quando desejássemos andar a pé, trocar de geral, pois tínhamos informações sobre as roupas em caso de algum contato com a concentrações de turistas e peregrinos na imprensa ou autoridades. No A.J. isto era praça de São Pedro, aos domingos e impossível, pois durante o dia o mesmo era quartas-feiras, devido à bênção papal. inacessível para os hóspedes por razão de estatuto interno. Após o café da manhã Um imprevisto. O pneu traseiro da todo mundo tinha que sair. Reingresso bicicleta de Hercilio estourou no momento somente às 17 horas. Além disso, o mesmo em que entrávamos na Praça de São Pedro. se localizava na periferia da cidade. Isto quase nos criou grande embaraço, pois com o estouro, provocado pela calibragem Mesmo chovendo, resolvemos errada, aliada ao excesso de peso e levantar acampamento. Encerramos a trepidação provocada pelos paralelepí- conta, calibramos os pneus das bicicletas, pedos do calçamento, houve até um corre- montamos as bolsas e saímos em direção corre da guarda suíça do Vaticano. Afinal, ao centro da cidade com o objetivo de o barulho parecia de tiro. Mas logo tudo arrumar uma pensão barata. foi entendido. Éramos três rapazes que chamavam a atenção, porém era difícil nos No percurso começamos a nos confundir com terroristas. orientar melhor. A distância, avistamos a cúpula da Basílica de São Pedro; Junto ao colunado que circunda a resolvemos adiar momentaneamente a praça, trocamos o pneu estourado. A chuva procura da pensão e nos dirigimos em tinha aumentado bastante. Estávamos impressionados com as dimensões da128 direção ao Vaticano. A expectativa era
Basílica e da praça e com a imponência das perguntas, cumprimentavam, faziam votos 129instalações de todo o Vaticano. Aprovei- de sucesso. Foi ótimo! Circulamos umtamos para circular um pouco. Murilo se pouco mais e depois seguimos em buscaafastou para melhor ver a Basílica e eu da pensão.aproveitei para tirar algumas fotos,enquanto Hercilio regulava sua bicicleta. Visitamos mais de dez pensões. Preços e localização eram os indicativos básicos. Ao voltar para junto dele, outro Decidimos por uma pequena pensãoepisódio inesperado. Quatro rapazes se próxima à estação Termini, que associa oaproximaram e perguntaram em terminal ferroviário com o rodoviário.português: – vocês não são três? Cadê o Logo fizemos amizade com os italianos queoutro? Em seguida, tudo se esclarece. Eram ali moravam.quatro catarinenses do interior, fazendo umtour de carro pela Europa. Sabiam de nosso Alojados, descansamos um pouco.giro pelos jornais. Batemos um papo, mas Fazia frio e à noite saímos para jantar.o contato foi rápido, pois eles estavam departida. Conversamos bastante, discutindo os planos para Roma: imprensa, Confederação Agora, já não chovia e resolvemos ir de Ciclismo e o contato com o Papa.até o centro da praça para, com a Basílicaao fundo, registrarmos o momento. Para Acordamos cedo naquela segunda-nossa surpresa, de repente, estávamos feira. O sol estava radiante. Por issorodeados de brasileiros. Todos nos faziam resolvemos circular de ônibus. Nosso destino era o Colégio Pio-Brasileiro, para encontrar o Pe. Nelson Westrup. Tínhamos
um cartão de apresentação do Arcebispo entramos. O prédio era imponente. Um D. Afonso Niehues de Florianópolis. jardim enorme e muito bem arranjado o Pretendíamos, com a interferência do Pe. rodeava. A construção tinha quatro andares Nelson, obter o apoio do reitor do Colégio e estava bem conservada. Era incrível a para manter uma audiência com o Papa sensação de paz dentro do Colégio, em João Paulo II. No ônibus, utilizando muito pleno centro de Roma. A tranqüilidade e o mal a língua italiana, tentamos obter silêncio eram uma constante. informações sobre a localização do Colégio. Diversas senhoras que estavam Atendidos por um italiano, que não sentadas próximas a nós se prontificaram sabíamos se era padre ou não, pedimos a responder. Entretanto, a confusão foi para falar com algum padre brasileiro. Se geral. As italianas falavam rápido e pouco é que ali tinha algum, apesar do Colégio entendíamos o que diziam. Mesmo assim ser denominado Pio-Brasileiro. Achávamos descemos, dando a entender que tínhamos vantajoso explicar para alguém que compreendido. Acabamos tendo de andar dominasse o português nosso intento de mais de um quilômetro para chegarmos ao sermos recebidos pelo Papa. Não demorou Colégio. muito e chegou até nós o Pe. Sebastião Pitz, que por coincidência era catarinense. Nos No portão do Colégio havia um apresentamos, fazendo a entrega do cartão porteiro eletrônico. Tocamos a campainha de D. Afonso. Pe. Pitz, muito cordial, logo e tivemos de responder diversas perguntas, nos levou para o refeitório, onde nos foi servido café. Mantivemos uma animada130 antes de ter o acesso liberado. Finalmente
conversa, contando-lhe as peripécias da Vaticano para o acerto de detalhes. 131viagem e as dificuldades para chegar ao Perguntamos se não havia possibilidade deColégio Pio Brasileiro. Nesse momento, ele ficarmos alojados no Colégio. Pe. Pitz ficouretrucou dizendo que aquele Colégio um pouco assustado a princípio comchamava-se Leone Dehon. O Pio Brasileiro nossas pretensões e começou a falar sobreficava a uma quadra adiante, era menor e o funcionamento do Colégio. Ele nos dissedestinava-se apenas a padres brasileiros que ali só ficavam padres e que haviaque realizavam complementação de somente um quarto vago, reservado paraestudos em Roma. O Leone Dehon padres africanos que chegariam em trêsabrigava padres de todo o mundo. Aí dias e complementou dizendo não serentendemos melhor o rolo das nossas muito fácil a audiência com o Papa.“eficientes” informantes italianas no Respondemos dizendo que se fosseônibus. possível alojar-nos até a chegada dos padres africanos, já seria ótimo. Ciente de nosso interesse emencontrar o Pe. Nelson, a quem havíamos Toda a insistência em permanecer nosido recomendados por D. Afonso, disse- Colégio relacionava-se com a intenção danos que ele estava ausente de Roma e que audiência papal. Entendíamos que osó chegaria ao final da semana. A seguir convívio mais estreito com os padresexplicamos nosso interesse em ter uma certamente abriria o caminho para chegaraudiência com o Papa e a necessidade que ao Papa. Além disso, aliviávamos otínhamos de estar mais próximos do orçamento, já bastante curto.
