pentagrama Lectorium Rosicrucianum Vivei do novo princípio anímico Piet Mondrian, o pintor do vazio A Edda: A árvore da vida Iluminação sentado? A Dama Holda, um conto dos Irmãos Grimm A nova palavra A vida é bela. A vida é cruel2011 3mai/junnúmero
Editor responsável Revista Bimestral da EscolaA. H. v. d. Brul Internacional da Rosacruz ÁureaLinha editorialP. Huis Lectorium RosicrucianumImagens A revista Pentagrama dirige a atenção de seus leito-I.W. van den Brul, G.P. Olsthoorn res para o desenvolvimento da humanidade nesta nova era que se inicia.Redatores O pentagrama tem sido, através dos tempos, o símboloC. Bode, A. Gerrits, H.P. Knevel, G.P. Olsthoorn, do homem renascido, do novo homem. Ele é tambémA. Stokman-Griever, G. Uljée, I.W. van den Brul o símbolo do Universo e de seu eterno devir, por meio do qual o plano de Deus se manifesta. Entretan-Redação to, um símbolo somente tem valor quando se tornaPentagram realidade.O homem que realiza o pentagrama em seuMaartensdijkseweg 1 microcosmo, em seu próprio pequeno mundo, está noNL-3723 MC Bilthoven, Países Baixos caminho da transfiguração.e-mail: [email protected] A revista Pentagrama convida o leitor a operar essa revolução espiritual em seu próprio interior.Edição brasileiraPentagrama Publicaçõeswww.pentagrama.org.brResponsável pela Edição BrasileiraM.V. Mesquita de SousaCoordenação, tradução e revisãoM.J.Versiani, M.M. Rocha Leite, M.B. Paula Timóteo,A.C. Gonçalez Jr., D.B. dos Santos, J. Jesus, C. Gomes,M.D.E. de Oliveira, L.A. Nepomuceno, U.B. Schmidt,M.R.M. de Moraes, A. Abdalla, M. Mölder, R.D. Luz,F. LuzDiagramação, capa e interiorD.B. Santos NevesTerceira capaH. RogelAdministração, assinaturas e vendasPentagrama PublicaçõesC.Postal 39 13.240-000 Jarinu, [email protected]@pentagrama.org.brAssinatura anual: R$ 80,00. Número avulso: R$ 16,00Lectorium RosicrucianumSede no BrasilRua Sebastião Carneiro, 215, São Paulo - SPTel. & fax: (11) [email protected] em PortugalTravessa das Pedras Negras, 1, 1º, [email protected]© Stichting Rozekruis PersProibida qualquer reprodução semautorização prévia por escritoISSN 1677-2253
p e n t a g r a m a Ano 33 Número 3 2011A terceira edição de 2011 da revista Pentagrama chega sumárioaté os leitores com toda a força da busca, com a luze com o conflito interior que ela implica. Foi redigida estudo da natureza de nossa consciênciapor pessoas que estão no caminho, pessoas que estão “vivei do novo princípio anímico” 2batendo à porta do imperecível. Afinal, quem ontem j. van rijckenborghestava buscando e hoje encontrou deve, antes de a fuga do círculo fechado 8tudo, aprender que tem de continuar buscando! Esse o momento criador 10é o método que todos os grandes empregaram e que da impossibilidade de deparar-setambém queremos aprender: seguir com os busca- com a iluminação 12dores e ajudar-nos uns aos outros, com o máximo de iluminação sentado?luz que possa existir em nós. Dessa maneira, a força a dama holda, um conto dosanímica irradia ao nosso redor. E a luz encontra seu irmãos grimm 15caminho através dos homens no mundo. piet mondrian, o pintor do vazio 20 alexander scriabin, um artista universal “a música é um caminho de revelação e um poderoso método de conhecimento!” 24 iluminação para gamers do last life para a vida real 27 a nova palavra alocução proferida no simpósio “a escola da sabedoria da vida” 33 a edda a árvore da vida 37 um fio condutor para a mística prática resenha de livro: o caminho de mestre eckhart para a consciência cósmica 42 k.o. schmidt Capa: O exterior contém o símbolo, o hieróglifo do interior. No desenvolvimento de uma flor ou de uma planta, o ser humano pode espelhar-se: em formação, beleza, fruto. © elly booi vivei do novo princípio da alma 1 1
ESTUDO DA NATUREZA DE NOSSA CONSCIÊNCIAvivei do novoprincípio anímicoJ. van RijckenborghPara compreendermos o que representa a vida desperta e consciente da alma, devemos formar umajusta imagem dos conceitos consciência, vida e alma. A consciência surge quando o princípio anima-dor, que dá origem à vida, está completamente interiorizado. Ou seja: quando ele opera com baseno ponto central desse sistema. Na natureza que vemos, há muitas manifestações. Dizemos que elaspossuem um princípio vital, porém, nelas, a alma não está interiorizada e age com base no exterior.Consequentemente, esses sistemas não possuem consciência. Pensemos no caso do reino vegetale nos insetos. A maioria das espécies animais não possui sequer um princípio vital individual. Noentanto, em outros animais, existe um estado semiconsciente. Nesse caso, o princípio anímico estáparcialmente interiorizado: ele não está exatamente situado no centro do corpo, porém permanecee vibra exteriormente. Em algumas espécies de animais superiores, como os cavalos e alguns cães, oprincípio anímico está quase completamente interiorizado, como é o caso do homem.Se a evolução dessas espécies continuasse, organismo uma força vital quádrupla. Quan- o estado natural dos cavalos, dos cães e do esse veículo etérico não funciona bem no dos homens ficaria num mesmo plano. ser humano, todos os tipos de dificuldadesAconteceria o que muitos autores, no decor- corporais aparecem. Esse conjunto de corporer da história, consideraram possível: a ma- físico e etérico é vivificado pelo princípionifestação de animais pensantes e conscien- anímico. Quando, de algum modo, o fio quetes e também a formação de sociedades de liga a alma ao corpo se rompe, a morte so-animais. Basta lembrar o conhecido Jonathan brevém, e o organismo perece, pois o sistemaSwift. Em sua obra Viagens de Gulliver, o per- já não pode ser mantido. Verificamos, por-sonagem Gulliver chega a uma sociedade de tanto, que a vida surge graças à colaboraçãocavalos que agem, pensam e vivem como os de uma alma ou princípio vital, de um corpohomens. A interiorização da alma no centro etérico e de um corpo físico.da personalidade torna possível a atividadedo pensamento, pelo menos a atividade cere- A consciência nasce quando o princípiobral no sentido humano comum. anímico está completamente interioriza- do. Podemos distinguir diversos estadosO PRINCÍPIO anímico O corpo físico é de consciência, de semiconsciência etc. Asconstituído por células e átomos. Ele vive diferenças dependem da relação entre a almae permanece vivo porque possui um corpo e o organismo. O princípio anímico estáetérico que introduz continuamente no perfeitamente situado no centro dos veículos2 pentagrama 3/2011
Jan van Rijckenborgh e Catharose de Petri,fundadores da Escola Internacional da RosacruzÁurea, descrevem e comentam para alunos einteressados o caminho que leva à libertação daalma com base em textos originais da DoutrinaUniversal, tais como o Corpus Hermeticum. vivei do novo princípio anímico 3
ou apenas em parte? Essa é a questão. Nossa sistema fígado-baço, especialmente ao fíga-pesquisa mostra claramente que o princípio do, enquanto os dois polos negativos corres-anímico é muito superior à própria vida, às pondem ao coração e à cabeça. Assim, a sedesuas formas e fenômenos. Mediante a vivi- da consciência – portanto a sede da vida dosficação pelo princípio anímico, mediante a sentimentos e dos pensamentos de quase to-animação, tudo existe ou deixa de existir. dos os homens dialéticos – está centralizada no sistema fígado-baço.O que é então o princípio anímico? Trata- Essas são a base e as características funda--se de um princípio de natureza astral ou mentais da vida de praticamente todos ossideral. Podemos associá-lo ao veículo astral homens.da personalidade, a um manto que envolveo corpo físico e sua contraparte, o corpo UMA NOVA E PODEROSA ATIVIDADE Comoetérico. O veículo astral é igualmente com- almas renascidas queremos entrar em umaposto por átomos: são átomos mais sutis que nova fase. Isso quer dizer: aspiramos à rea-os átomos etéricos e materiais. lização de um novo princípio astral, pois oHá, portanto, átomos materiais, etéricos e princípio que nos anima desde nosso nas-astrais, que correspondem às três esferas: ma- cimento tem uma estrutura dialética, queterial, etérica e astral. corresponde à dualidade dos aspectos opostos deste mundo (noite e dia, bem e mal, contraEnvolvendo o corpo material da terra há ou a favor etc.).uma esfera etérica, e, acima dela, há uma es-fera astral. É nessa esfera astral que o corpo Na Escola Espiritual, na jovem Gnosis, osastral do homem permanece durante as horas alunos se reúnem para conseguir obter umde sono. Ele é atraído por ela. O corpo astral novo princípio anímico, que desencadeiaexiste em três estados de ser, em três graus poderosa atividade em seu microcosmo.de densidade, com três unidades diferentes Quando conseguirmos alcançar essa meta,de vibração. experimentaremos imensos e maravilhosos resultados, que também podem ser compro-No mundo dialético, onde reina a dualidade vados cientificamente. Como entidades da– aqui, é preciso estar atento para compre- natureza terrestre, somos animados por umender então o que é a transfiguração –, um ser astral cuja atividade automática se origi-desses três estados astrais age positivamen- na inteiramente da natureza mortal. Porém,te, e os dois outros, negativamente. O polo quando é impulsionado por certas circuns-positivo do veículo astral corresponde ao tâncias da vida, o ser humano pode elevar4 pentagrama 3/2011
