A ressurreição de Aya Em um sobressalto, seus olhos abrem-se para a luz. É forte e branca. Suas pupilas demoram a acostumar-se a claridade. Está sentada. Seu corpo pesa uma tonelada. Parece estar envolta por um cobertor de chumbo. Não sente dor. Apenas o peso. Ainda está em seu carro, o contato do acolchoado do banco em suas costas. Não há para-brisa. Cacos de vidro espalham-se pelo carpete. Há uma poça de sangue em seus pés. Ela não está sangrando. Tenta mover um dos braços. O ergue sem dificuldades, embora a pele esteja arranhada. Desprende-se do cinto de segurança. A melodia da música ainda a envolve. Há um cheiro forte de café. Corre os olhos pelo cenário. Seu carro está parado na rua do restaurante, a esquina de seu apartamento. Não é onde ela se lembra estar. As lembranças vão e voltam. Ela sabe que dirigia. Sabe que sofreu um acidente. Se lembra do vermelho. E do barulho. Seus ouvidos apitam. Ela puxa pela memória. Recorda-se de Valentin, dele vindo a buscar. De um abraço quente e um beijo na testa. Se lembra de se deixar adormecer. Das luzes apagando- se, tornando-se pontos coloridos até desaparecem, as ruas de Paris desfocando-se, diluindo-se, e o nada. A ausência de qualquer coisa quando finalmente seu coração para de bater. Está morta. Aya sabe que está. Sente-se morta. Se pergunta se foi para o inferno. Leu sobre isso uma vez, deitada nas pernas de Valentin, no gramado da casa de campo de seus pais na Normandia. O inferno que se apresenta como sua pior lembrança, seu maior tormento em vida, repetindo-se eternamente, sem que possa se fazer nada para impedir. Ela vê o toldo, vermelho e branco, as mesas, o poste. Sente aquele cheiro forte da água e dos grãos fervendo, quase consegue sentir o açúcar das rosquinhas. Está há dois metros do lugar onde ele morreu. Se pergunta se verá a cena acontecer uma e outra vez, seu castigo. Se pergunta por qual pecado será punida. Se lembra de negar a Deus na entrevista que concedeu aquele jovem rapaz na última semana. Sente-se angustiada. Espera pelo segundo em que aquele maldito caminhão descerá a rua, atravessará a porta do restaurante, atropelará as mesas e ela verá
Valentin deixa-la. Fecha os olhos. Não pode vê-lo morrer outra vez. Seus lábios sussurram uma oração. — Você não é religiosa. Aya sente o coração congelar. Não ouve a voz dele há mais 600 dias. Ela contou as horas. É rouca, melodiosa. Uma sinfonia em sotaque francês. Não quer abrir os olhos. Não quer vê-lo outra vez, para perde-lo em seguida. Consegue sentir a presença dele como um ímã. Escuta sua respiração. Sabe que ele está ao seu lado. Não pode abrir os olhos. — Está tudo bem, Aya. Não vou embora. Sente vontade de chorar. A angústia de ouvi-lo aperta seu peito, esmagando-o como vidro. Quer desaparecer. Fugir para longe. Valentin recita promessas vazias com sua voz melodiosa. Ela está morta, ele também. Lembra de ouvir sua mãe dizer que a ideia de se reencontrar após a morte não era nada além de uma desculpa de filmes clássicos para sarar a dor da perda. A bíblia dizia, segundo ela, que após a morte, não mais nos reconheceremos. Toda nossa existência terrena seria apagada e tudo o que sobraria de nós seria o espírito. Mas Aya não estava no céu. Apegou-se ainda mais a ideia de ter sido eternamente condenada a reviver o dia em que sua vida perdeu o sentido. Saberia quem era Valentin apenas para perde-lo. Murmurou outra parte da oração. — A minha condição de morto me permite ler seus pensamentos. Você não está no inferno, Aya, nem no céu. Você sequer morreu ainda. Aya sente raiva. Quer dizer para Deus que a condenação era cruel. Que ela salvou vidas, enquanto a sua permanecia esse conjunto de incontáveis dias vazios e tristes. Que quis tirar a própria capacidade de respirar e esmagar seu rosto no travesseiro até que não houvesse mais ar, mas ao invés disso, aguentou toda a sua dor para não o contrariar. No fundo quis acreditar que o poderoso Deus tinha um plano, uma razão para tê-la deixado viva e levado Valentin. Mas era difícil manter a esperança, mergulhada em um mar negro e sombrio da ausência dele, e ela achava que Deus a entenderia, ela achava que Ele conhecia corações. Mas pelo visto, entendia o que queria entender e a jogara naquele castigo eterno porque ela dissera em um momento de profunda dor que não acreditava na existência Dele em sua vida. E como poderia acreditar se mal se sentia existir?
