51 CFESS Manifesta ‘Cracolândia’? O que o Serviço Social tem a ver com isso? Brasília (DF), 9 de junho de 2017 Gestão É de batalhas que se vive a vida CONJUNTURA E IMPACTO SÉRIE NO TRABALHO PROFISSIONAL ‘Cracolândia’? ‘Cracolândia’? O que o o último dia 21 de maio de 2017, acompanhamos a ação desastrosa do governo do Estado e da prefeitura de São Paulo agindo de forma truculenta e arbitrária, para retirar, por meio da violência, usuários/ Nas de sustâncias psicoativas da região da Luz, inapropriadamente co- nhecida como “Cracolândia”. A ação consistiu na investida de mais de 900 Serviço Social policiais contra a população, destruindo prédios e encarcerando pessoas. Não bastasse a utilização da violência policial, a prefeitura de São Paulo solicitou autorização do Judiciário para realizar busca e apreensão dos/as usuários/as, com a finalidade de encaminhá-los/as para avaliação de equipe multidisciplinar e internação compulsória. tem a ver de “guerra às drogas” protagonizada pelo governo brasileiro nos últimos A situação de barbárie na região da Luz é representativa da perspectiva anos e também expressão do “Estado penal” e do preconceito de classe. Trata-se de uma política higienista, de “limpeza social”, por meio da qual este segmento populacional tem sido sistematicamente encarcerado ou in- com isso? ternado em instituições psiquiátricas. Essas ações impedem o pleno exercí- cio da vida em liberdade, a ocupação da cidade e dos recursos urbanos a ela inerentes, reproduzindo o preconceito estrutural contra a população pobre e negra, que não encontra lugar para existir dignamente. CFESS Manifesta Edição Jun/2017. ‘Cracolândia’? O que o Serviço Social tem a ver com isso? Relatório de visitas de fiscalização dos hospitais psiquiátricos do pro- grama Redenção - São Paulo, 2017
Juventudes, raça/etnia 52 e usos de drogas Marcia Campos Eurico 1
“A polícia diz que eu já causei muito distúrbio 53 O repórter quer saber por que eu me drogo O que é que eu uso [...] Na TV, o que eles falam sobre o jovem não é sério Deixa ele viver!” 2 Charlie Brown Jr . A elaboração deste artigo ocorre em meio à crise política que atinge o Brasil, sen- do considerada a maior desde o processo de redemocratização, no início dos anos 1980. Dentre os diversos aspectos que compõem o cenário atual, as intervenções do governo e do Sistema Judiciário, com ações questionáveis ao ferirem as legalidades constitucionais, destacam-se a reforma trabalhista, a insistente tentativa da reforma da Previdência e, mais recentemente, a publicação do Decreto no 9.288/2018 que versa sobre a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, o que, na prática, sig- nifica atribuir poderes irrestritos ao Estado para, em nome da ordem, usar todos os meios de coerção disponíveis, o que resulta na ampliação dos índices de violência institucional legitimada como saída para a restituição da paz. Nesse momento, ressoa nos meus ouvidos o poema de Marcelino Freire, es- crito em maio de 2006 quando a cidade de São Paulo protagonizou diversos “ata- ques” simultâneos com o uso de armas de fogo, “Da paz”, interpretado por Naruna Costa com toda a força ancestral do povo negro, alvo de toda sorte de violências, em nome da paz: “Nem que a paz venha aqui bater na minha porta. Eu não abro. Eu não deixo entrar. A paz está proibida. A paz só aparece nessas horas. Em que a 3 guerra é transferida” . A questão do uso de drogas e a política de “guerra às drogas” são elementos que permeiam esse cotidiano e serão analisados enquanto produtos das relações sociais na atualidade, visceralmente marcadas pela desigualdade étnico-racial que viola 1 Márcia Campos eurico- Assistente Social, Mestre e Doutoranda em Serviço Social – PUC/SP – Pesquisa sobre racismo institucional na infância. Assistente social no instituto Nacional de Seguridade Social – iNSS. Professora no Curso de Serviço Social e na Pós-Graduação da Faculdade Paulista de Serviço Social – FAPSS/SP (2014 – atual). Membro do grupo de trabalho ampliado sobre Raça/etnia do GTP Gênero, Sexualidades, Raça/etnia e Geração da ABePSS. integrante do Núcleo de ensino e Pesquisa em Ética e Direitos humanos NePeDh-PUC/SP. 2 Trecho da música “Não é sério”, interpretada por Charlie Brown Jr. e Negra Li. Composição: Chorão/Champignon/ Pelado/Negra Li. 3 Disponível em: <https://www.geledes.org.br/da-paz-de-marcelino-freire-por-naruna-costa/>. Acesso em: 17 fev. 2018.
54 de maneira estrutural a juventude negra brasileira. A realidade atual se conforma segun- do os determinantes históricos da ocupação colonial via escravização negra e a outorga da liberdade jurídica nos idos de 1888, sem que o Estado brasileiro se responsabilizasse por formatar políticas públicas que pudessem alterar o cenário de violação dos direitos humanos desse grupo populacional que representa 51% da população, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010. São questões que se amplificam no cenário atual e são “tratadas”, por meio de políticas sociais de cunho reformista e conservador, de acordo com uma de- terminada moral, que fortalece a criminalização dos pobres e cria entraves ainda maiores para superar as desigualdades postas pelo sistema capitalista. Disso se depreende que a organização das instituições públicas no Brasil está plasmada pela reprodução da desigualdade, na oferta de programas e projetos pon- tuais, focalizados e cada vez mais distantes das grandes periferias, onde a ociosidade dos jovens com baixo acesso à moradia, à saúde, à educação, ao lazer, à cultura, à profissionalização, contraposta à capacidade teleológica de superação das adversi- dades, torna-os alvos preferidos do crime organizado, do tráfico de drogas e dos usos e abusos de substâncias psicoativas, que vão de bebidas alcoólicas de baixo custo a drogas ilícitas, dentre as quais circulam produtos falsi- “O racismo no Brasil ficados com baixa pureza, muitas vezes se desconhecendo os existe! Toda a minha componentes de tais substâncias, como é o caso do “lança-per- análise parte desta fume”, que se mostra cada vez mais nocivo. Essas elucubrações têm o intuito de asseverar, em primeiro lu- premissa e, portanto, gar, que o racismo no Brasil existe! Toda a minha análise parte dessa da pertinência do de- premissa e, portanto, da pertinência do debate no âmbito do tra- balho profissional do/da assistente social. Trata-se de uma marca bate no âmbito do tra- das relações sociais brasileiras estruturadas na desigualdade entre balho profissional do/ os grupos raciais que precisa ser considerada no âmbito do trabalho nas diversas políticas públicas, com base na reflexão crítica acerca da assistente social.” de sua função na dinâmica da reprodução da vida social, principal- mente em tempos de retração e extinção de diversos direitos so- ciais. Por sua vez, a imbricação entre raça, classe e gênero configura-se como elemento necessário para a apreensão da luta no interior do capitalismo, bem como os rebatimen- tos desta sobre a juventude negra e periférica, que tem em relação às drogas diversas for- mas de aproximação, mediadas pelo território, pelas relações familiares e comunitárias e pela luta diária na defesa das sobrevivências individual e coletiva. O segundo aspecto relaciona-se ao fato de que embora a raça, enquanto um conceito biológico, seja refutada pela ciência e, mais especificamente, pela gené-
tica, na atualidade permanece a construção social deturpada dos seres humanos 55 segundo as diferenças fenotípicas entre negros(as), brancos(as), indígenas e asiá- ticos(as), que são categorizados no miúdo da vida cotidiana segundo uma hie- rarquia em que a noção de branquitude, nos termos de Schucman (2014), figura como forte e soberana e outorga ao grupo branco o privilégio de submeter todos os outros grupos raciais a seus interesses. O terceiro aspecto refere-se à própria noção de juventude, que deve ser apreendida no plural, pois comporta significados e simbologias diversas. Ao lon- go do século XX, o debate associou juventude ao amadurecimento da criança/ adolescente e ingresso na fase adulta, em um continuum entre infância, adoles- cência, fase adulta e velhice, com base em transformações biológicas e psíquicas prevalentes em cada uma dessas etapas. somos tão jovens e tão pretos Falar sobre os jovens significa apreender as juventudes em suas diversas nuan- ces, não se restringindo à idade cronológica nem à passagem da fase inocente e sem responsabilidade da infância para o mundo repleto de responsabilidades do adulto. Tornar-se adulto na perspectiva conservadora é sinônimo de ingressar “O imbricamento entre raça, clas- no mundo do trabalho, acompanhado do projeto de constituição da própria se e gênero, configuram-se como família e “paradoxalmente, essa mesma elementos necessários para a juventude, ou pelo menos parte dela, não encontra inserção socioeconômica apreensão da luta no interior do real, é vista como uma ameaça, crimi- capitalismo, bem como os reba- nalizada, bastante associada à violência, embora esta seja apenas uma das facetas timentos desta sobre a juventude do jovem, um ser bastante complexo” negra e periférica, que tem em (CYMROT, 2011, p. 185). Assim como na organização do modo relação às drogas diversas formas de produção capitalista, no período da de aproximação, mediadas pelo escravidão, a utilização da mão de obra negra era fundamental para a organiza- território, pelas relações familiares ção da vida social e a produção de rique- e comunitárias e pela luta diária zas, e nem de longe essa população acessa, na defesa da sobrevivência na atualidade a inserção de crianças, ado- lescentes e jovens negros(as) no tráfico de individual e coletiva.” drogas ilícitas (produção, armazenamen-
56 to e distribuição) e as diversas atividades paralelas ocorrem porque tais ações têm como lócus privilegiado as grandes periferias, onde a concentração da população negra é muito alta. A oferta de mão de obra é grande e assim como nos tempos mais sombrios da escravidão, em que o capataz imprimia, a mando do senhor, castigos severos que poderiam levar a óbito, na contemporaneidade essa figura é repaginada nos “patrões”, que punem com o mesmo rigor as faltas disciplinares dos seus “asso- ciados”. Para associar-se às facções, é preciso ter mais de 18 anos, o que significa que crianças e adolescentes também ali estão nas funções mais precarizadas, a exemplo de outras modalidades de exploração do trabalho infantojuvenil. A população negra tem sido alvo preferencial do aprisionamento concreto e simbólico, a exemplo das ações desenvolvidas na Cracolância, região central da cidade de São Paulo, onde pessoas de faixas etárias diversas são tratadas como “zumbis”, ou da segregação, via internação, corriqueira nas situações de atos infra- cionais cometidos por adolescentes negros(as) – cujo elemento principal vincu- la-se ao consumo ou à comercialização de substâncias ilícitas. Na mesma direção, diversas situações de abuso de autoridade, de provas forjadas, a exemplo da prisão do jovem negro Rafael Braga, dão materialidade ao racismo ins- titucional como reprodução das constantes violações aos direitos e às garantias fun- damentais da população enquadrada no perfil corriqueiro dos encarcerados no país: negros(as), jovens, de baixa renda e com baixa escolaridade, moradores das periferias. Jovens e usos de drogas: o que é essencial? O debate sobre as substâncias psicoativas e seus efeitos nos sujeitos que fazem uso delas geram na sociedade sentimentos e percepções diversos, que incluem curiosidade, medo, estigma e preconceito, o que se verifica também no âmbito do trabalho profissional dos/das assistentes sociais. O aprofundamento teórico acer- ca desse fenômeno na contemporaneidade não será profícuo se a inter-relação entre formas de consumo, espaços de comercialização na favela/periferia/bocas de “fumo” ou no asfalto/condomínios de luxo e o que sustenta essa produção for negligenciada. De acordo com Brites (2011) , a Lei no 11.343/2006 e a Política Nacional 4 5 sobre Drogas (2005) continuam a reproduzir concepções moralistas e interesses 4 Análise contida no CFeSS Manifesta Dia internacional de Combate às Drogas, Gestão Tempo de Luta e Resistência (2011-2014), de 26 de julho de 2011. 5 Para aprofundamento do tema, ver: Legislação e políticas públicas sobre drogas no Brasil. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2011.
