Pós-Graduação Internacional Lato Sensu em Estado Constitucional e Liberdade Religiosa MÓDULO IAspectos Propedêuticos e Jurídico-Constitucionais Nacionais doDireito de Liberdade ReligiosaDisciplina: Liberdade Religiosa e Laicidade na História do DireitoBrasileiroCarga Horária: 26 horas/aulaProfessor: Dr. Aloísio Cristovam dos Santos Júnior ANAJURE (Associação Nacional de Juristas Evangélicos) UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE REGENT’S PARK COLLEGE – University of Oxford IUS GENTIUM CONIMBRIGAE – Universidade de Coimbra
Liberdade Religiosa e Laicidade na História do Direito Brasileiro 1. PROLEGÔMENOS SOBRE A LIBERDADE O ser humano distingue-se dos demais animais por ser o único dotado devontade, vale dizer, de capacidade para agir de forma livre, sem ser guiado de modoinelutável pelos instintos, daí porque, como afirma com muita pertinência FábioKonder Comparato, É sobre o fundamento último da liberdade que se assenta todo o universo axiológico, isto é, o mundo das preferências valorativas, bem como toda a ética de modo geral, ou seja, o mundo das normas, as quais, contrariamente ao que sucede com as leis naturais, apresentam-se sempre como preceitos suscetíveis de consciente violação6. Se assim o é, antes que nos debrucemos sobre a liberdade religiosa e maisespecificamente sobre a liberdade de organização religiosa, não é ocioso quefaçamos algumas rápidas observações em derredor da liberdade, enquanto noçãojurídico-política. Propositalmente, abster-nos-emos de esmiuçar as concepçõesfilosóficas acerca do tema, bastando lembrar, com José Afonso da Silva, que, noparticular, o problema da liberdade [...] esteve, no mais das vezes, sujeito a considerações idealistas (sentido filosófico) e metafísicas, que mais confundiram que esclareceram. O debate correlaciona liberdade e necessidade. Opunha-se uma à outra. Uns negavam a existência de liberdade humana, afirmando uma necessidade, um determinismo absoluto; outros, ao contrário, afirmavam o livre arbítrio, liberdade absoluta, negando a necessidade. Ora, de um lado, a liberdade era simples desvio do determinismo necessário; de outro, desvio daquela. Essas posições colocam o homem fora do processo da natureza. Mas é necessário resolver o problema a partir da consideração de que o homem faz parte dela. Está, por isso, sujeito às leis objetivas da necessidade. Mas, além disso, ele é também um ser social: “é criador e produto da história, e suas relações com a natureza, seu conhecimento da natureza e sua ação sobre ela estão condicionados por suas relações sociais com outros homens”. Assim, o homem se torna cada vez mais livre na medida em que amplia seu domínio sobre a natureza e sobre as relações sociais. O homem domina a necessidade na medida em que amplia seus conhecimentos6 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 25
sobre as naturezas e suas leis objetivas. Então, não tem cabimento a discussão sobre a existência e não existência da liberdade humana com base no problema da necessidade, do determinismo ou da metafísica do livre arbítrio, porque o homem se liberta no correr da história pelo conhecimento e conseqüente domínio das leis da natureza, na medida em que, conhecendo as leis da necessidade, atua sobre a natureza real e social para transformá-la no interesse da expansão de sua personalidade7. Se sob o ponto de vista filosófico a discussão sobre a existência da liberdadehumana inclui-se dentre os debates que atravessam os séculos sem lograremproduzir uma resposta consensual, no sentido jurídico-político a liberdade constituiuma noção que desde as raízes do constitucionalismo moderno tem sido defendidae cultuada como um dos pilares fundamentais da democracia. É certo que mesmo sob o prisma jurídico-político os fundamentos que foramatribuídos à liberdade variaram ao longo da história, desde a concepção de que setrataria de um direito natural – de origem divina ou racional – até a concepção que aconsidera um produto da consciência histórica. No entanto, as divergências nocampo jurídico-político referem-se menos à sua existência e muito mais ao seusignificado. Neste sentido é que Montesquieu afirma que Não há palavra que tenha recebido as mais diferentes significações e que, de tantas maneiras, tenha impressionado o espírito como a palavra liberdade. Uns tomaram-na pela facilidade em depor aquele a quem outorgaram um poder tirânico; outros, pela facilidade de eleger aquele a quem deveriam obedecer; outros pelo direito de se armar, e de exercer a violência; estes, pelo privilégio de só serem governados por um homem de sua nação, ou por suas próprias leis. Certo povo considerou, por muito tempo, como liberdade o hábito de usar barbas compridas8. Quando tratamos da liberdade, na sua acepção político-jurídica, é semprelembrado que as diversas teorias que buscam defini-la, ora enfatizam o seu aspectonegativo, ora preferem atribuir-lhe um sentido positivo9. No sentido negativo, a7 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 10. ed. nos termos da Revisão Constitucional de 1994. SãoPaulo: Malheiros, 1995, p. 225.8 MONTESQUIEU. Do espírito das leis. Coleção: Os Pensadores. Tradução de Gonzague Truc. São Paulo: Editora NovaCultural LTDA, 1997. p.1999 Esclarece-nos Milton Ribeiro [Liberdade religiosa: uma proposta para debate. São Paulo: Ed. Mackenzie, 2002, p. 26] que“até Rousseau entendia-se a liberdade negativamente, como ausência de obstáculos para o curso do pensamento e da ação
liberdade é entendida como ausência de impedimento ou coação. No sentidopositivo, identifica-se como um poder de autodeterminação, pelo qual o ser humanodirige a sua vontade para a busca da realização pessoal. Nas palavras de Bobbio, [...] por liberdade negativa, na linguagem política, entende-se a situação na qual um sujeito tem a possibilidade de agir sem ser impedido, ou de não agir sem ser obrigado, por outros sujeitos. [...] Por liberdade positiva, entende-se – na linguagem política – a situação na qual um sujeito tem a possibilidade de orientar seu próprio querer no sentido de uma finalidade, de tomar decisões, sem ser determinado pelo querer de outros10. Após anotar a incompletude da concepção que circunscreve a liberdade àmera ausência de coação, reconhecendo que a liberdade possui limites que devemser estabelecidos por lei normal, moral e legítima, José Afonso da Silva propõe: [...] liberdade consiste na possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal. Nessa noção, encontramos todos os elementos objetivos e subjetivos necessários à idéia de liberdade; é poder de atuação sem deixar de ser resistência à opressão; não se dirige contra, mas em busca, em perseguição de alguma coisa, que é a felicidade pessoal, que é subjetiva e circunstancial, pondo a liberdade, pelo seu fim, em harmonia com a consciência de cada um, com o interesse do agente. Tudo que impedir aquela possibilidade de coordenação dos meios é contrário à liberdade. E aqui, aquele sentido histórico da liberdade se insere na sua acepção jurídico-política. Assim, por exemplo, deixar o povo na ignorância, na falta de escola, é negar-lhe a possibilidade de coordenação consciente daqueles meios; oprimir o homem, o povo, é retirar-lhe aquela possibilidade etc.11. Pinto Ferreira, por sua vez, conceitua a liberdade como “o poder do indivíduode exercer suas atividades física, moral, econômica e intelectual até o limite que oEstado autoriza, a fim de permitir o exercício da liberdade alheia”, ressaltando que “aliberdade de um finda quando começa a liberdade do outro”12. O que se percebe como muita clareza nas diferentes concepções jurídico-políticas da liberdade é que, sem desprezar o aspecto negativo que também fazparte do seu conteúdo, há uma preferência do constitucionalismo moderno, aindapresente no atual processo evolutivo do constitucionalismo, por enfatizar-lhe o(inclusive a religiosa). Com Rousseau veio a idéia da liberdade alcançada apenas quando o homem é capaz de realizar suanatureza mais íntima. Liberdade tornou-se sinônimo de criação livre”.10 BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade, 2. ed., Rio de Janeiro: Ediouro, 1997, p. 4911 SILVA, José Afonso. Op. cit., p. 227.12 FERREIRA, Luiz Pinto. Manual de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1992. p. 70.
