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Published by biblioteca, 2022-11-21 19:20:59

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Minha Vida: de cachorro

NOTA TÉCNICA FICHA CATALOGRÁFICA Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) AN532 Simpósio Internacional sobre Estado, Sociedade e Políticas Públicas (4: 2022: Teresina) Anais do IV Simpósio Internacional sobre Estado, Sociedade e Políticas Públicas, 23 a 26 ago. 2022, Teresina [recurso eletrônico]: Desigualdades e Políticas Públicas: (Des)Proteção Social e (In)Certezas e Resistências - Eixo Temático 1 Estado, Movimentos Sociais e Políticas Públicas / Organizado por: Sofia Laurentino Barbosa Pereira e Solange Maria Teixeira. [Realização PPGPP /CCHL – UFPI] – Teresina: EDUFPI/LESTU, 2022. 546 f. online. ISSN: 2675-9411 DOI: https://doi.org/10.51205/sinespp.2022.eixo01 Disponível em: https://sinespp.ufpi.br/. 1. Políticas Públicas. 2. Estado. 3. Sociedade Brasileira. 4. Desigualdade Social. 5. Proteção Social I. Autor(a). II. Título. III. Editora. IV. Assunto. CDD: 350

Sumário



Artigo - EDITORA LIBER MEMÓRIAS DE UMA GAROTA ESCOLHIDA POR UMA DOENÇA ESPECIAL: O AUTO LUTO NA OBRA UM LITRO DE LÁGRIMAS, DE AYA MEMORIES OF A GIRL CHOSEN BY A SPECIAL ILLNESS: SELF MOURNING IN THE WORK A LITER OF TEARS, BY AYA Karina Rodrigues da Silva1 RESUMO Este trabalho pretende analisar, diante uma perspectiva psicanalítica literária, o luto antecipado — também conhecido como auto luto — vivenciado por Aya Kito em sua obra Um litro de lágrimas (2013), evidenciando os processos psíquicos no trabalho de luto diante da perspectiva da perda iminente da própria vida após a descoberta de uma doença incurável. Para tal, aborda-se o conceito de auto luto de RANDO (1986) e fases do luto de KUBLER-ROSS (2008) mantendo um diálogo teórico literário entre os escritos de AYA KITO (2013) e as ideias dos autores. A partir da seleção de trechos da obra foram levantadas quatro categorias de análise: o diagnóstico da doença – o modo como Aya vivencia esta situação; negação – o ser lidando com o tempo após o diagnóstico de uma doença incurável; barganha – ideia de morte e o possível amparo religioso desta vivência; aceitação – conformismo com a doença. Diante disso, constou-se que Aya passa pelas fases do luto, que são compreendidas por negação, revolta, barganha e aceitação, possibilitando uma compreensão do fenômeno investigado, assim, desvelou-se a experiência do auto luto como uma preparação para o enfrentamento da sua morte, com toda a complexidade envolvida nesta vivência. Palavras-chave: Auto luto, Fases do luto, Memória. ABSTRACT This work intends to analyze, from a literary psychoanalytic perspective, the anticipated mourning — also known as self mourning — experienced by Aya Kito in her work A Liter of Tears (2013), highlighting the psychic processes in mourning work in the face of the 1 Graduanda em Biblioteconomia – UESPI. E-mail: [email protected]. 7

Editora Liber perspective of imminent loss. of life itself after the discovery of an incurable disease. To this end, the concept of self-mourning by RANDO (1986) and stages of mourning by KUBLER- ROSS (2008) are approached, maintaining a theoretical literary dialogue between the writings of AYA KITO (2013) and the authors' ideas. From the selection of excerpts from the work, four categories of analysis were raised: the diagnosis of the disease – the way Aya experiences this situation; denial – being dealing with time after the diagnosis of an incurable disease; bargaining – idea of death and the possible religious support of this experience; acceptance – conformism to the disease. Therefore, it was found that Aya goes through the stages of mourning, which are understood as denial, revolt, bargaining and acceptance, enabling an understanding of the phenomenon investigated, thus, the experience of self-mourning was revealed as a preparation for facing the his death, with all the complexity involved in this experience. Keywords: Anticipatory grief, Stages of grief, Memory. LÁGRIMAS E O AUTO LUTO Ao longo da história, a morte foi um evento social fundador da humanidade. Em cada cultura, entendida como um universo de símbolos e significados que permitem aos sujeitos de um grupo interpretar suas experiências e orientar suas ações, os ritos fúnebres facilitaram a integração da morte, a transformação dos sobreviventes e o continuem da vida humana. No ano de 1962 nascia no Japão à garota Aya Kito. Ela tinha uma vida comum, até que na adolescência, especificamente aos quinze anos, descobre que possui uma doença incurável, que vai atrofiando seu corpo e lhe tirando os movimentos. Tal doença tem o nome de degenração espinicerelebar, que é compreendida como: Uma doença hereditária autossômica recessiva, descoberta por Nicholaus Friedreich, em 1863, que acomete principalmente a medula espinhal e o cerebelo, levando ao aparecimento de sintomas como dificuldade motora, inicialmente em membros inferiores, distúrbios de equilíbrio, dificuldades de marcha, assinergias e ataxia. Trata-se de uma doença lentamente progressiva e sem cura. (PINHEIRO, 2012, p. 144). A partir do diagnóstico, a mãe de Aya aconselha que ela registre um diário para o médico saber como conjuntura o dia-a-dia dela e observar o quanto a doença comprometia a vida da garota. Contudo Aya foi além, começou a externar seus pensamentos, o que a consternava e o que pensava e sonhava para o futuro. Seu diário intitulado um litro de lágrimas (2013) foi publicado no Japão em 1986, dois anos antes de Aya deixar o plano material. Kito travou uma dura batalha contra a doença por mais de dez anos e embora da 8