econômicos e políticos nebulosos. Além disso, ao manter uma polarização entre as 57 substâncias consideradas lícitas e ilícitas, expressam o caráter moralizante de práti- cas utilizadas com o intuito de “controlar o comportamento de determinados seg- mentos sociais do que, como pretende o discurso dominante, reduzir danos sociais e de saúde associados ao consumo das drogas consideradas ilegais” (ibidem, p. 2). Vale destacar que a adoção do termo “usos de drogas”, no plural, não é por acaso. A discussão sobre o consumo de drogas implica o reconhecimento da complexidade dessa prática social. Portanto, diante dessa complexidade, é preciso conhecer as determinações (objetivas e subjetivas) que levam ao uso de drogas, a diferença entre as várias drogas em face dos danos sociais e de saúde, o contexto cultural de uso e, principalmente, a multiplicidade de padrões de consumo e de motivações na relação que o indivíduo social estabelece com a droga, o que nos autoriza a tratar o consumo na sua plu- ralidade e complexidade (BRITES, 2011, p. 1). A análise presente nas próximas linhas expressa minhas aproximações do tema, organizadas com base em estudos sobre as relações étnico-raciais no Brasil e as contradições vivenciadas cotidianamente por jovens negros(as) das periferias na intrínseca relação entre violência, uso “recreativo” de drogas lícitas/ilícitas e ameaças constantes de encarceramento juvenil em razão do envolvimento com o tráfico de drogas, uma atividade altamente organizada, com estrutura hierárquica bem definida e que expõe a juventude negra a situações de risco constante. A combinação entre ser jovem, negro(a), de baixa renda e morar na periferia favore- ce um certo tipo de sociabilidade que comporta a produção da cultura popular, expressa na música, na dança, nos bailes funks, nos saraus, nas batalhas de poesia, entre outros. Contraditoriamente, o espaço da periferia também vulnerabiliza esse segmento popula- cional em relação ao consumo de drogas e “justifica” a violência policial para a manuten- ção da ordem, por se tratar de prática altamente “criminalizada’’ pela sociedade em geral. O tráfico, como o capitalismo, produz os sujeitos dos quais se alimenta. De um lado, no asfalto, estão os consumidores do único meio de gozo tão potente que dispensa a publicidade. Do outro lado, da linha de montagem e da distribuição, está um exército de servidores voluntários. São escravos: quem entrou, só sai morto [...] Entre os consumidores que vivem no asfalto, há quem se sirva da droga para sonhar. Mas na ponta de cá, quem se dro- ga não sonha. A droga é a hiper-realidade cotidiana, aliada ao medo e ao
58 poder dos fuzis: quem vacilar sabe que vai morrer. O que equivale a uma condenação sumária: impossível viver sem, vez ou outra, vacilar . 6 Jovens de todas as camadas sociais são suscetíveis ao uso de drogas, porém, en- tre uns e outros, há a proteção do espaço privado e do uso segregado nas grandes boates, festas raves etc., onde agentes policiais, ressignificados nos papéis de segu- ranças particulares, ignoram os diversos consumos dos grupos com maior poder aquisitivo. Há violação dos direitos humanos dos jovens nas ruas das periferias, que sofrem com os abusos de autoridade, a violência física e a psicológica, atos vexatórios em locais públicos e, no limite, podem ser indiciados como traficantes, mesmo quando portam quantidades irrisórias de substâncias psicoativas ilícitas. Na literatura crítica sobre o tema, explicita-se que o nível de atenção empreen- dido nos cenários de usos precisa considerar cada situação e há por parte da ala conservadora da sociedade, dos órgãos governamentais e de vários grupos reli- giosos uma supervalorização do consumo e de seus efeitos, o que provoca uma atitude discriminatória e segregacionista em relação àquelas pessoas que fazem uso de tais substâncias. Portanto, qualquer política pública voltada a esse segmen- to populacional deve ser abrangente e não se limitar ao controle da substância. Somente uma parcela pequena necessita de cuidados específicos de saúde, que devem ser pautados na preservação dos direitos humanos. A maior de todas as violências do Estado é o próprio Estado. Ele é, antes de tudo, uma força que sai da sociedade e se volta contra ela como um poder estranho que a subjuga, um poder que é obrigado a se revestir de aparatos armados, de prisões e de um ordenamento jurídico que legitime a opressão de uma classe sobre outra (IASI) . 7 O modo como a sociedade responde às demandas relativas ao uso de subs- tâncias psicoativas na atualidade tende a desconsiderar que estas são expressões da questão social, no âmbito do sistema capitalista, como um modo de produção que viola os direitos humanos e se fortalece com a manutenção da violência. [...] a vitimização negra do país, que em 2003 era de 71,7%, em poucos anos mais que duplica: em 2014, já é de 158,9%, ou seja, morrem 2,6 vezes mais negros que brancos vitimados por arma de fogo (WAISELFIZ, 2016, p. 71). 6 KheL, M. R. As asas quebradas. Folha de S. Paulo. São Paulo, 26 março 2006. Caderno Mais. 7 iASi, M. o estado e a violência. Blog da Boitempo. Publicado em 16 de outubro de 2013.
Além da persistência da desigualdade social decorrente do processo de escra- 59 vidão, outros fatores colaboram para a seletividade étnico-racial dos homicídios no país e têm relação direta com a escravização da população negra. Waiselfiz (2016) destaca a progressiva privatização da política de segurança, ofertada aos setores com maior poder aquisitivo, enquanto a classe trabalhadora, predomi- nantemente negra, que vive do trabalho e mora nas regiões mais periféricas, tem na segurança do Estado a expressão da violência, bem como o modo como os recursos públicos são destinados de maneira desigual e impactam na possibili- dade de acesso às políticas públicas em níveis satisfatórios. Entre 1980 e 2014, as mortes por disparo de arma de fogo contabilizaram 967.851 “A população negra pessoas no país e desse contingente 85,8% foram casos de tem sido alvo prefe- homicídios, tendo o restante contemplado casos de suicídio (3,9%), acidentes (1,7%) e intencionalidade indeterminada rencial do aprisiona- (8,6%). Quando se analisa apenas o ano de 2014, verifica-se mento concreto e sim- que ocorreram 44.861 assassinatos, ou seja, “representam 123 vítimas de arma de fogo a cada dia do ano, cinco óbitos a cada bólico, a exemplo das hora [...] é maior que o resultado do massacre do Carandiru, ações desenvolvidas ocorrido em outubro de 1992, fato de grande repercussão na- cional e internacional” (ibidem, p. 70). Além disso, é mister na “Cracolância”, re- explicitar que 94,4% das vidas interrompidas em 2014 eram gião central da cidade masculinas e totalizaram 60% dos jovens. Dentre as mediações necessárias para a apreensão do ser de São Paulo.” negro(a), pobre e periférico(a), na dinâmica contemporânea da sociedade brasileira está a análise da violência e suas parti- cularidades a partir do “gênero”, “uma forma primária de dar significado às rela- ções de poder. Seria melhor dizer: o gênero é um campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado” (SCOTT, 1995, p. 88) e sua inter -relação com a classe social e a raça/etnia. Para a autora, é fundamental esmiuçar as desigualdades construídas sobre o viés de diferenças biológicas (poucas) entre o homem e a mulher, que constroem esse universo complexo do masculino e do feminino. Quando se conectam os dados de gênero, raça/etnia e idade das mulheres, os aspectos relativos aos papéis sociais reproduzidos por elas determinam, em gran- de medida, o modo como são assassinadas. De acordo com o Mapa da Violência 2015, o homicídio feminino, na faixa de 18 a 30 anos de idade, ocorre com o uso de arma de fogo em 48,8% das situações e outras formas de assassinato decorrem de estrangulamento/sufocação, material
60 cortante/penetrante e objeto contundente, em crimes cometidos de maneira ba- nal. Além disso, enquanto quase a metade dos homicídios masculinos ocorre em espaços públicos, no caso das mulheres o ambiente doméstico é palco de 27,1% das situações e à rua correspondem 31,2% dos casos. Para elucidar melhor essa análise ao longo do texto, é importante demarcar que “as taxas das mulheres e meninas negras vítimas de homicídios crescem de 22,9% em 2003 para 66,7% em 2013. Houve, nessa década, um aumento de 190,9% na vitimização de negras [...]” (WAISELFIZ, 2015, p. 3). Dada a natureza deste texto, não há possibilidade de dissecar os dados esta- tísticos anteriores, mas é importante apresentá-los para constatar a violência do racismo à brasileira e o quanto este incide na juventude de maneira letal, contexto que requer várias mediações na perspectiva de que as vidas negras precisam im- portar, caso contrário os dados acerca desse grupo populacional serão cada vez 8 mais estarrecedores e expressão do genocídio antinegro. Políticas públicas e juventudes: um enorme desafio Do ponto de vista da legislação brasileira, o Estatuto da Criança e do Adoles- cente (ECA) de 1990 considera criança a pessoa com até 12 anos de idade incom- pletos e adolescente aquele entre 12 e 18 anos de idade. Em 2013, foi aprovado o Estatuto da Juventude destinado aos jovens com idade entre 15 e 29. Conside- rando essa faixa etária, a nova legislação contempla os direitos e deveres de cerca de 51 milhões de brasileiros(as) conforme dados do IBGE (2010). No espaço temporal dos 15 aos 18 anos, o Estatuto da Juventude só se aplica a questões não previstas no ECA. O ECA contempla todas as crianças e adolescentes brasileiros(as), indepen- dentemente de classe social, gênero, raça/etnia, tendo sido elaborado em meio a uma ampla defesa encampada pelos diversos sujeitos históricos envolvidos na defesa dos direitos desse grupo populacional. Por sua vez, o Estatuto da Juventude – Lei no 12.852/2013 contempla direitos relativos à saúde, à educação, à cultura, ao acesso ao trabalho, ao transporte e à 8 No que se refere à noção de genocídio, a concepção moderna do termo é atribuída ao jurista polonês Raphael Lem- kin, que migrou da colônia para os estados Unidos em 1939, em decorrência do holocausto judeu. Sua contribuição ocorreu em 1944, em Axis rule in occupied europe, compreendendo uma perspectiva multifacetada. Não se restringia às ações de assassinatos simplesmente, mas às ações que infringiam a liberdade, a dignidade e a segurança de um grupo (ALMeiDA, 2014, p. 147).
organização das políticas públicas, notadamente pela previsão da organização do 61 Sistema Nacional de Juventude (Sinajuve). Em relação ao Estatuto da Igualdade Racial – Lei no 12.288/2010, é impor- tante destacar que seu objetivo é garantir a efetivação da igualdade de oportuni- dades, a defesa dos direitos e o combate à discriminação racial e às desigualdades estruturais e de gênero que atingem a população negra, incluindo a dimensão ra- cial nas políticas públicas e nas diversas ações desenvolvidas pelo Estado. Na perspectiva adotada da relação direta entre questão social, questão étnico -racial e vulnerabilidades juvenis, os/as profissionais da área social devem balizar suas intervenções, entre outras legislações e normativas, nas referidas legislações que regulamentam, respectivamente, a proteção da infância e da adolescência, a promoção das juventudes e a promoção da igualdade racial. Na atualidade são significativos os avanços acerca do reconhecimento do ra- cismo institucional como uma prática cotidiana das instituições públicas e pri- vadas. O esforço empreendido por diversos movimentos sociais negros em de- nunciar a desigualdade étnico-racial no país, ampliar o debate acerca da questão étnico-racial nos diversos ciclos geracionais, com destaque para as vulnerabili- 9 dades da juventude negra, do genocídio e do aumento dos assassinatos de mu- lheres negras jovens, conforme o Mapa da violência (2015), entretanto, carece de apropriação dos(as) operadores(as) das políticas sociais responsáveis pelo atendimento das demandas desse grupo. A luta contra a perversa segregação da juventude negra tem como desdobramento importante a elaboração do Plano de Prevenção à Violência contra a Juventude Negra – Juventude Viva, que contempla aspectos relacionados aos direitos e às diretrizes para atender jovens negros(as) e visa coibir os processos violentos que impactam as trajetórias juvenis. Trata-se de uma iniciativa importante decorrente das pautas apresentadas pelos “movimen- tos sociais, que reverberou nas Conferências Nacionais de Juventude, principal- mente, mas também nas Conferências de Igualdade Racial, de Direitos Humanos e de Segurança Pública, e começou a se materializar no ano de 2011” (BRASIL, 2014, p. 12). Questões para debate A luta a favor da discriminalização das drogas encontra enorme resistência 9 Pauta do Movimento Negro Brasileiro em diversas campanhas de denúncia pública dos efeitos perversos da vio- lência racial no Brasil.