Sentiu uma lágrima escorrer pela bochecha. Fina e fria. Não sabia que mortos choravam. Abriu os olhos, verdes como duas esmeraldas, empedrados, fitando o restaurante, esperando o caminhão. — Eu morri há dois anos, quando aquele acidente te tirou de mim. As lágrimas aumentam e Aya sente vergonha por chorar. Aquele sequer é Valentin, só uma criação de sua mente perturbada, da sua vida infernal. Sente-o se aproximar, o perfume doce que ele emanava. Como se ele estivesse vivo, ela consegue sentir o calor de seu corpo, ouvir sua respiração. Sente que não vai aguentar. — É por isso que você está aqui, Aya. Você não está morta, nunca esteve. Precisamos conversar. Minha alma não terá descanso se você continuar presa a mim da forma que está. Algo se aperta dentro dela. Aya se vira para Valentin, transtornada, sentindo o corpo queimar. Não pode acreditar no que ouviu. Ela rezou por dois meses sentada naquela maldita poltrona desconfortável ao lado da cama dele. Pediu a todas as divindades possíveis que o curassem. Na semana que recebeu a notícia que os aparelhos seriam desligados, ela o visitou uma última vez. Observou seu corpo magricela, a perda de peso que deixava as maçãs de seu rosto esmorecidas, a bolsa roxa abaixo dos olhos, a pela pálida. Valentin fora a pessoa mais cheia de vida que ela conheceu, ele iluminava qualquer lugar onde estivesse com suas piadas sem graça e sua risada e estranha e há dois meses ele simplesmente parara de rir. Sua presença quase não mais se notava e tudo que ainda sobrava dele era aquele corpo imóvel. Aya percebeu, naquele dia, que ele estava indo embora há muito tempo, se perdendo mais a cada segundo depois do acidente. Não era justo que continuasse ali, por um capricho dela, achando que ele podia melhorar. Naquele dia, rezou somente para que ele descansasse. Que sua alma encontrasse o caminho da luz que ele foi em vida. Como ele podia? — Eu rezei por você, Valentin. Todos os dias e todas as noites naquele hospital, pedindo para você ficar. E mesmo te amando com todo o meu coração, eu te deixei ir. Eu assinei aquele documento permitindo que eles te desligassem desse mundo. E eu não te deixo descansar? – respiração, suas palavras perdem-se em meio a ira, Aya engasga – Você está morto, Valentin! Morto! Eu não descanso, eu não consigo dormir, eu que tenho
que viver sem você! E você não sabe como isso é, porque você não sente mais nada. Mas eu sinto – ela chora, as lágrimas imparáveis, a angústia crescendo em seu peito, quer gritar, esbravejar, faze-lo sumir, mas tudo se resume a soluços – e eu sinto muito. Ele toca sua mão. Ela quer puxá-la, mas o contato com a palma quente e macia é quase reconfortante. Sente falta dele. Tudo o que ela sente nos últimos dois anos refere- se a falta dele. Ele a encara, os olhos azuis úmidos, o cabelo castanho bagunçado com o vento. As lágrimas de Aya não cessam. Ela que abraçá-lo. Ficar com ele para sempre. Nunca mais deixa-lo ir. — Seu corpo está nesse momento na mesa de cirurgia da Victorie, sua colega de trabalho – ele começa devagar, medindo as palavras, quase como se fosse difícil faze-la entender – você sofreu um acidente, um carro colidiu com o seu. Um dos estilhaços do vidro atravessou seu peito, perfurou uma artéria. Eles estão tentando, Aya. Por isso estou aqui. Preciso falar com você antes que meu tempo acabe. — Não estou morta? Ela pergunta, Valentin sorri. — Não. Você não está morta, não como eu. Está dando trabalho para a Vic, mas ela está indo bem. Esse tipo de experiência é o que chamamos de transição, você pode seguir em frente, ou voltar. É uma questão de escolha. Mas esse não é o ponto, preciso que me escute. — Estou