Editora Liber desmedida dor que teve de aguentar, jamais perdeu a esperança, como corroborado no seu diário. Na maior parte das vezes, o autor de um diário é um narrador solitário que descreve suas vivências e experiências apenas para si mesmo (BORTOLAZZO, 2010). Mas no caso de Aya, ela transforma lágrimas em textos que tocam muitos corações: Tantas vezes você se perguntou: por qual motivo derramei tantas lágrimas? E hoje eu posso responder a você minha filha. Suas lágrimas se transformaram em palavras que acalmam muitos corações. Elas foram capazes de notar que não estão sozinhas. Você não está mais chorando por aí não é mesmo Aya? (KITO, 2013, p. 133). O luto não é só quando alguém morre e sofremos por isso. Toda perda de algo que estimávamos é um luto. Logo, um diagnóstico de uma doença degenerativa traz consigo o estigma de uma condenação á morte. Por isso, os pacientes com tais doenças passam por todos os estágios do processo de luto antes mesmo de falecerem. O luto antecipatório — também conhecido como auto luto — é um fenômeno cuja conceituação foi elaborada pelo psiquiatra alemão Erich Lindemann e cuja descoberta ocorreu no período da Segunda Grande Guerra ao observar as esposas dos soldados que, ao retornarem da guerra, estes tinham dificuldades de inclusão ao seu núcleo familiar, visto que suas esposas realizavam um processo de elaboração como se, realmente, eles tivessem morrido (FONSECA, 2012). Nesse caso, elas aceitavam a morte antes de ela, de fato, acontecer. Segundo o psiquiatra, este processo se desenvolve em função da separação a qual indica ou uma ameaça ou um perigo real do membro vir a falecer e não em função da morte em si; por isso, há um pressentimento de sua finitude. O processo de elaboração da morte é realizado a partir de cinco estágios de maneira sucessiva e com possibilidade de variação. Conforme a psiquiatra Kübler-Ross (2008), o enlutamento inicia na fase de negação e termina com a aceitação, entre estas duas, há a barganha e a revolta. No processo de luto antecipatório, estes estágios seguem a mesma dinâmica proposta por Kubler-Ross, no entanto, existe um estágio adicional que não há no luto normal: a esperança. (ALDRICH, 1974 apud FONSCESA, 2012). Rando (1986) refere-se ao luto antecipado como um conjunto de processos desencadeados pelo paciente de uma crescente ameaça de perda é um processo de luto sobre aspectos psicossociais vivenciados pelo paciente, no período entre o diagnóstico e a morte. luto antecipatório pode ser entendido como o tipo de luto que antecede a perda real e apresenta as mesmas características e sintomas dos estágios iniciais do luto normal. 9

Editora Liber É muito importante entender a diferença entre o luto, que é um fenômeno natural e faz parte de nossas vidas, e o auto luto, que é um processo complexo. O luto é considerado saudável como a aceitação da mudança ocorrida, tanto em relação ao mundo exterior quanto à ausência permanente de um ente querido. Há muitos aspectos a serem considerados, mas em geral, se há um aumento de processos de luto persistentes, bem como de comportamentos obsessivos, é um processo de luto complexo. Os processos defensivos são característicos do luto e tornam-se patológicos à medida que persistem e acabam se tornando parte da vida do enlutado (KOVÁCS, 1992). De acordo com Kubler-Ross (2008) nem todas as pessoas irão vivenciar seu luto de maneira semelhante, na ordem que é apresentada. “Nosso luto é tão individual como nossas vidas” (KUBLER-ROSS, 2008, p.07). Assim, uma mesma pessoa pode ir da fase da negação para a barganha, como da barganha para a raiva e voltar para a anterior. Cada luto é único para os humanos, com suas características e diferenças. No presente trabalho iremos focar no luto perante a situação de possível morte vivenciada por um sujeito, nesse caso Aya, apresentando as fases do luto nessa circunstância. Nesse estudo, portanto, o objetivo é investigar como fenômeno de luto antecipatório ocorre a partir da leitura dos escritos de Aya Kito (2013) e sua luta contra uma doença degenerativa. Nesse caso, o luto antecipatório será utilizado conforme o delineado por Kübler-Ross, pois há o contexto da doença envolvida no fenômeno de enlutamento. MÁQUINA DO TEMPO É notável que estudos acerca do auto luto sejam escassos quando comparados à produção científica existente relacionada a outros quadros de saúde mental (Silva; Nardi, 2010). Assim, pode-se dizer que o tema da morte e as questões relacionadas com o mesmo ainda são considerados como um tabu, um tema interditado que muitas vezes é sentido como fracasso, por profissionais da área da saúde (Costa; Lima, 2005). Como elucidado por Kübler-Ross (2008), o estágio inicial do luto é a negação, na obra 1 litro de lágrimas, ao descobrir a doença, Aya não aceita que terá que perder sua juventude na cama de um hospital fazendo exames e mais exames a fim de descobrir maneiras para retardar sua doença, já que a mesma não tem cura. Em trechos da obra Aya afirma querer uma máquina do tempo para voltar aos tempos em que não estava doente: “Quero construir uma máquina no tempo e voltar ao 10