O padre Pitz ainda refletiu um pouco, estudos são realizados fora, em instituições mas logo acabou dizendo que teríamos de quase sempre pertencentes à Igreja. Aos falar com o reitor do Colégio. Em seguida, poucos fomos nos enturmando. Pe. Pitz ia encaminhou-nos ao mesmo. Pe. Pitz servia fazendo as apresentações. Sentamos numa de intérprete. Explicamos primeiro nosso mesa reservada aos padres brasileiros. Todos giro europeu. Entregamos um exemplar do foram muito corteses e simpáticos. Algumas “folder”, indicando a versão italiana de brincadeiras foram feitas e não cansamos nossos propósitos. Sabíamos que de responder perguntas sobre o giro. estávamos forçando a barra e a indecisão do reitor levava a crer que a resposta seria Após o almoço, fomos convidados para negativa, mas continuamos conversando. jogar bocha. Era um joguinho para fazer a Como era horário de almoço, fomos digestão. Fizemos duplas: eu e o Pe. Pitz; convidados para almoçar. A decisão sobre Murilo e o Pe. Sérgio Hercílio e o Pe. Wilson. ficar ou não no Colégio foi assim adiada. Entremeando as jogadas, muita conversa. Agradecemos, efusivamente, as atenções Pe. Sérgio, logo nos cativou. Um verdadeiro do reitor e saímos com o Pe. Pitz em padre moderno. Interessou-se por nossos direção ao refeitório. planos de visita ao Papa e intercedeu junto ao Pe. Pitz para resolver a questão do Tivemos de aguardar a chegada de alojamento. Aguardamos um pouco o Pe. uma centena de padres que estudavam em Pitz que havia ido conversar novamente diversos institutos, espalhados por Roma. com o reitor, junto com o Pe. Sérgio. Em seguida, a boa notícia. Tínhamos aloja-132 O Colégio serve como alojamento; os
mento garantido por alguns dias e apoio foi ali que conhecemos o Pe. Bechetti, 133para acertar o contato com o Papa. italiano, que entretanto falava muito bem o português. Ele era bem mais velho que o Agradecemos a colaboração de nossos Pe. Sérgio, porém extremamente cordial.novos amigos e voltamos à pensão Marsala. Foi do Pe. Bechetti que recebemos oEncerramos nossa conta, pegamos nossas primeiro convite para visitar as dependên-bicicletas e equipagens e rumamos para o cias do Vaticano. Isso foi marcado paraColégio. E, mais importante, estávamos ao quinta-feira, pela manhã. Comprometeu-lado do Vaticano, onde teríamos de obter se também em obter o tão cobiçadoum convite especial para concretizar a convite para a audiência, pois o Pe.audiência com o Papa, um sonho até então Bechetti por coincidência e para nossaimpossível. sorte trabalhava na Secretaria Papal. Estávamos contentíssimos e emocionados, Chegamos ao Colégio ao anoitecer, e pois pela manhã parávamos numa pensão,Pe. Sérgio já nos aguardava. Fomos para o sem conhecer ninguém e à noite já nosquarto que nos destinaram. Três camas, encontrávamos alojados num colégio debanheiro completo, excelente. Arrumamos padres, com todos nos dedicando atençãonossas tralhas da melhor maneira possível, e querendo ajudar.tomamos um banho e depois fomos jantar.A comida servida era excelente. Depois do A expectativa da audiência, segundojantar fomos para a sala de recreação e aí o Pe. Bechetti, era para a quarta-feira daretomamos os contatos com a TV, jornais semana seguinte. Isto porque para a quarta-e revistas. Também conversamos muito e
feira da semana que estávamos iniciando brasileiro, que nos mostrou o Pantheon e já não havia mais tempo de inclusão na lista as imediações. Dele recebemos diversos de convidados especiais. Dissemos que informes históricos sobre o Pantheon e estava ótimo, pois assim teríamos tempo também sobre Roma. Aproveitamos ainda para também visitar Roma. Por fim, fomos para passar na Embaixada do Brasil e convidados para a missa na manhã marcar uma entrevista para o período da seguinte, às 6:45 horas. Dormimos muito tarde. Voltamos ao Colégio para o almoço. bem. As camas eram boas e o silêncio era total. À tarde, após o tradicional jogo de bocha, ficamos livres para novas excursões Acordamos cedo, seguimos direto pela cidade. Primeiro, tratamos de cumprir para a capela. A missa foi toda rezada em a entrevista com o pessoal da Embaixada. italiano. Para nós, claro, de difícil Pretendíamos obter contatos com os compreensão, mas participamos. Ocupa- correspondentes de jornais brasileiros em mos um lugar designado pelo Pe. Sérgio e Roma, bem como apoio para contatar por à hora da celebração, uma surpresa. Junto telefone com a sucursal da Rede Globo, em com os padres, nós também celebramos. Londres. Pois pretendíamos concretizar Uma experiência inesquecível. A celebra- uma reportagem sobre nosso giro. Na ção é o momento em que o pão e o vinho Embaixada, tivemos apoio e cordialidade e tornam-se corpo e sangue de Jesus Cristo. vimos que nosso giro estava bem divulgado. É a hora da comunhão, da Eucaristia. Através do Ministério de Relações Exteriores, ainda no Brasil, havíamos obtido Tomamos café com os padres. Depois134 saímos junto com o Pe. Antônio, outro
a garantia de envio de um telex esclarecedor áreas que são proibidas para o acesso 135de nossos propósitos às Embaixadas público. Estivemos no Colégio Pio Brasileiroexistentes nos diversos países que iríamos onde inclusive almoçamos. Na manhã devisitar. Isto foi uma boa providência, pois quarta-feira participamos como turistaslogo ao chegarmos, um dos secretários da comuns da bênção na Praça de São Pedro.Embaixada brasileira em Roma colocou a Tivemos assim idéia do que era estanossa disposição todas as facilidades, para solenidade. Ficamos eufóricos quando oque pudéssemos cumprir nossos objetivos Papa circulando entre a multidão, a bordocom a imprensa. Foi assim que encontra- do “papa móvel”, passou perto de nós emos Fátima, uma jornalista brasileira que Murilo conseguiu lhe dar um aperto deestava atuando como free lancer para mão. Marcamos também um encontrorevistas italianas especializadas em ciclismo. com Maurizio Rossi, um italiano que haviaJovem e muito simpática, Fátima logo se guardado para nós uma remessa de dólaresinteressou por nossas aventuras. Marcamos e pneus, trazidos para Roma pelo Prof.uma entrevista para o final da semana. Ao Selvino Assmann da UFSC. Maurizio émesmo tempo, fizemos diversas ligações interessado em cultura portuguesa, falapara a imprensa local e para correspon- muito bem português e costuma passardentes sediados em Roma. Falamos também suas férias em Portugal. Ele nos esperava,da Embaixada com Londres. Esta foi uma pois havia trocado diversas cartas comtarde de divulgação, de “mídia”. meu pai, sabendo assim da época de nossa chegada. Nos dias seguintes, visitamos com oPe. Bechetti o interior do Vaticano. Vimos