62 principalmente entre os estratos mais pauperizados da classe trabalhadora, que têm em relação à temática uma concepção moralista e atribuem ao uso das dro- gas a reprodução da violência urbana, da violência doméstica, do encarceramento dos(as) jovens e dos altos índices de assassinatos, porque essa é a face cotidiana que vivenciam. Ao investigar a essência do fenômeno, outra realidade se apre- senta, posto que a atividade ilícita encobre a vulnerabilidade a que está exposta a juventude negra e tem relação direta, por exemplo, com a falta de integração entre as políticas assistenciais e as políticas de educação e trabalho cujas fraturas implicam a manutenção da pobreza geracional e a inserção precária no mercado de trabalho livre. Sua existência pode ser mediada pelos usos, que podem alterar a consciência da realidade momentaneamente; pela trajetória de suas famílias afetadas pelo uso de alguns de seus membros; quer seja em proporções menores, pela perda do con- trole sobre sua saúde física e psíquica; quer seja pelo encarceramento; quer seja pela morte prematura; por propostas sedutoras dos(as) donos(as) do negócio, ainda que a vida útil do(a) trabalhador(a) seja curta, a menos que sucessivamente ele(a) seja promovido(a) e a cada promoção seja blindado(a) com o distancia- mento das ruas, onde os confrontos com a polícia ocorrem e vitimam aqueles(as) que estão nas funções mais precarizadas da organização. Portanto, discutir a questão das drogas na sua interface com a questão étni- co-racial pressupõe apreender o fenômeno da produção, distribuição, consumo e as particularidades dos papéis desempenhados por “patrões/patroas”, funcio- nários(as) e clientes, na perspectiva da totalidade social, cujas mediações deter- minam o alvo prioritário da violência, do encarceramento e do extermínio: a ju- ventude negra. Referências ALMEIDA, M. S. Desumanização da população negra: genocídio como princípio tácito do capitalismo. em Pauta, Rio de Janeiro, n. 34, v. 12, 2o semestre de 2014. BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adoles- cente. ______. Lei no 12.888, de 20 de julho de 2010. Estatuto da Igualdade Racial. ______. Lei no 12.852, de 5 de agosto de 2013. Estatuto da Juventude.
______. Plano Juventude Viva – Caminhos da política de prevenção à violên- 63 cia contra a juventude negra no Brasil. Secretaria Geral da Presidência da Repú- blica. Brasília, 2014. BRITES, C. M. CFESS Manifesta _ Dia Internacional de Combate às Drogas. Gestão Tempo de Luta e Resistência (2011-2014), de 26 de julho de 2011. CYMROT, D. A criminalização do funk sob a perspectiva da teoria crítica. Dis- sertação de mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. IBGE. Censo demográfico 2010. Disponível em: <https://censo2010.ibge.gov. br/apps/atlas/>. Acesso em: 1 fev. 2018. NOVAES, R. C. R et al. (orgs). Política Nacional de Juventude: diretrizes e perspectivas. São Paulo: Conselho Nacional de Juventude; Fundação Friederich Ebert, 2016. SCHUCMAN, L. V. Sim, nós somos racistas: estudo psicossocial da branquitu- de paulistana. Revista Psicologia e sociedade, v. 26, n. 1, 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/psoc/v26n1/10.pdf>. Acesso em: 17 fev. 2018. SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Tradução Guaci- ra Lopes Louro. educação & Realidade, Rio Grande do Sul, v. 20, n. 2, 1995. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/ view/71721>. Acesso em: 19 fev. 2018. WAISELFIZ, J. J. Mapa da violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. Brasília, DF. Coletiva de imprensa após o lançamento. 2015. Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/mapa2015_mulheres_impren- sa.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2018. WAISELFIZ, J. J. Mapa da violência 2016: homicídios por arma de fogo no Bra- sil. Rio de Janeiro: Flacso/Brasil, 2016. Disponível em: <http://www.mapadavio- lencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2018.
Foto: Stringer Brazil/Reuters - www.exame.abril.com.br - São Paulo/SP - jun/2017 Foto: Paulo Whitaker/Reuters - www.folha.uol.com.br - Rio de Janeiro/RJ - jul/2012
66 CFESS Manifesta Edição especial: não à criminalização das lutas sociais! Brasília (DF), 9 de novembro de 2016 Gestão Tecendo na luta a manhã desejada www.cfess.org.br Primeiro levaram os negros, mas não me importei com isso. Depois agarraram uns Eu não era negro. desempregados, mas como tenho Em seguida levaram alguns meu emprego operários, mas não me importei Também não me importei. com isso Agora estão me levando, Mas já Eu também não era operário. é tarde. Depois prenderam os miseráveis, Como eu não me importei com mas não me importei com isso ninguém, Porque eu não sou miserável. Ninguém se importa comigo. Bertold Brecht utar não é crime. Ou ainda não o é, porque no Brasil, em 117 anos de república, a democracia sempre foi abreviada e, por ve- zes, cancelada. O direito de lutar, de livre manifestação e organi- zação sempre foi muito atacado em nosso país. Mesmo quando La democracia estava em “funcionamento”, ela foi muito parcial, proibindo ou perseguindo organizações da classe trabalhadora. A Lei An- titerrorismo que nos foi legada pelo governo Dilma é um retrocesso que se volta contra a classe trabalhadora e suas organizações. O governo ilegítimo de Temer piorou bastante as coisas numa conjuntura que lhe é favorável. CFESS Manifesta - Edição especial: Não à criminalização das lutas sociais / novembro de 2016.
67 CFESS Manifesta Dia Mundial da Saúde Brasília (DF), 7 de abril de 2017 Gestão Tecendo na luta a manhã desejada www.cfess.org.br CFESS Manifesta Dia Mundial da Saúde Brasília (DF), 7 de abril de 2017 A suplentes do Ministério da Saúde, da ANS e da vende consultas e exames, e o plano que conta data de 7 de abril é marcada como o com uma rede credenciada reduzida, sendo am- Confederação Nacional das Empresas de Segu- “Dia Mundial da Saúde” e, diante do ros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde cenário atual de mais um grave ataque bos assegurados pela legislação. O crescimento à politica de saúde brasileira, a realida- mero de denúncias e ações contra os planos. de nos exige reflexão e adensamento das lutas Suplementar e Capitalização (CNseg). A ação dessas propostas tem sido acompanhado do nú- do ministro de criar e ainda delegar ao ministé- em prol dos direitos das/os trabalhadoras/es. Ao rio a coordenação desse grupo demonstra mais Uma novidade trazida por esta nova pro- longo dos quase 30 anos da conquista constitu- uma vez a intenção de desmontar a saúde pú- posta de planos acessíveis é a participação da cional brasileira da politica de saúde pública, blica e fortalecer o setor privado. CNseg, representando os interesses do setor estatal e universal, que é o SUS (Sistema Único A justificativa para a proposta de planos privado até então representado pela Confede- de Saúde), diversas contrarreformas impediram acessíveis, dada pelo ministro, se baseia no ração Nacional de Saúde. Essa nova represen- que este se materializasse conforme previsto. tação indica o fortalecimento da tendência do O histórico e progressivo desfinanciamen- capital de internacionalização da economia e, to, privilegiamento do setor privado e desres- Os planos ditos associada à abertura ao capital estrangeiro apro- peito ao controle social democrático têm se “populares” ou vada em 2015, expressa a pressão internacional agravado ao longo dos anos. Alguns exemplos “acessíveis” representam pela financeirização e por realizar mudanças dessa afirmação são evidenciados na intensa a possibilidade de normativas para que a legislação do país se tor- entrega da gestão de serviços públicos às orga- rentabilidade para o ne mais favorável aos seus interesses. nizações sociais e outras formas de terceiriza- setor privado e um Os planos ditos “populares” ou “acessíveis” ção; na aprovação, manutenção e ampliação da representam a possibilidade de rentabilidade Desvinculação de Receitas da União (DRU), que prejuízo incalculável para o setor privado e um prejuízo incalculá- vem retirando 20% dos recursos da seguridade no campo do direito à vel no campo do direito à saúde. Os efeitos do social diretamente da fonte, para pagamento de saúde. Os efeitos do avanço dessa proposta são nefastos para traba- juros da divida; na imposição da Medida pro- avanço dessa proposta lhadores e trabalhadoras que, na prática, irão visória 13.097/2015, posteriormente transfor- são nefastos para pagar por planos reduzidos em valor e também mada em lei que altera parte do texto da Lei trabalhadores e em cobertura, criando um fundo justificado CFESS Manifesta Orgânica da Saúde, para permitir a participa- trabalhadoras que, pela falácia de que ele só será utilizado caso a pessoa adoeça. Porém, o que não é nem men- ção direta ou indireta de capital estrangeiro na assistência à saúde; no continuo desrespeito às na prática, irão pagar cionado é que existe a grande possibilidade de deliberações das conferências e às deliberações por planos reduzidos uma pessoa idosa adoecer e, neste caso, terá Edição Abr/2017. Dia do Conselho Nacional da Saúde. em valor e também em que pagar para ter acesso a determinados pro- cedimentos ou simplesmente não terá acesso. Como resultado dessas e de inúmeras ou- tras medidas contrarreformistas, os serviços cobertura, criando O ataque à saúde por meio dos planos de privados cada vez mais recebem recursos pú- um fundo justificado saúde, à previdência com sua nova contrarrefor- Mundial da Saúde blicos e o crescimento dos planos privados tem ele só será utilizado ma, associado ainda ao congelamento de “gastos” pela falácia de que públicos, representam um dos mais graves ata- alcançado as maiores marcas. Segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar caso a pessoa adoeça. ques articulados contra a seguridade social, que (ANS), o crescimento no número de usuários simplesmente não terá jamais foi realmente instituída no Brasil. de planos de saúde saltou de 31 milhões em acesso. Os valores neoliberais fortalecidos na atu- 2000, para 48,5 milhões em 2016. Foi em al conjuntura supervalorizam o mercado e a 2010, no segundo governo Lula, que o Brasil lógica da competição e da meritocracia, o que alcançou a posição de segundo mercado mun- também impulsiona a mercantilização dos di- dial de planos de saúde. argumento de “desafogar o SUS”, o que consi- reitos sociais. Acreditamos que é na rua, na luta Ainda que o cenário já indicasse um inten- deramos uma falácia. Desde a regulamentação coletiva, que conseguiremos resistir aos ataques so desmonte, em 2016, a situação é agravada dos planos de saúde na década de 1990, foram impostos pelo capital. Assim, reafirmamos nos- quando o ministro da saúde do governo ilegí- empreendidas diversas tentativas de retroceder sa defesa da agenda de lutas que vem sendo timo de Michel Temer promulga a Portaria nº em relação à legislação e tais propostas foram construída pelos/as trabalhadores/as, com a 1.482, que delibera sobre a instituição do gru- barradas pela mobilização popular. intencionalidade de compor uma greve geral. po de trabalho para discussão e elaboração de Na atualidade, já existem dois tipos de pla- Nesse Dia Mundial da Saúde, convocamos to- projeto de Plano de Saúde Acessível. nos de saúde “baratos”, que oferecem cobertu- das e todos à defesa da saúde pública, estatal e O GT é formado por representantes, titulares e ras mínimas, como o plano ambulatorial, que universal! #NossoPlanoÈoSUS Gestão Tecendo na luta a manhã desejada (2014-2017) PRESiDEntE Maurílio Castro de Matos (RJ) ConSElho FiSCal CFESS ManiFESta Vice-presidente Esther Luíza de Souza Lemos (PR) Juliana Iglesias Melim (ES), Raquel Ferreira Dia Mundial da Saúde 1ª secretária Alessandra Ribeiro de Souza (MG) Crespo de Alvarenga (PB) e Valéria Coelho (AL) Conteúdo (aprovado pela diretoria): 2ª secretária Erlenia Sobral do Vale (CE) Alessandra Ribeiro 1ª tesoureira Sandra Teixeira (DF) suplente organização: Comissão de Comunicação 2ª tesoureira Marlene Merisse (SP) Maria Bernadette de Moraes Medeiros (RS) Revisão: Diogo Adjuto Diagramação e arte: Rafael Werkema FalE ConoSCo SCS Quadra 2, Bloco C, Edf. Serra Dourada, Salas 312-318 , CEP: 70300-902 - Brasília - DF - Fone: (61) 3223.1652 - [email protected]
Estado, militarização, 68 guerra às drogas e criminalização: do que estamos falando? Ítalo Marcos Rodrigues 1
Na semana pós-carnaval de 2018, o Brasil, especificamente a cidade do Rio 69 de Janeiro, recebeu a notícia de que a antiga capital nacional sofreria intervenção federal, mas somente na área de segurança pública, por decreto do presidente da República previsto no art. 84 da Carta Magna de 1988. No momento em que o carnaval na cidade maravilhosa surpreendeu com o belíssimo desfile da Escola de Samba Paraíso do Tuiuti, que explicitou, por meio do enredo e das alegorias, a atual conjuntura pós-golpe de 2016 e a destruição de políticas e direitos sociais sob a batuta da ordem do grande capital de cunho neo- 2 liberal, o país se perguntava: “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?” . Partimos desse marco temporal e factual para pensarmos como o Estado 3 tem dado respostas às expressões da questão social e, dentre elas, à questão das drogas, e como o poder público “cuida” dos usuários de substâncias psicoativas (SPA) , compreendendo os limites impostos a um artigo e uma questão de multi- 4 causalidades e complexidades. No último encontro do Conselho Federal de Serviço Social e das Regionais de Serviço Social (CFESS/CRESS) de setembro de 2017, ressaltamos que foram deliberadas ações de responsabilidades local e nacional por ambas entidades e destacamos alguns itens do documento em relação a: [...] luta contra o preconceito ao uso de substâncias psicoativas, com ên- fase no antiproibicionismo, na crítica à guerra às drogas e na política de redução de danos, defendendo a legalização e regulamentação, consumo e comercialização/sobre o Serviço Social e os temas de estado laico, liber- dade de consciência e religiosa/debate sobre consumo de drogas/a defesa da concepção crítica sobre abolicionismo penal/defender a legalização e 1 Ítalo Marcos Rodrigues, Assistente social, trabalhador da saúde e membro associado da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme). 2 Nome do enredo do samba da escola de Samba Paraíso do Tuiuti de 2018, de autoria dos compositores Moacyr Luz, Cláudio Russo, Dona ZeZé, Jurandir e Anibal. 3 Segundo iamamoto (2000, p. 27), “a questão social apreendida como um conjunto das expressões das desigualda- des da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o traba- lho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade”. Para uma análise aprofundada, cf. iAMAMoTo, M. V. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. São Paulo: Cortez, 2008. p. 167-195. 4 Designaremos como usuários de substâncias psicoativas (SPA) pessoas que fazem uso de drogas lícitas ou ilíci- tas, porém sem estigmatizá-las com base na denominação do conceito preconceituoso sobre drogas, sendo essas “substâncias psicoativas utilizadas para produzir alterações nas sensações, no grau de consciência ou no estado emocional”. Texto disponível em SiLVeiRA, D. X.; DoeRiNG-SiLVeiRA, e. Secretaria Nacional de Políticas sobre Dro- gas (Senad). Disponível em: <www.aberta.senad.gov.br/medias/origina/>.