Editora Liber passado. Se não fosse por essa doença, eu conseguiria me apaixonar e não depender de ninguém para viver.“ (KITO, 2013, p. 39). A ideia de voltar no tempo para Aya está atrelada ao pensamento de não estar mais doente. A negação de Aya parte do pressuposto de que ela teria que deixar a escola em que estuda para fazer parte de uma escola especial, já que a sua doença avança de maneira acelerada: “Faltam 4 dias até o fim das aulas. Parece que por minha causa, todos estão segurando mil garças de papéis. A imagem deles segurando-os com tanto esforço, guardarei no fundo dos meus olhos para que eu nunca esqueça, mesmo estando separados. Mas eu queria que dissessem: Aya, não vá.” (KITO, 2013, p. 50). Além da ocorrência de que mudar para uma escola especial para pessoas com doenças degenerativas era como um atestado de invalidade para Aya, o fato de seus colegas de classe estarem mais preocupados com as provas finais, ocasionava a sensação de rejeição e desdenho, acarretando na intensificação desse processo de negação. LÁGRIMAS DE REVOLTA Nas fases do luto, a revolta é compreendida como o momento em que os sujeitos despontam da introspecção intensa da negação e, finalmente, começam a externalizar um sentimento, que será denominado de revolta. (BRANDÃO, 2021). Durante esse processo de revolta, Aya sempre pergunta para si mesma o motivo de estar doente: “Por que essa doença me escolheu? Destino é algo que não se pode colocar em palavras.“ (KITO, 2013, p. 46). Essa ideia de negação dada pela personagem é também atrelada ao destino, como se ela fosse fadada a sofrer com tal doença por ela ser hereditária. No estágio da revolta, há também a procura de culpados e questionamentos, tal como: Por que eu? Com o intuito de aliviar o imenso sofrimento. Além disso, lembranças das abstenções e planos não realizados podem se refletir em um comportamento hostil. “Agora penso que você foi muito mimada pelas pessoas! Finalmente percebi. Você dependeu demais das pessoas! Por isso, a Youko e a Yoshiko acabaram se cansando! Percebi tarde demais“ (KITO, 2013, p. 103). Aya começa a martirizar-se sobre ações que poderiam ter sido tomadas para um outro rumo da história, gerando grande angústia. “Mamãe, dentro do meu coração: existe você, que sempre acreditou em mim. A partir de agora conto com você. Desculpa por causar tanta preocupação.“ (KITO, 2013, p. 121). A mesma dar início a 11

Editora Liber uma série de pensamentos de que sua existência, enquanto pessoa doente atrapalha a vida das pessoas. Eu gosto do som das bolas ecoando no ginásio, da sala quieta depois da aula, da paisagem que se vê da janela, do piso de mandeira do corredor, das conversas em frente à sala de aula, gosto de tudo. Talvez eu só esteja incomodando, talvez eu não esteja ajudando ninguém, mesmo assim, eu quero ficar aqui. Afinal, aqui é o lugar onde estou.“ (KITO, 2013, p. 101). Por conta do estágio da revolta, usualmente ocorre uma circunstância mental um pouco descolado da realidade e, dependendo da personalidade, a pessoa pode parecer incontrolável, com atitudes de autodepreciação. No caso de Aya, o sentido de incômoda era a matriz dessa autodepreciação. LÁGRIMAS E DEUS Como mencionado aqui, a barganha é um dos estágios do luto e a mesma é compreendida como os pensamentos de que as coisas podem voltar a ser como antes prevalecem e a pessoa tenta negociar consigo mesma ou com os outros para que isso aconteça (BRANDÃO, 2021). Por ser o último estágio do luto, trata-se de uma tentativa de adiar os temores diante da situação. Assim, os indivíduos buscam firmar acordos com figuras que, segundo suas crenças, teriam poder de intervenção sobre a situação. Geralmente, esses acordos e promessas são direcionados a uma entidade divina. Na obra da Kito (2013), Aya tem conversas usuais com os kamis, que são compreendidos como os “seres divinos responsáveis por manter o equilíbrio entre o homem e a natureza gerando uma harmonia entre os dois” (RIBEIRO, 2018). Em um desses dialagos Aya pergunta por qual motivo sua existência ainda persiste: “Por qual motivo eu estou vivendo? Aonde devo ir? Apesar de não conseguir respostas, se escrevo, meus sentimentos melhoram. Estou à procura de muitas mãos, mas não consigo alcançá-las, não consigo percebe-las, apenas sigo em direção à escuridão, apenas ouço minha voz que grita sem esperanças”. (KITO, 2013, p. 79). A barganha é a última etapa do luto, nesse estágio o enlutado ainda tem expectativas, trazendo para a situação de Aya, uma garota doente, a perspectiva de um diagnóstico de melhora ou até mesmo cura ainda era esperado pela mesma. 12

Editora Liber UM LITRO DE LÁGRIMAS Após todas as etapas de negação, revolta e barganha, temos a aceitação. Comumente é compreendida como o último estágio do luto convencional. Nessa última fase do luto, é quando a pessoa percebe que não vai mais conseguir voltar no tempo e ter de novo aquilo que perdeu por perto, contudo que vai tocar sua vida. Em um litro de lágrimas (2013), esse processo de aceitação por parte de Aya da sua condição de saúde, acontece no momento em que ela noticia para os colegas de classe sua mudança de escola. “Para que hoje eu possa falar desse assunto com um sorriso no rosto, foi preciso de no mínimo um litro de lágrimas” (KITO, 2013, p. 131). É normal que mesmo após a aceitação venham lembranças, alguma tristeza momentânea e saudosismo, mas nada que paralise a pessoa. “A realidade é muito cruel, muito rígida. Não posso nem ao menos sonhar. Se imaginar o futuro, ainda outras lágrimas escorrem.” (KITO, 2013, p. 128). Aqui, é quando Aya aceita sua doença de uma vez por todas e vive com isso, entretanto como um ferimento, que antes era aberto, contudo que cicatrizou, não doendo mais involuntariamente como antes, só que a sua marca está ali. “Eu realmente não quero dizer coisas como 'eu quero voltar como as coisas eram antes.' Eu reconheço como estou agora, e continuarei a viver.” (KITO, 2013, p. 113). Pensar no futuro é a analogia para a ferida, que aqui é vista como a consequência da doença. A ocorrência de se permanecer viva é algo que fortalece Aya, “O fato de eu estar viva é uma coisa tão encantadora e maravilhosa que me faz querer viver mais e mais.“ (KITO, 2013, p. 134). Como dito anteriormente, no estágio da aceitação o sujeito tem a noção de que não será capaz de voltar no tempo. “Não consigo mais voltar ao passado. Nem meu coração, nem meu corpo.” (KITO, 2013, p. 143). Aya entende que não pode fazer nada, apenas olhar para o futuro com a esperança de dias melhores. PARA UM LUGAR SEM LÁGRIMAS Como elucidado aqui, Kubler (2008) destacou um estágio suplementar que não há no luto normal, a esperança. Esse estágio não consiste especificamente na esperança pela cura de um câncer, doença auto-imune ou degenerativa como no caso de Aya, mas sim na esperança de partir desse plano material da melhor forma possível. “O que tem de mais em 13