No Colégio tínhamos tudo, além de Federação Italiana de Ciclismo e Fátima carinho e amizade. A participação como havia se prontificado a nos apresentar ao convidados especiais na bênção papal da seu presidente. Encontramo-nos por volta semana seguinte, foi confirmada pelo Pe. de 9:30 da manhã. Seguimos a pé até a Bechetti, dia da festa. Mas nossa Piazza Venezia. De lá tomamos um táxi para permanência como hóspedes ocorrera até a Vila Olímpica, onde está sediada a FIC. a chegada dos padres africanos. Eles chegariam na sexta-feira. Por esta razão, na Fomos recebidos pelo Secretário Geral quinta-feira à noite, depois do jantar, da FIC. Graças a Fátima, que havia voltamos para a pensão Marsala. inclusive marcado a entrevista, tivemos Agradecemos aos nossos mais novos facilidades para explicar os objetivos de amigos a hospitalidade e a amizade que nos nosso giro e também trocar lembranças. dedicaram. Ainda combinamos com o Pe. O Presidente da FIC estava em viagem para Sérgio um passeio pela cidade, no domingo. Milão, razão de sua ausência no encontro. Entregamos ao Secretário nossas Nosso amigo italiano, dono da pensão credenciais da Confederação Brasileira de Marsala, ao nos ver chegar, brincou: – De Ciclismo e imaginamos que o encontro novo? – Sim, voltamos, – falei. Rápido, terminaria ali. Mas qual, o Secretário acertamos o alojamento e fomos descansar. tomou o telefone e rapidamente deu algumas ordens. A seguir passou para Na manhã de sexta-feira tínhamos um Fátima um endereço e nos brindou num encontro com Fátima, a repórter brasileira. italiano mais lento com palavras de136 Pretendíamos manter um contato com a
estímulo e de boa estada em Roma. e uma poluição de lascar, devido ao intenso 137Agradecemos e saímos. Somente fora do tráfego de veículos na cidade.prédio é que Fátima nos explicou que oSecretário havia autorizado nossa Chegamos à casa de Maurizio semhospedagem num hotel, por conta da dificuldades. O encontro foi caloroso,Federação. Excelente, não esperávamos nosso anfitrião foi extremamente gentil.por isto. Mas não deixamos por menos, já Sua esposa, Tânia, estava preparando oque estávamos autorizados, fomos diretos jantar. Um fundo musical dava um toquepara o hotel. Era hora de almoço, e não brasileiro a tudo, através do violão dehavia por que perdê-lo. À tarde providen- Toquinho. A conversa foi animada.ciamos o transporte de nossa tralha da Contamos nossas aventuras e destacamospensão. as peripécias que vivemos em Roma. Maurizio e Tânia ficaram surpresos. À noite, tínhamos um jantar na casado Maurizio Rossi. Além disso, recebe- Em seguida, ele nos repassou as cartasríamos nossos dólares e uma remessa de recebidas. Para nós, era sempre umacartas, mandadas por nossos familiares grande alegria recebê-las de nossospara o endereço de Maurizio. Pegamos dois parentes e amigos mais chegados, já queônibus e um bonde para chegar à casa de apesar de estarmos vivendo umanosso anfitrião. Atravessamos pratica- experiência que mal nos dava tempo demente toda Roma. Isto no início da noite, pensar em nossos pais, tínhamos sempreenfrentando forte movimento de veículos um pontinho de nossos corações ligado ao nosso “mundo”, no Brasil.
Maurizio é um admirador da cultura porém, logo nos explicou: na manhã portuguesa. Conhece muito bem Portugal, seguinte deveríamos deixar o hotel. Não mas ainda não teve ocasião de visitar o estávamos sendo colocados para fora. Por Brasil. Tem interesse a respeito de tudo o orientação da Federação de Ciclismo que se refere ao nosso país. Isto facilitou estávamos sendo transferidos. Maurizio se demais nosso entrosamento. ofereceu para passar pela manhã e transportar nossas bagagens. Não rejeita- Após o jantar, Maurizio e Tânia mos. Despedimo-nos e tratamos de ir convidaram-nos para dar uma volta de descansar. carro pela cidade. Foi um belo passeio. À noite, as ruínas do Coliseo ficam ainda Após um farto café da manhã, mais imponentes, pelos jogos de luzes. As preparamos toda nossa bagagem e ficamos praças romanas também são lindas, mas a à espera de Maurizio. Tínhamos algumas poluição está por toda a parte, principal- dúvidas sobre os motivos da transferência. mente devido ao intenso tráfego de Todas, entretanto, tinham como justifica- veículos. Segundo Maurizio é a mais alta tiva o custo do hotel em que nos taxa da Europa e com isso os monumentos encontrávamos. Com a chegada de históricos são os que mais sofrem. Maurizio e nosso translado para o novo hotel, tudo se esclareceu. A categoria de Madrugada alta chegamos ao Hotel, e nosso novo lar era inferior, é claro. Maurizio entrou conosco até a portaria. O recepcionista nos comunicou algo que não Nesse dia fomos almoçar com Fátima. Alguns italianos e brasileiros chegaram138 entendemos bem a princípio. Maurizio,
para participar do almoço, todos telefônico com sua família sábado pela 139convidados de Fátima. O papo rolou solto, manhã. A euforia de Murilo foi tão grandecoisas do Brasil e da Europa, tudo regado que nos tirou da cama. As notícias do Brasila caipirinha, que nós não tomávamos. Mais eram boas, por isso resolvemos acabar atarde chegaram outros amigos, entre eles noite, ou melhor, iniciar o dia, assistindo àTereza, uma carioca muito bem dotada que última etapa do campeonato de Fórmulalogo se entendeu muito bem com Murilo. I, onde Alain Prost conseguiu oA tarde se emendou com a noite, e a festa bicampeonato.continuou. Fátima foi uma excelenteanfitriã. Já de madrugada, e cansadíssimos, Dormimos até antes do almoço. Àregressamos ao hotel, que por sorte era tarde tínhamos marcado com o Pe. Sérgiopróximo. para visitar o Coliseo, as catacumbas e outros monumentos históricos. Mal havíamos conciliado o sono, tocao telefone. Ninguém se entusiasmou para Pe. Sérgio foi incansável; além de nosatender. Murilo, afinal, resolve sair da cama mostrar os pontos principais da área velhae ao atendê-lo a surpresa foi grande. Era da cidade, deu-nos longas explicaçõesAna, sua namorada que ligava direto do sobre a história de Roma e sobre osBrasil. Eram cinco horas da manhã em romanos e cristãos. Visitando as catacum-Roma e no Brasil, cerca de meia-noite. Ana bas ficamos impressionados: são mais dehavia pego o número do hotel com os pais vinte quilômetros de galerias em quatrodo Hercílio, que havia feito um contato níveis distintos. As marcas do Império Romano estavam ali. A monumental