70 regulamentação do plantio, cultivo, produção e comercialização e consumo de drogas/ ações em defesa da concepção crítica e ampliada da transversa- lidade dos Direitos Humanos, a partir dos princípios de sua integralidade e sua indivisibilidade, denunciando e se contrapondo à concepção de Direi- tos Humanos jurídico formal que mascara o abismo da vida cotidiana e as contradições geradas pela sociedade capitalista (CFESS, 2017) . 5 A lógica da análise que propomos sobre a relação entre Estado, militarização, guerra às drogas, criminalização e intervenção militar no Rio de Janeiro reforça uma das políticas de enfrentamento quanto à questão das drogas sob a retórica de combate ao tráfico, a produção, a comercialização e os grupos denominados narcotraficantes, territorializados nas periferias dos morros ou das cidades, tendo como dispositivo disparador “o combate à violência” veiculado nos meios televi- sivos durante o carnaval e em tempo real, mediante a participação de cocinegra- fistas populares munidos de um celular com câmera de vídeo. Trata-se de uma intervenção com efeitos até dezembro de 2018 e que impede que se vote, em tese, no Congresso Nacional, qualquer projeto de Emenda Cons- 6 titucional no país que venha favorecer a classe trabalhadora - porém, não impede o avanço das reformas neoliberais - e, na mesma linha mestra, suspendeu a almeja- da contrarreforma da Previdência Social do governo ilegítimo do atual presidente que retira direitos sociais e, em ano eleitoral, tem grandes dificuldades em obter maioria para ser aprovada no Congresso Nacional mais conservador desde o gol- pe militar de 1964 e nos períodos em que se operou a ditadura burguesa . 7 5 Para ler as demais deliberações por eixo temático do 46o encontro Nacional CFeSS/CReSS de setembro de 2017, acesse o site do CFeSS: <http://www.cfess.org.br>. 6 em 2010, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, pediu a intervenção federal, no governo do Distrito Federal, do governador José de Arruda (hoje filiado ao PR), sob suspeição. o artigo 60, inciso 3o, parágrafo único da Carta Magna, impede a votação de emendas na CF/1988, cf. site do Senado Federal: <www12.senado.leg.br>. 7 CARVALho, A. et al. A autocracia burguesa e o mundo da cultura. in: NeTTo, J. P. Ditadura e Serviço Social _ Uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1996. Uma análise que penso ser necessária para constituirmos uma linha histórica, entre o golpe de 64 e o golpe de 2016, e pensarmos como ainda têm operado a burguesia brasileira e os meios de controle coercitivos do estado, seu significado comparado ao seu papel no século XXi, tendo como pano de fundo as conquistas sociais da classe trabalhadora sob a ótica do antagonismo das classes sociais latente no cenário nacional. Nas últimas décadas, presenciamos a atualidade da crise estrutural do capital cuja hipertrofia de acumulação da riqueza demonstra um Brasil no qual o estado favorece a concentração da riqueza à bur- guesia, seja com concessões tributárias e a não taxação das grandes fortunas, com a distribuição do fundo público via investimentos no setor privado em substituição do papel do estado social, seja no financiamento dos setores industrial e agropecuário. Por outro lado, nos últimos 16 anos, a classe trabalhadora experimentou e acessou bens materiais e sociais, mas aquém do que tem vivenciado a burguesia. Cf. CARDoSo, M. L. Capitalismo dependente, autocracia bur- guesa e revolução social em Florestan Fernandes. ieA/USP. Disponível em: <www.iea.usp.br/artigos>.
Entretanto, o nosso ponto de partida não se reduz à situação do Rio de Janeiro, 71 que tem sofrido investidas militares desde 1992, desde o evento internacional da Organização das Nações Unidas para o Meio Ambiente denominado Eco-92, em que tínhamos canhões do Exército apontando para os morros e os acessos vigia- dos por blindados militares. A situação nas capitais de outros estados e, principal- mente, em São Paulo não difere do ponto de vista militarista e habitual em que se tenta conter a violência e o mundo das drogas. As questões em comum entre os estados e capitais brasileiras em relação ao mun- do das drogas e à violência urbana, nos últimos anos, têm sido a política proibicionista e a guerra às drogas, o “Estado penal em detrimento do social”, e a criminalização dos 8 usuários de SPA, da política, dos sindicatos e movimentos sociais - entre eles, os de di- reitos humanos, da população LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e pessoas intersex), movimentos feministas, movimento negro etc. No Brasil, o Estado penal/proibicionista possui contradições no trato do le- gislador com base na lei de drogas no 13.343, de agosto de 2006, que carrega em suas linhas avanços e muito retrocessos. Avanços quando reconhece que a legisla- ção deve tratar a questão das drogas e não antidrogas, a intersetorialidade, a abor- dagem multidisciplinar, o respeito aos direitos humanos, a ampla participação so- cial e a relação cultural. Retrocessos quando se percebe que a partir da legislação 9 atual ocorreu um aumento significativo do encarceramento por tráfico de drogas . Além disso, a ideologia proibicionista embutida na legislação tem um caráter ne- fasto e de recrudescimento à ciência quando se pensa em desenvolvimento de fár- macos que possam contribuir com o restabelecimento ou a melhora na qualidade de saúde de pessoas que necessitam de cuidados terapêuticos, além de contribuir para o imaginário social mistificador e/ou cerceamento do debate sobre drogas. Falar sobre drogas é correr o risco de ser enquadrado no crime de apologia a tais substâncias. 8 Cf. BATiSTA, M. V. et al. estado de polícia. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 91-96; BRiSoLA, e. estado penal, crimi- nalização da pobreza e Serviço Social. Revista Ser Social, Brasília, v. 14, n. 30, p. 127-151, jan. jun. 2012. p. 127-151. 9 Para consulta de vários artigos críticos sobre a lei de drogas, acesse o site da Plataforma Brasileira sobre Drogas: <http://pbpd.org.br>.
72 Entretanto, todas essas questões giram em torno do estágio destrutivo em que se encontra a dinâmica do capital na atualidade . Ao fazermos a leitura sobre o sig- 10 nificado da guerra às drogas e ao mencionarmos que esse modelo não dá conta do 11 controle das drogas ilícitas, dissemos que não se justificativa uma política de acu- mulação por meio da repressão ao consumo e à comercialização e à criminalização de usuários de SPA. O modelo de repressão de guerra às drogas é proibicionista e incapaz de evitar a acumulação de lucro sobre a circulação de mercadorias das dro- 12 gas ilícitas . Por outro lado, não nos interessa também a acumulação de capital por meio da comercialização de drogas ilícitas, monopolizado, centralizado e de consu- mo mercadológico, fetichizado e desenfreado, como ocorre com o álcool. A discussão sobre legalização e comercialização das drogas, uma temática que exige muitas linhas, tem que ser pensada em sua totalidade, pois no âmbito do capital não se pretende criar resistência quanto à sua liberalização, mas entre os pensadores liberais persiste a condição moral conservadora sobre o uso. Ademais, as questões a serem enfrentadas se baseiam nas necessidades culturais e espiri- tuais imanentes ao ser humano enquanto ser social, o projeto societário vigente 13 na sociedade e o uso de SPAs, considerando o atual estágio do capitalismo senil . A referência para o debate sobre a liberação tem que ir além do combate à violência ou da tentativa de enfraquecer o narcotráfico. Enquanto persistem resis- 10 Cf. professor José Paulo Netto, “a ideia de que o tardo-capitalismo (o capitalismo contemporâneo, resultado das transformações societárias ocorrentes desde os anos 1970 e posto no quadro da sua crise estrutural) esgotou as possibilidades civilizatórias que Marx identificou no capitalismo do século XiX e, ainda, que este exaurimento deve-se ao fato de que o estágio atual da produção capitalista é necessariamente destrutivo (conforme o caracteriza istván Mészáros)”. Comunicação apresentada no iii encontro internacional Civilização ou Barbárie (30 de outubro a 1o de novembro de 2010), promovido em Serpa (Portugal), pela Câmara Municipal de Serpa e oDiario.info, sob a coorde- nação geral de Miguel Urbano Rodrigues e Catarina Almeida. Cf. NeTTo, J. P. Uma face contemporânea da barbárie. Revista Novos Rumos, Marília, v. 50, n. 1, jan./jun. 2013. 11 Sobre esse tema de guerra às drogas e militarização, cf. RoDRiGUeS, T. M. S. Políticas de drogas nas Américas. São Paulo: educ-Fapesp, 2004; KARAN, M. L. Violência, militarização e guerra às drogas. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 32-37. 12 em reportagem da Folha de S. Paulo em 24 de dezembro de 1995, fazia-se referência à liberação de drogas com base nos argumentos do Prêmio Nobel de economia, Milton Friedman, seguidos dos comentários dos pesquisadores da área de Psiquiatria professor elisaldo Carlini, que sugeria liberação experimental, e do professor Dartiu Xavier, que discorreu sobre a redução de danos em relação à aids. Por ironia, o economista liberal citado foi assessor de economia de presidentes pós-década de 1970 dos estados Unidos, entre eles Richard Nixon, que invocou o mundo a adotar a política de guerra às drogas. isso fez Friedman criticá-lo: “As leis antidiscriminação significam uma inter- ferência muito séria na liberdade de contrato”. Disponível em: <https://liberalesinstitut.wordpress.com/2009/12/15/ milton-friedman-richard-nixon>. 13 NeTTo, J. P., ibidem, p. 27.