Quem busca a luz eleva o centro da consciência de seu estadonatural, no sistema fígado-baço, ao coraçãoa consciência do sistema fígado-baço para a polaridade negativa do centro do coraçãoo coração. Esse início já causa uma notável são revertidas. Mediante essa transformação,perturbação do processo vital comum. Afi- esse deslocamento do arranjo magnético,nal, quem consegue elevar sua consciência o controle do mundo astral da natureza daao coração não apenas abre a porta de seu morte sobre o aluno enfraquece e, ao mesmocoração à luz gnóstica, como também causa, tempo, é criada a possibilidade de que outroao mesmo tempo, uma perturbação de ordem princípio anímico, que penetrou no coraçãomagnética no ser astral – esse princípio ani- e despertou o botão de rosa de seu sono demador natural que até então governava toda morte, se desenvolva e possa irromper ema sua vida. seu ser. Por essa razão, para um discipula- do positivo, é fundamental que o candidatoA ABERTURA DA PORTA DO CORAÇÃO consiga realizar a transfiguração da alma.O aluno sério da Escola Espiritual deve al- Essa é a chave do bom êxito na senda.terar a ordem dos princípios naturais que oanimam, movimentam e permitem que ele O NOVO PRINCÍPIO VITAL Quando o alunoviva. Isso ele consegue ao elevar o centro segue o caminho do estado de alma renasci-da consciência do sistema fígado-baço para da, no início ocorre o mesmo que aconteceo coração mediante o intenso anelo pela luz em uma planta ou em um animal: como olibertadora, mediante a busca persistente por novo princípio astral, ou seja, o novo princí-essa luz. pio anímico, ainda não está concêntrico com relação aos demais veículos, a nova consci-Quem busca a luz eleva o centro da cons- ência ainda não pode existir. No entanto, ociência de seu estado natural, no sistema novo princípio anímico, a nova alma, estáfígado-baço, ao coração. E por meio desse presente de fato. Ele trabalha no aluno e oanseio de salvação, desse anelo do coração, impele a muitas atitudes na vida, mas aindaabre-se, em determinado instante, a porta do falta a nova consciência, pois o novo princí-coração para a luz da Gnosis. Desse modo pio anímico ainda não está concêntrico coma polaridade positiva do centro do fígado e os outros veículos do corpo. A nova alma vivei do novo princípio anímico 5
já exerce influência sobre a vida; trata-se,graças a Deus, de uma nova e crescente vidaanímica, mas esta ainda não é controlada,não é consciente, portanto, ainda não é sen-tida.Por isso, na Escola Espiritual da RosacruzÁurea, como sempre aconteceu na Gnosisuniversal, é continuamente enfatizado queo aluno, mediante seu autossacrifício e suacooperação prestimosa, viva de acordo comas normas do novo estado de alma.A grande maioria dos alunos, se não todos,foi atingida e marcada pela luz. E, por isso, aEscola diz incansavelmente: “Conscientes ounão do novo princípio anímico, vivei dele,vivei disso que já possuís como nova força dealma. Então, chegareis um dia a viver verda-deiramente!”Fazendo isso, essa nova atitude de vida cuida-rá de preparar “a morada”. Quando Jesus, oSenhor, diz no Evangelho: “… e viremos paraele e faremos nele morada”, isso significa queo novo princípio anímico imortal deve for-mar-se de maneira perfeitamente concêntricacom os outros corpos.Portanto, a alma da renovação deve podermorar perfeitamente no candidato. Assimcomo a velha alma é concêntrica com todosos outros corpos, o mesmo deve acontecercom o novo princípio anímico.6 pentagrama 3/2011
No estado de alma transfigurada o candidato atinge o começo que possibilita a verdadeira e eterna evolução A reVERSÃO DOS POLOS Realmente, há pela qual é alimentado. No caso do homem enorme diferença na reversão. No anti- nascido da natureza, essa fonte situa-se dire- go estado de alma natural, o pólo positi- tamente no mundo astral, nos éons naturais. vo localiza-se no sistema fígado-baço, e o Porém, no estado de alma transfigurada, de negativo, na cabeça e no coração. No novo alma revertida, o candidato atinge a base da estado anímico, a situação é invertida, o vida primordial, do começo que possibilita a pólo positivo é estabelecido na cabeça e no verdadeira e eterna evolução, o eterno vir-a- coração, enquanto o pólo negativo fica no -ser. sistema fígado-baço. Quando realizardes essa reversão, quando viverdes da nova força da Nesse estado de alma já não há ligação com alma de maneira consequente, a nova cons- os éons naturais, mas exclusivamente com ciência anímica também florescerá, e surgirá o Espírito, com a força original da manifes- uma vida desperta e consciente da alma no tação do Universo, que suscita e dá a vida. sentido gnóstico. Somente agora, nesse novo estado de alma, a ligação com o Pimandro do início torna-se E assim podemos dizer: o estado anímico com de novo um fato, restabelecendo o que um o qual se pode viver no novo campo astral re- dia foi rompido. laciona-se com um corpo astral de polarização totalmente inversa. Voltar-se para a luz gnós- Então o eterno Espírito se manifestará no tica significa, ao mesmo tempo, uma inversão, inteiro estado de vida, mediante o princípio uma reversão, um voltar-se em sentido literal. anímico imortal. Por isso, é uma lei sagrada e universal a afirmação: “Quem renova a Considerai, nesse contexto, o relato sobre alma descobre o Espírito e o encontra”. µ Maria, a mãe do Senhor: “Quando o Espírito© Elly Booi Santo desceu sobre ela, ela voltou-se, e viu Jesus em pé”. Vamos agora esclarecer que o princípio astral do homem, o corpo astral, o ser anímico, está ligado a uma fonte da qual ele vive e vivei do novo princípio anímico 7
a fuga do círculo fechadoPassos pesados fazem-se ouvir em cima de suspiros dos velhos carvalhos abatidos. “Com mim. Colocaram-me sobre este riacho para esses troncos grossos faremos muitas vigas e servir de ponte e escolheram-me porque mi- pranchas”, disse um dos homens, “e os galhos nha madeira é adequada para essa função. Dizem: do topo darão uma boa lenha para o inverno”. “O carvalho é duro e não apodrece rápido!” Era esse, então, o destino de um esplêndido Começo a ter lembranças. Não é a primeira carvalho: crescer durante séculos, suportar vez que andam, saltam, tropeçam sobre mim… o vento e as diversas condições climáticas, Vivo essa experiência desde o início de minha deixar-se cortar, podar, passar na serra elétrica vida, sem cessar. Quando eu era uma pequena e transformar-se em móveis. No final de seu noz de carvalho, uma forte tempestade arran- ciclo terrestre, a árvore desaparece, servindo cou-me de minha mãe, assim como muitos para fazer fogo e devolvendo o calor do sol irmãos e irmãs menores. Caí e rolei montanha armazenado durante muitos anos em sua ma- abaixo onde se erguiam numerosos e imensos deira. E o que sobra não passa de um punhado carvalhos. Fui parar entre duas pedras enormes. de cinzas e um pouco de umidade. Ou ainda, O casco de um cervo que passava afundou-me como aconteceu aqui: uma pequena ponte no ainda mais no pedregulho. meio de uma paisagem campestre.E as folhas que caíam me cobriram rapidamente. Estes eram os pensamentos de dois caminhantesPouco depois escutei animais farejando. Javalis! que se encontravam depois de muitos anos dian-Eles estavam quase me encontrando quando um te de um carvalho ainda em pé e já bem idoso.tiro os fez partir em disparada. Ao passar por E o carvalho pensou: Um ciclo sem fim, eternomim, um deles me enterrou ainda mais no chão. – isso é tudo? Esse é o sentido da vida na terra?Na primavera seguinte, minha raiz penetrou a É igual para todos os seres vivos? Para todos osterra e um pequeno e belo caule, com lindas vegetais, animais, humanos? Às vezes felicidade,folhas, lançou-se em direção à luz. Em seguida, às vezes desgraça? Dentro dele, a fúria, a raiva,sem prestar nenhuma atenção, algumas pessoas a tristeza e o desespero disputavam o primeirocaminharam por cima de mim, enquanto outras lugar. Seria realmente esse o sentido da criação?me fizeram estalar debaixo de seus sapatos, mas,flexível como eu era, me reerguia sempre. Junto da árvore, no silêncio de uma noite clara e fresca, os dois passantes tiveram a impressãoCerta vez ouvi que, lá no alto, na montanha de ouvir uma voz suave: “O ser humano éde onde eu viera, estavam derrubando árvores. como uma árvore, mas suas raízes estão no céu.Estrondos e estalos acompanhavam os últimos Quebremos o círculo, o ciclo do nascimento8 pentagrama 3/2011