Editora Liber cair? Você pode se levantar de novo. Quando você cai, aproveite ao máximo a chance de olhar para cima e ver o céu. Você o verá se espalhando infinitamente acima de você e sorrindo para baixo. Sorria, você está vivo!\" (KITO, 2013, p. 142). A esperança de Aya a essa altura da vida não era regida pela expectativa de uma possível cura e sim pela apreciação de pequenas coisas da vida. “Quando você acha que as coisas são difíceis, essa é a hora que você está amadurecendo como pessoa. Se você superar a escuridão, um novo dia maravilhoso virá.” (KITO, 2013, p. 159). A esperança de Aya sustentava-se nos elementos da natureza, como o céu e as flores “Se eu fosse uma flor, minha vida seria um botão. Esse começo de juventude quero guardar sem arrependimentos.” (KITO, 2013, p. 121). E também em alguns sentimentos como o de amadurecimento. PARA ALÉM DAS LÁGRIMAS O fenômeno do auto luto e sua estrutura habitam na significação sobre a doença degenerativa de Aya, que se abrolha de várias maneiras e de convênio com seu jeito de sentir e vivenciar esta forma de luto, e também da maneira em como suportar a compreensão de se ser um sujeito para a morte. Estes distintos sentidos se situam perante o quanto o indivíduo têm no mundo as possibilidades de ser algo. O auto luto propõe assentimento da finitude, autorizando uma ressignificação de anseios e impressões relativas à morte. A prática de estudar o auto luto desvendou a problemática enfrentada pelos seres humanos de assimilar a morte enquanto procuram respostas para a mesma. Foi realizável constar comportamentos diversos defronte da morte, atrelados a história de vida relatada por Aya, tal como a configuração de albergar e preparar o processo de morte. Compreende- se que há variantes modos de enfrentamento do luto, que combóiam desde a negação, revolta, barganha, aceitação e por fim a esperança no caso de pacientes com doenças incuráveis. O auto luto é um tempo vultoso, pois aparelha o paciente desvincular os elos que ele tem em sua vida e permitir uma melhor compreensão da ideia de deixar o plano material. É um compromisso que o sujeito deve assumir para aprender a conviver com a realidade da morte. A análise das categorias permite afirmar que o sujeito no mundo é um individuo único, repleto de possibilidades subjetivas e formas concretas de perceber, viver e 14

Editora Liber vivenciar a realidade. A partir da ideia de estar morrendo, nascem às palavras de Aya que uma das formas que a mesma enxerga de encarar a morte. A existência é sinalizada por possibilidades existenciais. O homem é um indivíduo de probabilidades alcançadas durante a existência. Após receber o diagnóstico, Aya surgiu com significados distintos baseados em seu tempo e modo de existência. Diante da finitude da experiência e da possibilidade de morte, Aya exibe comportamentos distintos em sua experiência de auto luto. Com isso em mente, considera-se importante o aprofundamento de pesquisas relacionadas a essa temática envolvendo aqueles que passam por uma doença incurável e tem que elaborar o auto luto da própria morte. REFERÊNCIAS BORTOLAZZO, M. A aventura da escrita. A produção do diário como instrumento didático pedagógico ou de como as crianças escrevem e tecem considerações sobre o ato de escrever. 2010. 64 f. Trabalho de conclusão de curso (licenciatura - Pedagogia) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências de Rio Claro, 2010. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/118365. Acesso em: 25 mai. 2022 BRANDÃO, R. Os estágios do luto, conheça as 5 fases e como superá-las. In: Os estágios do luto, conheça as 5 fases e como superá-las. Brasil: Zenklub, 2021. Disponível em: https://zenklub.com.br/blog/saude-bem-estar/fases-de-luto/. Acesso em: 25 mai. 2022. Costa, J., & Lima, R. (2005). Luto da equipe: revelações dos profissionais de enfermagem sobre o cuidado à criança/adolescente no processo de morte e morrer. Revista Latino- Americana de Enfermagem, 13(2), 151-157. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-11692005000200004. Acesso em: 25 mai. 2022. FLACH, K. et al . O luto antecipatório na unidade de terapia intensiva pediátrica: relato de experiência. Rev. SBPH, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 83-100, jun. 2012 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516- 08582012000100006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 25 mai. 2022. Fonseca, P. Luto Antecipatório: as experiências pessoais, familiares e sociais diante de uma morte anunciada. São Paulo: Polo Books. 2012. KITO, A. 1 Litro de Lágrimas: Diário da Aya. Tradução: Karen Hayashida. São Paulo: NewPOP, 2013. KOVÁCS, J. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992. KUBLER-ROSS, E. Sobre a Morte e o Morrer. São Paulo: Martins Fontes, 2008. PINHEIRO, H. Efeito da facilitação neuromuscular proprioceptiva no equilíbrio de indivíduo com degeneração espinocerebelar recessiva. Fisioterapia Brasil, Brasil, v. 13, ed. 2, p. 144-148, 2012. DOI https://doi.org/10.33233/fb.v13i2.528. Disponível em: 15