aspecto positivo. Isso pode ser facilmente observado na definição que lhe atribui aDeclaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, cujo art. 4º. preceitua: A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique a outrem: em conseqüência, o exercício dos direitos naturais de cada homem só tem por limites os que assegurem aos demais membros da sociedade a fruição desses mesmos direitos. Tais limites só podem ser determinados pela lei13. A Declaração Universal dos Direitos Humanos consagrada pela AssembléiaGeral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 reforça tal conclusão noArtigo XXIX, quando proclama: [...] 2. No exercício de seus direitos e liberdades, todo homem estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito aos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. [...]14 Jean Jacques Israel, seguindo a mesma diretriz, afirma: [...] a liberdade corresponde ao mesmo tempo a uma faculdade de agir e de se autodeterminar e, em uma acepção mais especificamente jurídica, a uma “situação de direito na qual cada um é senhor de si mesmo e exerce como quiser todas as suas faculdades”. A liberdade resulta, então, no reconhecimento de um direito de cumprir um ou outro ato.15 A liberdade jurídica abrange, alem da liberdade em sua acepção filosófica, obrigações inerentes à vida do homem em sociedade. Esta impõe um enquadramento dos comportamentos individuais, que pode limitar a liberdade do indivíduo ou, ao contrário, criar direitos em seu benefício. Quando determinados comportamentos individuais repercutem sobre outrem apenas de forma negativa – as liberdades, que impõem a abstenção do Estado principalmente –, outros – os direitos – têm o poder de impor um comportamento positivo a outrem, principalmente a coletividade que deve satisfazer a demanda social por prestações. O direito, como disciplina social, como disciplina normativa, rege o comportamento do homem na sociedade, define as condições do comportamento do indivíduo no exercício de suas liberdades. O direito vem, assim, reconhecer, garantir, até mesmo limitar o exercício das liberdades: pelo fato de elas estarem assim consagradas pelo Direito, as liberdades são, então, denominadas públicas16. O que importa pôr em destaque, para nós, é que, no sentido jurídico-político,a liberdade é um sustentáculo do Estado Democrático que tanto se manifesta numaacepção negativa (ausência de coação) como numa acepção positiva (faculdade de13 Tradução de Fábio Konder Comparato, A afirmação Histórica dos Direitos Humanos, p.154.14 Ibidem, p.237.15 ISRAEL, Jean-Jacques. Direito das liberdades fundamentais (tradução Carlos Souza). Barueri, SP: Manole, 2005. P. 42916 Ibidem, p. 23
agir), mas, independentemente da ênfase que se lhe dê, o seu exercício semprecomporta limitações, em geral decorrentes da lei. Sob tal perspectiva é que o direitoà liberdade religiosa, em todas as suas manifestações, deve ser assimilado. 1.2 LIBERDADE RELIGIOSA E IGUALDADE Se observarmos que as circunstâncias que envolveram a afirmação históricada liberdade religiosa conectam-se ao pluralismo religioso advindo da quebra daunidade teológico-político da cristandade e à eclosão do constitucionalismomoderno17, o valor que historicamente se sobressai como fundamental aoreconhecimento do direito à liberdade religiosa é o princípio da igualdade. É certo que num primeiro momento o discurso da igualdade é direcionado aosindivíduos que pertencem aos ramos rompidos da cristandade, não alcançando ossegmentos religiosos alheios à fé cristã. Quando muito, chega a aproximar-se dosque professam a fé judaica. Somente num momento posterior da evoluçãoconstitucional – sobretudo quando os Estados Unidos recebem um grandecontingente de emigrantes orientais – é que o discurso da igualdade torna-se maisinclusivista, englobando indivíduos que adotem quaisquer credos ou cultosreligiosos18.17 Sobre a história da conquista da liberdade religiosa, vale conferir Milton Ribeiro, na obra já citada, e Jónatas Machado (ALiberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos / Boletim daFaculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra Editora, 1996). Ambos dedicam especial atenção ao assunto.18 No entanto, mesmo no século XVII, ainda manchado pelas guerras religiosas, houve quem estivesse na vanguarda da lutapor uma liberdade religiosa ampla. Roger Williams, pastor batista, apregoava já naquela época a separação da igreja e doEstado e reclamava uma absoluta liberdade religiosa, não só para os cristãos, mas também para os judeus, muçulmanos epagãos, que deveriam ter os mesmos direitos civis e políticos que os cristãos, pois – segundo dizia – a consciência do homempertence a ele mesmo e não ao Estado. Roger Williams começou a pregar em Salem, de onde foi expulso e, junto com algunsfiéis que o acompanharam, fundou a cidade de Providence, na qual todos os que sofriam perseguição por suas crençasreligiosas encontravam refúgio. Referindo-se aos fundadores de Providence, conta Georg Jellinek (La Declaración de losderechos del hombre y del ciudadano Traducción y estudio preliminar Adolfo Posada; Segunda Edición, Serie EstudiosJurídicos, Núm. 12. México, D.F.: Universidad Nacional Autónoma de México, Instituto de Investigaciones Jurídicas, 2003, p.119) que: “En su pacto fundamental, los secesionistas prometían obedecer a las leyes dictadas por la mayoría, pero „only incivil things‟, la religión no es materia sometida a la legislación. Así se reconoció, por primera vez, la plena libertad en asuntosreligiosos, y eso por un hombre que era un creyente lleno de ardor”.
A igualdade, aliás, constitui o valor fundamental da democracia. A construçãode um Estado Democrático de Direito somente é possível a partir do respeito àigualdade essencial dos seres humanos, pois, como sustenta com muita precisãoJónatas Machado, O princípio da igualdade decorre da concepção da sociedade como ordem de cooperação entre cidadãos livres e iguais. Ele está na base da justiça e da reciprocidade que a alicerçam, bem como da igual consideração e respeito devida a todos os indivíduos19. No campo da liberdade religiosa, o princípio da igualdade reveste-se de umaimportância crucial. A idéia de liberdade religiosa somente pode ser concebida numcontexto de respeito à igualdade de direitos entre todos os cidadãos. Com efeito,somente possui liberdade religiosa quem pode adotar esta ou aquela opção religiosasem recear sofrer tratamento discriminatório por parte da comunidade política. Por outro lado, é relevante destacar que o princípio da igualdade nãopretende ignorar a diversidade de crenças existente no interior da sociedade. Aocontrário, visa a protegê-la. Recorrendo mais uma vez às palavras de JónatasMachado, para além da verdade trivial de que um ente só é igual a si próprio, deve reter-se que, numa sociedade aberta e pluralista, o princípio da igualdade não está ao serviço de um projecto de uniformização e igualitarização dos indivíduos e dos grupos, pretendendo, ao invés, proteger a sua diversidade. Uns e outros sabem que podem prosseguir livremente as suas distintas visões do mundo e da vida (do bem e da verdade) com a certeza de que não serão, por esse facto, objecto de um tratamento jurídico diferenciado, nem afectados no seu sentimento de igual dignidade como membros de pleno direito da comunidade política. Assim, a igualdade de que se trata aqui é meramente parcial e relativa, não se podendo falar na existência de uma qualquer obrigação de nivelação (Nivellierungsgebot). O princípio da igualdade estabelece, desta forma, uma íntima relação com a idéia de diversidade20. A igualdade em matéria religiosa, como sustentam Reina y Reina, […] no tiene nada que ver con la uniformidad. Significa que forma parte del común y radical patrimonio jurídico del ciudadano (…) la titularidad, en igualdad de calidad y trato ante la ley del derecho de libertad religiosa (…) El correlato principal de esta igualdad es la no discriminación por razón de la19 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. op. cit., p. 29020 Ibid., p. 287
religión. Por no discriminación entendemos la expresa prohibición constitucional de cualquier acepción privilegiada, distinción, restricción o exclusión que basada en motivos religiosos tenga por objeto o por resultado la supresión o el menoscabo de la igualdad de titularidad y de ejercicio del derecho de libertad religiosa, del resto de derechos fundamentales y libertades públicas en el orden político, económico, social, cultural o en cualquier otro orden de la vida pública.”21 Tal observação avulta em importância nos dias hodiernos, quando a idéia detolerância religiosa tem sido confundida com a idéia de sincretismo, como se orespeito à diversidade religiosa devesse necessariamente implicar a aceitação deoutras crenças como sendo verdadeiras. Ora, a religião trabalha essencialmentecom valores dogmáticos. Conceitos como o de verdade e de erro, que na filosofiacontemporânea têm sido relativizados, costumam se apresentar no fenômenoreligioso como valores absolutos, de modo que as crenças religiosas, em regra, têmum caráter exclusivista. O respeito à crença religiosa do outro não deve significarnecessariamente o reconhecimento de que a religião alheia seja verdadeira.Interpretação diversa constitui supressão da liberdade de consciência22 e atentado àprópria liberdade de crença, pois, em última análise, representaria umconstrangimento ao crente a que renunciasse à sua própria fé e, como diz Alexandrede Moraes, O constrangimento à pessoa humana, de forma a constrangê-la a renunciar sua fé, representa o desrespeito à diversidade democrática de idéias, filosofias e à própria diversidade espiritual23. Por tais razões, o princípio de igualdade em matéria religiosa não pode serutilizado como pretexto para que se considere discriminatória ou intolerante aconduta de quem, ao exercitar o seu direito de fazer proselitismo religioso, defende averdade de suas crenças em oposição às crenças dos outros. Desde que o esforçoapologético do crente, seja qual for a sua religião, limite-se a apontar o suposto erro21 REINA, Victor y REINA, Antonio. Lecciones de Derecho eclesiástico español, Barcelona: págs. 320-321.22 Estranhamente, as diferenças de opinião são aceitas em qualquer campo (científico, político etc.) como algo saudável edemocrático. Quando se trata de divergência no campo religioso, porém, há uma enorme resistência a considerá-lademocrática, por se acreditar que o ideal é que todos tenham a mesma crença (ou não tenham crença alguma).23 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2004, p. 75.
da doutrina religiosa acreditada por alguém, sem ofender a honra ou a dignidadepessoal do outro – inclusive respeitando o direito que este possui de querer ou nãoouvir o discurso –, não há como atribuir a tal conduta qualquer afronta ao princípioconstitucional de igualdade em matéria religiosa24. Ao contrário, ambos possuemigualmente o direito de defender a verdade de sua crença, assim como têm direito adefender a sua posição os que não crêem (ateus ou agnósticos) e aqueles quesustentam que todas as religiões são, a um só tempo, verdadeiras. O princípio da igualdade em matéria religiosa é claramente adotado no nossoordenamento jurídico-constitucional. Primeiro, o caput do artigo 5º. da Constituiçãoda República reza que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquernatureza”, onde se inclui, naturalmente, a distinção de natureza religiosa. Depois, oinciso VIII do mesmo artigo, estabelece que “ninguém será privado de direitos pormotivo de crença religiosa”. Sobre a igualdade “sem distinção de credo religioso” preconizada pelaConstituição Federal, José Afonso da Silva comenta: Estado leigo, a República Federativa do Brasil sempre reconheceu a liberdade de religião e de exercício de cultos religiosos (art. 5º. VI), agora sem as limitações da cláusula “que não contrariem a ordem pública e os bons costumes” que figurava nas constituições anteriores. Afirma-se que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa [...]”, salvo escusa de consciência (art. 5º., VIII). O corolário disso, sem necessidade de explicitação, é que todos hão de ter igual tratamento nas condições de igualdade de direitos e obrigações, sem que sua religião possa ser levada em conta25. O que convém acentuar aqui é que o princípio da igualdade em matériareligiosa, adotado pelo Estado brasileiro, compõe o pano de fundo do direito àliberdade religiosa. Este direito pressupõe o tratamento isonômico a todos os24 Como na célebre citação atribuída erroneamente a Voltaire (surgida, segundo os historiadores, num livro de 1907 intitulado“friends of Voltaire”, de Beatrice Hall): “Não concordo com uma única palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte ovosso direito de dizê-la” (tradução disponível no endereço eletrônico http://pt.wikiquote.org/wiki/Voltaire), o reconhecimento deque os outros possuem o direito de professar as suas crenças religiosas não tem, necessariamente, que implicar concordância.Respeito e discordância não constituem atitudes excludentes entre si.25 SILVA, José Afonso. op. cit., p. 220/221.