estrutura do Coliseo, as ruínas dos Fóruns A estada em Roma estava chegando ao fim, de Trajano, Cesar e Augusto, a basílica de e o nosso sonho estava quase se realizando. Constantino. Roma é uma cidade que conta Nossa ansiedade era grande. Conversando muito da história da Europa ocidental e do a respeito do futuro encontro, combinamos cristianismo. Por fim, demos um passeio à presentear o Papa com uma camisa de Praça de Espanha, com seus jardins nosso uniforme. Afinal, era uma oportuni- belíssimos, e uma visita à Igreja de La Trinitá dade única e queríamos deixar-lhe uma dei Monti. Foi uma tarde inesquecível. Mas lembrança nossa. não deixamos de visitar a impressionante escultura de Moisés, de Michelangelo, que Voltamos mais de uma vez ao Colégio está na Basílica de San Pedro in Vinculis. dos Padres. Tivemos um novo contato com Pe. Sérgio, querendo ressaltar a perfeição o Maurizio Rossi, agradecendo sua gentileza da escultura modelada em mármore de e mantivemos vários contatos com Fátima. Carrara, bateu dizendo: Fala Moisés! Quarta-feira, dia da audiência geral e A noite chegou e como todo bom de nosso encontro, acordamos muito cedo. padre, chegara a hora do recolhimento. Pe. Depois de um bom café, chamamos Fátima Sérgio se despediu para regressar ao por telefone e acertamos que ela passaria Colégio. E nós estávamos tão cansados que pelo Hotel e nos ajudaria com parte de resolvemos voltar ao hotel. nossa tralha. Havíamos combinado filmar nosso encontro, para uma reporta- Os dois dias seguintes foram dedicados gem independente, passível de ser a novos contatos com a imprensa e acertos difundida no Brasil. Fátima articulou toda140 para a tão esperada audiência com o Papa.
a equipe para registrar o evento. Exigiu, Nas vizinhanças, peregrinos, religiosos de 141porém, que fôssemos para o Vaticano com alta posição, algumas autoridades de paísesas bicicletas e equipamentos, pois diversos e nós, três ciclistas brasileiros. Umapretendia tomar algumas cenas, dando ponta de orgulho e outra de emoção.idéia de como estávamos fazendo o giro. Ansiosos, aguardávamos o início da Com sua chegada, despachamos o solenidade. Uma banda tocava músicasconjunto de bolsas em seu carro e religiosas e clássicas. Várias tomadas deseguimos pedalando para o Vaticano. cena foram feitas nesse meio tempo porEstávamos um pouco nervosos, pois no Fátima e sua equipe. Dali a pouco, umVaticano tínhamos ainda de encontrar o silêncio geral: eis que entra na Praça oPe. Sérgio, que estava de posse de nossos papa-móvel. Nele, João Paulo II distribuíaconvites especiais, liberados somente na sorrisos e bênçãos para os milhares de fiéisnoite anterior. Ao chegar, tivemos um que se apertavam na Praça de São Pedro.pequeno desentendimento com a Guarda O dia estava lindo, a temperatura erado Vaticano, que pretendia impedir que amena. O cenário estava completo. Odeixássemos as bicicletas na parte interna veículo percorreu os vários corredoresdos portões, mas Pe. Sérgio chegou e formados entre a multidão por umaarranjou tudo. Em seguida, fomos estratégica disposição de grades econduzidos por um guia auxiliar que nos cavaletes e se dirigiu ao altar principal,indicou o lugar onde ficaríamos. Quarta onde próximos estávamos. Podíamos vê-fila, defronte ao altar. Melhor, impossível. lo perfeitamente. Uma figura singular,
carismática, irradiante, de uma grande perguntava de que parte do Brasil nós paz interior. vínhamos. Respondemos dizendo que éramos do Estado de Santa Catarina, e com A cerimônia começou em italiano e, um sorriso ele nos disse que sentia saudades pouco a pouco, o Papa ia repetindo em do Brasil e que tinha vontade de rever o país. vários idiomas, inclusive em português, as Rapidamente, expliquei-lhe o que fazíamos bênçãos que distribuía. Passada uma hora, e os motivos de nosso giro. Enquanto isso, João Paulo II se dirigiu cercado de cardeais Murilo lhe presenteava com a camisa de e bispos para o local reservado aos nosso uniforme. Ele abençoou-nos e convidados especiais, onde nos presenteou a cada um de nós com um encontrávamos. Cumprimentava um a um rosário. Agradecemos, emocionados. Ele e a todos dizia algumas palavras. Quando seguiu seu caminho, atendendo outros João Paulo II parou na nossa frente apertou convidados especiais com a mesma nossas mãos, sentíamos em nosso corpo solicitude. que aquela figura que estava em nossa frente, não era uma pessoa comum. Sua Mal acreditávamos no que havia fisionomia nos transmitia um profundo acontecido. Havíamos falado com João estado de espírito, uma paz inigualável. Paulo II. Isto era a concretização de um de Realmente, João Paulo II era um grande nossos mais difíceis objetivos e, sem homem. Falamos, Murilo, Hercílio e eu ao dúvida, aquele que nos deixaria a melhor mesmo tempo. Custamos a entender o que das lembranças.142 ele dizia, mas percebemos que ele
Felizmente, tudo havia sido registrado. Voltamos ao hotel, preparamos nossasUm fotógrafo autorizado pelo Vaticano fez tralhas para a partida no dia seguinte.uma cobertura especial. Acertamos com o Iniciávamos a última etapa de nosso giro.Pe. Sérgio, que ele supervisionaria o envio Estávamos alegres, com a moral elevadadas fotos para o Brasil. Demos uma e, conscientes de nosso êxito. Roma, oentrevista para Fátima e ampliamos o Vaticano, o Papa, além dos muitos amigosregistro em filme que havia sido feito por que ali fizemos, estavam em nossas mentessua equipe. Para tanto, desfilamos um e em nossos corações. Com esse estado depouco com o equipamento pelas ruas espírito, dormimos nossa última noite emvizinhas ao Vaticano. Roma, sabendo que no dia seguinte teríamos uma nova etapa a cumprir. Cansados e famintos regressamos ao Tínhamos certeza de que, com o encontro,hotel. Comemos algo e logo, eufóricos, havíamos renovado nossa esperança deligamos para o Brasil contando o aconte- vencer. As imagens que guardávamos emcido para nossos familiares. Todos nossas mentes, certamente eram maisvibraram conosco. bonitas do que as que haviam sido tiradas e filmadas. A noite foi reservada para agradeci-mentos e despedidas. Primeiro fomos à casa 143de Fátima e logo após para a de Maurizio.Nas duas a emoção de deixar amigos e terque partir era grande. Pela manhã já noshavíamos despedido de Pe. Sérgio.
