas havia longo tempoabandonadas, em alguns casos durante séculos - prisão semjulgamento, uso de prisioneiros de guerra como escravos,execuções públicas, tortura para arrancar confissões, o usode reféns e deportação de populações inteiras - não sóvoltaram a ser comuns como eram toleradas e até defendidaspor pessoas que se consideravam esclarecidas e progressistas.Só depois de uma década de guerras nacionais, guerras civis,revoluções e contra-revoluções em toda parte do mundo é, queo Ingsoc e seus rivais emergiram como teorias políticascompletas. Haviam porém sido antecipados por vários sistemas,geralmente chamados totalitários, aparecidos no mesmo século,sendo evidentes, havia muito tempo, as linhas principais domundo que nasceria do caos existente. Fôra também bastanteevidente que tipo de pessoas controlaria êste mundo. A novaaristocracia era composta, na sua maioria, de burocratas,cientistas, técnicos, organizadores sindicais, peritos em

publicidade, sociólogos, professores, jornalistas e políticosprofissionais. Esta gente, cuja origem estava na classe médiaassalariada e nos escalões superiores da classe operária,fora moldada e criada pelo mundo estéril da indústriamonopolista e do govêrno centralizado. Comparada com os seusantecessores, era menos avarenta, menos tentada pelo luxo,mais faminta de poder puro e, acima de tudo, mais conscientedo que fazia e mais decidida a esmagar a oposição. Estaúltima diferença era cardeal. Comparadas com as que existemhoje, todas as tiranias do passado foram frouxas eineficientes. Os grupos governantes foram sempre infestados,até certo ponto, de idéias liberais, e se contentavam dedeixar pontas soltas por toda parte, considerando apenas oato patente e se desinteressando pelo raciocínio dos seussúditos. Até a igreja católica da Idade Média era tolerante,pelos padrões atuais. Em parte a razão deste fato residia naimpossibilidade dos governos do passado manterem sobconstante vigilância os seus cidadãos. A invenção daimprensa, contudo, tornou mais fácil manipular a opiniãopública, processo que o filme e o rádio levaram além. Com odesenvolvimento da televisão, e o progresso técnico quetornou possível receber e transmitir simultaneamente pelomesmo instrumento, a vida particular acabou. Cada cidadão, oupelo menos cada cidadão suficientemente importante paramerecer espionagem, passou a poder ser mantido vinte e quatrohoras por dia sob os olhos da polícia e ao alcance dapropaganda oficial, fechados todos os outros canais decomunicação. Existia pela primeira vez a possibilidade defazer impôr não apenas completa obediência à vontade doEstado como também completa uniformidade de opinião em todosos súditos.Depois do período revolucionário de 1950 a 1970, a sociedadereagrupou-se, como sempre, em Alta, Média e Baixa. Mas a novaAlta, ao contrário das antecessoras, não agia por instinto:sabia o que era preciso para garantir sua posição. Haviamuito tempo se percebera que a única base segura daoligarquia é o coletivismo. A riqueza e o privilégio são maisfáceis de defender quando possuidos em conjunto. A chamada\"abolição da propriedade privada\", que se verificou em meadosdo século, significou, com efeito a concentração dapropriedade em número muito menor de mãos, mas com adiferença de que os novos donos eram um grupo em vez de umamassa de indivíduos. Individualmente, nenhum membro doPartido possui coisa alguma, exceto ninharias pessoais.Coletivamente, o Partido é dono de tudo na Oceania, porquetudo controla, e dispõe dos seus produtos como bem lheparece. Nos anos que se seguiram à Revolução, conseguiu


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