cidadãos independentemente de suas crenças religiosas, pugnando por umaigualdade que não se lastreia na necessidade de uniformização das convicçõesreligiosas. Ao contrário, uma igualdade tal somente pode germinar num ambiente depluralidade de crenças e opiniões religiosas. A tentativa de uniformização deconvicções religiosas em qualquer sociedade, longe de favorecer a igualdade,descamba facilmente para o totalitarismo político-religioso. 1.3 LIBERDADE RELIGIOSA E LIBERDADE DE PENSAMENTO A liberdade religiosa mantém uma estreita relação com a liberdade depensamento, da qual, em última análise, constitui uma especificidade. Em razãodisso, uma percepção adequada da liberdade religiosa supõe uma compreensãoigualmente adequada da liberdade de pensamento. Se assim o é, algumasconsiderações em derredor desta relação entre a liberdade religiosa e a liberdade depensamento mostram-se indispensáveis ao bom desenvolvimento dos nossosestudos. No particular, merecem atenção os ensinamentos de Manoel GonçalvesFerreira Filho, que afirma: A propósito da liberdade de pensamento, deve-se, de pronto, distinguir duas facetas: a liberdade de consciência e a liberdade de expressão ou manifestação do pensamento. A primeira é a liberdade do foro íntimo. Enquanto não manifesta, é condicionável por meios variados, mas é livre sempre, já que ninguém pode ser obrigado a pensar deste ou daquele modo. Essa liberdade de consciência e de crença a Constituição (art. 5º, VI) declara inviolável. A liberdade de consciência e de crença, porém, se extroverte, se manifesta na medida em que os indivíduos, segundo suas crenças, agem deste ou daquele modo, na medida em que, por uma inclinação natural, tendem a expor seu pensamento aos outros e, mais, a ganha-los para suas idéias. As manifestações, estas sim, pelo seu caráter social valioso, é que devem ser protegidas, ao mesmo tempo que impedidas de destruir ou prejudicar a sociedade.2626 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 23. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1996, pp. 255/256
Ora, a liberdade de pensamento de que cuidamos é a que consiste no direitode expressar as próprias opiniões e crenças ou, como diz Sampaio Dória27, “o direitode exprimir, por qualquer forma, o que se pense em ciência, religião, arte, ou o quefor”. A observação não é vazia de sentido, na medida em que, como vimos,enquanto o pensamento não é externado, a liberdade de pensar é sempre livre eescapa ao controle do direito, pois não é possível obrigar a que alguém pense destaou daquela forma. De qualquer modo, devemos ter sempre em mente, como nosensina Jean-Jacques Israel, que os direitos e as liberdades de pensamento, também qualificados como liberdades intelectuais, caracterizam, primeiro, o homem como um “animal pensante” ou preferencialmente um ser pensante, ou seja, dotado de consciência e de opiniões28. O fato de os seres humanos serem dotados de consciência e, portanto, seremcapazes de pensar e conceber o mundo de modo particular é que faz com queconstruam e adotem crenças religiosas diferentes. A liberdade religiosa, sob talprisma, é a liberdade de expressar o pensamento em matéria religiosa. Nestesentido é o magistério de Pontes de Miranda29, segundo o qual “a liberdade religiosaespecializa a liberdade de pensamento, pois que a vê somente no que concerne àreligião”, e de André Ramos Tavares30, que ao tratar da liberdade de religião, diz que“nada mais é que um desdobramento da liberdade de pensamento e manifestação”.O pronunciamento de Alexandre de Moraes também é elucidativo sobre o assunto,ao afirmar que a conquista constitucional da liberdade religiosa é verdadeira consagração de maturidade de um povo, pois como salientado por Themístocles Cavalcanti, é ela verdadeiro desdobramento da liberdade de pensamento e27 SAMPAIO DÓRIA, Antônio Roberto. Direito Constitucional: Comentários à Constituição de 1946, v. III/602 apud José Afonsoda Silva, op. cit., p. 234.28 ISRAEL, Jean-Jacques. Op. cit., p. 48329 MIRANDA, Pontes de. Comentários a Constituição de 1946, p. 444, t. IV,30 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 542.
manifestação. A abrangência do preceito constitucional é ampla, pois sendo a religião o complexo de princípios que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto.31 A conspícua estreiteza da ligação entre a liberdade de pensamento e aliberdade religiosa tornou inevitável que a Declaração Universal dos DireitosHumanos de 1948 tratasse de ambas as liberdades no mesmo artigo: Artigo XVIII – Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância isolada ou coletivamente. em público ou em particular32. Na verdade, a liberdade religiosa está visceralmente imbricada com aliberdade de pensamento, sobretudo quando esta se expressa como liberdade deconsciência, de modo que é inconcebível a existência de uma sem a outra. Talcircunstância é bem percebida por Jónatas Machado, quando pontua: A íntima relação que se estabelece entre a liberdade religiosa e a liberdade de consciência tem tanto de real como de decisivo para o correcto entendimento da primeira. A liberdade religiosa constitucionalmente consagrada tem como ponto de apoio básico a liberdade de consciência. Não existindo qualquer critério inequívoco e indiscutível de verdade religiosa, as opções em matéria de fé são relegadas, numa ordem constitucional livre e democrática, para o foro da consciência individual. As pessoas mantêm uma grande variedade de valores e interesses substantivos diferentemente articulados hierarquizados por um amplo leque de sistemas éticos. Compete ao modelo de pessoas jurídicas comunicativamente livres e iguais assegurar que os processos de articulação e hierarquização de valores e interesses decorram num contexto de liberdade dentro de um âmbito de reserva pessoal de intimidade constitucionalmente protegida. Assente na igual consideração e respeito devido a todos os indivíduos, este é um princípio de justiça elementar. A liberdade religiosa surge consagrada como um corolário da liberdade de consciência, sendo certo que o Direito visa proteger todas as opções que o individuo tome em matéria religiosa, mesmo quando se trate de decisões de rejeição. A crença é apenas uma das alternativas possíveis que se colocam ao sujeito. A proximidade entre a liberdade de consciência e a de religião é evidente se se pensar que muitos casos de objecção de consciência, porventura a maioria deles, têm a sua origem em motivações de índole religiosa33.31 MORAES, Alexandre de. op. cit., p. 75.32 Conforme reproduzido por Fábio Comparato in A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, p. 23433 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Op. cit., p. 193.
Vê-se, assim, que a liberdade de pensamento, especialmente enquantoliberdade de consciência, à semelhança do que ocorre com o princípio da igualdadeem matéria religiosa, compõe um indispensável pano de fundo para que o direito àliberdade religiosa se apresente com toda a sua desenvoltura. O princípio daigualdade e a liberdade de consciência são referências sem as quais não é possívelperceber a real textura da liberdade religiosa. 1.4 LIBERDADE RELIGIOSA COMO DIREITO FUNDAMENTAL DO HOMEM Uma categoria muito importante para a compreensão da liberdade religiosa éa dos direitos fundamentais do homem, os quais, no dizer de Luiz Alberto DavidAraújo, [...] podem ser conceituados como a categoria jurídica instituída com a finalidade de proteger a dignidade humana em todas as dimensões. Por isso, tal qual o ser humano, tem natureza polifacética, buscando resguardar o homem na sua liberdade (direitos individuais), nas suas necessidades (direitos sociais, econômicos e culturais) e na sua preservação (direitos relacionados à fraternidade e à solidariedade). Formam, como afirmado, uma categoria jurídica. Isso significa que todos os direitos que recebem o adjetivo de fundamental possuem características comuns entre si, tornando- se, assim, uma classe de direitos34. A liberdade religiosa é um direito consagrado como fundamental pelos maisimportantes instrumentos jurídicos do direito internacional, dentre os quais a grandemaioria das Constituições nacionais e a Declaração Universal dos Direitos doHomem, aprovada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembrode 1948, que estabelece no artigo XVIII, já citado, que Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância isolada ou coletivamente, em público ou em particular.35”34 ARAÚJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2002. p. 81-82. Cf.também, André Ramos Tavares (op. cit., p. 410), segundo o qual a expressão “direitos fundamentais do homem” engloba osdireitos individuais, os direitos sociais e os direitos de solidariedade e tanto pode ser utilizada em nível interno comointernacional.35 Tradução de Fábio Comparato in A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, p. 234
A mera inserção desse artigo da liberdade religiosa na Declaração Universaldos Direitos do Homem revela um elevado grau de consenso global36 em torno desua relevância para a preservação da dignidade da pessoa humana e para aconvivência entre os povos. Se, como esclarece Bobbio, a única fundamentaçãopossível para o reconhecimento de qualquer direito universal é o consenso geral arespeito de sua validade37, não há dúvida de que a liberdade religiosa se inclui emtal categoria. Na verdade, para conceituados doutrinadores, a relação entre a liberdadereligiosa e os direitos fundamentais vai muito além da mera inclusão daquele direitonesta última categoria: na luta pela liberdade religiosa residiria justamente a gênesehistórica dos demais direitos fundamentais. Isso é o que nos conta J.J. GomesCanotilho: A quebra da unidade religiosa da cristandade deu origem à aparição de minorias religiosas que defendiam o direito de cada um à verdadeira fé. Esta defesa da liberdade religiosa postulava, pelo menos, a idéia de tolerância religiosa e a proibição do Estado em impor ao foro íntimo do crente uma religião oficial. Por esse facto, alguns autores como G. Jellinek, vão mesmo ao ponto de ver na luta pela liberdade de religião a verdadeira origem dos direitos fundamentais38. A referência a Georg Jellinek, ainda que não se constitua no único defensorda idéia39, justifica-se pelo fato de que o trabalho que escreveu sobre a Declaraçãodos Direitos do Homem e do Cidadão40 encontrou enorme repercussão no mundo36 O consenso global ao qual me refiro não implica unanimidade, mesmo porque a diversidade cultural, política e religiosa entreos países do mundo dificilmente permitiria uma convergência tal. Tanto isso é verdade que, embora não tenha havido um únicovoto contra, oito Estados se abstiveram de votar a Declaração Universal dos Direitos Humanos. No entanto, o expressivonúmero de Estados que assinaram a Declaração permite que se conclua, acompanhando André Ramos Tavares (op. cit., pág.456), que é notável o grau de consenso obtido.37 Afirma Bobbio (Era dos direitos, p. 26) que “a Declaração Universal dos Direitos do Homem representa a manifestação daúnica prova através da qual um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e, portanto, reconhecido: eessa prova é o consenso geral acerca de sua validade. Os jusnaturalistas teriam falado de consensus omnium gentium ouhumani generis”.38 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2000, p. 377.39 Tal posição é defendida, dentre outros, por Arturo Carlo Jemolo, conforme noticia SORIANO, Ramón. Las LibertadesPúblicas, Madri: Tecnos, 1990.40 JELLINEK, Georg. La Declaración de los derechos del hombre y del ciudadano Traducción y estudio preliminar AdolfoPosada; Segunda Edición, Serie Estudios Jurídicos, Núm. 12. México, D.F.: Universidad Nacional Autónoma de México,Instituto de Investigaciones Jurídicas, 2003. A obra original, em alemão, foi publicada em 1895 e logo traduzida para diversosidiomas.