tências para se discutir o tema, em razão da crise estrutural do capital na última 73 década, a União Europeia, desde 2015, orienta os países europeus a incluir no cálculo do produto interno bruto (PIB) atividades ilegais, entre elas as drogas (Revista Exame, 02/03/2015). Nesse sentido, independentemente da legalização dessas substâncias, o grande capital já as legalizou. No bojo da legalização, precede a descriminalização das drogas, uma questão necessária para diminuir o encarceramento da população usuária de SPAs. É es- sencial diferenciar quem é traficante e quem é usuário de tais substâncias. Destarte, na questão da violência, sabemos que o modelo repressor tem re- sultados disseminadores sobre a vida humana, princi- “O Estado que criminaliza palmente para a população negra e pobre que vive na é o mesmo que impede a periferia, visto que boa parcela pertence ao contingente excedente do mundo do trabalho . 14 população de se desen- Na atualidade, a percepção sobre os usuários de SPA volver de forma saudável, se encontra alijada de outras necessidades de sobrevi- vência do ser humano relacionadas a falta de emprego, com seus direitos sociais moradia, acesso a serviços de saúde, educação, prazer preservados, de se orga- etc. O debate sobre as drogas é endógeno ao termo em si, por grande parcela formadora de opinião. É estéril a nizar de forma autônoma sociabilidade humana, não se reconhece a relação so- e com liberdade de fazer ciocultural do uso de drogas, é a-histórica . 15 Para o senso comum, o usuário desprovido de di- escolhas.” reitos é considerado traficante e ameaça os valores 16 de uma sociedade ordeira e conservadora, enquanto o usuário detentor de direitos é considerado consumidor e precisa de ajuda. É nesse contexto que se têm criminalizado os usuários de SPA. O Estado que criminaliza é o mesmo que impede a população de se desenvolver de forma sau- dável, com seus direitos sociais preservados, de se organizar de forma autônoma e 17 com liberdade de fazer escolhas . O desencadeante a partir do Estado proibicio- nista só tende a manter o status quo do narcotráfico. 14 Cf. ANTUNeS, R. os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999. 15 Cf. BARRoCo, M. L. S. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2008. 16 Pesquisa inédita de parte do “Plano de enfrentamento ao Crack e outras Drogas de 2010”, realizada pela eNSP/ Fiocruz/Senad e coordenada pelos pesquisadores Francisco inácio Bastos e Neilane Bertoni. entre os achados da pesquisa, demonstrou-se que somente 6,4% a 9% realizam atividades ilícitas, o que contraria uma parcela conside- rável de argumentos reacionários sobre traficante e usuário de SPA. 17 Cf. BARRoCo, 2008, p. 57-65.
74 Não obstante, não podemos deixar de mencionar a relação entre a atuação dos agentes do Estado e a militarização das ações tanto contra os usuários de SPA 18 como no enfrentamento ao narcotráfico em determinados territórios. A cultura militarista enraizada nas polícias é ineficaz e desumana ao abordar usuá- rios de SPA ou qualquer pessoa em livre circulação, seja nos centros das cidades, seja nas periferias. Vivenciamos um “Estado penal” em que prender e trancar nos centros prisionais tem sido a melhor solução para higienizar “as classes perigosas”. No que tange ao debate sobre a desmilitarização, o professor de Direito Penal da Universidade Federal de Minas Gerais, Túlio Viana, em 2013, discorreu no vão do Museu de Artes de São Paulo (MASP): Quando a gente fala em desmilitarização da polícia, muita gente não en- tende o que estamos querendo dizer. Acha que a gente quer que a polícia ande desarmada. Outros pensam que o problema é a farda. Não tem nada disso. O problema do militarismo é que a sua lógica é treinar soldados para a guerra. A lógica de um militar é ter um inimigo a ser combatido e para isso faz o que for necessário para aniquilar esse inimigo. A polícia não pode ser concebida para aniquilar o inimigo. O cidadão que está andando na rua, que está se manifestando, ou mesmo o cidadão que eventualmente está cometendo um crime não é um inimigo. É um cidadão que tem direitos e esses direitos têm de ser respeitados (disponível no site do Jornal Brasil de Fato: <www.brasildefato.com.br>). Entretanto, o que temos presenciado nas capitais e nos estados do Rio de Ja- neiro e em São Paulo, sob governos conservadores, é a militarização e a aplicação de um Estado penal, traduzido no comentário do comandante Mello Araújo, das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA), em São Paulo, sobre a diferencia- ção que se faz ao abordar uma pessoa em territórios diferentes: É uma outra realidade. São pessoas diferentes que transitam por lá. A forma dele abordar tem que ser diferente. Se ele [policial] for abordar uma pessoa [na perife- ria], da mesma forma que ele for abordar uma pessoa aqui nos Jardins [região nobre de São Paulo], ele vai ter dificuldade. Ele não vai ser respeitado (extraído do site da UOL: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/24>). 18 Para uma análise sobre essa questão tão presente no cotidiano das populações periféricas, a editora Boitempo e o Jornal Carta Maior, em 2015, convidaram vários pesquisadores, juristas e parlamentares que abordam o tema de Direitos humanos e Violência a publicar uma série de artigos que retratassem a violência policial. KUCiNSKi, B. et al. Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação. São Paulo: Boitempo, 2015.
19 Os multimeios da burguesia quando anuncia a investida policial - leia-se Es- 75 tado - contra os territórios em que há agrupamento ou a presença de usuários de SPA ou onde se instala o exército do andar de baixo do narcotráfico são parte do jogo de acumulação capitalista, em razão da expansão imobiliária nos grandes centros ou em locais com potencial turístico, como nos morros do Rio de Janeiro. O trabalho sobre estudos da densidade demográfica em favelas nas megame- 20 trópoles no mundo, realizado pelo professor Mike Davis , do Departamento de História da Universidade da Califórnia, menciona que “na época vitoriana, a criminalização dos pobres urbanos é uma profecia que leva o seu próprio cum- primento e configura, de modo garantido, um futuro de guerra interminável nas ruas”. Também revela como os órgãos beligerantes dos Estados Unidos se prepa- ram para as guerras urbanas, sem se preocupar com o neoliberalismo: “Os estrategistas e os planejadores táticos da Academia da Força Aérea nor- te-americana, da Rand Arroyo Center do Exército dos Estados Unidos e do La- boratório de Guerra Quantico (...)” têm se preparado para um “futuro da guerra”, conforme a declaração à revista da Academia de Guerra do Exército. Segundo Davis, “a Rand cuida das cidades: os seus pesquisadores ponderam as estatísticas de crime urbano, a saúde pública dos bairros pobres do centro da cidade e a privatização da educação pública. Essa agência foi responsável por criar a estratégia da Guerra do Vietnã nos anos 1960”. Para Netto, “se verifica é que o belicismo passa a incluir as políticas de segu- rança pública em períodos de paz formal e se estende como negócio capitalista privado à vida na paz e na guerra, configurando a emergência da militarização da vida social”. Nesse contexto, imbricam-se todas as formas de opressão social e política so- bre a classe trabalhadora, seja ela a criminalização, a precarização da força de tra- balho, o aparato belicista, o “Estado penal”, todas as formas de preconceitos e a cultura de militarização sob a égide do capital. A mudança dessa condição não pressupõe a humanização das instituições ci- tadas, pois é preciso continuar a engendrar formas de resistência em torno das 19 Refiro-me aos multimeios para incluir todo o mercado de audiovisual e as novas tecnologias. 20 Cf. DAViS, M. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006.
76 organizações autônomas dos trabalhadores, sejam as clássicas, sejam as novas or- ganizações do século XXI . 21 vão querer me internar 22 Quando se pensa no uso de SPA, quando uma pessoa adentra uma unidade de saúde solicitando ajuda a um parente ou amigo, quando se descobre que alguém próximo faz uso de SPA, quando se pede conselho para quem faz uso de SPA, a primeira palavra que soa pelos corredores ou surge no imaginário social é interna- ção. Preciso que internem! Não por acaso isso ocorre. Quando se pensa em doença, no arcabouço cultu- ral tendem a prevalecer os modelos medicocêntrico, hospitalocêntrico e, agora, o juridicocêntrico - esse último tem ganhado relevância diante da crise do sistema 23 de saúde público, sob o ataque do setor privatista, e surge como uma esperança pos- sível ao acesso aos serviços de saúde. Todos corroboram para que a solução quanto ao uso abusivo ou não de SPA se volte para a internação, quando se deseja “a cura do uso de drogas”. Na falta de recursos financeiros para a internação, recorre-se a alternativas não convencionais de tratamento que não serão mencionadas aqui . Tais questões encontram respaldo no imaginário social e envolvem o tema das drogas sob dois aspectos. O primeiro abarca uma visão jurídico-moral de valores cujos arquétipos mais comuns do cotidiano se expressam em frases como: “droga é droga, o nome já diz”; “não use drogas”; “combata esse mal”; “drogas destroem a famí- 24 lia” etc. O segundo é biomédico e trata a droga como uma doença grave e incurável . 21 Cf. ANTUNeS, R. o socialismo, lutas sociais e novo modo de vida na América. Revista Direito & Práxis, PPGDir/ UeRJ, v. 8, n. 3, 2017. 22 Título da música do produtor e compositor de João Pessoa (PB) Sacal. “Gangsta Jegue”. Disponível em: <https:// youtu.be/DXphj4MF2KQ>. 23 esses termos foram muito debatidos ao longo da Reforma Sanitária Psiquiátrica e possuem ampla publicação. Para consulta, cf. PAiM, J. S. Reforma sanitária brasileira: contribuição para compreensão e crítica. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008 (disponível em Scielo Books). BRAVo, M. i. S. et al. (org.). Saúde e Serviço Social. 4. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Cortez/UeRJ, 2009. As questões da judicialização na saúde mental e das drogas ilícitas têm inflexionado a atuação de equipes multi/interdisciplinares no cuidado à saúde. Trata-se de um campo aberto para analisar sua participação, atuação e resolutividade no cuidado aos usuários de SPA. 24 Sobre as categorias jurídico-moral e biomédica, cf. Ministério da Justiça/Secretaria Nacional de Política sobre Drogas. Prevenção dos problemas relacionados ao uso de drogas: capacitação para conselheiros e lideranças comu- nitárias. 6. ed. Brasília, D. F.: Senad-MJ/Nute-UFSC, 2014. p. 16-23.
Se essas questões culturais já se encontravam no imaginário da população, 77 com o advento da política de guerra às drogas e o proibicionismo destas há uma hipertrofia de todos esses valores, porém instrumentalizada pelos multimeios burgueses e pelo interesse mercadológico assumido por governos neoliberais. Em um artigo na Folha de S. Paulo, de 19 de maio de 2002, o jornalista, pro- fessor e crítico de televisão Eugênio Bucci teceu críticas à novela O Clone (Rede Globo, 2001/2002), dada a abordagem destinada à questão das drogas e o otimis- 25 mo dos donos de clínicas particulares com o aumento de sua clientela . Nos dias atuais, a imprensa tem se reportado a abordagens que reforçam o clima de medo e de guerra às drogas, intercaladas com reportagens sobre a legalização da Cannabis sativa (maconha). Para o jornalista Tarso Araújo, a “mídia (quarto poder) é uma ferramenta de construção de realidade. À medida que o jornalista escreve, está construindo uma realidade que pode ser fiel ou não à realidade de fato. E quando a relata, a faz sob resumo, um momento da realidade” . 26 São esses elementos que consideramos constitutivos de uma cultura pela in- ternação e que exigem uma abordagem crítica sobre a questão das drogas/interna- ção até aqui desenvolvida. O contrário nos inflexiona ao campo leviano, burocra- ta, determinista, fatalista ou a uma atuação sobre a realidade e não na realidade . 27 Não obstante, a internação tem sido politizada, mercantilizada e se encontra alienada, indo na contramão de seus objetivos - a recuperação da saúde das pes- soas que dela necessitam. Porém, com a onda neoconservadora, a internação se apresenta como o pivô de uma chamada, “a segunda reforma psiquiátrica” . 28 25 Cf. ANDi. Mídia & drogas: o perfil do uso e do usuário na imprensa brasileira. Agência de Notícias dos Direitos da infância/Ministério da Saúde, 2005. p. 23. 26 Discurso proferido no Fórum Além da guerra às drogas _ Desafios de novas políticas públicas para os usos de substâncias psicoativas. Campinas: Unicamp, 2014; sobre o jornalismo e as drogas, cf. ARAÚJo, T. Almanaque das drogas. São Paulo: Leya, 2011; sobre o poder da mídia, cf. a filmografia do cineasta Costa-Gravas, o quarto poder (Mad City), 1997. em tempos modernos de golpe, os multimeios comprometidos com o grande capital contribuem para construir uma outra realidade. entretanto, no campo das contradições e de projetos antagônicos, tem surgido um conjunto de mídias denominadas pela ideologia burguesa de “alternativa”, mas que se encontram no campo das disputas modernas da comunicação e informação. 27 A professora Marilda Vilela iamamoto nos oferece uma contribuição entender um projeto profissional do Serviço Social, “pois entende-se que o Serviço Social não atua apenas sobre a realidade, mas atua na realidade” (iAMAMo- To, op. cit., 2000, p. 49-71). 28 em artigo da FSP, de 24 de dezembro de 2017, no caderno Tendências/Debates, o professor de Psiquiatria da Unifesp/Uniad Ronaldo Laranjeira discorre de forma eloquente sobre leitos psiquiátricos e lança como pérola do mo- vimento do indivíduo não governamental (iNG) a seguinte frase: “A segunda reforma psiquiátrica”.