Editora Liber https://portalatlanticaeditora.com.br/index.php/fisioterapiabrasil/article/view/528. Acesso em: 25 mai. 2022. Rando, A. Loss and anticipatory grief. Massachusetts: Lexigton Books. 1986. RIBEIRO, Lohana. Filosofia de vida que prega a relação harmoniosa entre o homem e a natureza. In: XINTOÍSMO. Brasil: Educa mais Brasil, 2018. Disponível em: https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/religiao/xintoismo. Acesso em: 25 maio 2022. Silva, O., & Nardi, E. Luto pela morte de um filho: utilização de um protocolo de terapia cognitivo-comportamental. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 2010. 113- 116. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0101-81082010000300008. Acesso: 25 mai. 2022. 16

Artigo - EDITORA LIBER MEMÓRIAS DE UMA GAROTA ESCOLHIDA POR UMA DOENÇA ESPECIAL: O AUTO LUTO NA OBRA UM LITRO DE LÁGRIMAS, DE AYA MEMORIES OF A GIRL CHOSEN BY A SPECIAL ILLNESS: SELF MOURNING IN THE WORK A LITER OF TEARS, BY AYA Karina Rodrigues da Silva1 RESUMO Este trabalho pretende analisar, diante uma perspectiva psicanalítica literária, o luto antecipado — também conhecido como auto luto — vivenciado por Aya Kito em sua obra Um litro de lágrimas (2013), evidenciando os processos psíquicos no trabalho de luto diante da perspectiva da perda iminente da própria vida após a descoberta de uma doença incurável. Para tal, aborda-se o conceito de auto luto de RANDO (1986) e fases do luto de KUBLER-ROSS (2008) mantendo um diálogo teórico literário entre os escritos de AYA KITO (2013) e as ideias dos autores. A partir da seleção de trechos da obra foram levantadas quatro categorias de análise: o diagnóstico da doença – o modo como Aya vivencia esta situação; negação – o ser lidando com o tempo após o diagnóstico de uma doença incurável; barganha – ideia de morte e o possível amparo religioso desta vivência; aceitação – conformismo com a doença. Diante disso, constou-se que Aya passa pelas fases do luto, que são compreendidas por negação, revolta, barganha e aceitação, possibilitando uma compreensão do fenômeno investigado, assim, desvelou-se a experiência do auto luto como uma preparação para o enfrentamento da sua morte, com toda a complexidade envolvida nesta vivência. Palavras-chave: Auto luto, Fases do luto, Memória. ABSTRACT This work intends to analyze, from a literary psychoanalytic perspective, the anticipated mourning — also known as self mourning — experienced by Aya Kito in her work A Liter of Tears (2013), highlighting the psychic processes in mourning work in the face of the 1 Graduanda em Biblioteconomia – UESPI. E-mail: [email protected]. 17

Editora Liber perspective of imminent loss. of life itself after the discovery of an incurable disease. To this end, the concept of self-mourning by RANDO (1986) and stages of mourning by KUBLER- ROSS (2008) are approached, maintaining a theoretical literary dialogue between the writings of AYA KITO (2013) and the authors' ideas. From the selection of excerpts from the work, four categories of analysis were raised: the diagnosis of the disease – the way Aya experiences this situation; denial – being dealing with time after the diagnosis of an incurable disease; bargaining – idea of death and the possible religious support of this experience; acceptance – conformism to the disease. Therefore, it was found that Aya goes through the stages of mourning, which are understood as denial, revolt, bargaining and acceptance, enabling an understanding of the phenomenon investigated, thus, the experience of self-mourning was revealed as a preparation for facing the his death, with all the complexity involved in this experience. Keywords: Anticipatory grief, Stages of grief, Memory. LÁGRIMAS E O AUTO LUTO Ao longo da história, a morte foi um evento social fundador da humanidade. Em cada cultura, entendida como um universo de símbolos e significados que permitem aos sujeitos de um grupo interpretar suas experiências e orientar suas ações, os ritos fúnebres facilitaram a integração da morte, a transformação dos sobreviventes e o continuem da vida humana. No ano de 1962 nascia no Japão à garota Aya Kito. Ela tinha uma vida comum, até que na adolescência, especificamente aos quinze anos, descobre que possui uma doença incurável, que vai atrofiando seu corpo e lhe tirando os movimentos. Tal doença tem o nome de degenração espinicerelebar, que é compreendida como: Uma doença hereditária autossômica recessiva, descoberta por Nicholaus Friedreich, em 1863, que acomete principalmente a medula espinhal e o cerebelo, levando ao aparecimento de sintomas como dificuldade motora, inicialmente em membros inferiores, distúrbios de equilíbrio, dificuldades de marcha, assinergias e ataxia. Trata-se de uma doença lentamente progressiva e sem cura. (PINHEIRO, 2012, p. 144). A partir do diagnóstico, a mãe de Aya aconselha que ela registre um diário para o médico saber como conjuntura o dia-a-dia dela e observar o quanto a doença comprometia a vida da garota. Contudo Aya foi além, começou a externar seus pensamentos, o que a consternava e o que pensava e sonhava para o futuro. Seu diário intitulado um litro de lágrimas (2013) foi publicado no Japão em 1986, dois anos antes de Aya deixar o plano material. Kito travou uma dura batalha contra a doença por mais de dez anos e embora da 18