Buscar com a luzeterno, do crescimento, do desenvolvimento e no superior! Assim a morte será apenas o fimda morte. Expandamos a espiral em nosso inte- necessário da velhice e da rigidez da madeira;rior e elevemo-nos! Sentimos o desespero e nos e nossa nova animação, o despertar de umaperguntamos. Aqui, a única resposta possível energia flexível, divina e luminosa, capaz deé: Renascer! Elevar-se interiormente, acima assimilar completamente as correntes vitais dado campo de vida natural, buscar um desti- vida original!” µ a fuga do círculo fechado 9
o momento criadorENSAIO SOBRE COMO APROXIMAR-SE DELEOs que praticam o zen exercitam-se durante anos visando a uma única ação, serviro chá, atirar com arco ou desenhar com crayon. Eles fazem tudo isso unicamentepara, um dia, num instante incondicional de autoesquecimento, vivenciar o milagre:sair da dualidade e do “eu” e ingressar na unidade com o Ser.OFENÔMENO DA EXAUSTÃO Consegui- A LUTA PELA EXISTÊNCIA Assim, plenos de nos- mos perceber? Sabemos que o eu precisa talgia e de desejo, ricos de experiência e cheios dissolver-se no caminho espiritual. Por- de ideias, giramos em torno do limiar da porta.tanto, é por aí que tentamos começar. O fracasso De que tipo são as ideias que fazem a porta abertajá está programado, mas não é errado continuar a dissipar-se? Quais são os obstáculos que mencio-fazer tentativas. Durante o longo conflito, acom- namos aqui? Que tipo de obstáculos são esses?panhado pela auto-observação, sentimos nosso De onde eles vêm? A experiência de vida forneceinsucesso. Nossa vontade pessoal não é suficiente os métodos para avançarmos, para termos umapara alcançar o alvo – afinal, o que constitui o ideia do quanto já avançamos mais que os outrosobstáculo é exatamente o esforço! Depois de certo na luta pela existência. Com o passar dos anos,tempo, essa experiência gera esgotamento. Ora, se traçamos um plano de vida, em parte retomadomesmo exaustos continuamos com nossas tentati- de nossos pais, em parte trazido como herançavas infrutíferas, ainda é possível, como personali- cármica, e em parte baseado em nossas própriasdade aliada ao “agente” que está oculto em nós, vivências.continuar o trabalho por muito tempo – enquan- Em relação aos momentos especiais dessas “aber-to esperamos indefinidamente que surja algum turas criativas” também existem, dentro de nós,sucesso. reminiscências e ideias mais ou menos claras, rela-Mas, o que realmente sabemos a respeito desse tivas às sensações, imagens e determinadas cenasmomento espiritual? Como ele acontece e com que vão surgindo. Todas essas ideias que nossoque ele se parece? Mesmo quando o nosso esforço subconsciente tece continuamente a respeito deé gerado pela lembrança de vivências anteriores nossos projetos vêm em forma de dados estratégi-de “abertura de consciência”, esquecemo-nos do cos que estão à nossa disposição na luta pela exis-caminho que leva até esse momento espiritual e tência. Mas em nada nos ajudam quando se tratatambém nos esquecemos da chave e da porta. É de aproximar-nos da verdadeira liberdade ou daque elas são extremamente incompreensíveis, cer- “unidade com o outro”. Pelo contrário: elas noscadas de brumas – e nós, os valentes buscadores, prendem, desse modo, às imagens sufocantes quenão podemos enxergá-las de modo algum, apesar continuarão a cristalizar-se dentro de nós durantede elas estarem bem na nossa frente. Já nos esque- toda a nossa vida! Os jovens utilizam toda a suacemos da porta. Sempre fazemos isso, apesar de energia para ultrapassar essas muralhas. Em maté-termos vivido a fugaz experiência dessa abertura ria de criatividade, na maioria das vezes eles sãode consciência por muitas e muitas vezes. É que, ousados e nada convencionais, e aventuram-se empara o ser humano, é impossível já ter uma chave todo tipo de formas e conteúdos novos. É que seupronta, que convenha a todas as situações. Mas, projeto interior ainda não se tornou obrigatório.quando tudo vai bem, a porta está sempre aberta O que é que caracteriza aquele momento único dadiante de nós. experiência criativa? Podemos descrevê-lo assim:10 pentagrama 3/2011
Buscar com a luzJoseph Mallord William Turner (1775-1851) Fall of the Tees in Yorkshire, 1825-26 (Cascatas do Tees, em Yorkshire).Indianapolis Museum of Art, EUA“Precisamente porque não te prendes a ele, ele O que caracteriza esses momentos? O que faz comnão te abandona. Quando alguém segue o cami- que cada espectador saiba o que o diretor quernho da autoentrega, em silenciosa contemplação, expressar com a câmera lenta?ele descobre que, embora se mantenha minuto Parece que, nas profundezas do ser humano, estáa minuto desapegado em seu ser interior, a nova adormecida a reminiscência de que o tempo irávida o inunda com seus raios. A nova vida não parar quando nos libertarmos do “eu”. Do mesmolhe pertence; ela pertence ao Outro, porém o eu modo, nesses instantes decisivos que determinamdialético funde-se nela completamente e desapare- o destino, diante da violência de uma corrente dece.” Assim, podemos continuar fazendo, com toda energias superiores, percebemos que estamos com-a naturalidade, tudo o que fazíamos antes, porém pletamente neutros segundo o eu. Estamos magni-livres da rotina diária, sem atribuir-lhe nenhum ficamente a ela ligados! Por fim, entregamo-nosvalor. Não importa o que irá acontecer. Nós vi- a ela. O desejo de entregar-nos a essa correnteveremos de acordo com uma necessidade interna, permite que todo o nosso sistema se acalme, e,que não obedece a critérios externos. como se diz, “esse momento parece durar eterna- mente”. Contudo, no instante seguinte, a experi-EM CÂMARA LENTA Com base em tudo isso, ência dobra-se diante do pensamento, da análise epercebemos algo incrível: ficamos um pouco mais do julgamento de tudo o que vivenciamos.lentos em tudo o que fazemos. Mas será que é só Portanto, paremos! Desistamos de ficar semprena aparência? Com certeza exercemos nossas fun- forjando chaves que fecham nossa prisão do ladoções sem esforço, com leveza, sem dúvidas e sem de dentro, quando na realidade a porta está ampla-comentários – como os cineastas que filmam em mente aberta! µcâmera lenta os momentos especiais ou decisivos. o momento criador 11
da impossibilidade dedeparar-se com a iluminaçãoDiante da janela, o sol da manhã se elevou lentamente no horizonte.Agora, já está brilhando intensamente, iluminando a fileira de árvores,e seus raios projetam um brilho dourado sobre a mesa e o papel.A sombra de minha caneta segue fielmente sua contraparte material quevai traçando letra por letra no papel, dando a impressão de que as pala-vras se vão formando simultaneamente em dois níveis.OS SINAIS Posso escrever a respeito fossem morrendo com o passar do tempo? de um ser “não iluminado” porque Certamente eles fariam uma descrição do sol percebo isso diariamente, muitas e a seus descendentes, que jamais o viram! Mas,muitas vezes. Trata-se de algo familiar: do de que forma essa descrição chegaria à tercei-sofrimento motivado pelas circunstâncias e ra, à quarta ou à centésima milésima pessoa?situações desastrosas da vida cotidiana e da Sem dúvida alguma, poderia chegar assim:aversão pelas pessoas que “dão nos nervos”, “Antigamente, o sol iluminava o dia com suacom seus hábitos incômodos de desejarem luz. Seus raios cálidos penetravam praticamen-impor-se. Isso, sem falar de pensamentos e te todos os cantos e projetavam nitidamente ossentimentos execráveis e inexprimíveis que contornos luminosos de todas as coisas”. E quemsempre nos estão surpreendendo. Todas essas nunca houvesse vivenciado esse acontecimento,ações descrevem bem claro um estado não mal conseguiria imaginá-lo. Perguntaria:iluminado.Então, o que vem a ser iluminação? Olho pela “Como seria isso? Como milhares de lâmpa-janela e me dou conta de que o sol se elevou e das fluorescentes acesas no mesmo momento?”desapareceu de meu campo de visão. Com ele, “Não! Dizem que a luz do sol é mais doura-também desapareceu o brilho dourado sobre da e muito mais quente.” “Então seria talvezminha mesa, onde a luz comum de um belo como uma imensa onda de lâmpadas alógenasdia de outono ocupa agora seu lugar. Embora acesas ao mesmo tempo?” “Não. Dizem queo sol já não seja visível como um disco radian- a luz do sol é mais suave, cambiante e maiste, sua luz permanece à minha volta iluminan- matizada.” “Seria como… um oceano de velasdo o dia: posso perceber sua atividade. brancas?” “Não: a luz do sol não vacila, não oscila nem se extingue com o vento.” “VocêDESCRIÇÃO DO SOL Mas, o que acontece quer dizer que, para podermos descrever a luzà noite, quando nosso lado do planeta dá as do sol, precisamos enxergá-la?” “Sim.”costas ao sol e as trevas nos envolvem? Para “Mas, se eu nunca a tivesse visto, e alguémnossos olhos, o sol desapareceu de modo que a conhecesse quisesse descrevê-la… Euincontestável. Contudo, sabemos que ele está teria de acreditar nessa pessoa? E, caso eusempre lá e voltará na manhã seguinte. Ou, acreditasse nela, poderia fazer uma representa-falando mais exatamente: o lado da esfera do ção dessa luz para compreendê-la? E se eu for-mundo em que vivemos estará voltado para masse uma imagem em minha mente – comoele. E se a noite se prolongasse infinitamen- a luz de milhares de lâmpadas alógenas oute? Por quanto tempo ainda saberíamos da como um oceano de velas? E se eu fosse paraexistência do sol? E se todos os que o viram onde o sol pode ser visto, e, depois de vê-lo,12 pentagrama 3/2011