78 Portanto, é preciso nos debruçar sobre a internação de usuários de SPA, con- siderando a legislação, a pessoa, o contexto – social, político e econômico –, as drogas, a ciência e a correlação de forças políticas no âmbito do Estado. Com a Lei sobre a Reforma Psiquiátrica (Lei no 10.216, de 6 de abril de 2001), as pessoas com transtorno mental passaram a ter direitos e proteção, in- clusive usuários de SPA, e no corpo da lei se estabelecem critérios sobre os tipos de internação e quando as realizar. Entretanto, a partir das mudanças ocorridas em setembro, com a aprovação da Portaria de Consolidação no 3, publicada no Diário Oficial da União, em 3 de ou- tubro de 2017, que modifica a organização dos serviços de atenção de saúde men- tal segundo a Portaria no 3.088, de 23 de dezembro de 2011, da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), para as pessoas em sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, a internação passa a ter relevância em detrimento da rede de atenção psicossocial. Ademais, temos assistido a governos neoliberais que se revestem com um dis- curso de preocupação humanitária em relação aos usuários de SPA e, sem ne- nhum estudo baseado em evidências científicas, lançam programas de interven- ção e cuidado para pessoas que fazem uso de SPA de cunho “asilar” – caso dos hospitais psiquiátricos e das “comunidades terapêuticas”. As propostas aprovadas transformaram as águas límpidas da reforma psiquiátrica e da RAPS em águas turvas e misteriosas. O que antes previa um cuidado breve na internação agora exige encarceramen- to na modalidade hospitalar e em instituições privadas que passam a ser reconhe- cidas como serviços de saúde de longa duração. Segundo o Manual de orientação para “comunidades terapêuticas” (2014), da Secretaria de Justiça e Cidadania, na página 20, em São Paulo já há internação de “até nove meses com necessidades clínicas estáveis decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas” (as aspas são do autor). A nova resolução do Ministério da Saúde determina internação por até 90 dias. O discurso neoconservador e antidemocrático em torno da internação não é exclusividade de alguns governos executivos e legisladores do Brasil, visto que os retrocessos têm sido sentidos nessa política pública em outros países. Com a eleição do presidente dos Estados Unidos e do primeiro-ministro da Holanda em 2017, iniciou-se um período de retrocesso na política sobre drogas. Nesse sentido, ocorre uma inversão de papéis e de valores na internação, entre o profissional que solicita a internação e o poder midiático, financeiro e político que determina como primeira intervenção a hospitalização de usuários de SPA.
No cotidiano dos serviços de saúde, nós, que recebemos tantos usuários como 79 seus entes próximos, somos pressionados a solicitar pedidos de internação sem ao menos termos a oportunidade de ofertar outros recursos extra-hospitalares no cuidado. Consideramos que a internação em saúde mental/álcool e outras drogas, sob a ótica interdisciplinar, garante melhor atenção integral e longitudinal em saúde, como também em relação ao acolhimento noturno em decorrência da fragiliza- ção de vínculos familiares ou outros riscos e agravos à saúde, esgotadas todas as possibilidades. Compreendemos a interdisciplinaridade como um processo his- tórico e socialmente construído, no qual não se anulam as especificidades, mas 29 abre-se uma grande janela para a troca de conhecimentos . No que tange às conquistas democráticas, participativas e históricas na políti- ca de saúde, estas têm sido ignoradas pelos atuais governos neoliberais, alinhados com o golpe em curso. 30 Na gestão municipal do prefeito Haddad, entre 2013 e 2016, foram fechados 530 leitos contratados em hospitais psiquiátricos. Demarcou-se um alinhamento com a reforma psiquiátrica. Portanto, fica claro que o posicionamento político de pessoas à frente da gestão de saúde é determinante para efetivar conquistas democráticas e garantir os direitos dos usuários. Nesse contexto, concluímos que ou se tem uma posição política democrática, com a participação da sociedade civil comprometida com a saúde integral, uni- versal e equânime, como preconiza o Sistema Único de Saúde, ou uma política antidemocrática e mercadológica. sistema Único de saúde (sus) e saúde mental: desafios para uma reforma psiquiátrica democrática Sem a intenção de terminar esse artigo de modo planfletário, com o “vampi- 31 ro do neoliberalismo e os banqueiros(...) ” apresentados nas alegorias da escola de samba citada, tal trecho é emblemático para analisar a atual política de saúde mental. 29 Cf. FRiGoTo, G. A interdisciplinaridade como necessidade e como problema nas ciências sociais. in: JANTiSCh, A.; BiANCheTTi, L. (org.) interdisciplinaridade para além da filosofia do sujeito. Petrópolis: Vozes, 1995. 30 Para uma leitura crítica sobre o golpe de 2016, cf. BRAZ, M. o golpe nas ilusões democráticas e a ascensão do conservadorismo reacionário. in: Serviço Social & Sociedade, n. 128, 2017 jan/abr. 31 Para uma análise crítica e didática da jornalista Maria Frô, sobre o desfile da escola de Samba Paraíso do Tuiuti, cf. site da revista Forum: <https://www.revistaforum.com.br/mariafro/2018/02/13>.
80 Os desafios postos no âmbito da saúde brasileira, apesar de o título remeter a um binômio entre SUS e saúde mental, são o ponto de partida dessa análise que inclui ataques privatistas recentes à saúde em seu conceito ampliado e como parte do processo histórico-político que abrange as duas reformas: sanitária e psiquiá- trica. Ambas as reformas foram engendradas em um momento histórico brasileiro recente do período da ditadura militar, “A saúde na contemporaneidade em que Netto discorre sobre o significa- do século XXI sofre a maior inves- do do golpe de abril, tida privatista, no bojo das apro- Nunca escapou aos analistas da ditadura que sua emergência inseriu-se num contex- vações da Emenda Constitucional to que transcendia largamente as fronteiras 95/2016, da reforma trabalhista, do país (...). A finalidade da contrarrevo- lução preventiva era tríplice (...) adequar pairando no imaginário governista os padrões de desenvolvimento nacionais e a contrarreforma da Previdência. de grupos de países ao novo quadro do in- O “grande negócio” na saúde tem ter-relacionamento econômico capitalista (...); golpear e imobilizar os protagonistas sido a ampliação de serviços de sociopolíticos habilitados a resistir (...); e, “custos populares”, a autorização enfim, dinamizar em todos os quadrantes as tendências que podiam ser catalisadas da entrada de empresas ou capital contra a revolução e o socialismo (op. cit., estrangeiro na assistência à saúde 1996, p. 16). e o incremento de investimentos O contexto do golpe de 64 e as duas pri- meiras finalidades da contrarrevolução me públicos nas chamadas “comuni- parecem atuais, daí a indicação referida na dades terapêuticas com um nova nota de rodapé 3. A terceira finalidade re- e velha roupagem dos manicômios laciono aos protagonistas dos governos de alguns países latino-americanos que estão da modernidade” sob ataque estadunidense. Se nesse período a política educacional de educação [trans-
formou-se num “grande negócio”], com uma “escalada privatizante”, precedida 81 pela redução de investimentos na educação pública (op. cit., 1996, p. 62-63). A saúde na contemporaneidade do século XXI sofre a maior investida priva- tista, no bojo das aprovações da Emenda Constitucional 95/2016, da reforma trabalhista, pairando no imaginário governista a contrarreforma da Previdência. O “grande negócio” na saúde tem sido a ampliação de serviços de “custos popu- lares”, a autorização da entrada de empresas ou capital estrangeiro na assistência 32 à saúde e o incremento de investimentos públicos nas chamadas “comunidades terapêuticas com um nova e velha roupagem dos manicômios da modernidade”. Seguindo a mesma lógica, em 21 de dezembro de 2017, em uma reunião da Co- missão Intergestores Tripartite, foi aprovada a Portaria no 3.588 que, em conjunto com outras portarias aprovadas em setembro do mesmo ano, alterou a organização e o financiamento da Política Nacional de Atenção Básica e de Saúde Mental. A rapidez com que se definem grupos de trabalho, decisões e a preocupação em aprovar tudo nos impressiona. Ignoram-se canais de debate e de participação democrática garantidos pela Constituição Federal de 1988. O Conselho Nacional de Saúde sequer tem sido informado das mudanças que estão ocorrendo até o momento. Resta-nos conferir se a intervenção constitucional no Rio de Janeiro interromperá a continuidade de medidas retrógradas em relação às políticas pú- blicas e aos direitos sociais da classe trabalhadora. Nessa conjuntura, resistir é a palavra de ordem, barrar as terceirizações e o avanço das privatizações, a destruição de direitos sociais e trabalhistas, realizando intervenções em todas as instâncias de participação popular da sociedade civil e nas ruas. Realizar a disputa do Fundo Público no âmbito do Estado contra os mo- delos de privatizações de políticas públicas por meio de Organizações da Socie- dade Civil de Interesse Público (OSCIPS), das Parcerias Público-Privadas (PPP) e das Organizações Sociais de Saúde (OSS), que têm se consolidado em governos 33 “populares” e neoliberais . 32 Lei federal no 13.097, de 19 de janeiro de 2015. 33 Para uma crítica a participação do terceiro setor nas políticas públicas, cf. MoNTAÑo, C. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
82 Ao longo da história, o Serviço Social tem dado visibilidade a tais ações, po- sicionando-se criticamente em prol das necessidades da classe que vive do tra- 34 balho . Tem se posicionado contra qualquer forma de opressão política e social, compreendendo sua condição de assalariado, mas atuando na construção de con- sensos na relação entre capital e trabalho . 35 Projetos que cerceiam a liberdade, condicionam pessoas a um mundo que não lhes pertence e anulam suas singularidades, impedem que construam sua autono- mia e sejam respeitadas em seu estado de saúde e modo de ser, retiram direitos à convivência familiar e comunitária e o acesso a políticas públicas de proteção social e previdenciária, como tem ocorrido com certas chamadas “comunidades 36 terapêuticas ”, não podem fazer parte de nenhuma política pública e muito me- 37 nos se constituir em espaço ocupacional . A professora Marilda Iamamoto (2008), na penúltima página que antecede o poema de Drumond, “Canto brasileiro”, em sua obra, aponta os desafios do Ser- viço Social: O desafio é afirmar uma profissão voltada à defesa dos direitos e das conquis- tas acumuladas ao longo da história da luta dos trabalhadores no País e compro- metida com a radical democratização da vida social no horizonte da emancipação humana: “Ser radical é tomar as coisas pela raiz, e a raiz, para o homem, é o pró- prio homem” (K. Marx) (idem, 2008). O SUS é a expressão da luta sociopolítica do protagonismo da classe trabalhadora e é um projeto de nação soberana defender a saúde em seu sentido amplo e em detrimen- to da doença, do sofrimento psíquico, da violência institucional e social, da internação desnecessária ou por inanição de políticas sociais, da morte de projetos coletivos cons- truídos com valores éticos com liberdade, autonomia, universalidade, equidade e com participação popular e das organizações dos trabalhadores no cuidado da saúde. 34 ANTUNeS, op. cit., 1999. 35 iAMAMoTo, op. cit., 2000. 36 Cf. Relatório da 4a inspeção Nacional de Direitos humanos: locais de internação para usuários de drogas. Conse- lho Federal de Psicologia/Conselho Nacional de Direitos humanos, 2011. 37 o projeto ético-político profissional e o código de ética são claros enquanto a violação de direitos humanos e a “liberdade como valor ético central e das demandas políticas a ela inerentes – autonomia, emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais”, cf. Código de Ética do/a assistente social. 10. edição revisada e atualizada. BAR- RoCo, op. cit., 2008, p. 42-70.