Editora Liber desmedida dor que teve de aguentar, jamais perdeu a esperança, como corroborado no seu diário. Na maior parte das vezes, o autor de um diário é um narrador solitário que descreve suas vivências e experiências apenas para si mesmo (BORTOLAZZO, 2010). Mas no caso de Aya, ela transforma lágrimas em textos que tocam muitos corações: Tantas vezes você se perguntou: por qual motivo derramei tantas lágrimas? E hoje eu posso responder a você minha filha. Suas lágrimas se transformaram em palavras que acalmam muitos corações. Elas foram capazes de notar que não estão sozinhas. Você não está mais chorando por aí não é mesmo Aya? (KITO, 2013, p. 133). O luto não é só quando alguém morre e sofremos por isso. Toda perda de algo que estimávamos é um luto. Logo, um diagnóstico de uma doença degenerativa traz consigo o estigma de uma condenação á morte. Por isso, os pacientes com tais doenças passam por todos os estágios do processo de luto antes mesmo de falecerem. O luto antecipatório — também conhecido como auto luto — é um fenômeno cuja conceituação foi elaborada pelo psiquiatra alemão Erich Lindemann e cuja descoberta ocorreu no período da Segunda Grande Guerra ao observar as esposas dos soldados que, ao retornarem da guerra, estes tinham dificuldades de inclusão ao seu núcleo familiar, visto que suas esposas realizavam um processo de elaboração como se, realmente, eles tivessem morrido (FONSECA, 2012). Nesse caso, elas aceitavam a morte antes de ela, de fato, acontecer. Segundo o psiquiatra, este processo se desenvolve em função da separação a qual indica ou uma ameaça ou um perigo real do membro vir a falecer e não em função da morte em si; por isso, há um pressentimento de sua finitude. O processo de elaboração da morte é realizado a partir de cinco estágios de maneira sucessiva e com possibilidade de variação. Conforme a psiquiatra Kübler-Ross (2008), o enlutamento inicia na fase de negação e termina com a aceitação, entre estas duas, há a barganha e a revolta. No processo de luto antecipatório, estes estágios seguem a mesma dinâmica proposta por Kubler-Ross, no entanto, existe um estágio adicional que não há no luto normal: a esperança. (ALDRICH, 1974 apud FONSCESA, 2012). Rando (1986) refere-se ao luto antecipado como um conjunto de processos desencadeados pelo paciente de uma crescente ameaça de perda é um processo de luto sobre aspectos psicossociais vivenciados pelo paciente, no período entre o diagnóstico e a morte. luto antecipatório pode ser entendido como o tipo de luto que antecede a perda real e apresenta as mesmas características e sintomas dos estágios iniciais do luto normal. 19

Editora Liber É muito importante entender a diferença entre o luto, que é um fenômeno natural e faz parte de nossas vidas, e o auto luto, que é um processo complexo. O luto é considerado saudável como a aceitação da mudança ocorrida, tanto em relação ao mundo exterior quanto à ausência permanente de um ente querido. Há muitos aspectos a serem considerados, mas em geral, se há um aumento de processos de luto persistentes, bem como de comportamentos obsessivos, é um processo de luto complexo. Os processos defensivos são característicos do luto e tornam-se patológicos à medida que persistem e acabam se tornando parte da vida do enlutado (KOVÁCS, 1992). De acordo com Kubler-Ross (2008) nem todas as pessoas irão vivenciar seu luto de maneira semelhante, na ordem que é apresentada. “Nosso luto é tão individual como nossas vidas” (KUBLER-ROSS, 2008, p.07). Assim, uma mesma pessoa pode ir da fase da negação para a barganha, como da barganha para a raiva e voltar para a anterior. Cada luto é único para os humanos, com suas características e diferenças. No presente trabalho iremos focar no luto perante a situação de possível morte vivenciada por um sujeito, nesse caso Aya, apresentando as fases do luto nessa circunstância. Nesse estudo, portanto, o objetivo é investigar como fenômeno de luto antecipatório ocorre a partir da leitura dos escritos de Aya Kito (2013) e sua luta contra uma doença degenerativa. Nesse caso, o luto antecipatório será utilizado conforme o delineado por Kübler-Ross, pois há o contexto da doença envolvida no fenômeno de enlutamento. MÁQUINA DO TEMPO É notável que estudos acerca do auto luto sejam escassos quando comparados à produção científica existente relacionada a outros quadros de saúde mental (Silva; Nardi, 2010). Assim, pode-se dizer que o tema da morte e as questões relacionadas com o mesmo ainda são considerados como um tabu, um tema interditado que muitas vezes é sentido como fracasso, por profissionais da área da saúde (Costa; Lima, 2005). Como elucidado por Kübler-Ross (2008), o estágio inicial do luto é a negação, na obra 1 litro de lágrimas, ao descobrir a doença, Aya não aceita que terá que perder sua juventude na cama de um hospital fazendo exames e mais exames a fim de descobrir maneiras para retardar sua doença, já que a mesma não tem cura. Em trechos da obra Aya afirma querer uma máquina do tempo para voltar aos tempos em que não estava doente: “Quero construir uma máquina no tempo e voltar ao 20