Buscar com a luzWilliam Turner, Sun setting over a lake (detail) 1840, (Pôr-do-sol sobre um lago (detalhe). Tate Gallery, Londres.voltasse para o lado sombrio da terra e pudes- Por enquanto, tomo a decisão de já não falarse relatar minha viagem? Será que seria capaz sobre a iluminação até que possa alcançá-la.de explicar tudo com clareza para que outros De agora em diante, vou somente assistir acompreendessem... ou me faltariam palavras tudo o que acontece comigo. Acho que essepara isso?” não é um final tão ruim para uma história da impossibilidade de deparar-se com a iluminação 13
E penso: é por isso que o caminho para a luz, para ailuminação, não é um caminho de ideias e expressõesintelectuais, mas sim de escuta interior e realização do queouvimossobre iluminação. Por isso, ponho a caneta de admiração. Uma criança de cinco anos havialado. compreendido intuitivamente essa ligação, com seu pensamento infantil ainda não formado! Al-A ALMA QUE ESTÁ NA LUZ Das profundezas da guém que chegou a experimentar verdadeiramen-memória me chega uma lembrança. É meu fi- te a luz, que virou luz ele mesmo, aconselhoulho, com seus cinco anos de idade. Aproxima- a nos tornamos crianças: Cristo! E eu, será que-se de mim com ar pensativo, levanta as mãos compreendi esse conselho? Em caso positivo, jána frente dos olhos e diz: “Mamãe, quando a conseguiria colocá-lo em prática na vida cotidia-gente morre e a nossa alma vai para Deus... a na? O que fez meu filhinho, na realidade?sombra ainda existe?” – pergunta, mostrando Ele abordou ousadamente a possibilidade daas mãozinhas e o corpo. Fiquei intensamente própria morte, permanecendo inteiramenteperturbada pela profunda seriedade que lhe aberto à possibilidade da vida. Será que, comoirradiava dos olhos. Penso que geralmente as adulto inteligente, posso abrir-me aos impulsoscrianças são de grande pureza, quase santas. de uma alma que alcançou a luz? Será que sePor que essa lembrança me vem justamente eu escutar a voz interior, como uma criançaagora? Redescubro, como antes, a verdade extraordinariamente atenta, poderei vivenciardessas palavras de meu filho. novamente um pouco da luz do sol espiritualO que projeta essas sombras que são nossos corpos? que nunca ficou ausente?Que luz as irradia? Quando a alma se volta para Esse pensamento desperta em mim um anseio“Deus”, os corpos continuam como sombras. Por- extraordinário. Quero escutar, quero expe-tanto, a alma é o elemento que dá vida às sombras! rimentar a luz. Desejo dialogar com minhaUma alma que se tornou totalmente luz já não alma e ouvir o que ela quer dizer-me. E pen-produz sombra, pois é esclarecida, iluminada. Ilu- so: é por isso que o caminho para a luz, paraminação é isso! É uma qualidade da alma. Já não a iluminação, não é um caminho de ideiasé um estado do corpo, nem qualquer faculdade da e expressões intelectuais, mas sim de escutapersonalidade. Mas, reflito: a alma não seria uma interior e realização do que ouvimos.parte da personalidade? Enquanto o ouvido interior não pode ouvir… Sim, mas à medida que a nova alma estiver nada, é de supor-se que os olhos internosna luz e nossa personalidade estiver ligada a também não verão nada! E a luz – que é umaela apenas como sombra. Do contrário, a per- realidade para a alma – continuará sendosonalidade também agarra a alma. para mim, pelo menos por enquanto, a luz de milhares de lâmpadas fluorescentes. É por issoAqui termina a cadeia de associações de ideias que decidi, de agora em diante, guardar silên-espontâneas. Permaneço sob o impacto de minha cio a respeito do assunto “iluminação” µ14 pentagrama 3/2011
Buscar com a luziluminaçãosentado?“Os rosa-cruzes vivenciam a iluminação?” Quando um buscador espiritual me faz essapergunta, hesito um pouco, antes de responder. É que tenho diante de mim alguém que nãoestá querendo uma explicação teórica ou filosófica, mas sim uma resposta muito pessoal.A DAMA HOLDA, UM CONTO DOS IRMÃOS GRIMM1Será que eu deve- ria responder a essa pergunta na primei-ra pessoa, sabendo que“eu” e “iluminação” nãocombinam, e até mesmose excluem totalmente?Por outro lado, trata-sede uma necessidade deintercâmbio de pessoa parapessoa, de uma procurapor entendimento a sercompartilhado por duas almas.Alguém está se dirigindo à minhapessoa – a mim, que também souum buscador que se esforça paraencontrar a verdade.Eis minha resposta:Sim. Tenho a mais pro-funda convicção disso epercebo que, num campotão especial como o daEscola Espiritual, a ilumi-nação pode acontecer aqualquer instante. Minhaexperiência de iluminaçãonão é nem espetacular, nemsublime, nem formidável. Eu a vi- 1 Esse conto de fadas alemão recolhido pelos Irmãos Grimm foi pu- blicado pela primeira vez em 1812. A personagem era originalmente conhecida como Frau Holle (também conhecida como “Dona Flocos de Neve” ou “Dama Inverno”). Tem dentes compridos e é assustado- ra. Em alemão existe uma relação etimológica entre o nome Holle e a palavra inferno (Hölle). iluminação sentado? 15
Chega até mim uma corrente provinda do espaço mais interior,mais imperceptível, imperecível e atemporalvencio muito mais como uma corrente de forças mas, a partir do momento em que algumas no-subjacentes. Meus pensamentos comuns a respeito ções se vão tornando claras por força da repetição,disso quase não participam. No entanto, interior- elas brotam e tornam-se ativas. Elas atingem o es-mente, há uma mudança que vai acontecendo tado de “vocabulário ativo”. No início, as palavrasde forma imperceptível e me deixa assombrado são apenas repetidas. Mais tarde, elas podem serquando tomo consciência dela. Sinto que alguma evocadas e pronunciadas conscientemente. Con-coisa está fluindo, algo está mudando: são novas tudo, mesmo quando temos à nossa disposição umideias, novas maneiras de considerar um problema vocabulário, ainda não está disponível um enca-que se apresenta à minha consciência. deamento livre de pensamentos: ainda não existeAcontece com frequência de eu não estar certo fluidez de linguagem. As palavras devem serde ainda poder falar de “minha” consciência: é levadas numa corrente, e isso somente pode acon-como se ela já não pertencesse apenas à minha tecer quando elas viram uma correnteza de forçapessoa. Sem dúvida tenho uma consciência, uma que nasce do interior. Para mim, é difícil entenderimagem de mim mesmo e do que me cerca. como essa corrente interior toma forma. Em todoPenso e sinto em função de certos padrões. Mas, caso, ela não procede de meu pensamento nem dede tempos em tempos, essa consciência é atra- meu intelecto. Também não se desenvolve comvessada por raios luminosos, por clarões que não base em minhas emoções. Não é induzida pelaconsigo explicar. Sempre tenho a impressão de vontade nem é consequência de minhas intençõesser iluminado por uma lanterna proveniente de – e provavelmente muito menos de meu passadoum lugar mais elevado. É como se essa lanterna cármico, do fardo cármico que trago nas costas.enviasse seus raios até o fundo de uma caverna. Não. Ela flui do espaço mais interior, mais inapre-Essa luz me traz compreensão, novas perspectivas ensível, imperecível e atemporal.aclaradas por coisas cujas relações até então me Mesmo não podendo compreender o funciona-eram obscuras. Muitas vezes também tenho a mento dessa corrente interior, uma coisa está emimpressão de ser acariciado por uma luz aqucedo- meu poder: não criar nenhum obstáculo para ela.ra, cujos raios ativam os processos de maturação Posso alcançar até mais do que isso, pois consi-totalmente fora de minha consciência. Todavia, go transformar diretamente em vida e em atoschega um momento de maturidade em que algo tudo o que vou recebendo e vivenciando. Masdo novo se desenvolve e insiste em vir à luz. É isso somente será possível se eu estiver disposto abastante difícil expressar esse novo tipo de expe- seguir a corrente, a aceitar as mudanças da vidariência com o auxílio de palavras. a cada instante, a cada segundo. Esses clarões são um auxílio: são sinais portadores de um convite.APRENDER A FALAR Talvez seja possível comparar Tornar-se interiormente iluminado cria uma ten-tudo isso à aprendizagem da linguagem. No iní- são que implica em uma missão. A experiência dacio, dispomos somente de um vocabulário passivo, luz é incompatível com o conforto da poltrona: ela16 pentagrama 3/2011