jurídico, tanto europeu quanto americano, sobretudo por recusar a originalidade dosfranceses na criação da sua Declaração de Direitos41. Na obra em questão, Jellinek denuncia o caráter seminal da luta pelo direito àliberdade religiosa na consagração legislativa dos direitos fundamentais, como se vêdos seguintes trechos: La idea de consagrar legislativamente esos derechos naturales, inalienables e inviolables del individuo, no es de origen político, sino religioso. Lo que hasta aquí se ha recibido como una obra de la Revolución, es en realidad un fruto de la Reforma y de sus luchas. Su primer apóstol no es Lafayette, sino aquel Roger Williams que, llevado de su entusiasmo religioso, emigraba hacia las soledades, para fundar un imperio sobre la base de libertad de las creencias, y cuyo nombre los americanos aun hoy recuerdan con veneracion42. La exigencia de toda una lista de derechos fundamentales especializados, dirigidos a una determinada conducta, derechos que el Estado debía reconecer expresamente, no se alla en parte alguna antes de la Revolucion americana. La proclamación de la libertad religiosa por el legislador, antes de este tiempo, es un fenómeno completamente aislado. Sin duda, se apela frecuentemente a los derechos incoloros de la teoria del derecho natural, para apoyar ciertas pretensiones frente al Estado; pero no es al legislador a quien esas pretensiones se dirigen43. Independentemente de que se possa comprovar ou não o nexo decausalidade histórica entre a liberdade religiosa e os demais direitos fundamentais,do modo como sustentado por G. Jellinek, não há como deixar de reconhecer que aliberdade religiosa, dentre todos os direitos fundamentais, é um dos que primeiroconquistaram consagração no moderno constitucionalismo. Demais disso, suaimportância pode ser facilmente percebida na história da civilização. Como pontuaAldir Guedes Soriano, A história nos ajuda a compreender a importância da liberdade religiosa, principalmente em seus períodos negros, onde a liberdade de pensamento e a expressão religiosa foram brutalmente cerceadas. O espírito de intolerância religiosa tem sacrificado muitas vidas humanas ao longo da41 É fácil imaginar que, feridos nos seus sentimentos nacionais, muitos dos juristas franceses alimentaram a polêmica comJellinek, o que aumentou em muito a repercussão do seu trabalho. Mas Jellinek foi alvo de críticas de juristas europeus deoutras nacionalidades, a exemplo de seu compatriota alemão Otto Von Gierke.42 Op. cit. p. 12543 Idem, p. 128
historia. Além disso, a atualidade demonstra que inúmeros conflitos apresentam o componente religioso44. 1.5 LIBERDADE RELIGIOSA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Um outro aspecto que não consegue passar despercebido quando cuidamosdo direito à liberdade religiosa, até pela insistência com que a doutrina jurídicaeuropéia o acentua, é a sua estreita relação com a dignidade da pessoa humana.Sendo assim, ainda que nos limites do presente estudo não caiba discutir a fundo osignificado do princípio da dignidade da pessoa humana, alguma coisa deve ser ditaa esse respeito. Primeiramente, cumpre destacar que o princípio da dignidade da pessoahumana resulta da compreensão de que cada ser humano existe como um fim em simesmo, não devendo ser tomado como um mero instrumento a serviço da vontadede outrem. Como salienta Ana Paula de Barcellos, Um dos poucos consensos teóricos do mundo contemporâneo diz respeito ao valor essencial do ser humano. Ainda que tal consenso se restrinja muitas vezes apenas ao discurso ou que essa expressão, por demais genérica, seja capaz de agasalhar concepções as mais diversas – eventualmente contraditórias –, o fato é que a dignidade da pessoa humana, o valor do homem como um fim em si mesmo, é hoje um axioma da civilização ocidental, e talvez a única ideologia remanescente45. Conquanto o princípio da dignidade humana, de acordo com os diversospontos de vista sob os quais costuma ser estudado (filosófico, teológico, jurídico-político etc.) e com a ideologia adotada por quem se incline sobre o assunto,comporte um sem número de conceituações, a sua consagração como valor maiselevado do sistema de direitos fundamentais é uma realidade irreplicável nos diashodiernos. Com efeito, na literatura jurídica contemporânea, pouco importando o44SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade Religiosa no Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira,2002. p. 17.45 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da Dignidade da PessoaHumana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. pp. 103/104
fundamento que se lhe atribua – direito inato, construção cultural ou produtohistórico de lutas pela emancipação do homem –, não há quem deixe de apresentá-lo como o principal sustentáculo dos direitos fundamentais. No particular, asexpressões utilizadas pelos estudiosos, sejam nacionais, sejam estrangeiros, nãodestoam. À guisa de exemplo, José Afonso da Silva46, afirma que a dignidadehumana “é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentaisdo homem, desde o direito à vida”. Na mesma linha de entendimento, o juristalusitano José Carlos Vieira de Andrade afirma que “o princípio da dignidade dapessoa humana está na base de todos os direitos constitucionalmente consagrados,quer dos direitos e liberdades tradicionais, quer dos direitos de participação política,quer dos direitos dos trabalhadores e direitos a prestações sociais”47. A idéia básicaque preside ambas as afirmações é a de que os direitos fundamentais alicerçam-seno princípio da dignidade da pessoa humana. Na verdade, como observa IngoWolfgang Sarlet, “a íntima e, por assim dizer, indissociável – embora altamentecomplexa diversificada – vinculação entre a dignidade da pessoa humana e osdireitos fundamentais já constitui, por certo, um dos postulados nos quais se assentao direito constitucional contemporâneo”48. Não obstante o consenso existente em torno da essencialidade do princípioda dignidade da pessoa humana para a construção do arcabouço dos direitoshumanos fundamentais, não há a mesma unanimidade quando se trata de definir oseu conteúdo. Como a própria idéia de dignidade sofre variações a depender docontexto cultural em que é ventilada, qualquer esforço no sentido de dar ao princípioum detalhamento que possibilite seja compreendido com o mesmo alcance pelos46 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 106.47 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Legitimidade da Justiça Constitucional e Princípio da Maioria”. In: Legitimidade eLegitimação da Justiça Constitucional – Colóquio no 10º Aniversário do Tribunal Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora,1995, p. 102. apud BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 111.48 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 4.ed. rev.atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2006. pp. 25/26
diversos povos do mundo parece um empreendimento fadado ao fracasso. Sealgumas condições reclamadas para a afirmação prática do princípio da dignidadelogram um elevado nível de concordância no âmbito das diversas culturas, como porexemplo a asseguração de recursos materiais mínimos para a sobrevivência, outrascondições não desfrutam do mesmo consenso. Por isso, detalhar quais os direitoscuja violação afeta a dignidade essencial do ser humano nem sempre é fácil. Talvezpor isso, os estudiosos prefiram definir o conteúdo do princípio em questão fazendouso de fórmulas genéricas, que são absorvidas com facilidade pelos diferentessistemas políticos existentes no mundo contemporâneo, mas trazem consigo o riscode não contribuírem de modo decisivo para a melhoria das condições de existênciado ser humano. Apesar disso, o princípio da dignidade da pessoa humana representa umavanço no processo civilizatório, pondo em relevo a noção de que o ser humanoestá em constante evolução e de que necessita lhe seja assegurada a possibilidadede desenvolver a sua individualidade de modo pleno (ações, pensamento ecomportamento). Neste sentido é oportuna a lição de Rizatto Nunes, quandopondera: ... nenhum indivíduo é isolado. Ele nasce, cresce e vive no meio social. E aí, nesse contexto, sua dignidade ganha – ou, como veremos, tem mo direito de ganhar – um acréscimo de dignidade. Ele nasce com integridade física e psíquica, mas chega um momento de seu desenvolvimento que seu pensamento tem de ser respeitado, suas ações e seu comportamento – isto é, sua liberdade –, sua imagem, sua intimidade, sua consciência – religiosa, científica, espiritual – etc., tudo compõe sua dignidade”49. Sob tal prisma é que se diz que as condições de existência de uma pessoahumana são dignas quando ela pode desenvolver plenamente o seu potencial comoindivíduo e como integrante de uma comunidade, tendo-lhe assegurada a49 NUNES, Rizatto. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana.Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Saraiva,2002. p. 49.
possibilidade de obtenção dos meios materiais necessários à sua sobrevivência edos bens espirituais (cujo conceito engloba, dentre outros, os bens intelectuais e osreligiosos) necessários ao seu crescimento interior. Não é demais registrar que o princípio da dignidade da pessoa humana temsido consagrado pela maioria das constituições nacionais promulgadas a partir daSegunda Guerra Mundial e pelos documentos internacionais declaratórios de direitoshumanos aprovados pelas Nações Unidas. A sua consagração, num certo sentido,deve muito ao assombro mundial que se seguiu ao término daquela grandeconflagração, quando os horrores nazistas vieram a público em matizes decrueldade inimaginável. De qualquer modo, nunca é demasiado ressaltar que a dignidade humananão constitui apenas uma premissa filosófica dotada do condão de influenciar aconstrução do direito. Mais do que isso, trata-se de um princípio basilar da ordemjurídica constitucional, apresentando-se como um comando jurídico que possui umaposição destacada no nosso ordenamento. Não é sem razão que Ana Paula deBarcellos comenta que [...] a dignidade humana é hoje um axioma jusfilosófico e, além disso, no nosso sistema, um comando jurídico dotado de superioridade hierárquica. A saber: as pessoas devem ter condições dignas de existência, aí incluindo- se a liberdade de desenvolverem-se como indivíduos, a possibilidade de participarem das deliberações coletivas, bem como condições materiais que as livre da indignidade [...] não apenas porque isso é desejável, mas porque a Constituição, centro do sistema jurídico, norma fundamental e superior, assim determina.50” Com efeito, a Constituição Federal de 05 de outubro de 1988 assume adignidade da pessoa humana como fundamento da República no seu artigo 1º,inciso III, in verbis:50 BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit., p. 26-27
A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III – a dignidade da pessoa humana; Interpretando o preceito constitucional em questão, aduz Eros Grau, que“embora assuma concreção como direito individual, a dignidade da pessoa humana,enquanto princípio, constitui, ao lado do direito à vida, o núcleo essencial dosdireitos humanos”51. É bom lembrar que, embora a idéia de dignidade humana tenha sidoinicialmente construída a partir da doutrina cristã de que todos os homens são iguaisperante Deus, com o decorrer dos tempos veio a ganhar foros de autonomia emrelação à concepção teológica, passando a ser afirmada em outras bases, como arazão humana ou a evolução do processo histórico. No entanto, de um modo ou deoutro, o princípio terminou por conquistar uma abrangência que permite a suautilização como sustentáculo de direitos que sequer eram reconhecidos à época emque se começou a atribuir à dignidade humana conteúdo principiológico. Comopontua Jônatas Machado, A idéia de dignidade da pessoa humana apresenta-se hoje imbuída de um conteúdo político-moral que, embora escorado na concepção judaico-cristã do homem criado à imagem e semelhança de Deus – isto é, portador de uma imago Dei e enriquecido com os contributos da teologia católica e protestante, prescinde actualmente de qualquer vínculo confessional específico, sendo inadmissível a sua colocação ao serviço da promoção de uma particular concepção teológica de verdade objectiva ou de bem comum. Também ela sofreu, a partir do iluminismo, um processo de racionalização e secularização que a coloca presentemente num nível de generalidade suficientemente elevado para abarcar as idéias de livre desenvolvimento pessoal e social do ser humano, nas suas dimensões físicas, intelectuais e espirituais, e de garantia de recursos materiais que possibilitem o acesso a um nível mínimo de existência humanamente digna a todos os indivíduos. Assim entendida, a dignidade humana não é “propriedade” da religião em geral ou de uma confissão religiosa em particular52.51 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e crítica). 8. ed. São Paulo: Malheiros,2003. P. 176.52 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. op. cit. p. 193.