Capítulo 9Cruzando a Riviera com Yasuaki
A estrada era uma beleza, o dia lindo fechados e abandonados naquela época do 147 e apenas cinqüenta quilômetros nos ano. Também, pudera, a temperatura já separavam do Mar Mediterrâneo. não era nada agradável para um mergulhoÍamos para Civitavéchia, uma pequena e já podíamos sentir o inverno chegando.cidade no litoral. Era uma etapa curta, pois Observamos nessa região uma grandealém da perda de tempo na saída de Roma, quantidade de casamatas nas encostas dasdevido principalmente ao trânsito, estávamos montanhas, além de destroços de aviões etambém há muitos dias sem pedalar. bases militares, o que nos fez pensar nas barbaridades cometidas ali pelo homem Em Civitavéchia, faríamos um contato durante a Segunda Guerra Mundial.telefônico com Francisco Cortez Pinto, oChico, amigo de Piero Brunello. Havíamos Dormimos em Grosseto, após a brevefalado com ele da última vez em Veneza. passagem por Civitavéchia. Durante asConfirmamos então nossa chegada para o noites fazíamos um balanço do quefim de semana. acontecia, dos êxitos no alcance de nossos objetivos, visitas, novas amizades. Tínhamos Agora, seguiríamos nosso roteiro, consciência de que éramos privilegiados emmargeando o Mediterrâneo. A partir de estar viajando, em ver paisagens tão belas,Civitavéchia, tomamos a Via Aurélia, nome em vivenciar aventuras, até entãodado à rodovia que segue contornando o impossíveis para nós. Também sabíamosmar. A região é tomada por balneários, que que ao voltarmos teríamos que nos adaptarjá nos faziam sentir saudades de nossas novamente à velha rotina.praias. A diferença é que todos estavam
Estávamos agora entrando na última direto para a praça onde estava a famosa etapa de nossa viagem. Restava-nos apenas Torre, juntamente com a Catedral e o cumprir os 2.000 km, que nos separavam Batistério. Além da beleza dessas cons- de Lisboa. Sem dúvida, essa distância em truções medievais e da singularidade da nada nos assustava. Apesar de já estarmos inclinação da torre, foi ali que, segundo a desgastados com a vida de nômades, tradição, Galileu elaborou uma de suas conseguiríamos completar o giro. teorias, provando que corpos de massas Tínhamos convicção disso e lembrávamos diferentes estão sujeitos à mesma força agora de todas as dificuldades ultrapas- gravitacional. sadas durante todo um ano, desde a montagem do projeto até a obtenção de Batemos algumas fotos e em seguida colaboradores; do descrédito de alguns pedimos informações para encontrarmos amigos quanto à realização do mesmo. a casa de Chico. Sem dificuldades, Foram tempos difíceis. Um ano de lutas, localizamos seu apartamento e, ao para permitir pouco mais de cinco meses chegarmos, fomos informados de que o de viagem. Entretanto, estes cinco meses mesmo não se encontrava. Mesmo assim estavam sendo os melhores de nossas entramos, convidados por um amigo seu vidas. Tempos dos quais, tínhamos certeza, que sabia de nossa chegada. Era um teríamos saudades. apartamento grande e só mais tarde compreendemos que se tratava de uma Chegamos em Pisa ao entardecer. “república”. Como existia um quarto vago e estávamos de passagem, não haveria148 Como crianças, apesar do cansaço, fomos
problemas em ficarmos ali alojados. Após Renascimento e um dos pólos mais 149um merecido banho, nos instalamos. Chico importantes do turismo na Itália. Ali estáchegou juntamente com sua mulher, Ana. uma das maiores coleções de arte de todaEle tinha aproximadamente 30 anos, a Europa, com obras de Michelangelo,mostrava-se muito jovial e simpático e logo Leonardo da Vinci, Rafael e Boticelli.fizemos uma grande amizade. Veio dePortugal para estudar e ali conheceu Ana. Saímos cedo, a viagem de trem eraNunca mais voltou, coisas do amor. rápida e barata. Andamos o dia todo pelas ruelas estreitas e à tardinha retomamos a Por sugestões de Chico e Ana, Pisa. Foi um belo passeio e um dia de folgajuntamente com outro casal amigo, saímos para as bicicletas. Ao chegarmos, aoà noite. Fomos em alguns barzinhos típicos anoitecer, ainda pudemos dar uma últimae conversamos muito, para variar. volta pela agradável cidade, já queAproveitamos o final de semana. Aceita- partiríamos na manhã seguinte.mos o convite para darmos um passeio decarro pelas cidades de Lucca e Viareggio. Nosso jantar com o casal Chico e AnaPassamos todo o dia seguinte conhecendo foi ótimo. Saboreamos uma belaesses belos lugares com nossos novos macarronada bem ao estilo italiano. Antesamigos. de dormir, organizamos a bagagem, pois não podíamos sair muito tarde no dia Por indicação de Chico, resolvemos ir seguinte.a Florença, famosa por suas ruas estreitase bela Catedral. Florença é a capital do As festas e as mordomias haviam acabado. Mas no fundo gostávamos
mesmo era de estar com o pé na estrada, atravessamos os Apeninos até Roma; e pedalando. agora subíamos a costa mediterrânea até a cidade Ventimiglia, que faz fronteira com O dia amanheceu escuro, com fortes a França. Tínhamos permanecido trinta ventos e chuva fina. Por pouco não dias na Itália. discutimos com Chico, que insistente- mente pedia que ficássemos. Perdemos Seguimos para Gênova, cidade algum tempo até convencê-lo de que portuária na qual permanecemos apenas deveríamos partir assim mesmo. Enfim, dois dias. Depois rumamos para Menton, nos despedimos. já na França. Seguindo nosso fiel e já bastante malhado livro dos albergues, Éramos três malucos, pois acabáramos chegamos sem dificuldades ao A.J. de de recusar cama e comida quentinhas para Menton, que se localiza num platô com um sair com aquele tempo e dormir sabe lá belíssimo visual de toda a costa azul da Deus onde. Conseguimos, após muito França. esforço, chegar em La Spezia, cerca de oitenta quilômetros de Pisa. Exaustos, Estávamos preenchendo os cadastros paramos direto na primeira pensão que dos A.Js., quando um japonês se aproximou encontramos. e, em inglês, perguntou-nos se as bicicletas estacionadas em frente eram nossas. Faríamos agora nossa última etapa na Itália, país em que nos demoramos por – Sim, são nossas – respondi. Ele disse- mais tempo. Desde quando contornamos me que também estava viajando de bicicleta, porém sozinho. Após um breve150 toda a costa Adriática até Ancona, daí