ouvindo. Ela diz. — Você disse que estou morto. Eu estou, de fato – ele sorri, Aya quer socá-lo – mas você não está, Aya. E por mais que você acha que não, eu tenho estado com você nesses últimos dois anos. E te visto, sentido o que você sente. Eu sei da sua dor, e da falta que você sente de mim. Sinto de você também, Aya. Sinto muito. Ele respira fundo, uma lágrima grossa escorre por seu rosto belo. Aya sente o coração se partir. — Mas preciso que me deixe ir. De verdade, Aya. Você precisa viver. Não pode continuar existindo em função da minha morte, isso é cruel para você e me impede de seguir meu caminho. Minha alma está presa a terra por conta do seu sofrimento. Sinto que é minha culpa e eles não aceitam culpa no lugar onde devo ir. – ele para, estendendo a mão para secar as lágrimas dela – você é a mulher mais incrível que eu já conheci. Eu amo você com todo o meu coração, por isso preciso que continue, Aya. Que você seja
feliz. Que deixe de se fechar na sua solidão e tristeza, as pessoas que te amam estão preocupadas com você e eu não posso carregar o peso de ter te tirado a vida. É pesado demais. — Você está me pedindo para voltar? — Estou te pedindo para ser a Aya que eu conheci. Aquela grande mulher cheia de sonhos e disposta a realizar todos eles. Me apaixonei por você pela forma como você via a vida. Seus olhos verdes tinham sempre um brilho de esperança que me tirava o ar – Aya chora, tudo o que não chorou nos últimos dois anos. As lágrimas escorrem e se perdem. Ela o ama, tanto que parece sufocar – Não posso conviver com o fato de que você simplesmente deixou de ser quem era depois que me fui. Cumpri meu destino, Aya. Não era meu dever ficar. Mas você ainda está lá. Você é amada e tem uma missão. Precisa cumpri-la. — Como farei isso sem você? Questiona, o peito dolorido como se sentisse o vidro que quase a matou. Sua memória reproduz recortes dos últimos meses, os olhares de pena, a tensão que paira sobre sua presença, a preocupação de sua mãe. A ansiedade, a angústia, os rabiscos da terapeuta em uma receita, os antidepressivos, a dor. Estava perdida. Sentia- se perdida. — Você nunca precisou de mim para qualquer coisa, Aya. Nosso amor era livre e você era completa sem mim. Continua completa agora. Amar você me salvou, preciso que deixe meu amor te salvar também. Ele a toca. Primeiro desenhando linhas invisíveis na sua mão, depois correndo os dedos pelo seu braço, finalmente alcançando sua nuca. A puxa para si. Aya sente o ar faltar. Ele a beija. Seu coração se espedaça, para ser montado de novo. Sente uma chama de vida queimar em seu estômago, caminhando por sua traqueia, explodindo em seus lábios. Quer fazer à vontade dele. Voltar a vida e vive-la. Quer deixa-lo orgulhoso. Ser a mulher que ele conheceu, que ele amou e admirou, até o último dia de sua vida. Precisa ser. Valentin sorri em seus lábios. O mesmo sorriso que ele a entregava depois de conseguir fazê-la concordar em retirar as cascas de seu pão. Ainda segura sua nuca, mas se afasta para olhá-la nos olhos.
— Obrigado. Ele diz. E Aya sabe que ele está se despedindo outra vez. Mas não sente que o perde. O calor de seu corpo permanece a aquecendo. Ela sente o peito vivo, queimar em amor. — Nunca esquecerei de você. Ela promete. O sente beijar sua testa outra vez. É puxada para longe dos braços de Valentin. O toque dele desaparece. O corpo físico some. Ela continua sentindo sua presença em seu coração. Seu corpo salta na cama. Ela acorda. Abre os olhos para a luz branca do quarto do hospital. Vira-se para encarar a mãe e sorri. Está viva. Como nunca esteve antes.
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