Retrato de Jacob e WilhelmGrimm, desenhado pelo irmãoLudwig Emil Grimm em 1843.Hanauer Geschichtsverein E.V. 1844,Hanau-Kesselstadt, Alemanhaocasiona um sentimento de responsabilidade e dá enteada, é uma bela e corajosa jovem; a outra, anascimento ao desejo de responder a essa dádiva. verdadeira filha, é feia e preguiçosa. A corajosa éA graça desse toque sempre vem acompanhada obrigada a fiar diariamente do lado de fora, pertode uma prova. Será que existe disponibilidade de uma fonte, até os dedos sangrarem. Certo dia,para transmitir o que foi recebido? O fogo que foi sua roca lhe escapa das mãos e cai na nascenteaceso no interior é forte o bastante para fornecer a do poço. Aterrorizada com a possível reação daenergia para o passo seguinte, reconhecido como madrasta, ela joga-se dentro do poço a fim de re-necessário? cuperar a roca e acaba chegando a outro mundo, um mundo paradisíaco.ANALOGIA COM O CONTO A DAMA HOLDA, DOSIRMÃOS GRIMM Esse fato de sermos incessan- A Donzela de Ouro e a Donzela de Pez são doistemente postos à prova é apresentado concreta- aspectos sempre presentes em nós simultaneamen-mente no conto A Dama Holda. Compilada pelos te. Quando a Donzela de Pez atua em nós, nossairmãos Grimm, essa história – que, no fundo, é vontade é extremamente vacilante e indecisa, euniversal – é um autêntico conto iluminador, de nossas motivações, bastante egocêntricas. Nãodespertar. Nela, aparecem interligados o desper- percebemos ainda os passos pequenos, porémtar e o ato libertador. Vemos as duas filhas de importantes, a serem dados em nossa existênciauma viúva: a Donzela de Ouro e a Donzela de cotidiana, relativos à nossa disposição para servir.Pez, palavra que significa piche. Uma delas, a Quando a Donzela de Ouro está atuante, nossas iluminação sentado? 17
motivações são outras, e a compaixão nos anima. A segunda prova da Donzela de Ouro é a seguin-Com o coração pleno de amor, queremos distri- te: uma macieira carregada de frutos pede parabuir pão em vez de pedras. Isso nos torna “be- ser sacudida. Ela diz: “Todas as minhas maçãs es-los” e nos leva a trabalhar até que nossas mãos tão maduras!” Em seguida, as maçãs precisam sersangrem. Estamos sempre nos esforçando para colocadas em uma única pilha. Isso é interessante.descobrir o melhor meio de chegarmos a uma O que amadureceu no plano da alma não existe“harmonia no intercâmbio de nossas atividades”. isoladamente: deve ser ajuntado, unido e reuni-Acumulamos experiências dolorosas, e nossa luta do. Um grande número de elementos maduros écotidiana nos faz sentir como se estivéssemos “no a garantia para um magnetismo poderoso, cheiofundo do poço”. Mas, certamente, não encontra- de força. Tento imaginar, representando pararemos neste mundo a verdadeira compaixão e o mim mesmo a ação de empilhar as maçãs emverdadeiro amor. Eles têm sua origem num nível um só monte. A única possibilidade é fazer umde existência completamente diferente. Nesse monte na forma de uma pirâmide! Quando umoutro mundo, que é o mundo da alma, é avaliada grande número de almas maduras se reúne, elasnossa chave vibratória, ou seja, nossa disponibili- formam uma “pirâmide vinda de baixo” sobre adade para corresponder ao chamado e servir. qual pode descer uma “pirâmide vinda do alto”.As três provas que o outro mundo apresenta à Desse modo, uma corrente de força provenienteDonzela de Ouro (e mais tarde à Donzela de Pez) do mundo do Espírito pode derramar-se nessecarregam simbolismo profundo. Para começar, campo especial de almas.a Donzela de Ouro chega perto de um forno, eos pães a chamam e pedem: “Tire-nos daqui! Se A PORTA DE SATURNO E chega a vez da terceiravocê não fizer isso, queimaremos, pois estamos prova: a jovem corajosa encontra a Dama Holda,assados há muito tempo!” Diante do novo pas- que, devido a seus longos dentes, logo de inícioso concreto a ser dado, quantas vezes já não nos lhe causa medo e pavor. Os grandes dentes daperguntamos: “Será que isso está ao meu alcance? Dama lembram as grades da porta de Saturno.Estou preparado para essa tarefa?”Na perspectiva A Dama Holda é a deusa da morte e da renova-que é própria do eu, essas perguntas me atormen- ção. Na Europa do Norte, o dia dos Reis Magostam. Mas, quando consigo deixar de lado essas encerra um período de doze noites santas e éperguntas que me limitam e avanço confiante- chamado de “o Dia da Dama Holda”.mente, as dúvidas, as ideias de “bem” e de “mal”desaparecem. Tudo o que já amadureceu no nívelda alma precisa ser utilizado! É unicamente nessecaso que a corrente de força se mantém e ficaconstante. Mais ainda: ela se torna inesgotável.18 pentagrama 3/2011
Tudo o que já amadureceu no nível da alma precisa ser utilizado!É unicamente nesse caso que a corrente de força se mantémUma vez passada a porta de Saturno, exige-se dade. A disponibilidade da alma liberta paraum modo de servir completamente diferente. A fazer esse autêntico sacrifício, que consiste emfilha corajosa já não está a serviço da madrasta trabalhar bem no meio da lamaçal da natureza,– o mundo da dialética – mas, sim, a serviço da produz a “chuva de ouro”: é a consciência dapura matéria primordial. A cama, como lugar de alma-espírito, que ela acaba de receber. Reco-repouso, é um belo símbolo para a restauração e berta por esse manto dourado totalmente novo,a purificação que se tornaram possíveis, agora que a alma poderá atuar de modo realmente criadoros velhos impulsos estão mortos. À medida que e sanador em meio aos acontecimentos mun-esse trabalho é bem-sucedido, as plumas do edre- diais, mediante uma participação impessoal e,dom caem como flocos de neve sobre o mundo. portanto, inteiramente espontânea e desinteres-Assim, o princípio vivificador do amor – a água sada, sem segundas intenções.purificadora – flui pelo coração de todos os queservem dessa maneira, envolvendo toda a humani- Tenho-me perguntado muitas vezes por que achodade e preenchendo todos os espaços. esse conto da Dama Holda fascinante. Será queMas a alma que alcançou a maturidade ainda não criei uma bela imagem de acordo com minhaschegou ao fim de seu caminho: ela está mergu- expectativas? Quero sempre compreender tudo!lhada em profunda tristeza e nostalgia! Contudo, Meu “eu” quer receber um plano, um fio condu-lá no outro mundo, onde ela se encontra, tudo se tor. Ora, a alma não necessita de nenhum planorealiza mil vezes melhor que na dialética. ou estratégia! Ela somente precisa de forças paraA razão dessa tristeza é que a verdadeira ta- dar um passo a mais.refa – a tarefa de libertar a humanidade caída Do conto da Dama Holda brota uma grande– ainda não foi concluída. Para tanto, o novo sabedoria, pois ele esclarece muitas coisas. Aobreiro terá de unir o ideal à realidade – e iluminação sempre pode acontecer. Mas não serádeve fazê-lo muito concretamente. O que é uma experiência luminosa incomum, que expli-espiritual terá de iniciar uma relação com a cita e aclara de repente, de um único golpe, todorealidade, com a vida diária. Por isso observo o caminho de transformação. O caminho retoque todas essas formas de trabalho realizadas diante dos pés é sempre iluminado, contanto queno campo mundial trarão como consequência haja real disposição do obreiro para dar o passoa purificação e a renovação das esferas astral seguinte, transmitindo e traduzindo em atos oe etérica, de onde o homem retira sua vitali- que ele recebeu µ iluminação sentado? 19
piet mondrian,o pintor do vazioEm sua obra mais tardia, o pintor holandês Piet Mondrian (1872–1944) atinge aabstração e, por meio dela, retorna aos elementos fundamentais de tudo o quedá forma: cor, forma, superfície, linha. Para tanto, ele expulsa de sua obra todas asimagens da realidade, todas as individualidades que possam ser identificadas, a fimde aproximar-se da “verdadeira” realidade. Ele quer restituir a realidade “pura” econstante da imagem sempre cambiante das formas naturais em manifestação.Quem se interessa pela primeira vez Um artista “naturalista” diria que uma árvore Victorie Boogie Woogie, Piet Mondrian 1942-44 © ANP PHOTO,valerie kuypers por essa obra tardia de Piet Mondrian é constituída de um tronco, de certo número reconhece sua técnica pictórica, que de galhos e de folhas. Mas Mondrian diz: nãotende a reduzir e a depurar tudo. Três re- – a essência da árvore está nas forças naturaistângulos estreitos – nas cores vermelho, azul que fazem crescer uma forma viva desde o soloe amarelo –, cinco superfícies e linhas de terrestre. São forças que cuidam para que essacontorno pretas de uma só largura, com um forma se divida mil vezes e se expanda. Comtriângulo preto! Será que isso se deve à arte o passar dos anos, Mondrian sempre pintou ada pintura? Parece tão simples! Os planos co- mesma