Editora Liber passado. Se não fosse por essa doença, eu conseguiria me apaixonar e não depender de ninguém para viver.“ (KITO, 2013, p. 39). A ideia de voltar no tempo para Aya está atrelada ao pensamento de não estar mais doente. A negação de Aya parte do pressuposto de que ela teria que deixar a escola em que estuda para fazer parte de uma escola especial, já que a sua doença avança de maneira acelerada: “Faltam 4 dias até o fim das aulas. Parece que por minha causa, todos estão segurando mil garças de papéis. A imagem deles segurando-os com tanto esforço, guardarei no fundo dos meus olhos para que eu nunca esqueça, mesmo estando separados. Mas eu queria que dissessem: Aya, não vá.” (KITO, 2013, p. 50). Além da ocorrência de que mudar para uma escola especial para pessoas com doenças degenerativas era como um atestado de invalidade para Aya, o fato de seus colegas de classe estarem mais preocupados com as provas finais, ocasionava a sensação de rejeição e desdenho, acarretando na intensificação desse processo de negação. LÁGRIMAS DE REVOLTA Nas fases do luto, a revolta é compreendida como o momento em que os sujeitos despontam da introspecção intensa da negação e, finalmente, começam a externalizar um sentimento, que será denominado de revolta. (BRANDÃO, 2021). Durante esse processo de revolta, Aya sempre pergunta para si mesma o motivo de estar doente: “Por que essa doença me escolheu? Destino é algo que não se pode colocar em palavras.“ (KITO, 2013, p. 46). Essa ideia de negação dada pela personagem é também atrelada ao destino, como se ela fosse fadada a sofrer com tal doença por ela ser hereditária. No estágio da revolta, há também a procura de culpados e questionamentos, tal como: Por que eu? Com o intuito de aliviar o imenso sofrimento. Além disso, lembranças das abstenções e planos não realizados podem se refletir em um comportamento hostil. “Agora penso que você foi muito mimada pelas pessoas! Finalmente percebi. Você dependeu demais das pessoas! Por isso, a Youko e a Yoshiko acabaram se cansando! Percebi tarde demais“ (KITO, 2013, p. 103). Aya começa a martirizar-se sobre ações que poderiam ter sido tomadas para um outro rumo da história, gerando grande angústia. “Mamãe, dentro do meu coração: existe você, que sempre acreditou em mim. A partir de agora conto com você. Desculpa por causar tanta preocupação.“ (KITO, 2013, p. 121). A mesma dar início a 21

Editora Liber uma série de pensamentos de que sua existência, enquanto pessoa doente atrapalha a vida das pessoas. Eu gosto do som das bolas ecoando no ginásio, da sala quieta depois da aula, da paisagem que se vê da janela, do piso de mandeira do corredor, das conversas em frente à sala de aula, gosto de tudo. Talvez eu só esteja incomodando, talvez eu não esteja ajudando ninguém, mesmo assim, eu quero ficar aqui. Afinal, aqui é o lugar onde estou.“ (KITO, 2013, p. 101). Por conta do estágio da revolta, usualmente ocorre uma circunstância mental um pouco descolado da realidade e, dependendo da personalidade, a pessoa pode parecer incontrolável, com atitudes de autodepreciação. No caso de Aya, o sentido de incômoda era a matriz dessa autodepreciação. LÁGRIMAS E DEUS Como mencionado aqui, a barganha é um dos estágios do luto e a mesma é compreendida como os pensamentos de que as coisas podem voltar a ser como antes prevalecem e a pessoa tenta negociar consigo mesma ou com os outros para que isso aconteça (BRANDÃO, 2021). Por ser o último estágio do luto, trata-se de uma tentativa de adiar os temores diante da situação. Assim, os indivíduos buscam firmar acordos com figuras que, segundo suas crenças, teriam poder de intervenção sobre a situação. Geralmente, esses acordos e promessas são direcionados a uma entidade divina. Na obra da Kito (2013), Aya tem conversas usuais com os kamis, que são compreendidos como os “seres divinos responsáveis por manter o equilíbrio entre o homem e a natureza gerando uma harmonia entre os dois” (RIBEIRO, 2018). Em um desses dialagos Aya pergunta por qual motivo sua existência ainda persiste: “Por qual motivo eu estou vivendo? Aonde devo ir? Apesar de não conseguir respostas, se escrevo, meus sentimentos melhoram. Estou à procura de muitas mãos, mas não consigo alcançá-las, não consigo percebe-las, apenas sigo em direção à escuridão, apenas ouço minha voz que grita sem esperanças”. (KITO, 2013, p. 79). A barganha é a última etapa do luto, nesse estágio o enlutado ainda tem expectativas, trazendo para a situação de Aya, uma garota doente, a perspectiva de um diagnóstico de melhora ou até mesmo cura ainda era esperado pela mesma. 22

Editora Liber UM LITRO DE LÁGRIMAS Após todas as etapas de negação, revolta e barganha, temos a aceitação. Comumente é compreendida como o último estágio do luto convencional. Nessa última fase do luto, é quando a pessoa percebe que não vai mais conseguir voltar no tempo e ter de novo aquilo que perdeu por perto, contudo que vai tocar sua vida. Em um litro de lágrimas (2013), esse processo de aceitação por parte de Aya da sua condição de saúde, acontece no momento em que ela noticia para os colegas de classe sua mudança de escola. “Para que hoje eu possa falar desse assunto com um sorriso no rosto, foi preciso de no mínimo um litro de lágrimas” (KITO, 2013, p. 131). É normal que mesmo após a aceitação venham lembranças, alguma tristeza momentânea e saudosismo, mas nada que paralise a pessoa. “A realidade é muito cruel, muito rígida. Não posso nem ao menos sonhar. Se imaginar o futuro, ainda outras lágrimas escorrem.” (KITO, 2013, p. 128). Aqui, é quando Aya aceita sua doença de uma vez por todas e vive com isso, entretanto como um ferimento, que antes era aberto, contudo que cicatrizou, não doendo mais involuntariamente como antes, só que a sua marca está ali. “Eu realmente não quero dizer coisas como 'eu quero voltar como as coisas eram antes.' Eu reconheço como estou agora, e continuarei a viver.” (KITO, 2013, p. 113). Pensar no futuro é a analogia para a ferida, que aqui é vista como a consequência da doença. A ocorrência de se permanecer viva é algo que fortalece Aya, “O fato de eu estar viva é uma coisa tão encantadora e maravilhosa que me faz querer viver mais e mais.“ (KITO, 2013, p. 134). Como dito anteriormente, no estágio da aceitação o sujeito tem a noção de que não será capaz de voltar no tempo. “Não consigo mais voltar ao passado. Nem meu coração, nem meu corpo.” (KITO, 2013, p. 143). Aya entende que não pode fazer nada, apenas olhar para o futuro com a esperança de dias melhores. PARA UM LUGAR SEM LÁGRIMAS Como elucidado aqui, Kubler (2008) destacou um estágio suplementar que não há no luto normal, a esperança. Esse estágio não consiste especificamente na esperança pela cura de um câncer, doença auto-imune ou degenerativa como no caso de Aya, mas sim na esperança de partir desse plano material da melhor forma possível. “O que tem de mais em 23