diálogo, como de costume nas inúmeras muito que viajasse conosco, afinal 151amizades que já havíamos feito no formaríamos um quarteto internacional.decorrer da viagem, resolvemos nos Yasuaki pensou e resolveu atrasar suaencaminhar para o nosso quarto. viagem em um dia. Ótimo! Nos alojamos no mesmo quarto que o Amanheceu um dia lindo, comjaponês, mas nessa hora tivemos pouco temperatura agradável. Após o café,contato; já durante o jantar, no próprio A.J., pegamos nossas bicicletas e partimos. Elasmantivemos um ótimo papo. Yasuaki, pareciam motorizadas, tamanha era acomo se chamava, era extremamente diferença de peso.simpático e apesar das barreiras lingüís-ticas, conversamos bastante. A região era linda e o fato de estar fora da temporada, dava-nos uma tranqüilidade Pretendíamos ficar em Menton por toda especial.dois dias, pois devido a sua proximidadecom Monte Carlo, apenas quinze Chegamos a Monte Carlo, o pequeno,quilômetros, pretendíamos ir até lá sofisticado e mais famoso balneário daaliviados das bagagens, retomando ao fim Riviera Francesa. Nossa primeira iniciativado dia. Yasuaki seguiria na mesma direção foi a de percorrer todo o circuito deque a nossa, entretanto pretendia partir já Fórmula 1. Depois, o museu oceanográficono dia seguinte. Falamos a ela de nossos Jacques Cousteau foi visitado. A seguirplanos para Menton e que seria uma pena estivemos no palácio da família real e nasque partisse um dia antes, pois gostaríamos casas de Stephanie e Caroline, princesas de Mônaco. Ao fim do dia, após visitarmos
alguns dos iates ancorados numa das mais dias de descanso. O trajeto até Marselha, famosas marinas do mundo, retomamos a embora cansativo, foi lindo. Ficamos Menton. impressionados com a cristalinidade e o azul das águas do Mediterrâneo. São Na manhã seguinte partimos cedo, simplesmente maravilhosas. A visão dessa pois Yasuaki preocupava-se com o paisagem serviu como um desconto para anoitecer na estrada. Sabíamos que tinha a poluição radioativa da região de Metz. razão, pois os dias estavam se tomando Lembrávamos agora que nem toda a mais curtos com a chegada do inverno. Europa está perdida. Yasuaki se interessava muito pelas coisas do Brasil e inclusive ensinamos a ele Em Marselha nós nos despedimos de algumas frases em português. Ele nos Yasuaki. A esta algura ele já havia insistido recompensou com algumas em japonês. para que fôssemos até o Japão e a sua casa Yasuaki era estudante de filosofia na no próximo ano. Falamos que pensaríamos Universidade de Tokyo e viajava já há no assunto. A chegada em Marselha foi muito bastante tempo, cerca de quatro meses. Seu comemorada. Lá permanecemos por dois roteiro incluía a utilização de trem, avião e dias conhecendo a cidade e descansando. bicicleta. Esta caracteriza-se por sua atividade portuária e pela grande quantidade de Seguimos para St. Raphael, com uma árabes. passagem por St. Tropez. Logo após rumamos para Marselha. Estávamos Yasuaki prosseguiria agora rumo ao norte em direção a Paris e nós seguiríamos152 fazendo agora etapas longas e sem muitos
margeando o Mediterrâneo, até Valência.Despedimo-nos fazendo convite para queYasuaki fosse ao Brasil, mais precisamentea Florianópolis. Ele agradeceu-nos dizendoque dentro de um ano ou dois apareceria.Yasuaki ficaria ainda alguns dias emMarselha visitando alguns pontos turísticos. Contornaríamos, agora, o Golfo deLyon, com etapas médias de 100 km eultrapassaríamos uma das últimas etapasdifíceis do percurso, que seria a travessiados Pirineus, junto ao Mediterrâneo. Com a moral elevada, ansiosos eanimados, prosseguimos rumo aBarcelona. Enquanto sonhávamos com achegada em Lisboa e com o trajeto queteríamos ainda que percorrer, pedalá-vamos, pedalávamos... 153
Capítulo 10O retorno a Lisboa
Após a difícil travessia dos Pirineus, Ao sairmos à noite para comer, 157 passando por uma região árida, matamos a saudade das famosas tortilhas vínhamos sempre pernoitando em de batatas, prato típico da Espanha. É feitapensões já que os A.Js. estavam fechados. à base de ovos e batatas, muito forte eChegamos a Barcelona com intenção de barato. Ideal para ciclistas.permanecer por alguns dias, pois além determos um contato com Dona Alzira – uma Observamos ainda durante o passeioamiga brasileira que lá estava residindo, noturno, que havia um grande número detínhamos também que confirmar nossas policiais nas ruas. Soubemos depois quepassagens de volta no escritório da LAP – se tratava de prevenção aos atentadosLinhas Aéreas Paraguaias. terroristas. O grupo separatista basco, ETA, que luta pela independência do país basco, Barcelona é a segunda cidade da era apontado como o responsável pelaEspanha em importância, com cerca de explosão de bombas na cidade.três milhões de habitantes. É a capital daCatalunha, uma região com tendências Retomamos à pensão e começamos aseparatistas. Dentre seus valores mais organizar nossos compromissos. Emfamosos, destacam-se: Picasso, que ali primeiro lugar, estava um encontro comresidiu por muitos anos, Salvador Dali, Dona Alzira, pois além de tudo queMiró e o arquiteto e designer Gaudí. representava, era nosso último ponto para recepção de cartas antes de Lisboa. Pudemos já de início sentir bem as Posteriormente, visitaríamos os principaisdiferenças de hábitos e costumes entre os pontos da cidade e confirmaríamos nossasespanhóis e franceses. passagens.