árvore. A árvore é seu símbolo e seuloridos são impelidos para a borda. Meu olhar modelo. Ela representa a força vital, a naturezasalta primeiro de um plano colorido para o em seu todo: ela tem um valor universal.plano seguinte. A composição não é estáticaao olhar. Mas a rapidez dos movimentos vai “A árvore vermelha” de 1908 nos mostra o quese tornando mais lenta, pois o triângulo azul cativa Mondrian. Tudo o fascina: o embaralha-à esquerda bloqueia a ilusão do movimento de mento caótico dos galhos desnudos, o aspectorotação. Em vez disso, tenho a impressão de selvagem da natureza. É por isso que as tintasum todo que respira calmamente. A linha ver- vermelhas e azul-marinho são aplicadas comtical que segue à direita dá certa estabilidade pinceladas espessas, bem próximas umas dase desperta, pela grande distância dos campos outras. A árvore e a paisagem se distinguemcoloridos, uma impressão de grandeza e de claramente: a ação do espaço nasce da cor, mastranquilidade. O centro da imagem contém principalmente dos galhos que se entrecruzam.nada mais que um plano branco único. Na versão que Mondrian chama de “árvore cinzenta”, o ângulo de visão é o mesmo, masA maneira mais significativa de compreender a o motivo quase se dissolve completamente, e,arte é, quando isso é possível, seguir o cami- da paisagem, nada resta senão um vago pres-nho que o próprio artista percorreu. Felizmen- sentimento. As cores reduzem-se a matizeste, os passos de Mondrian são perfeitamente pouco definidos. Sobre elas, domina uma nítidaevidentes, e suas pinturas de árvores estão qua- estrutura de linhas de força que ativam os espa-se no meio desse caminho de desenvolvimen- ços intermediários. É graças a essa estrutura deto. Sobre essa pintura, tenho o sentimento de linhas de força que porções da figura se mistu-que o tema “árvore”, em especial, foi bastante ram com outras porções do plano de fundo. Oaprofundado. Ele é “tateado” pelo pensamento quadro intitulado “Macieira em flor”, de 1912,até que uma imagem do objeto da imaginação está ainda mais distante da realidade. A tramado artista tome o lugar da realidade. de linhas ainda possui mais fortemente esse20 pentagrama 3/2011
Buscar com a luzvivei do novo princípio da alma 21
impacto de superfície e coloca-se a serviço das formas naturais muda, mas a realidadeda estruturação do plano da base: a figura e continua… O objetivo não é pintar outras co-o plano de fundo se fundem. O esqueleto da res e formas especiais, com todas as suas limi-árvore é retalhado em partes justapostas e tações, mas sim aspirar a uma unidade maior.”transformado em pura dinâmica formal. Todo Essa “unidade maior”, que surge em sua obrae qualquer interesse emocional pelo motivo tardia chamada Composição n.° 2, nos atrai“árvore” parece ter desaparecido. principalmente por suas relações polares, mas vai ainda mais longe: cor primária/ausênciaDois anos mais tarde, na Composição n.° 6, os de cor, cor/cor, longo/curto, largo/estreito, es-dados naturais já foram completamente refu- querda/direita, plano alto/plano baixo, frente/tados. Em seu lugar, o que se torna o tema da fundo. Essas oposições aparecem sempre emrepresentação é a ordem. A fina rede que ago- uma interação mútua e é assim que criamra é tecida reduz a multiplicidade das formas certo equilíbrio. “Todas as coisas fazem partea uma geometria, e o que importa é o ângulo do todo: cada parte ganha um valor para oreto e os planos da base, pela equivalência de olhar, por causa do todo; e o todo tambémlinhas e superfícies. o recebe por causa das partes. Tudo consiste em relações de reciprocidade e interfaces. ANas pinturas de Mondrian, o processo evolutivo cor somente existe em relação a outra cor.de abstração que aqui se torna visível correspon- A dimensão se define por outra dimensão. Ede à visão do mundo da Sociedade Teosófica, de também não existe uma posição sem contrapo-cuja doutrina ele vai se aproximando cada vez sição. É por isso que eu digo: o que é essencialmais e da qual ele se torna membro em 1909. é a relação.”Foi assim que ele organizou a plenitude sem “O essencial das relações é o que existelimites da natureza até chegar à harmonia. Não entre determinada coisa e outra. Eu compre-se trata de deformá-la, mas sim de tentar esta- endo que entre minha mão e o lápis existebelecer, cuidadosamente, as bases de um mundo uma relação quando estou escrevendo algumaordenado – ou seja, de um mundo transformado coisa. Essa relação é tão evidente que esque-em um cosmo. A realidade, que até então havia cemos que ela existe. Todas as verdades sefornecido material para os pintores, agora deve- encontram em uma relação semelhante a essaria ser captada em sua própria existência. que acabo de citar. O que é real não é o lápis“Levei muito tempo para descobrir que a sin- nem a mão que o segura, mas é a relação en-gularidade das formas e as cores da natureza tre os dois que descreve a única verdade queevocam estados subjetivos do sentimento que existe. A causa e o ato são um só fenômeno.obscurecem a verdade objetiva. A aparência É por isso que nada pode surgir sem que os22 pentagrama 3/2011
Piet Mondrian “The red tree” (1908), “The gray tree” (1911), Composition nbr. 10 (1915) A árvore vermelha (1908), A árvore cinzenta (1911), Com- posição n. 10 (1915) - Gemeentemuseum, Haiadois sejam um e estejam unidos verdadeira- -se clichês tingidos de forma muito pessoal,mente.” que podem ser totalmente diferentes, quando ocorre uma próxima contemplação do mesmoA equivalência ou o equilíbrio estável são quadro. Assim, o confronto do observadorexpressos pela linha reta e surgem como com o quadro mantém uma significação mui-escoramentos verticais e horizontais. De to especial. O observador precisa ter a possi-acordo com a opinião do filósofo holandês bilidade de concentrar-se no quadro sem queSchoenmakers, que exerceu grande influência lhe passe pela cabeça qualquer pensamentosobre Mondrian e o movimento de vanguar- ou questionamento quanto a como o quadroda De Stijl (O estilo), o universo tem uma foi feito ou o que pode ser reconhecido nele.estrutura matemática. Já na Antiguidade as Apaga-se qualquer lembrança de qualquerpessoas expressavam a harmonia por meio de objeto. Somente a pura arte da pintura é querelações numéricas e por figuras geométricas: conta.quadrado, triângulo, círculo. Quando alguém A assinatura individual do artista desaparecequer expressar a harmonia do universo de completamente: todas as questões que tra-maneira artística, tem de utilizar a geome- tam do humor individual do artista no mo-tria. Em Mondrian, essas linhas tornam-se mento da criação estão totalmente ausentes.a trama fundamental do quadro. A tensão “É exatamente a ausência desses elementosharmoniza-se porque ele equilibra diversas no quadro, o vazio, que permite à pessoaformas opostas. Esse equilíbrio é assimétrico, que contempla ter um espaço livre para suasnão estático, dinâmico. As relações entre as próprias experiências e seus próprios pensa-dimensões fornecem um ritmo vivaz que ex- mentos. Quando alguém pinta algo que podeclui toda e qualquer uniformidade por refle- ser observado pelos sentidos, está expressandoxo, toda e qualquer simetria. algo que é humano... quando não pinta obje-Entre essas linhas, o pintor aplica suas for- tos, deixa um espaço para o divino”.mas. Retângulos e quadrados surgem emmodestas cores negras e brancas e em cores Tudo isso consiste em um imenso apelo à arteprimárias – vermelho, azul e amarelo – que moderna, com suas formas abstratas (que jáenglobam a paleta de todas as cores. O es- têm quase um século!): manter-se fiel a seupaço ocupado pelas cores ativas relaciona-se ponto de partida original – ou seja, tornarcom o espaço vazio, incolor, em um inter- visível o que é espiritual, como uma forçacâmbio harmonioso. Cores e formas – a aura propulsora da matéria e para a matéria µde uma imagem – conduzem o observador auma reação interior e, desse modo, tornam- piet mondrian, o pintor do vazio 23
alexander scriabin,um artista universal“A música é um caminho de revelaçãoe um poderoso método de conhecimento!”Quando ouvi seu nome pela primeira Então, tentei compreendê-lo melhor. Eu me vez – Scriabin – ainda não sabia que perguntava: “Mas afinal, qual é seu mérito me interessaria bastante por ele e iria diante de Deus e dos homens?”conhecê-lo de perto. Depois, um ano se pas-sou, e seu nome acabou se ligando à minha Participando de ardorosas discussões, euvida de um modo muito especial. No começo, ficava procurando um detalhe mais vigorosoeu apenas queria despedir-me dele, rapida- para escrever algo a seu respeito. Isso não memente. Nosso encontro me fez descobrir os deu nenhuma oportunidade de aproximar-homens que ele estimava e amava: filósofos -me dele. No entanto, de repente, surgiu umacélebres, psicólogos e músicos sobre cujas chance: em circunstâncias muito especiais,ideias eu apenas passava os olhos. Diante ouvi uma de suas obras musicais e logo tivedele as pessoas pareciam dividir-se. Algumas a impressão de que deveria fazer anotaçõesmostravam-se fanáticas; outras não o compre- imediatamente.endiam e achavam sua obra caótica demais e Fiz a seguinte associação de ideias: Estou memuito ambiciosa. Outros nunca o entenderam sentindo atraída por ele somente porque seuou mal o compreenderam. Isso me causou nome me perturba como se fosse uma cor-espanto e me fez refletir. rente de ar fresco – e também sua música me24 pentagrama 3/2011