Editora Liber cair? Você pode se levantar de novo. Quando você cai, aproveite ao máximo a chance de olhar para cima e ver o céu. Você o verá se espalhando infinitamente acima de você e sorrindo para baixo. Sorria, você está vivo!\" (KITO, 2013, p. 142). A esperança de Aya a essa altura da vida não era regida pela expectativa de uma possível cura e sim pela apreciação de pequenas coisas da vida. “Quando você acha que as coisas são difíceis, essa é a hora que você está amadurecendo como pessoa. Se você superar a escuridão, um novo dia maravilhoso virá.” (KITO, 2013, p. 159). A esperança de Aya sustentava-se nos elementos da natureza, como o céu e as flores “Se eu fosse uma flor, minha vida seria um botão. Esse começo de juventude quero guardar sem arrependimentos.” (KITO, 2013, p. 121). E também em alguns sentimentos como o de amadurecimento. PARA ALÉM DAS LÁGRIMAS O fenômeno do auto luto e sua estrutura habitam na significação sobre a doença degenerativa de Aya, que se abrolha de várias maneiras e de convênio com seu jeito de sentir e vivenciar esta forma de luto, e também da maneira em como suportar a compreensão de se ser um sujeito para a morte. Estes distintos sentidos se situam perante o quanto o indivíduo têm no mundo as possibilidades de ser algo. O auto luto propõe assentimento da finitude, autorizando uma ressignificação de anseios e impressões relativas à morte. A prática de estudar o auto luto desvendou a problemática enfrentada pelos seres humanos de assimilar a morte enquanto procuram respostas para a mesma. Foi realizável constar comportamentos diversos defronte da morte, atrelados a história de vida relatada por Aya, tal como a configuração de albergar e preparar o processo de morte. Compreende- se que há variantes modos de enfrentamento do luto, que combóiam desde a negação, revolta, barganha, aceitação e por fim a esperança no caso de pacientes com doenças incuráveis. O auto luto é um tempo vultoso, pois aparelha o paciente desvincular os elos que ele tem em sua vida e permitir uma melhor compreensão da ideia de deixar o plano material. É um compromisso que o sujeito deve assumir para aprender a conviver com a realidade da morte. A análise das categorias permite afirmar que o sujeito no mundo é um individuo único, repleto de possibilidades subjetivas e formas concretas de perceber, viver e 24

Editora Liber vivenciar a realidade. A partir da ideia de estar morrendo, nascem às palavras de Aya que uma das formas que a mesma enxerga de encarar a morte. A existência é sinalizada por possibilidades existenciais. O homem é um indivíduo de probabilidades alcançadas durante a existência. Após receber o diagnóstico, Aya surgiu com significados distintos baseados em seu tempo e modo de existência. Diante da finitude da experiência e da possibilidade de morte, Aya exibe comportamentos distintos em sua experiência de auto luto. Com isso em mente, considera-se importante o aprofundamento de pesquisas relacionadas a essa temática envolvendo aqueles que passam por uma doença incurável e tem que elaborar o auto luto da própria morte. REFERÊNCIAS BORTOLAZZO, M. A aventura da escrita. A produção do diário como instrumento didático pedagógico ou de como as crianças escrevem e tecem considerações sobre o ato de escrever. 2010. 64 f. Trabalho de conclusão de curso (licenciatura - Pedagogia) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências de Rio Claro, 2010. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/118365. Acesso em: 25 mai. 2022 BRANDÃO, R. Os estágios do luto, conheça as 5 fases e como superá-las. In: Os estágios do luto, conheça as 5 fases e como superá-las. Brasil: Zenklub, 2021. Disponível em: https://zenklub.com.br/blog/saude-bem-estar/fases-de-luto/. Acesso em: 25 mai. 2022. Costa, J., & Lima, R. (2005). Luto da equipe: revelações dos profissionais de enfermagem sobre o cuidado à criança/adolescente no processo de morte e morrer. Revista Latino- Americana de Enfermagem, 13(2), 151-157. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-11692005000200004. Acesso em: 25 mai. 2022. FLACH, K. et al . O luto antecipatório na unidade de terapia intensiva pediátrica: relato de experiência. Rev. SBPH, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 83-100, jun. 2012 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516- 08582012000100006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 25 mai. 2022. Fonseca, P. Luto Antecipatório: as experiências pessoais, familiares e sociais diante de uma morte anunciada. São Paulo: Polo Books. 2012. KITO, A. 1 Litro de Lágrimas: Diário da Aya. Tradução: Karen Hayashida. São Paulo: NewPOP, 2013. KOVÁCS, J. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992. KUBLER-ROSS, E. Sobre a Morte e o Morrer. São Paulo: Martins Fontes, 2008. PINHEIRO, H. Efeito da facilitação neuromuscular proprioceptiva no equilíbrio de indivíduo com degeneração espinocerebelar recessiva. Fisioterapia Brasil, Brasil, v. 13, ed. 2, p. 144-148, 2012. DOI https://doi.org/10.33233/fb.v13i2.528. Disponível em: 25

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