Telefonamos para Dona Alzira No domingo chegamos à casa de Dona 159marcando um encontro. Acabamos sendo Alzira por volta das onze horas. Ela já nosconvidados para um almoço. Sabíamos aguardava. Estava preocupada conosco.que Dona Alzira morava sozinha. Não Muito amável, logo nos deixou à vontade.querendo incomodar, resolvemos não A princípio, pensou que se tratava de umaaceitar o convite. Ela insistiu nos dizendo corrida. Dizia: – Como vocês têm coragemque seria um prazer e que faria uma bela para andar de bicicletas tão longe de casa?feijoada para que matássemos a saudadedo Brasil. Acabamos aceitando e marcando Começamos a conversar e explicamoso encontro para domingo, último dia antes que se tratava de um giro. Contamos osde nossa partida. detalhes, desde o planejamento, as dificuldades vencidas e os nossos objetivos. Pudemos conhecer as redondezas de Além da própria aventura, é claro.nossa pensão e os pontos turísticos dacidade. Estávamos próximos às famosas Dona Alzira nos falou depois a respeitorambias, um bairro muito típico de de sua vida em Barcelona. Ela vivia ali háBarcelona. Havia ali uma grande feira de 15 anos. Comentamos com ela a surpresaplantas e bichos, dos mais variados tipos. que tivemos ao ir à Igreja Sagrada Família.Ficamos impressionados com o enorme Ali fomos com a intenção de rezar e aonúmero de animais caçados no Brasil, chegarmos nos deparamos com acomo papagaios, araras, etc., que ali eram informação de que a entrada era paga,vendidos livremente. cerca de 200 pesetas. Ficamos impressionados com este fato e um tanto contrariados nos contentamos em olhar a
Igreja da praça em frente. Esta era uma das balneários. Apesar de belos, esses locais já famosas obras de Gaudí, o mais não nos atraíam mais, tal era nossa ânsia extraordinário arquiteto da Catalunha. Ela de chegar. apenas comentou o fato como uma coisa normal na Europa, pela sua própria As bicicletas vinham se portando bem. importância histórica. Igualmente as bolsas e suportes. Arru- mamos tudo, acertamos nossa conta na O almoço na casa de Dona ALzira pensão e partimos. Estávamos com sorte, pois encerrava a série de contatos, previamente conversando com pessoas nas cidades por estabelecidos no Brasil. Foram no total seis onde passamos e naquelas em que encontros que fizemos com pessoas amigas pernoitamos, soubemos que nos anos ou amigas de amigos. Nesses pontos anteriores, naquela época, a temperatura era tivemos oportunidade de receber cartas, muito mais baixa. Em alguns locais, inclusive, equipamentos sobressalentes e recursos havia nevado. Isto para nós seria terrível, pois financeiros, e em todos fizemos grandes estaríamos impossibilitados de pedalar. Mas amizades. o tempo estava favorável a nós, com temperatura mínima não abaixo de 10°C. Ao fim da tarde, agradecendo a imensa hospitalidade de Dona Alzira e a Até Valência, pernoitamos em ótima feijoada, nos despedimos. Tarragona, Vinaróz e Castelon, todas cidades pequenas, porém hospitaleiras. Era tempo de partir. Seguiríamos pela Costa Brava até Valência. Seriam mais três Os dias haviam encurtado ainda mais, amanhecendo por volta das 7:30 horas e160 etapas à beira-mar, ultrapassando vários
anoitecendo perto das 17:30. Dessa forma, cidades da Espanha. Falávamos também de 161pedalávamos direto entre 10:30 e 15:30, nossa sorte, pois havíamos atravessadoaproveitando a temperatura um pouco toda uma região perigosa na Espanha semmais elevada e tomando apenas um lanche presenciar qualquer anormalidade, a nãorápido nesse período. A refeição forte do ser o grande número de policiais armados.dia, fazíamos à noite. Agora, seguindo pelo interior, segura- Em Valência permanecemos dois dias, mente teríamos um clima mais tranqüilopara fazermos uma revisão de rotina em nas cidades, pois era uma região semnosso equipamento, bem como para interesse para o ETA.descansar. Daí seguiríamos pelo interior atéLisboa. Isto significava mais frio e maiores Nesse instante, sem que nenhum avisodificuldades de alojamento. Entretanto não prévio nos tivesse sido dado, uma bombatínhamos escolha, este era o caminho mais explode bem na porta do restaurante,curto. seguida do que parecia uma rajada de metralhadora. Numa atitude instintiva, nos Em nossa última noite na cidade, jogamos no chão, e Hercílio numa cenafomos jantar num pequeno restaurante, fora do comum, pulou por cima do balcãonas proximidades da pensão onde do restaurante, escondendo-se dosestávamos alojados. Conversávamos sobre supostos terroristas. Em seguida, após umassuntos diversos e, principalmente, sobre enorme silêncio, os donos do restauranteos rumores de atentados que estavam se dirigem a nós tentando nos acalmar.acontecendo por parte do ETA, em diversas Explicando que não se tratava de um
ataque terrorista, mas sim de fogos de comemoração, após termos deixado para artifício em comemoração ao Santo trás mais de quinhentos quilômetros nessa padroeiro da cidade. Meio sem jeito, última semana, desde Valência, fomos a pedimos desculpas, acabamos de comer e um bom restaurante. Comemos a valer. Ao nos retiramos. Sentíamo-nos como final, abrindo uma exceção, brindamos verdadeiros palhaços. Mas... ainda bem que com um bom vinho. Foi o que bastou para eram apenas comemorações! que passássemos todo o dia seguinte dormindo. Mas não deixamos de ter um Na manhã seguinte, refeitos do “susto”, contato telefônico com a família, tratamos de seguir viagem. Tínhamos muito informando onde nos encontrávamos e que pedalar, se quiséssemos chegar em recebendo os parabéns. Todos aprovei- Lisboa alguns dias antes do embarque. taram para desejar uma feliz chegada em Lisboa. Até Córdoba, passamos por regiões difíceis e pelas cidades de Requena, Nossa permanência em Córdoba foi Albacete, Alcaraz, Villa Carrillo e Andújar. prorrogada por mais um dia, devido a Em todas elas seguíamos a mesma rotina: problemas com a bicicleta do Hercílio. procura de pensão, uma boa janta, um Assim, como prevíamos um total de dez bom sono; e, dia seguinte, pedalar, dias para chegar até Lisboa, teríamos uma pedalar... margem de aproximadamente dez dias antes do embarque. Isto nos dava A chegada em Córdoba se deu no dia tranqüilidade. O cronograma do giro em que eu fazia aniversário. Alojamo-nos162 numa pequena pensão. Como forma de