Buscar com a luzcomove como um mundo grandioso que vive, O mistério de Prometeurespira e se transforma perpetuamente, meatrai e me força a crescer. Fiquei muito tem- Inspirado pelo livro A Doutrina Secreta, de H.P. Blavatsky, Scriabinpo mergulhada nessa energia pura e elevada: compôs Prometheus (Prometeu), uma obra inovadora. No capítulobanhei-me e deixei-me transportar por esse intitulado Prometeu, o Titã, Blavatsky explica a ligação existen-lago de amor. Sentia-me como se estivesse te entre o herói grego e a concepção hinduísta desse famosoapaixonada! É maravilhoso vivenciar esse “Portador do Fogo”. Não se trata do roubo do fogo, mas sim dosentimento sem ter qualquer laço que nos abrasamento da centelha-do-espírito do ser humano pelo fogoprenda! Nesse mundo maravilhoso, surgiam divino.pensamentos cheios de fogo que revolute- “Saibam que, por mim, é com Prometeu que surge a luz! Gos-avam e se encontravam – pensamentos das taria que fosse uma sinfonia do fogo, que a luz da sala pudessemais variadas cores que nasciam e ligavam-se transformar-se completamente: deveriam surgir línguas de fogo.sob a forma de poemas, versos, presságios e Vejam como as chamas iluminam a sala e a música”.novas criaturas. O mistério musical Prometheus é uma obra sinestésica (do gregoÉ como se eles fossem chamas que se moviam synesthesia, syn = união, esthesia = sensação), que relacionaem uma dança sem fim e se concretizassem a planos sensoriais diferentes: sabores com perfumes, sensaçõessi mesmos. Parecia que eu podia colocar-me visuais com sensações táteis ou auditivas. Prometheus, Le Poème desob sua influência. Dentro de mim não havia Feu (Prometeu, O Poema do Fogo), 1910, uma obra para grandenenhum constrangimento, nem hesitação. orquestra, piano e órgão, coro e piano colorido – é a criaçãoNão estava confusa com esse sentimento de mais importante de Scriabin. Essa obra exerce um influxo poéticoamor dentro do coração. Da mesma forma, especial por meio de um acorde musical específico, o acorde-minha alma estava cheia de faíscas de fogo. -Prometeu ou o acorde-Pleroma, que simboliza a plenitude eEu respirava com a chama, com o fogo, com a força de tudo o que É. A harmonia perfeita das seis notas doa luz. Via planetas que nasciam e logo de- acorde-Prometeu pode ser considerada e vivenciada como apois desapareciam. Estrelas que mudavam realização do princípio teosófico: omnia in omnibus ou “tudo emde forma, meteoritos que escolhiam novas todos”. O plano interior da obra tem como base o mistério datrajetórias. Via o céu rindo e chorando. Eu organização do mundo. É por isso que, nessa composição, ecoamme transformei em uma tranquila espectadora vocalizações antigas de mistérios por meio de vozes humanassobre a qual esses poderosos acontecimentos, masculinas. É o ápice da obra de Scriabin, na qual ele expressaessa transmutação celeste, provocava intenso suas concepções místicas e filosóficas. Nessa composição, eleanseio. Eu era esse anseio! Estava perturbada, tentou concretizar a iluminação por meio da música, na qual eleprofundamente ferida no coração, mas, feliz- via a realização de sua missão pessoal. Nos cinco últimos anos demente, não sentia dor. vida, dedicou-se ao mistério de Prometeu, que lhe fazia ver, como objetivo final, a libertação do mundo da matéria. A execução dessa obra sinestésica tão grandiosa deveria durar uma semana e, no final, todos os habitantes da terra tomariam parte dela. Ele queria construir um templo esférico nos contrafortes do Himalaia, na Índia, cuja forma mudasse de tempos em tempos. O compositor entrevia uma “arquitetura fluida”: forma, dança, processo e música constituiriam uma sinfonia de alta qualidade, e sentenças sagradas se religariam à força de sua luminosa sonori- dade. De acordo com Scriabin, os sete dias da criação abrangiam milhões de anos de evolução, e, no sétimo dia, haveria a apoteose universal. O mundo se transformaria em um lugar de felicidade e beatitude. Então, todos os seres humanos haveriam de transfor- mar-se em novos seres, ligados novamente à eterna beleza divina. alexander scriabin - um artista universal 25
Alexander Scriabin (1872-1915) viveu em uma épocaque foi chamada de “Idade de Prata”. O poeta russoAndrew Bely escreveu a respeito dessa época: “Agora aarte assemelha-se a uma renovação da vida. A própria arteevoca uma vida renovada”. Os artistas russos aspiravam àiluminação. Por meio de suas obras e lutas pessoais, elesdavam forma ao profundo anseio dos homens. Alexan-der Scriabin era um artista dessa estirpe: compositore filósofo, foi o primeiro a criar uma arte musical total-mente “sinestésica”. Hoje, diríamos que era uma atuaçãomultimídia em que sons, cores, formas e movimentos seunem para formar um grandioso conjunto. A música, assimcomo uma chama, incendiava o gênio de Scriabin. Ele viveue manifestou a iluminação sob a forma de sonoridadesluminosas. Scriabin afirmou: “A música é um caminho derevelação. Vocês não imaginam como ela pode ser umpoderoso método de conhecimento. Se soubessem oquanto compreendi graças à música! Tudo o que penso edigo agora – tudo conheço graças à minha arte.” Alexander Scriabin (1872–1915)Quem era esse homem, que criava, dessa ma- de Deus, sem considerar-se o criador des-neira, em forma de música, a partir do caos, sas coisas, sem achar (graças a Deus!) ser eletantos pensamentos, seres, planetas? Que os próprio esse sublime impulso criador? Consi-fazia dançar e permitia que as maravilhas derei sua obra tão grande, tão poderosa, seusda criação pudessem ser tocadas? E como pensamentos pareciam ser tão ardentes, suasele conseguia continuar humilde quando, ideias tão sublimes! Parecia quase impossívelnas profundezas de seu ser, descobria esses que um homem não pudesse perder-se nessasfenômenos tão fantásticos? Será que ele con- visões tão elevadas, que não se identificasseseguiria resistir à tentação? Será que conse- com elas. Será que esse homem, Alexanderguiria proteger-se da cegueira reconhecendo Scriabin, era feliz? Eu não conseguia fazerser apenas um instrumento genial nas mãos nenhum julgamento a esse respeito µ26 pentagrama 3/2011
Buscar com a luziluminaçãopara gamersDo Last Life para a VIDA REALOque vocês mais gostariam de sa- sas são medíocres, e a expressão de inteligên- ber? Se vocês estão entre os que já cia artificial dos NPCs4 decepciona sempre. ouviram dizer que o computador, a Sou praticamente o único dessa opinião.internet e tudo o que a eles está ligado são Muitos dos meus companheiros de jogo jogamsuspeitos e devem ser olhados com certo dis- com entusiasmo, ardorosamente, como pos-tanciamento, que eles são responsáveis pelo suídos por uma paixão secreta. Eles sempredeclínio moral, pelo desvio da juventude, escolhem as mesmas provas nos mesmos níveispela ruína do Ocidente que breve acontece- do jogo. Encontram sempre os mesmos obstá-rá, e que os consideram invenções diabólicas, culos, os mesmos adversários, que enfrentamentão, por favor, não se lamentem mais. com uma porção de estratégias organizadasÉ possível que vocês se reconheçam até certo com grande cuidado. A recompensa de seusponto no texto seguinte, pois talvez agora esforços (que eles não percebem como tal,possamos expressar os assuntos espirituais de mas como um objetivo existencial, eu diriaum modo não habitual. E todos os que não mesmo como direito de existir) são algumasse cansam de ouvir que a internet, sua ferra- moedas coletadas, peças para seu equipamentomenta de trabalho e seu hobby, é apenas uma e todo tipo de bugigangas pelas quais pode-mercadoria moderna e uma montanha-russa mos despender mais alguns trocados com opara a perdição, poderão perceber – quem vendedor de NPC. Recebe-se do doador dasabe para sua grande satisfação – que os missão recompensas pelas ações bem sucedidasassuntos espirituais podem ser expressos de e aumento de prestígio nesse ou naquele gru-forma não usual. Talvez este artigo contri- po, bem como pontos por alcançar o primeirobua para uma compreensão diferente, pois os lugar. Quando um gamer obtém o máximo determos técnicos mais importantes serão com pontos, ele passa para um novo nível. Ele secerteza explicados. “eleva”, se assim podemos dizer. Com cada nova vida se podem obter novasLast Life O autor é fanático por computador aptidões, talentos, ou melhorar o que já sehá uma dezena de anos e até onde se sabe tem; pode-se utilizar equipamentos de pri-não sofreu danos. Neste momento ele alcan- meira classe cada vez mais satisfatórios para oçou o nível 80 do jogo World of Warcraft. momento, depois a montanha-russa sem fimJogo o Last Life desde que me entendo por dos combates, a busca e a coleta de materiaisgente. E cada vez jogo até enjoar. Admita- e a produção ulterior de um objeto um poucomos, as estruturas (texturas)1 e os efeitos de mais depressa, mais bonito e mais eficaz paraluz não são ruins, e os lags2 são curtos. Mas a colocar em ação. E em seguida o mesmo, adbusca3 é monótona e cansativa, as recompen- infinitum. iluminação para gamers 27