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A reprodução do conservadorismo e o uso de substâncias psicoativas Adriana Brito da Silva 1
O trato moralista das contradições entre capital e trabalho não é uma discus- 87 são nova no interior do Serviço Social brasileiro, tendo já sido tematizado por diversos teóricos renomados da profissão. A tentativa por meio do presente artigo é apreender a reprodução do pensamento conservador e as drogas ilícitas, recupe- rando seu conteúdo moralista e, ao mesmo tempo, trazer à tona o seu componen- te racial, pois o racismo está nas entranhas da sociedade burguesa. Cabe lembrar que a proclamação da Carta dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) ocor- reu em plena escravidão da população africana que teve sua humanidade negada e transformada em um mero instrumento de valorização de capital. Portanto, a repressão ao tráfico internacional de drogas e ao uso de drogas ilícitas é uma guerra contra a classe trabalhadora, em especial a negra, e não por acaso as ações variam entre o extermínio e a higienização. Em síntese, o pensa- mento conservador burguês é racista . 2 Para atender à finalidade a qual se propõe o presente artigo, sinteticamente tangenciaremos algumas características do pensamento conservador sem a pre- tensão de esgotá-lo. Breve caracterização do pensamento conservador Historicamente, o pensamento conservador emerge em oposição às conquis- tas oriundas da Revolução Francesa de 1789 e ao Ideário Iluminista; o pensa- mento conservador se consolidou em contraposição às instituições e às formas políticas produzidas pelo movimento revolucionário conduzido pela burguesia que pôs fim ao Antigo Regime. Após o protagonismo do movimento operário e socialista entre os anos de 1830 e 1848, as contradições de classes, como o pauperismo, a prostituição, a delinquência e o crescimento das cidades em detrimento da industrialização, tor- nam-se uma ameaça à cultura burguesa, pois se “espalharam como fogo na palha por fronteiras, países e mesmo oceanos” (HOBSBAWM, 1979, p. 30-33), e suas 1 Adriana Brito da Silva, assistente social e professora mestre do curso de Serviço Social da Faculdade de Mauá (Fama). 2 Sabe-se que historicamente a ideologia racista surge para justificar a dominação de uma classe sobre a outra, servindo como argumento para assegurar a transformação do mundo de acordo com os interesses da classe bur- guesa. Segundo Góes (2015), o racismo não se reduz apenas à reprodução das hierarquias entre os indivíduos, mas assegura a supremacia de uma classe em relação à outra. em suma, a ideologia racista nega a humanidade e ao mesmo tempo transforma a população africana pertencente à classe trabalhadora em um instrumento de afirmação do mundo burguês.
88 influências podem ser identificadas nas sublevações que ocorreram em Pernam- buco, no território brasileiro . Simultaneamente, provocaram interferências em 3 partes desenvolvidas e atrasadas do mundo. De modo imediato eclodiram e, de- zoito meses depois, as derrotas já podiam ser identificadas. “Era a primavera dos povos e, como a primavera, não durou”. As insurreições de 1830 a 1848 e sua repressão demonstraram que, concluído o processo revolucionário, a burguesia aliou-se ao que restou do Antigo Regime e passou a ter como constantes inimigos o marxismo, a perspectiva revolucionária e a classe trabalhadora. Neste caso, o referido período é um marco importante para a classe trabalhadora, não só pelas insurreições, em razão de o movimento operá- rio ter elaborado um importante documento que será norteador das lutas sociais, não somente para os trabalhadores do continente europeu. Trata-se do Manifesto Comunista de Marx e Engels (1848). Nessa direção, após 1848, o pensamento conservador torna-se a mediação ideopolítica que explica e justifica o mundo burguês. Em sua trajetória histórica, manifesta-se de diversas maneiras, produzindo desdobramentos que visam prote- ger a propriedade privada, os valores tradicionais e a família, ou seja, assegurar a permanência da classe que se tornará reacionária e contrária a qualquer transfor- mação da ordem societária. Ancorada e sustentada em pressupostos materiais, a ideologia conservado- ra forja uma consciência social que produz e reproduz valores e modos de vida adaptados à ordem, dando a impressão de serem eternos e imutáveis. Para dar sustentação à argumentação em tela, basta examinarmos a produção teórica de Durkheim (1858-1917). Para o pensamento durkheimiano, a sociedade não é constituída por classes sociais, mas por indivíduos e grupos. O desenvolvimento econômico produziu a desordem, o individualismo, a concorrência, a redução da moralidade pública e encontra a solução para a manutenção do elo entre os indivíduos, ou seja, a coesão social, na divisão do trabalho. Com a divisão do trabalho, surgem simul- taneamente a diversificação e a relação entre grupos profissionais, que, além de desempenharem funções econômicas, também são encarregados de reproduzir moralidade, isto é, “os serviços econômicos que ela pode prestar são pouca coisa ao lado do efeito moral que ela produz” (DURKHEIM, 1983, p. 30). 3 insurreição Praieira.
Se, de um lado, Durkheim (1983) valora a divisão do trabalho e afirma que os 89 indivíduos tornam-se ligados uns aos outros, estabelecendo elos de solidariedade social, por outro lado, Marx e Engels (2007, p. 38) demonstram que a proprie- dade privada, a divisão social do trabalho e a exploração são, ao mesmo tempo, a apropriação do trabalho alheio, do produto do trabalho alheio e, de modo força- do, uma necessidade de sobrevivência dos trabalhadores. Neste sentido, a cooperação entre os in- “A repressão ao tráfico internacio- divíduos “condicionada pela divisão social nal de drogas e ao uso de dro- do trabalho” não ocorre de modo volun- tário. Apartados dos meios de produção e gas ilícitas é uma guerra contra premidos pelas necessidades de sobrevi- a classe trabalhadora, em espe- vência, os trabalhadores assalariados não reconhecem que o desenvolvimento das cial a negra, e não por acaso as forças produtivas é produto da sua força ações variam entre o extermínio de trabalho integrada, mas como um poder e a higienização. que se move de modo “estranho e indepen- dente deles”, porém sob o controle de ou- trem, a saber, o capitalista. À medida que o trabalhador vende sua força de trabalho ao capitalista por um tempo socialmente determinado, troca sua força de trabalho por salário e ao mesmo tempo “aliena seu valor de uso; ele não pode obter um sem abrir mão do outro” (MARX, 2017, p. 270-271). Ao colocar em movimento sua força de trabalho, o trabalhador não só transfe- re valor dos meios de trabalho à mercadoria, mas simultaneamente cria um mais valor que não lhe pertence. A mais-valia, tempo de trabalho não pago, não é so- mente a exploração do trabalhador, é ao mesmo tempo o próprio capital como uma relação social. O pressuposto da criação de mais valor se inicia no circuito da relação de com- pra e venda de força de trabalho. É preciso que possuidores de distintas proprie- dades estabeleçam relações de troca. De um lado, o “capitalista dono dos meios de produção e subsistência e, por outro lado, o trabalhador livre como vendedor da força de trabalho” (MARX, 2017, p. 245). Em suma, o trabalhador é compelido a adentrar o processo de trabalho de criação de mais valor para poder se reproduzir enquanto tal e, simultaneamente, o capitalista, para poder existir, precisa comprar força de trabalho para colocar em movimento seus meios de produção. Contradi- toriamente, trabalhador e capitalista estabelecem uma mútua relação de negação e afirmação.
90 Portanto, o mais valor criado pela força de trabalho pertencente ao trabalha- dor é sua exteriorização cristalizada sob a forma mercadoria, porém sua própria criação o enfrenta como um poder “estranho e hostil” (NETTO, 2007, p. 96). As- sim, as relações sociais decorrentes do modo de produção capitalista movem-se estabelecendo relações fetichizadas em todas as esferas da vida social como um poder acima dos indivíduos, a saber, o dinheiro, uma mercadoria que condensa o valor de todas as mercadorias e, no imediatismo do cotidiano, aparenta ser o criador de valor. Outro aspecto que deve ser sublinhado em relação à perspectiva de Durkheim (1983) é a forma como concebe a categoria divisão do trabalho, pois, para ele, a referida categoria é abordada de maneira “semântica”, ao passo que para Marx a categoria “divisão social do trabalho” é um construto histórico. Para Durkheim, a divisão do trabalho é constituída por corporações ou grupos profissionais, e para Marx, simultaneamente, a propriedade privada, a divisão social do trabalho e a exploração são os pressupostos fundantes da formação das sociedades de classes, um produto histórico do desenvolvimento do conjunto das forças produtivas, portanto pelo trabalho é que se expressa a forma de organização social de domi- nação do capital. Em outras palavras, a divisão social do trabalho é a expressão do capital, ou seja, o capital emerge da separação dos indivíduos de seus instrumentos da pro- dução da vida. É a partir da clivagem entre o homem e suas potencialidades que se efetiva o capital. Em relação à solidariedade social advinda da divisão do trabalho valorada por Durkheim (1983, p. 18), tem sua forma no direito contratual, logo este estabelece relações de troca entre as mais diversas funções, “entre operários e empresários, entre o locatário da coisa e o locador, entre o que empresta e toma emprestado”, entre outros. O pensador em tela denomina-a de solidariedade orgânica: sua fun- ção é manter a interdependência entre diferentes indivíduos e promover a coesão social. Para Durkheim, “a corporação está destinada a se tornar a base ou uma das bases essenciais de nossa organização política”. Segundo Netto (2007, p. 48), apesar de aparecer no pensamento de Comte, é por meio do pensamento durkheimiano que surgem de modo fundamentado “a naturalização e a psicologização do social como mediação política”. Em relação à naturalização do social, ele nega intervenção consciente dos sujeitos históricos sociais na produção da vida social e quanto à “psicologização das relações sociais
aparece inteira de modo efetivo e operante na esfera moral” . De modo geral, para 91 4 os dois pensadores, a sociedade é regida pelas leis da natureza. Para Marx, a socie- dade é uma histórica construção humana mediada pelo trabalho, isto é, a relação entre o homem e a natureza. Outro dado relevante à publicação do texto “Da divisão do trabalho social” data de 1893, pouco tempo depois da abolição da escravatura tanto nos Estados Unidos (1863) quanto no Brasil (1888). A naturalização do social também acaba contribuindo para naturalizar a questão racial. Na sociedade brasileira, o pensamento positivista influencia o militarismo, o movimento da Proclamação da República e a Constituição de 1981, além de tam- bém estar presente na organização das políticas educacionais e nas compreensões pedagógicas. “Ancorada e sustentada em pres- Outro aspecto importante à valoriza- ção da divisão do trabalho durkheimiano supostos materiais, a ideologia aliada aos métodos de intervenção social conservadora forja uma consciên- oriundos da Escola de Chicago viabiliza um modo de intervenção nas relações so- cia social que produz e reproduz ciais que visa ao controle do capital sobre o valores e modos de vida adapta- trabalho. Em síntese, enquanto Durkheim valora a função do conjunto das profissões, dos à ordem, dando a impressão os pensadores da Escola de Chicago criam 5 de serem eternos e imutáveis.” os métodos de intervenção social. Os estudos realizados na Escola de Chi- cago tiveram a finalidade de racionalizar a criminalização, a imigração, as rela- ções étnico-raciais, entre outros, para responder às necessidades correspondentes ao capitalismo em sua fase taylorista-fordista. É o berço de origem da sociologia 4 inconteste nos passos comteano e durkheimiano, a psicologização das relações sociais, sob a forma da morali- zação da “questão social”, registra-se muito diferencialmente. No primeiro, colocada em um evidente misticismo, orienta-se para a modelagem de um universo em que os conflitos se resolvem com a pura assunção, por parte dos protagonistas, da sua condição – donde a qualificação positiva para a resignação. No segundo, a elaboração teórica soluciona a objetividade dos conflitos pela via da construção de mecanismos de controle social que reconhecem (aos conflitos) como tais, propondo [...] a intervenção sobre eles com o erguimento de normas coesivas que liguem organicamente o público e o privado – donde a qualificação positiva da ação social (NeTTo, 2007, p. 49). 5 A escola de Chicago é um movimento arquitetônico modernista que se originou na cidade de Chicago, local onde surgiram os primeiros arranha-céus dos estados Unidos e também a Universidade de Chicago. Tal Universidade nasceu em 1890, financiada pelo magnata do petróleo John D. Rockefeller, que, na ocasião, doou 35 milhões e, em 1910, mais 10 milhões de dólares.