No caso da liberdade religiosa, é curioso notar que, malgrado a suafundamentalização tenha se dado antes mesmo que a dignidade humana fossealçada à condição de princípio basilar dos direitos humanos, a ligação entre ambas éde tal modo estreita que há um consenso no direito constitucional contemporâneo deque esta não pode existir onde aquela liberdade inexista ou seja constantementeviolada. No particular, as lições de Manoel Jorge e Silva Neto são esclarecedoras,quando diz: Fácil é concluir acerca da associação existente entre dignidade da pessoa humana e liberdade religiosa, certo que aquele postulado inspira o sistema do direito positivo de uma maneira geral a adotar soluções que aclamem o direito à vida, à incolumidade física (banindo-se a tortura), à intimidade, à vida privada, à imagem e à liberdade, compreendida em sua multifária acepção, inclusive a de contextura religiosa. Algumas perguntas são mais esclarecedoras sobre a ligação entre a dignidade da pessoa humana e a liberdade de religião do que eventuais considerações a fazer-se em torno do tema: Preserva-se a dignidade da pessoa quando o Estado a proíbe de exercer a sua fé religiosa? Reveste-se de alguma dignidade o procedimento através do qual alguns segmentos religiosos investem contra outros, não descartado até o recurso à violência? Sem dúvida, a opção religiosa está tão incorporada ao substrato do ser humano que o seu desrespeito provoca idêntico desacato à dignidade da pessoa53. Observa-se, assim, que se a dignidade da pessoa humana inclui a sualiberdade de se desenvolver plenamente como indivíduo, não apenas no sentidomaterial, mas igualmente no sentido espiritual, quem não tem assegurado o direito àliberdade religiosa encontra-se sob uma situação de ultraje à sua dignidade. A importância de se compreender que a dignidade da pessoa humanatambém se traduz no respeito à sua dimensão espiritual-religiosa reside no fato deque nas eventuais colisões entre o direito à liberdade religiosa e outros direitosfundamentais, não se poderá, simplesmente, adotar a priori uma solução que negueo primeiro, sob o pretexto de que a satisfação das necessidades materiais, por dizerrespeito à própria sobrevivência do ser humano, deve prevalecer sobre a satisfação53 SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso Básico de Direito Constitucional. Tomo II. Princípios Fundamentais – Organização doEstado Brasileiro – Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário – Funções Essenciais à Justiça – Tributação e Orçamento – Riode Janeiro: Editora Lumen Júris, 2005, p. 67
de necessidades espirituais54. Somente a partir do exame de cada caso poder-se-áconcluir pela prevalência do direito à liberdade religiosa ou do outro direitofundamental com o qual entrou em rota de colisão, observando-se concretamentequal dos dois atende melhor ou num nível mais generalizado o princípio dadignidade da pessoa humana.
2. CONTEÚDO DA LIBERDADE RELIGIOSA Já tratamos em breves pinceladas da consagração da liberdade religiosacomo direito fundamental da humanidade e da sua estreita ligação com o princípioda dignidade humana. Cumpre-nos agora considerar o conteúdo desse direito, cujoexame passa pela resposta à seguinte pergunta: de que estamos tratando quandofalamos em liberdade religiosa? Durante nossa investigação, tivemos a curiosidade de indagar a inúmeraspessoas do nosso convívio familiar e profissional, que não possuem formaçãoacadêmico-jurídica, o que elas entendiam por liberdade religiosa. A respostaunânime foi a de que seria a liberdade que cada um tem de escolher a sua própriareligião. Nenhuma das pessoas a quem fiz tal pergunta sequer cogitou que aliberdade religiosa também inclui a liberdade de não ter uma religião. Não surpreende que num contexto cultural como o nosso, cujas origenshistóricas são marcadas pelo monopólio de uma única religião, a Católica ApostólicaRomana, as pessoas vislumbrem na liberdade religiosa muito mais o direito deescolherem uma específica religião dentre tantas encontradiças na sociedade doque, por exemplo, o direito de terem ou não uma religião, também compreendido
naquela liberdade. Contudo, em que pese ao fato de que o entendimento popular arespeito do tema não esteja fundamentalmente em descompasso com a noçãojurídica, é certo que para o direito a liberdade religiosa tem um conteúdo maisabrangente.2.1 Liberdade Religiosa como complexo de direitos A doutrina, tanto brasileira quanto alienígena, é prenhe de definições queevidenciam que a liberdade religiosa não consiste num único direito, mas numamultiplicidade de direitos. Como salienta Milton Ribeiro, “tomada em sua acepçãoampla, ela engloba momentos e situações específicos que a tornam não um direito,mas na verdade um complexo de direitos, todos relacionados à questão da liberdadeem razão da religião” 55. Alguns dos direitos que compõem essa complexidade situam-se na esferaindividual dos cidadãos e outros ultrapassam tais limites, caracterizando-se comodireitos coletivos. No particular, as observações de Juan Navarro Floria merecemregistro, quando afirma que Esta libertad tiene un contenido complejo, que abarca no solamente derechos de esa persona “en soledad”, sino también derechos colectivos, o de los grupos religiosos. En efecto, la libertad religiosa tiene una dimensión eminentemente social, y reclama el reconocimiento de derechos no solamente a los individuos, sino también a las iglesias y comunidades religiosas en las que aquellos viven y practican su fe personal56. No mesmo sentido é a orientação de Celso Ribeiro Bastos, ao assinalar que A liberdade religiosa consiste na livre escolha pelo individuo de sua religião. No entanto, ela não se esgota nesta fé ou crença. Ela demanda uma prática religiosa ou culto como um de seus elementos fundamentais, do que resulta55 RIBEIRO, Milton, op. cit., p. 33.56 NAVARRO FLORIA, Juan G. artigo disponível na Internet La libertad religiosa y el derecho eclesiástico en América del Sur.
também inclusa, na liberdade religiosa, a possibilidade de organização desses mesmos cultos, o que dá lugar às igrejas57. Um destacado exemplo da multiplicidade de direitos que se esconde sob omanto da liberdade religiosa nos é dado pela Declaração sobre a eliminação detodas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nasconvicções, proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas a 25 denovembro de 1981, por meio da Resolução 36/55. Dentre as liberdades ali indicadascomo compreensivas da noção mais ampla da liberdade religiosa, encontramos: a) ade praticar o culto e o de celebrar reuniões sobre a religião ou as convicções, e defundar e manter lugares para esses fins; b) a de fundar e manter instituições debeneficência ou humanitárias adequadas; c) a de confeccionar, adquirir e utilizar emquantidade suficiente os artigos e materiais necessários para os ritos e costumes deuma religião ou convicção; d) a de escrever, publicar e difundir publicaçõespertinentes a essas esferas; e) a de ensinar a religião ou as convicções em lugaresaptos para esses fins; f) a de solicitar e receber contribuições voluntárias financeirase de outro tipo de particulares e instituições; g) a de capacitar, nomear, eleger edesignar por sucessão os dirigentes que correspondam segundo as necessidades enormas de qualquer religião ou convicção; h) a de observar dias de descanso e decomemorar festividades e cerimônias de acordo com os preceitos de uma religião ouconvicção; i) a de estabelecer e manter comunicações com indivíduos ecomunidades sobre questões de religião ou convicções no âmbito nacional ouinternacional58. Jean Morange, a quem também não passa despercebida a amplitude doconteúdo jurídico da liberdade religiosa, enfatiza, também, o fato de que tal liberdade57 BASTOS, Celso Ribeiro & MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de1988, vol 2, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 48.58 Texto completo extraído do site http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/discrimina/religiao.htm, acessado em 12 de julho de2006.
40apresenta um aspecto individual e um aspecto coletivo que são indissociáveis, aoensinar: A liberdade religiosa é uma ilustração muito boa do caráter indissociável das liberdades. Ela apresenta um aspecto individual (liberdade de consciência), mas não se concebe como realidade social, sem um aspecto coletivo. Ela implica a liberdade de reunião (para orar ou celebrar o culto), de manifestação (cortejos e procissões), mas também de associação: uma igreja é, de certo modo, uma associação, da mesma forma que uma congregação ou um agrupamento de fiéis que fixe um objetivo “ativo” ou “contemplativo”. Mas a liberdade religiosa supõe também o uso, como meio, da liberdade de imprensa (mesmo que fosse, em primeiro lugar, apenas para imprimir e difundir livros santos, mas também imprimir jornais e revistas...), da comunicação audiovisual (rádios e emissões de televisão), da liberdade de ensino (no âmbito do ensino privado ou do ensino público com as capelanias...). Alguns regimes autoritários têm a tendência de querer reduzir a liberdade religiosa a um simples assunto pessoal, ou à necessidade da liberdade de celebrar o culto. Vê-se que se trata aqui de uma mutilação evidente59. A observação do renomado professor francês é extremamente oportuna, seconsiderarmos que o objetivo pretendido por este trabalho é uma reflexão sobre aliberdade de organização religiosa, que se insere de modo mais marcante nadimensão coletiva da liberdade de religião.2.2 As três formas básicas de expressão da liberdade religiosa Muito elucidativa para a compreensão do conteúdo da liberdade religiosa é asíntese formulada por José Afonso da Silva, para quem tal liberdade “compreendetrês formas de expressão (três liberdades): (a) a liberdade de crença; (b) a liberdadede culto; (c) a liberdade de organização religiosa”60. Com efeito, as variadasliberdades inseridas na noção ampla da liberdade religiosa encaixilham-se comalguma facilidade em qualquer dessas três categorias61. Por sua funcionalidade, não59 MORANGE, Jean. Direitos Humanos e Liberdades Públicas / tradução Eveline Bouteiller. – Barueri, SP: Manole, 2004. p.262.60 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 241.61 Autores há que acrescentam uma quarta dimensão à liberdade religiosa: a liberdade de comunicação das idéias religiosas(cf. Sergio Gardenghi Suiama, in “Limites ao exercício da liberdade religiosa nos meios de Comunicação de Massa”, artigoencontrado no endereço eletrônico www.pgr.mpf.gov.br/pgr/pfdc/informativos/2005/018/Anexo4_Informativo%20%20018.PDF.