estava sendo cumprido e tudo indicava que estávamos chegando. O próprio fato de já 163cumpriríamos todo o roteiro nos prazos estarmos em Portugal nos confirmava isso,fixados. nossos mapas também, mas ao vermos a primeira placa indicando a distância que Saímos cedo para Belmez, primeira nos separava de Lisboa, vibramos. Foicidade em que pernoitamos depois de emocionante, afinal, apesar de estarmosCórdoba. À medida em que nos aproxi- por dentro das distâncias, agora tínhamosmávamos de Lisboa, uma estranha sensação contato com uma informação “concreta”.nos invadia. Parecíamos não acreditar no que Dormimos em Estremóz, uma pequeninaestávamos prestes a concretizar. Quando vila do interior português.chegamos à fronteira com Portugal, apóstermos passado pelas cidades de Zafra e De Estremóz, passamos por VendasBadajóz, recebemos as boas vindas de nossos Novas e Setúbal, antes da chegada a Lisboa.conterrâneos. Era ótimo voltar a ouvir um Vínhamos nos últimos dias contando cadaportuguês falar com todo o seu sotaque e quilômetro. Estávamos ansiosos. Na últimaafeto pelos brasileiros. Tivemos vontade de e pequena etapa que nos separava da capitalficar ali por mais tempo, conversando com portuguesa, à medida em que as placas nosos guardas da fronteira. Não sei se eles informavam a distância de Lisboa, pelaentenderam as razões de nossa alegria e do primeira vez começávamos a enxergar o feitonosso interesse em conversar. que havíamos realizado. Já estávamos em dezembro e mais de cinco meses haviam se Entretanto, nos despedimos e passado desde nossa partida, em julho.encaramos a estrada. Sabíamos que
Saímos da pequena pensão em fomos direto para o A.J. sem nenhum Setúbal após o almoço. Fazia um belo dia. problema. Esse caminho, já conhecíamos muito bem. Começava a escurecer. Seriam apenas mais quarenta Tomamos a avenida Fontes Pereira de quilômetros. Os últimos quilômetros de Meio, depois de passarmos pela avenida da um longo giro. Por incrível que pareça já Liberdade. Por esses locais havíamos tínhamos saudades dos amigos que passado várias vezes em julho quando fizemos e das peripécias que vivemos, sonhávamos em iniciar o giro. Sentíamos apesar da ânsia de chegar logo. Enquanto alguns calafrios. Quando entramos na pedalávamos, conversávamos sobre o Andrade Corvo e estacionamos as bicicletas desafio que havíamos enfrentado e defronte ao A.J., era noite. Simplesmente superado. Estávamos unidos totalmente. pensávamos... que mais poderíamos Havíamos vencido, e a alegria dos três era desejar? Quantas lições havíamos uma só. aprendido? Quantas amizades tínhamos feito? Havíamos conseguido cumprir um Mais um pouco e avistamos a ponte giro de quase 9.000 km pela Europa. Para 25 de Abril, sobre o rio Tejo. O Tejo que ciclistas brasileiros, isto era inédito. Para banha Lisboa, e de onde saiu Pedro Álvares nós, tudo parecia mais uma vez como uma Cabral para descobrir o Brasil. alegria só. Lisboa à vista! A cidade estava muito movimentada. Ou éramos nós que já estávamos acostumados com a calma vida164 do interior? Como quem volta para casa,
Anexo
RoteiroPortugal Holanda – Terni / 4.325 km– Lisboa / 0 km – Bergen Op Zoom / 2.410 km – Roma / 4.415 km– Vila Franca de Xira / 40 km – Rotterdam / 2.485 km – Civitavéchia / 4.465 km– Leiria / 125 km – Den Haag / 2.510 km – Grosscto / 4.575 km– Coimbra / 195 km – Amsterdam / 2.580 km – Pisa / 4.705 km– Gouveia / 285 km – Hertogenbosch / 2.665 km – La Spezia / 4.785 km– Guarda / 340 km – Gênova / 4.885 km AlemanhaEspanha – Venlo / 2.750 km França– Ciudad Rodrigo / 420 km – Düsseldorf / 2.830 km – Menton / 5.005 km– Salamanca / 515 km – Aachen / 2.930 km – St. Raphacl / 5.100 km– Ávila / 615 km – Marseille / 5.240 km– Madrid / 705 km Luxemburgo – Montpelicr / 5.370 km– Guadalajara / 765 km – Clervaux / 3.075 km – Béziers / 5.445 km– Medinacelli / 860 km – Luxemburgo / 3.145 km – Perpignan / 5.535 km– Sória / 935 km– Alfaro / 1.025 km França Espanha– Pamplona / 1.115 km – Metz / 3.200 km – Figueras / 5.600 km– San Sebastian / 1.200 km – Nancy / 3.270 km – Barcelona / 5.730 km – Epinal / 3.350 km – Tarragona / 5.835 kmFrança – Mulhouse / 3.440 km – Vinaróz / 5.945 km– Bayone / 1.260 km – Castellón / 6.025 km– Laharie / 1.325 km Suíça – Valência / 6.100 km– Bordeaux / 1.410 km – Basel / 3.490 km – Requena / 6.175 km– Saintes / 1.525 km – Berna / by train – Albacete / 6.285 km– Poitiers / 1.655 km – Alcaráz / 6.370 km– Tours / 1.760 km Itália – Villacarrillo / 6.460 km– Orleans / 1.870 km – Como / 3.490km – Andújar / 6.555 km– Paris / 1.975 km – Milão / 3.560 km – Córdoba / 6.600 km– Compiegne / 2.045 km – Bérgamo / 3.620 km – Belmez / 6.725 km– Peronne / 2.115 km – Brescia / 3.670 km – Zafra / 6.835 km– Anzin / 2.180 km – Verona / 3.720 km – Badajóz / 6.910 km – Padova / 3.800 kmBélgica – Veneza / 3.840 km Portugal– Huizingen / 2.280 km – Porto Garibaldi / 3.950 km – Estremóz / 6.985 km– Bruxelas / 2.310 km – Rimini / 4.035 km – Vendas Novas / 7.085 km– Antuérpia / 2.355 km – Ancona / 4.130 km – Setúbal / 7.135 km – Fabriano / 4.190 km – Lisboa / 7.180 km – Foligno / 4.265 km– O roteiro acima detalhado registra apenas as distâncias entre as cidades em que pernoitamos. Deixamos portanto de mencionar os aproximados 1.200 km de deslocamentos em cidades, além dos diversos passeios que realizamos.– A quilometragem total, durante os 164 dias em que permanecemos na Europa, ficou em torno de 8.300 km.
Em maio de 1985, dois estudantes de Santa Catarina viam desfilar pelo campus da Universidade onde estudavam toda a indefinição que o país atravessava com a morte de Tancredo. Greves, agitação e desencontros pareciam ser a tônica da época. Foi nesse cenário que os dois ciclistas resolveram pôr à prova a determinação que costuma acompanhar os grandes sonhos. Paulo Marcos e Hercílio decidiram percorrer 8.300 km de estradas européias, em cinco meses, a bordo de bicicletas, num projeto que uniu esporte e intercâmbio cultural. A organização foi minuciosa, incluindo até a confecção de apetrechos especiais adaptados às bicicletas de competição que deveriam resistir à prova de fogo que os ciclistas traçaram. Pesquisas, consultas e estudos complementaram a rota. O apoio de entidades esportivas, faculdades e empresas nacionais foi surgindo aos poucos, reforçando a viabilização do projeto. Com mais um companheiro, Murilo, a equipe estava pronta para o desafio. A trilha foi percorrida por inteiro. A cada parada no percurso, o encontro com outros estudantes, ciclistas e professores. O projeto, então, se transformou em lições do mundo e dos homens. Nesse relato detalhado da viagem, tem-se uma descrição fiel de cada pedalada da longa rota. Amyr Klink navegador ISBN 853280373-39 788532 803733
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