92 americana, um modo de pensar que valora o empirismo, o pragmatismo e o inte- racionismo simbólico. O empirismo é valorado pelo pensamento de Albion Small (1854-1926), funda- dor e dirigente do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade de Chicago. Small “insistia que seus alunos fizessem pesquisas de campo ativas e obser- vações diretas e que não se entregassem a reflexões teóricas de poltrona” (COULON, 1995, p. 15). Na obra publicada em parceria com George Vincent, em 1894, em que Small a denominava de “guia de laboratório, ele dedicou dois capítulos sobre a conduta empírica da sociologia”. O conteúdo destaca a relevância do hábitat para as relações sociais, além de incentivar os estudantes “a observar as comunidades onde vivem, estudar sua história e levantar mapas”. Além disso, sugeriu aos colegas do Departa- mento de Sociologia da referida Universidade ter como referência a cidade de Chi- cago “como campo de pesquisa [...], ideia que prefigurava os princípios de pesquisa sobre a cidade, que, vinte anos depois, seria aplicada de maneira sistemática”. Desde sua origem, a sociologia em Chicago recebeu influência de outras disci- plinas, “a filosofia foi a primeira a fundar uma ‘escola’ verdadeira, o pragmatismo” (COULON, 1995, p. 17-18). O pragmatismo considera que a atividade humana deve ser analisada sob três aspectos intrínsecos: o biológico, o psicológico e o ético. Valora a importância do ensino da psicologia no campo da filosofia. Para os filósofos da Universidade de Chicago, ambas deviam influenciar a realidade na seguinte direção: a filosofia como sustentação teórica que viabiliza “a solução dos problemas sociais, educativos, econômicos e políticos”, porém consideravam que a solução necessitava de métodos científicos “aplicados à educação e à ciência”. Em linhas gerais, “o pragmatismo é a filosofia da ação que também pode ser chamada de filosofia da intervenção social”. Georg Herbert Mead (1863-1931), filósofo da referida escola, fez do pragmatismo um instrumento social, pois acre- ditava que “a consciência dos indivíduos se elabora por meio das interações e dos processos sociais” (COULON, 1995, p. 19). O interacionismo simbólico que influenciou a sociologia em Chicago tem suas origens no pragmatismo de John Dewey (1859-1952), filósofo e pedagogo cujas preocupações repousam na relação entre educação e democracia. Em 1896, fundou no interior da Universidade de Chicago um laboratório que funcionou como escola primária e, posteriormente, se transformou “num laboratório de ideias desenvolvidas por filósofos que poderiam ser aplicadas”. De modo geral, o interacionismo simbólico valora a natureza simbólica da vida social, “afirma que é a concepção que os agentes têm do mundo social que
“Cria-se a impressão de que o trá- constitui, em última instância, o objeto 93 essencial da investigação sociológica” fico e o uso de drogas ilícitas são (COULON, 1995, p. 20). um mal que gera medo e desor- Portanto, enquanto Durkheim propõe uma postura investigativa de neutralida- dem, por isso devem ser comba- de dos agentes pesquisadores em relação tidos. É um modo de pensar que ao objeto, Mead valora a interferência do agente. Segundo ele, “os estudos socioló- justifica ações militarizadas, inter- gicos deste mundo [...] devem analisar os nações compulsórias, clínicas tera- processos pelos quais os agentes deter- pêuticas, entre outras, que, no dia minam suas condutas, com base em suas interpretações do mundo que os rodeia”. a dia, tendem a assumir a aparên- Contudo, a intenção não é esgotar o cia de corretas, ou seja, represen- assunto sobre o pensamento conserva- dor. Trata-se apenas de aproximações ge- tam o bem.” rais para demonstrar sua complexidade e sua trajetória histórica como modo de justificar o mundo burguês. Em relação ao Serviço Social, é importante destacar que apesar de termos um projeto ético-político que vem sendo construído há mais de 30 anos, caracteriza- do pela busca de ruptura com o conservadorismo, isso não significa que este foi eliminado do interior da profissão, visto que coexiste com a perspectiva sustenta- da na tradição marxista e está em constante disputa. Manifestações do conservadorismo e drogas ilícitas É importante destacar que o moralismo em relação ao uso de substâncias psi- coativas e psicotrópicas é abrangente, porém, para a finalidade do presente artigo, 6 consideraremos apenas as ilícitas. Além disso, sinalizamos que o termo droga aqui adotado justamente demonstra como a ideologia forja a consciência social e 6 Destarte, embora o termo droga seja o mais usado no cotidiano, os termos psicotrópicos e psicoativos são mais adequados para designar as substâncias/produtos que agem preferencialmente no sistema nervoso central (SNC), estimulando, deprimindo ou perturbando suas funções (propriedades que tornam os psicotrópicos/psicoativos subs- tâncias passíveis de abuso e dependência). o termo droga tem sido usado de maneira inadvertida, contribuindo com visões mistificadoras sobre o uso de psicoativos por usuários(as) de psicoativos, bem como com a reprodução acrítica de juízos de valor estigmatizantes (CFeSS. Conselho Federal de Serviço Social. Série Assistente social no combate ao preconceito, 2016. p. 8).
94 se movimenta viabilizando ações cuja finalidade é o exercício do controle sobre a classe trabalhadora, mais empobrecida, que se reproduz dos mais diversos modos. O uso de drogas é histórico na sociedade. “O consumo da folha de coca faz parte da cultura indígena no Peru e na Bolívia há aproximadamente 4 mil anos. Trata-se de um hábito alimentar altamente nutritivo” (ARBEX JR., 1993, p. 18). É aproximadamente no final da década de 1960, período da crise econômica mundial marcado pela transição da acumulação rígida para a acumulação flexí- vel, isto é, a “flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo” (NETTO & BRÁS, 2008, p. 215), que o cultivo da folha de coca “passa a se associar ao mercado gigantesco de consumo de cocaína” (BATISTA, 2014, p. 180), ampliando seu espaço no mercado mun- dial, articulando transações no mercado financeiro, mas também se relacionando com atividades industriais, como a bélica, a farmacêutica, entre outras, portanto “o tráfico internacional de drogas é um negócio capitalista altamente lucrativo” (COGGIOLA, 1996, p. 45). Além de se articular aos interesses do mercado, o tráfico internacional de dro- gas reproduz o velho modo burguês de fazer política contra a classe trabalhadora mais empobrecida, com a guerra às drogas, caracterizada pelo combate militar ao tráfico e pela repressão ao uso de drogas tornadas ilícitas, sendo uma verdadeira guerra contra a classe trabalhadora, em especial a negra. Basta verificar as ações conjuntas da Guarda Civil Metropolitana e da Polícia Militar ocorridas na região denominada pejorativamente de Cracolândia, no mu- nicípio de São Paulo. São executadas “sem nenhum pudor por bombas de gás, cas- setetes e spray de pimenta ” contra as pessoas que fazem uso de crack na região. 7 O alto índice de pessoas encarceradas classifica o Brasil em terceiro lugar no ranking mundial. Atualmente, possui “726 mil pessoas, a maioria de homens ne- gros, entre 18 e 29 anos, com Ensino Fundamental incompleto, presos por crimes 8 ligados ao tráfico, roubos e furtos ”. Apenas a título ilustrativo, é como se todas as 710.210 pessoas que moram no município de Santo André estivessem presas e, ainda, faltariam aproximadamente 15 mil pessoas. 7 Agressões e violações na Cracolândia. Material produzido pela equipe de A Craco resiste. 8 Agência iBGe Notícias. iBGe divulga as estimativas populacionais dos municípios em 2015. Disponível em: <ht- tps://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2013-agencia-de-noticias/releases/9647-ibge-divulga-as-es- timativas-populacionais-dos-municipios-em-2015-atualizado-as-18-00h-do-dia-28-08-2015.html>. Acesso em: 30 jan. 2018.
Entre janeiro de 2001 e dezembro de 2015, houve um elevado índice de ho- 95 micídios, totalizando 786.870 pessoas, das quais 70% tiveram a vida interrompida por arma de fogo, a maioria sendo vítimas jovens, negras e pardas, entre 20 e 29 anos . 9 O controle territorial exercido por meio das unidades de policiamento pacifica- doras (UPPs) é considerado pelas autoridades públicas “um dos mais importantes 10 programas de Segurança Pública realizados no Brasil nas últimas décadas ” . Com a implantação das UPPs em comunidades do Rio de Janeiro, houve um incremen- to de assassinatos. No período entre “janeiro de 2010 e agosto de 2016, houve 3.985 autos de resistência, antigo nome de registro da morte em decorrência da 11 intervenção policial” . Os números correspondem aproximadamente a cerca de 50 mortes por mês. No imediato da vida cotidiana constituída por relações sociais fetichizadas, forjam-se preconceitos formadores de estereótipos, como o traficante, o noia, o cracudo, o favelado, o bandido, ou seja, uma verdadeira “demonização do tráfico de drogas” (BATISTA, 2014, p. 182) que alia o uso de drogas a uma “epidemia te- mida pelo seu potencial de produção de desordem” (BATISTA et al., 2014, p. 15). Assim, cria-se a impressão de que o tráfico e o uso de drogas ilícitas são um mal que gera medo e desordem, por isso devem ser combatidos. É um modo de pensar que justifica ações militarizadas, internações compulsórias, clínicas tera- pêuticas, entre outras, que, no dia a dia, tendem a assumir a aparência de corretas, ou seja, representam o bem. De acordo com um documento publicado pelo Con- selho Federal de Serviço Social, tendo como fundamentos os dados colhidos por uma pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Psicologia, em 68 comunidades terapêuticas, verifica-se a imposição de credo religioso , portanto o uso abusivo 12 de drogas tende a ser transformado em um problema espiritual. Em suma, o moralismo que reveste o proibicionismo e a guerra às drogas mo- vimenta-se ocultando a luta de classes e a questão racial. 9 A violência no Brasil mata mais que a guerra na Síria. el País. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/bra- sil/2017/12/11/politica/1513002815_459310.html>. Acesso em: 30 jan. 2018. 10 UPP. Perguntas frequentes. Disponível em: <http://www.upprj.com/index.php/faq>. Acesso em: 30 jan. 2018. 11 RoUVeNAT, F.; RoDRiGUeS, M. Mortes por intervenção no RJ se aproximam de patamar de antes das UPPs. Disponível em: <https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/mortes-por-intervencao-policial-no-rj-se-aproximam-de -patamar-de-antes-das-upps.ghtml>. Acesso em: 30 jan 2018. 12 CFeSS – Conselho Federal de Serviço Social. Nota sobre a regulamentação das comunidades terapêuticas: con- tribuições do CFeSS para o debate. Brasília, 28 de novembro de 2014. Disponível em: <http://www.cfess.org.br/ visualizar/noticia/cod/1139>. Acesso em: 25 mar. 2018.
96 Contudo, é imprescindível destacar que historicamente o Serviço Social, por meio do acúmulo teórico aliado aos posicionamentos políticos do conjunto CFESS/CRESS/ABEPSS e ENESSO, combate o pensamento conservador, com o Código de Ética Profissional, as campanhas que defendem a legalização do uso de drogas, a alternativa de tratamento pela redução de danos, entre outras ações que permitem afirmar o nosso compromisso ético-político de defesa intransigen- te dos Direitos Humanos e a continuidade da luta pela construção de uma nova ordem social, pois particularmente o presente artigo não tem a ilusão de que as contradições entre capital e trabalho possam ser superadas por meio da valoriza- ção das instituições burguesas, porém não desconsidera a importância da demo- cracia burguesa e seus limites para construir resistências e avançar na superação das contradições. Referências ARBEX JÚNIOR, J. Narcotráfico um jogo de poder nas Américas. São Paulo: Moderna, 1993. BARROCO, M. L. S. Ética: fundamentos sócio-históricos. 2. ed. São Paulo: Cor- tez, 2009. COGGIOLA, O. O tráfico internacional de drogas e a influência do capitalismo. Revista ADUsP, agosto 1996. COULON, A. A escola de Chicago. Tradução Tomás R. Bueno. Campinas: Pa- pirus, 1995. DURKHEIM, E. Da divisão do trabalho social. As regras do método sociológico. O suicídio. As formas elementares da vida religiosa. Seleção de textos de José Ar- thur Giannotti. Tradução de Carlos Alberto Riberio de Moura. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. GÓES, W. L. Racismo, eugenia no pensamento conservador brasileiro: a propos- ta de povo em Renato Kehl. Dissertação (mestrado). Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais. Departamento de Ciências Sociais. Unesp de Marília, 2015. HOBSBAWM, E. J. A era do capital 1848-1875. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Ter- ra, 1979. LOPES, L. E. et al. Atendendo na guerra: dilemas médicos e jurídicos sobre o crack. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2014.
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Emancipa • nº 03 • 2018 Estado, Saúde Mental e a Higienização Social Maio de 2018 nº 03
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