41temos o menor receio de adotar no nosso trabalho tal classificação, que reclamaalguns breves comentários, a fim de que fique bem firmada a distinção entre as trêsformas de expressão da liberdade religiosa a que alude o citado publicista. Tratando sobre a primeira forma de expressão da liberdade religiosa, diz JoséAfonso da Silva, que Na liberdade de crença entra a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo.62 Em suma, a liberdade de crença compreende a liberdade de eleger a religiãoque se deseje seguir, a liberdade para adotar qualquer culto religioso, a liberdadepara deixar uma religião e ingressar noutra e, ainda, a liberdade de não ter religiãoalguma, optando pelo ateísmo ou agnosticismo. Não se restringe, porém, à esferaíntima do indivíduo, pois como observa Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a liberdadede crença “se extroverte, se manifesta na medida em que os indivíduos, segundosuas crenças, agem deste ou daquele modo, na medida em que, por uma inclinaçãonatural, tendem a expor seu pensamento aos outros e, mais, a ganhá-los para suasidéias”63. Quanto à liberdade de culto, registra Manolo Del Olmo que ela “compreende ade expressar-se em casa ou em público quanto às tradições religiosas, os ritos, oscerimoniais e todas as manifestações que integrem a doutrina da religiãoescolhida”.64Todavia, é possível situá-la na liberdade de crença, que não se restringe apenas à esfera íntima do individuo mas também àexteriorização do pensamento religioso.62 Op. cit, p. 242.63 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso..., p. 256.64 OLMO, Manolo Del. O direito à liberdade religiosa e o feriado de 12 de outubro. Jus Vigilantibus, Vitória, 31 dez. 2002.Disponível em: <http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/1015>. Acesso em: 18 ago. 2006
42 A liberdade de culto, como se vê, tanto se apresenta como liberdadeindividual quanto como liberdade coletiva, haja vista que o fenômeno religiosocomporta atos de devoção cúltica que são praticados pelo indivíduo solitariamente eatos de culto praticados pelo indivíduo em conjunto com outras pessoas.Observando-se sob o prisma da possibilidade de participação de terceiros estranhosao grupo religioso, o culto coletivo não é sinônimo de público, assim como o cultoindividual não é sinônimo de privado. O culto individual pode ser praticadopublicamente, quando um único indivíduo exercita sua devoção à vista de outraspessoas, assim como o culto coletivo pode ser praticado de modo privado, quando acoletividade religiosa realiza os seus atos litúrgicos sem permitir a presença depessoas estranhas ao próprio grupo. De qualquer forma, o direito à liberdade deculto alcança tais situações, ora traduzindo-se num direito individual, ora traduzindo-se num direito do grupo religioso. A liberdade de organização religiosa, por constituir o objeto principal dapresente pesquisa, será tratada de uma forma mais aprofundada a seguir. Bastadizer neste instante que ela se apresenta de modo mais marcante como um direito –ou, com maior rigor, como um complexo de direitos – dos grupos religiososorganizados. Todavia, também inclui alguns direitos individuais e difusos. O que reclama seja repisado é que a liberdade religiosa apenas existeplenamente quando estão associadas as suas três formas básicas de expressão:liberdade de crença, liberdade de culto e liberdade de organização religiosa. Essasformas de expressão, por sua vez, abrangem uma multiplicidade de direitos, algunsindividuais e outros coletivos (incluindo-se até mesmo direitos difusos).
43 A importância de se ter em mente a complexidade dos direitos que se achamabrigados no espectro da liberdade religiosa para a viabilidade de seu amploexercício é muito bem percebida por Milton Ribeiro, ao acentuar que: Visualizar a liberdade religiosa desse modo, como um complexo de direitos e não como um direito cuja tipologia factual seja única, permite desvendar a abrangência do conceito em determinados momentos históricos e em determinadas situações. Assim tratando, a mera declaração do direito à liberdade religiosa não irá representar muito, caso não se destrinche o conceito nas liberdades específicas que o compõem.6565 Ribeiro, Milton. Op. cit., p. 34.
44 3. ESTADO LAICO E LIBERDADE RELIGIOSA Quando tratamos da liberdade de organização religiosa, uma discussãopreliminar absolutamente necessária é a que diz respeito à separação entre oEstado e os grupos religiosos. O tema desperta muitas controvérsias, a começarpela distinção que os estudiosos europeus fazem entre laicidade e laicismo. 3.1 Laicidade, laicismo e aconfessionalidade Uma significativa parcela da doutrina européia costuma reservar a expressão“laicidade” para designar uma atitude de neutralidade benevolente por parte doEstado, ou seja, uma não intervenção do Poder Público no domínio da religiãofundamentada no respeito ao fenômeno religioso. Neste caso, a abstenção doEstado tenderia a favorecer à expressão da religiosidade, seja por considerá-la umafonte de virtude e responsabilidade cívica, seja por entendê-la útil à integraçãosocial. A expressão “laicismo”, por seu turno, designaria uma ideologia marcada peloindiferentismo ou – quando não – por uma aberta hostilidade à religião, visando aenclausurá-la dentro do mundo da consciência e reduzi-la a um assunto de foroíntimo. Neste caso, o Estado não apenas se absteria de intervir no domínio religioso,mas adotaria atitudes tendentes a afastar qualquer influência religiosa do espaçopolítico.
45 A controvérsia criada em torno das expressões laicidade e laicismo tem raízeshistóricas que remontam à resistência dos católicos à ideologia anti-religiosa quepermeou a filosofia política do século XIX. Como explica o jurista espanhol CarlosCorral Salvador, En su origen etimológico, laicidad proviene de la palabra griega “laós” que significa “pueblo”. [Y así es cómo, en el Nuevo Testamento, S. Pedro llama precisamente al pueblo cristiano “laós”]. De donde deriva el adjetivo “laikós”. Expresión esta, por cierto, que nació ya en las primeras comunidades cristianas para designar a los fieles en cuanto distintos del “cleros” (e.d. de los miembros del sacerdocio). Con el tiempo, se pasa de la distinción a la oposición en los siglos XIV/XV que tiende a elevar al laico al nivel del clero, queriendo controlar directamente al clero en lo espiritual desde dentro de la Iglesia. Y más adelante se llega a un momento en que el poder temporal, en oposición a la Iglesia, reivindica para sí todas las atribuciones que esta ejerce en la vida social. Se avanza así hasta negar toda intervención no sólo de las iglesias sino también de la religión en la vida social, dando nacimiento al laicismo del siglo XIX. Con ello, laico asume el significado de abiertamente anticatólico y aun antirreligioso. Pero en siglo XX se inicia una revisión a fondo del concepto y significado del laico en el interior de la Iglesia, a través de la “Teología del laicado” y del “Sacerdocio real de los fieles”, al estudiarse en profundidad lo constitutivo interno de la Iglesia. A la par se investiga la posición y acción del laico en lo político ante la Iglesia. Será “la actualidad del tema “laicidad” del Estado que más o menos “afirma su voluntad de rechazar toda colaboración con el clero y de mantenerse separado de toda confesión religiosa”, pero que ya no es lucha antirreligiosa, sino de revisión de lo constitutivo externo de la iglesia. En 1925 la palabra laicidad comienza a perder su sentido laicista y empieza a hablarse de laicismo y laicidad como de acepciones distintas, reservando la palabra laicismo a una doctrina y posición política antirreligiosa. Al año siguiente, comienza a cobrar dos sentidos, de los que uno indica simplemente “l‟Etat laique”, c‟est-a-dire, non confessionel, une situation etablie par les lois et qu‟ont peut accepter aussi en fait, sans comprometer ses principies religieuses”. Hasta que ya puede sostenerse como una aceptación de hecho. Finalmente en 1945, como indicábamos, la Conferencia de obispos franceses aceptará de lleno la palabra laicidad como pudiendo encerrar dos significados correctos. Hasta llegará a constituirse como doctrina y programa de la tesis de la libertad del acto de fe por medio de Vialatoux y Latreille, [“Cristianismo y laicidad”, en Documentos 4 (1950) 46]. Se debe notar con Maritain, Murray, Nell- Breuning y Messineo que no es lo mismo “laico que laicizante”, “secular que secularizado”, “laicisme que laïcité”; “seculier et secularisé que laiciste”, “laicizing, secularist, laicized”. Tan es así que F.Rossi llega a exclamar en el Osservatore Romano (28 VIII 1946, 1): “Stato laico, sí; stato laicista, no”. Como expondrá lúcidamente Vialatoux y Latreille: “el Estado laico tiene conciencia de estar enteramente al servicio de la libertad del espíritu humano [...] No le corresponde hacer de los ciudadanos fieles de tal o cual religión; pero sí le corresponde procurar a todo hombre condiciones de desarrollo, de ciencia y de libertad proponerse, con toda claridad, el problema religioso66”.66 SALVADOR, Carlos Corral. Laicidad, aconfesionalidad, separación ¿son lo mismo? UNISCI DISCUSSION PAPERS Octubre2004. artigo disponível em http://www.ucm.es/info/unisci/Corral8.pdf acesso 24 nov. 2005
46 Em que pese à sua importância histórica, a celeuma em torno dasnomenclaturas laicidade e laicismo, até onde podemos enxergar, carece naatualidade de um maior sentido prático. Historicamente apresentou-se como umareação dos canonistas europeus, notadamente franceses e espanhóis, ao processode distanciamento entre o poder político e a Igreja Católica. Neste caso, pretendiammostrar as virtudes de um modelo de aconfessionalidade estatal que não seafastasse em demasia do fato religioso. Ultrapassado o momento histórico em questão, não vislumbramos razãoalguma para que se faça a diferenciação entre as expressões laicidade ou laicismocom base na idéia de que a primeira referir-se-ia a uma atitude de hostilidade ouindiferença em face do fenômeno religioso, enquanto a segunda referir-se-ia a umaneutralidade benevolente. Melhor distingui-las com base em critérios semânticos:laicismo expressa o sistema jurídico-político no qual o Estado e as organizaçõesreligiosas não sofrem interferências recíprocas no que diz respeito ao atendimentode suas finalidades institucionais; laicidade, por seu turno, seria simplesmente aqualidade de laico, o caráter de neutralidade religiosa do Estado. Poder-se-ia dizer,assim, que o laicismo é o sistema caracterizado pela laicidade. Uma outra palavra muito utilizada para definir o caráter de neutralidadereligiosa estatal é o termo aconfessionalidade. Rigorosamente indica apenas quenuma dada comunidade política não há, ou deixou de existir, uma religião de Estado.No entanto, o termo tem sido utilizado, sem qualquer prejuízo, como sinônimo delaicidade. Sendo assim, Estado laico é o Estado aconfessional.
473.2 Modelos de laicidade estatal Discussões terminológicas à parte, o que nos parece nítido é que,ressalvados os direitos nacionais que adotem oficialmente uma ideologia anti-religiosa, há, como se verá a seguir, dois modelos básicos de laicismo estatal. O primeiro modelo de Estado laico é o que promove uma separação tendentea confinar a religião ao foro íntimo das pessoas, afastando-a do espaço público. Esteé, aparentemente, o modelo que vem sendo adotado nos países mais secularizados.É o caso, por exemplo, da França, onde a religião tem sido gradualmente expulsa doespaço público, a ponto de o Parlamento francês ter recentemente aprovado uma lei(Lei n° 2004-228, de 15 de março de 2004) que proíbe aos alunos das instituiçõespúblicas de ensino a utilização de símbolos e vestimentas que representem umamanifestação ostensiva de sua identidade religiosa67. O segundo modelo de Estado laico é o que, vendo no fenômeno religioso umimportante elemento de integração social, não busca afastá-lo por completo doespaço político. Ao contrário, até incentiva as expressões de religiosidade no espaçopúblico, chancelando-as de diversos modos, como, por exemplo, favorecendo oestabelecimento de capelanias religiosas em corporações estatais. Entre um modelo e outro, é claro, há diversas gradações, considerando-se aspeculiaridades de cada ordenamento jurídico nacional e a tradição de cada povo. Aelasticidade do cordão de isolamento que se interpõe entre o poder público e areligião varia, assim, de Estado a Estado. Certamente há circunstâncias históricasespecíficas que explicam o porquê da prevalência num dado sistema jurídico de umaconcepção mais próxima deste ou daquele modelo, circunstâncias estas que estão67 Article 1: Il est inséré, dans le code de l'éducation, après l'article L. 141-5, un article L. 141-5-1 ainsi rédigé: « Art. L. 141-5-1.- Dans les écoles, les collèges et les lycées publics, le port de signes ou tenues par lesquels les élèves manifestentostensiblement une appartenance religieuse est interdit. Le règlement intérieur rappelle que la mise en oeuvre d'une procéduredisciplinaire est précédée d'un dialogue avec l'élève.
48ligadas ao desenrolar do processo de secularização vivenciado por cadasociedade68. Ora, a secularização – entendida como o processo pelo qual a sociedade seafastou do controle da Igreja, de forma que a ciência, a educação, a arte e a políticaficaram livres da conformidade com o dogma teológico e as hierarquiaseclesiásticas69 – conquanto constitua um fenômeno que alcança todo o mundoocidental, apresenta-se de forma diferente nos diversos Estados, por razõesdiversas, dentre as quais se inclui até mesmo a concepção teológica sustentadapela religião majoritária. O processo de secularização em países de tradição católicanão se dá na mesma velocidade que em países de tradição calvinista, por exemplo.Do mesmo modo, quando a comparação é entre países tradicionalmente cristãos epaíses tradicionalmente budistas ou muçulmanos. Merece registro, inclusive, que, a despeito do combate que muitos religiososlhe têm movido, o processo de secularização não deve ser visto como algonecessariamente hostil à manifestação do fenômeno religioso. Tanto isso é verdadeque a separação entre o Estado e a Igreja, longe de arrefecer o ânimo religioso,muitas vezes o fortalece, na medida em que incentiva o proselitismo, seja dasreligiões minoritárias, pela abertura de um espaço que até então lhes era negado,seja da organização religiosa hegemônica, que, órfã das regalias do poder, passa adinamizar os seus esforços na tentativa de evitar ou minimizar a perda de influênciano tecido social. A circunstância de que o processo de secularização não implicanecessariamente esvaziamento da fé foi bem percebida por Hanna Arendt, aoassinalar que68 Sobre secularização, Cf. MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização. As categorias do tempo, São Paulo: Ed. UNESP,1995, e, do mesmo autor: Céu e Terra: genealogia da secularização / tradução Guilherme Alberto Gómez de Andrade. SãoPaulo: Fundação Editora da Unesp, 1997 (Ariadne).69 A definição é de SWOMLY, John M. apud MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes, op. cit. p. 93
49 [...] como evento histórico tangível, a secularização significa apenas a separação entre Igreja e Estado, entre religião e política; e isto, do ponto de vista religioso, implica em retorno à antiga atitude cristã de dar “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, e não uma perda de fé e transcendência ou um novo e enfático interesse nas coisas deste mundo70. Assumindo tal perspectiva, não parece crível que a secularização representeum declínio do fenômeno religioso. Ao contrário, a história recente demonstra omalogro de tal afirmação. Até em países considerados extremamente secularizados,o fenômeno religioso tem mostrado muito vigor. Mesmo onde as religiõestradicionais perderam terreno, como na França, é flagrante uma onda pelo oculto,com a proliferação de inúmeras seitas religiosas ideologicamente distanciadas domodelo judaico-cristão. Um outro aspecto importante nesta consideração diz respeito à motivaçãoprincipal da separação entre o Estado e as organizações religiosas, questãolevantada por Huston Smith quando diz: [...] as opiniões variam quanto ao que a doutrina constitucional da separação entre Igreja e Estado tem como intenção primeira. A intenção é proteger as Igrejas da interferência governamental ou proteger a política de grupos de pressão religiosos?71 Ora, não nos parece desarrazoado que, embora o princípio da separação sejacapaz de atender a ambos os interesses, dependendo das peculiaridades históricasde cada país que o adotou, tenha havido historicamente a precedência de umaintenção sobre a outra. Nos Estados Unidos, por exemplo, vê-se claramente que aintenção primeira dos constitucionalistas foi a de proteger as igrejas da interferênciagovernamental, sobretudo para garantir proteção ao pluralismo religioso que marcoua história norte-americana desde os seus primórdios. Já na França, a intençãoprimeira – claramente perceptível na Declaração de Direitos do Homem e do70 ARENDT, Hannah. A Condição Humana; tradução de Roberto Raposo, Posfácio de Celso Lafer – 10. ed. – Rio de Janeiro:Forense Universitária, 2001, p. 265.71 SMITH, Huston. Por que a religião é Importante: o destino do espírito humano num tempo de Descrença. Tradução EuclidesL. Calloni. Cleusa M. Wosgrau. São Paulo: Editora Cultrix, 2001, p. 101
50Cidadão, de 1789 – foi a de proteger o Estado da interferência religiosa72. Sempretender superestimar tal dado, é plausível que os modelos de Estado laico que sedesenvolvem em ambos os países guardem alguma relação com a intenção inicialque determinou a adoção por cada ordenamento constitucional do princípio daseparação entre Estado e confissões religiosas. A par disso, há também outro aspecto a ser considerado. Em muitos paises,os movimentos sociais e políticos que levaram ao estabelecimento do princípio deseparação entre a Igreja e o Estado, também agasalhavam representantes dasconfissões religiosas minoritárias, ora perseguidas, ora apenas toleradas pelo poderpúblico. As confissões religiosas, a cujos integrantes não era conferida a plenitudedos direitos – não podiam, por exemplo, ser funcionários públicos – também semobilizaram na luta pelo estabelecimento de um Estado laico, vendo aí a soluçãopara que lhes fosse assegurada a cidadania plena. Se isso é verdade, não se podedizer que necessariamente o processo de secularização levou à adoção do princípioda separação entre o Estado e as organizações religiosas. Muitas vezes, a adoçãodo princípio da separação resultou muito mais do interesse dos próprios gruposreligiosos, receosos de que a organização política privilegiasse um determinadogrupo em detrimento dos outros ou, pelo menos, de que esta adotasse uma posturainvasiva em relação ao domínio religioso. Por isso, na evolução histórica de algunspaíses o princípio da separação pode não ter representado um efeito imediato doprocesso de secularização e, ao invés disso, ter até contribuído para a aceleraçãodeste processo.72 Diz-nos Jellinek (op. cit., p. 105) que, ao contrário da Declaração da Virgínia, de 1776, e de outras Declarações americanas,que consagram a liberdade religiosa, a Declaração Francesa de 1789 proclama apenas a tolerância: “[...] en un punto esencial,la Declaración francesa se queda detrás de las americanas. Sólo de un modo tímido y disimulado se atreve el artículo 10 atocar lo de la manifestación de las opiniones en materia religiosa: como la Constituyente quería contemporizar con lossentimientos de sus miembros eclesiásticos y de la gran masa del pueblo, no se aventura a proclamar la libertad religiosa, sinoúnicamente la tolerancia”. Tal circunstância é também lembrada por André Ramos Tavares (op. cit. p. 399).
51 O que impende frisar, no entanto, é que o princípio da separação é uma viade mão dupla: tanto serve para afastar a intervenção estatal na esfera religiosaquanto para afastar a interferência religiosa da esfera estatal. Assim é que importaseja compreendido.3.3 A construção da laicidade do Estado brasileiro Como o presente trabalho visa precipuamente à investigação da liberdade deorganização religiosa dentro do ordenamento jurídico pátrio, não é excessivo aqui,posto que com brevidade, mostrar como se deu historicamente a passagem doEstado brasileiro de um Estado confessional para um Estado laico. Tal informaçãohistórica lança algumas luzes à compreensão do modelo de laicidade adotado pornosso ordenamento jurídico. A Constituição Imperial de 1824, instituía no artigo 5, a Religião CatólicaApostólica Romana como a Religião do Estado73. As outras Religiões erampermitidas com seu culto doméstico, ou particular, em casas para isso destinadas,que não tivessem forma exterior de templo. No período monárquico, como nos informa Aldir Guedes Soriano, um dosprimeiros a reconhecer a utilidade da separação entre a Igreja e o Estado foiMelasporos, pseudônimo utilizado pelo advogado, jornalista e político alagoanoTavares Bastos, que já em 1866 escrevia o panfleto “Exposição dos verdadeirosmotivos sobre que se baseia a liberdade religiosa e a separação entre a Igreja e oEstado”, onde se lê que “a separação completa da Igreja do Estado, aindependência absoluta do poder religioso, na economia, governo e direcção dos73 Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serãopermitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.
52cultos, é o único meio de tornar satisfatórias as relações dos poderes civis eeclesiásticos”74. Outros intelectuais e políticos se somaram à luta pelo estabelecimento de umEstado laico, dos quais se sobressai o jurista baiano Rui Barbosa, que desde 1876passou a escrever e pregar contra o consórcio da Igreja com o Estado. Todavia,durante todo o período monárquico o Estado e a Igreja Católica mantiveram-seunidos, recebendo esta subvenções e privilégios do poder público. Como, em geral, os republicanos sempre foram favoráveis à separação,mesmo porque a luta contra a monarquia naquele momento histórico fazia-se emcerto sentido também contra a religião do Estado que, em última análise, legitimavao poder imperial, uma das primeiras medidas do governo provisório republicano foiextinguir o padroado. Com efeito, em 07 de janeiro de 1890, menos de dois mesesapós a Proclamação da República, o governo provisório chefiado pelo MarechalDeodoro da Fonseca baixou o Decreto n. 119-A, redigido por Rui Barbosa, queextinguiu o padroado, proibiu a intervenção da autoridade federal e dos estadosfederados em matéria religiosa e consagrou a plena liberdade de culto. O decretofoi acolhido pela Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24de fevereiro de 1891, que estabelecia no art. 11, ser vedado aos Estados, como àUnião, estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos. De lá para cá o princípio da separação tem-se mantido em todas asconstituições federais, sempre resguardando a colaboração em prol do interessepúblico, à exceção da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 denovembro de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, que, embora tenha adotado oprincípio da separação, não se refere expressamente à colaboração em prol do74 MELASPOROS, apud Soriano, Aldir Guedes. Op. cit. P. 78
53interesse coletivo75, como fizeram as demais constituições republicanas que seseguiram à promulgada em 1891, inclusive a atual. Vê-se, na nossa história constitucional, uma tradição de aconfessionalidadeestatal que remonta aos primórdios da República e que, na sua intenção primária,visava muito mais a proteger o Estado da interferência da Igreja Católica quepropriamente assegurar proteção às organizações religiosas da interferênciagovernamental. Não há dúvidas, porém, que as minorias religiosas foramgrandemente beneficiadas com a extinção do padroado. Tanto isso é verdade que,após mais de cem anos de República, as religiões não-católicas somam napopulação brasileira quase 19% de adeptos, destacando-se os evangélicos que, nocenso de 2000, contavam com mais de 15%76. Mesmo que num primeiro instante apreocupação maior dos republicanos não fosse a de expandir os direitos dasminorias religiosas, este resultado também foi obtido com a extinção do padroado.3.4 O modelo de laicidade do Estado brasileiro Como o presente trabalho de pesquisa insere-se na província da dogmáticajurídica e mais precisamente da dogmática jurídica brasileira, importa-nos saber qualo modelo de aconfessionalidade estatal o nosso sistema constitucional adota, se ummodelo mais aberto para a manifestação religiosa inclusive no espaço público, se75 Constituição de 1891: Art 11 - É vedado aos Estados, como à União: 2 º) estabelecer, subvencionar ou embaraçar oexercício de cultos religiosos; Constituição de 1934: Art 17 - É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aosMunicípios: II - estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; III - ter relação de aliança oudependência com qualquer culto, ou igreja sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo; Art 32 - Évedado à União, aos Estados e aos Municípios: b) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos;Constituição de 1946: Art 31 - A União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado: cultos religiosos, ouembaraçar-lhes o exercício; III - ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou igreja, sem prejuízo dacolaboração recíproca em prol do interesse coletivo; Constituição de 1967: Art 9º - A União, aos Estados, ao Distrito Federale aos Municípios é vedado: II - estabelecer cultos religiosos ou igrejas; subvencioná-los; embaraçar-lhes o exercício; ou mantercom eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada a colaboração de Interesse público,notadamente nos setores educacional, assistencial e hospitalar76 No censo de 2000, 73,6% declararam-se católicos; 15,4% evangélicos; 1,3% espíritas; 0,3% umbanda e candomblé; 1.8%outras religiosidades; 7,4% sem religião. Fonte: IBGE, Censo demográfico 2000.
54um modelo mais fechado. Não nos parece que seja uma tarefa árdua descobri-lo.Uma boa pista é fornecida pela leitura do preâmbulo da Constituição de 1988: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.77 Quando os constituintes invocam a proteção de Deus, deixam claro quenossa ordem jurídica constitucional não adota uma separação extremada entreEstado e Religião, da espécie a que os doutrinadores europeus denominariam de“laicismo”. Ainda que não pretendamos atribuir um conteúdo principiológico aopreâmbulo da Carta Magna, a invocação da proteção divina não é destituída designificado. Tanto isso é verdade que a sua inclusão no texto constitucionalprovocou acaloradas discussões e polêmicas durante os trabalhos da AssembléiaConstituinte. Com efeito, a referência a Deus está a revelar que o Estado brasileirotem em relação ao transcendente uma atitude de respeito e valorização. Isso vaificar muito claro a partir da leitura de diversos preceitos constitucionais78, alguns dosquais serão examinados em outro tópico deste trabalho, que evidenciam àsaciedade que o nosso ordenamento adotou uma neutralidade benevolente,tendente a obsequiar o fenômeno religioso e não a expurgá-lo por completo doespaço público. Tal constatação não escapa à acuidade intelectual de ManoelGonçalves Ferreira Filho, que assim se pronuncia:77 Grifamos.78 Por exemplo, Art. 150: Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, aoDistrito Federal e aos Municípios: [...] VI - instituir impostos sobre: [...] b) templos de qualquer culto;
55 Esta Constituição segue em princípio o modelo de separação, mas a neutralidade que configura é uma “neutralidade” benevolente, simpática à religião e às igrejas. É o que decorre das normas adiante assinaladas: 3.4.1 A Constituição não é atéia. Invoca no Preâmbulo o nome de Deus (o que já fazia a Constituição de 1934), pedindo-lhe a proteção. 3.4.2 Aceita como absoluta a liberdade de crença (art. 5º, VI). 3.4.3 Consagra a separação entre Igreja e Estado (art. 19,I). 3.4.4 Admite, porém, a “colaboração de interesse público” (art. 19, I, in fine). 3.4.5 Permite a “escusa de consciência”, aceitando que brasileiro se recuse, por motivos de crença, a cumprir obrigação a todos imposta (art. 5º., VIII), desde que aceite obrigação alternativa. (Caso não o faça, ocorrerá a perda dos direitos políticos – arts. 5º. VIII, e 15, IV.) 3.4.6 Assegura a liberdade de culto (art. 5º., VI) (subentendida a limitação em razão da ordem pública). 3.4.7 Garante a “proteção dos locais de culto e das liturgias”, mas na forma da lei”. 3.4.8 Favorece as igrejas, assegurando-lhes imunidade quanto a impostos incidentes sobre seus “templos” (art. 150, VI, b). Entretanto, como explica o art. 150, § 4º., esta imunidade abrange “o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as (suas) finalidades essenciais”79. É bom assinalar que, embora a aconfessionalidade estatal seja umacaracterística comum a todas as constituições republicanas, houve desde a primeiraConstituição promulgada em 24 de fevereiro de 1891 até a Constituição atual,promulgada em 05 de outubro de 1988, algumas alterações significativas no que serefere ao modelo de separação. Aqui no Brasil o tratamento da questão da laicidadeestatal em nível constitucional está aparentemente na contramão da tendência quetem sido registrada na Europa de um distanciamento cada vez maior entre aorganização política e as organizações religiosas. Não se vislumbra na primeira Constituição da República um modelo deseparação tão benevolente em relação às organizações religiosas quanto o adotadopela atual Constituição Federal. Comparando-se ambos os modelos, é fácil perceberque o assumido pela Constituição de 1891 não demonstra igual simpatia pelofenômeno religioso, como se vê no quadro comparativo a seguir:79 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Religião, Estado e Direito. Revista Direito Mackenzie, Ano 3, Número 2 – P. 89
56A Constituição de 1988 A Constituição de 1891Invoca a proteção de Deus no Não aludia ao nome de Deus emseu Preâmbulo momento algumAdmite a “escusa deconsciência” ao brasileiro que se Determinava a perda dos direitos políticos dos que alegassemrecuse, por motivos de crença, acumprir obrigação a todos motivo de crença religiosa com oimposta (art. 5º., VIII), somente fim de se isentarem de qualquerestabelecendo a perda dos ônus que as leis da República impusessem aos cidadãos (art.direitos políticos aos que se não 72, § 29), sem admitir a “escusaaceitem cumprir obrigação de consciência”alternativa Rejeitava peremptoriamenteNo próprio preceito que quaisquer relações deestabelece o princípio daseparação entre Igreja e Estado dependência ou aliança entre o(art. 19, I), admite, comoexceção ao princípio, a estado e as organizações“colaboração de interessepúblico” religiosas (art. 72, § 7º), nãoDispõe que o ensino religioso, de prevendo a “colaboração dematrícula facultativa, constituirá interesse público”.disciplina dos horários normais Previa que seria leigo o ensinodas escolas públicas de ensinofundamental (art. 210, § 1º.) ministrado nos estabelecimentos públicos (art. 72 - § 6º), não abrindo exceção para o ensino religioso.Estabelece imunidade tributária Não previa qualquer espécie dequanto aos impostos incidentessobre os templos religiosos imunidade tributária em favorAtribui ao casamento religioso oefeito civil (art. 226, § 2º) das organizações religiosas Somente reconhecia o casamento civil (art. 72, § 4º) Cumpre realçar, neste instante, que a compreensão de que o modelo deaconfessionalidade adotado atualmente pelo Estado brasileiro é do tipo tendente aofavorecimento da expressão religiosa é muito importante quando da interpretaçãodos preceitos legais do nosso ordenamento jurídico que se inserem na temática daliberdade de organização religiosa. Isso porque evita que o intérprete do direitoincorra no equívoco de, na aplicação do nosso direito, recorrer a conceitoshermenêuticos importados de países que adotam um modelo que pretende confinara religião ao foro íntimo dos indivíduos, ante sua flagrante incompatibilidade com oordenamento constitucional brasileiro. Em suma: a aconfessionalidade do Estado brasileiro, proclamada desde ainstauração da República, na forma como é adotada pela atual Constituição Federal,longe de significar uma diminuição do espaço conferido ao fenômeno religioso,presta-se até a ampliá-lo e, sendo assim, a interpretação dos dispositivos
57constitucionais e infraconstitucionais que tratam da questão da liberdade religiosanão pode ignorar esse viés hermenêutico. É verdade que, no plano filosófico, abre-se a possibilidade de discutir a justezado modelo adotado e se ele representa o que há de mais avançado ou retrógrado navivência doméstica. É mera questão de opinião. O que não se pode conceber é que ointérprete do direito, em nome de posições filosóficas pessoais ou pelo mero desejode imitar as soluções doutrinárias e jurisprudenciais adotadas em países cujo modelode laicidade seja diferente, despreze o modelo que representa uma opção clara doconstituinte brasileiro.
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