Sinto-me prisioneiro e despojado de minha força vital: sobrecar-regado e sem boa companhia, assim como meus companheiros Estou entre os melhores no Last Life. Alcan- cei o mais alto nível há muito tempo, após haver maximizado minha agilidade, meus talentos e minha reputação diante dos gru- pos mais importantes para mim. Possuo um armamento, uma frota aérea, uma frota de veículos terrestres como nos tempos antigos. E evidentemente também uma grande quanti- dade de ouro. Pelos ataques5 da minha corpo- ração,6 sou muito estimado pelo grupo. Mas, apesar disso, não consigo escapar do sentimento de que tudo isso é oco e vazio. Não pela falta de conteúdo de um ou ou- tro desafio. Sinto isso bem antes de minha vitória; nem pela ausência de mudança – os programadores sempre apresentam novos ele- mentos e fazem o melhor para que o Last Life permaneça fascinante. SEM PROPÓSITO, OBJETIVO E FINALIDADE Certamente, o Last Life continua sempre fascinante, mas, na verdade, isso traz um sentimento de frustração. A promessa sempre é feita, porém é repetitiva e irreal: trata-se de um novo modelo, novos tipos, nova quali- dade e um novo nível mais alto, mais longe, mais distante, mais rápido, sempre mais, mas somente “sempre a mesma coisa”! Com todos os servidores7 acontece a mesma coisa: o gamer permanece preso ao carrossel que vai mais alto, mais longe, mais rápido, e a maioria deles não nota o quanto essa rotina é desanimadora, despojada de sentido, despo- jada de alma.28 pentagrama 3/2011
Esse jogo não tem em si mesmo um senti- nada fazem senão o que sabem e se espe-do profundo, um objetivo, uma finalidade. ra deles. E o fazem bem feito. Mas isso nãoMuitos gamers estão totalmente mergulhados muda nada. Sinto-me prisioneiro e despojadonele e se satisfazem com a contínua busca de de minha força vital: sobrecarregado e semvitórias, de sucessos, de desempenhos que boa companhia, assim como meus compa-absorvem totalmente seu espírito. Os que nheiros, com os quais, além do mais, nãoalcançam tudo que é esperado no jogo ar- posso discutir. Tentei bastante, mas desistirogantemente se deliciam com suas vitórias depressa. Eles não compreendem, eles achamsistemáticas. Mas quem, como eu, chega ao que eu proponho condições muito elevadas,limite, é forçado a reconhecer que estava que sou alguém muito sentimental, ou queexatamente dando voltas indefinidamente e não penso direito.sem razão. Somos seduzidos por um deser-to monótono em que nem cor nem o menor UM LUGAR SEM CONTRASTES Depois quesinal de vida vêm alegrar o horizonte mor- acontece isso, vou para onde não há ne-no dos triunfos fáceis. A poeira me seca a nhum gamer e, sozinho, entrego-me a meusgarganta e quero gritar aos céus e maldizer sonhos preferidos. Não são sonhos em quea terra pela tortura da monotonia, sem nem vejo acontecimentos concretos, sensíveis. Sãomesmo saber por que eu mereci vivê-la. mais inspirações sutis apenas sensíveis, sem palavras nem imagens. De onde vêm? Não seiNesse jogo, nem mesmo a morte traz paz dizer.ou libertação: o gamer pode perder todos os À medida que o tempo passa essas docespontos e “morrer”, mas ele volta rapidamente inspirações tornam-se mais evidentes. Não éà vida e retoma a ação no lugar em que havia sempre que encontro palavras ou imagens paraparado. Assim, o velho sonho da imortali- dar uma ideia mais clara. Esse sentimento sedade é realizado, mas como uma pobre e traduz, em minha consciência, em imagensdesgastada farsa, que tem o rosto triste do que compreendo: o sonho de um servidorimplacável e infinito “sempre a mesma coisa”. downtime8 sem limitação de nível, de fato semOs servidores (é o cúmulo da ironia chamá- limite, em que ninguém precisa perder para-los de servidores) tornaram-se para mim, que outro ganhe; onde não se aplica a melhorportanto, como labirintos onde sou prisionei- regra, mas em que cada um é o melhor sim-ro e onde os programadores são meus car- plesmente porque cada um é percebido comocereiros. Esses últimos ficariam certamente um ser único e apreciado como tal; em quesurpresos e ofendidos se eu encontrasse uma nenhuma luta ou conflito existe porque as coi-saída e os fizesse saber disso. Afinal, eles sas são como são; em que nada precisa desapa- iluminação para gamers 29
Eu me desconectei. Então, tudo se tornou diferente, novorecer para deixar outra coisa aparecer; em que Essa carta me informa em poucas sentenças ecada alegria traz em si mesma a semente do sem rodeios que, no mundo do jogo do Lastque deve seguir; em que tudo é atravessado e Life, a consciência do personagem do jogo éirradiado de um significado de grande valor e apenas o reflexo da verdadeira consciência doprofunda realização. gamer. Enquanto a verdadeira consciência está orientada unicamente para as ações do gamer,Nesse ínterim, esse desejo tornou-se para é como se ela fosse prisioneira e não tivessemim mais importante que tudo. As diferen- nenhuma ideia de sua verdadeira naturezates ocupações que sempre tive anteriormente nem do resto do mundo. É por isso que, nocom o Last Life desapareceram; após uma mundo do Last Life, ela não pode correspon-eternidade eu as terminei. Em grande parte, der nem à sua verdadeira natureza nem à suaestou livre de meus companheiros. Antes eu verdadeira vocação.era um convidado estimado que, agora, derepente tomou outro caminho. Temos sempre Para a maioria dos gamers, a consciênciamantido contato e sempre nos falamos, mas original está completamente encoberta oué por hábito e por simpatia, como um ritual. suprimida pela consciência de seu persona-Transformei-me em um estranho no meio de gem no jogo e pelo gamer que controla essemeus amigos, sozinho com meus sentimentos; personagem. No entanto, quando finalmentealguém que parece indiferente a tudo, exceto nos cansarmos do vazio radical e da repetiçãopara esse “único” que lhe faz falta, embora sem fim do jogo, poderá surgir um espaçoele nunca o tenha visto e que, na verdade, livre na consciência. Esse espaço está inteira-jamais lhe deveria fazer falta, porque ele mente ocupado pelos sentimentos que de-sequer o conhece… Surge-me então a ideia, viam ir cada vez mais alto, mais longe, maisque me parece curiosa, de que interiormente depressa… Ora, nesse espaço livre, certassou suspeito. Afinal, como posso dizer que intuições tornam-se marcantes - como as quesinto falta de algo que não conheço? me libertaram totalmente da única realidade que sempre conheci.EFEITO REFLETOR E no momento exato emque começo a preocupar-me com meu esta- Essas intuições me atingiram como umado mental, recebo, de repente, uma carta. trovoada. Tudo o que eu julgava saber, tudoTambém isso acontece no Last Life. A carta o que, ao que parece, eu tinha consideradonão é nem longa nem extraordinária. No como “verdade absoluta” e “importante” secampo do remetente há apenas uma pala- dissipou diante de meu olhar interior, comovra: “Amigos”. E isso muda tudo para mim. acontece depois de uma explosão silenciosa.30 pentagrama 3/2011
Então, fiz algo que até o presente momento 1. Textura: padrão repetitivo sobre o qual ojamais poderia ter imaginado, porque jamais computador calcula uma estrutura para re-estivera consciente de que isso pudesse ser produzir a impressão de um objeto espacial.feito: eu me desconectei! Há estruturas para madeira, pedra, pele,E aí tudo se tornou diferente, novo. Olhos água corrente.que já não eram os meus se abriram. Agora, 2. Lag: pausas forçadas durante o jogo de-contemplo um mundo muito diferente do que vido à lentidão na conexão de rede ou, noseu conhecia, mas apesar disso era tão dife- casos mais graves, por desconexão.rente quanto o original é de sua imitação. É 3. Busca: missão e viagem de um cavaleirouma consciência tão diferente que, compara- da Távola Redonda. Aqui o jogador se refereda a ela, a minha é como um átomo compa- à missão que o gamer recebe de um NPC.rado ao sol. E quem vê esse mundo por meio 4. NPC (non playing character): figuras vir-de novos olhos reconhece-o como verdadei- tuais criadas durante o jogo com as quais oro, sente-se em casa e está em unidade com gamer entra em interação. Os NPCs podemele. ser mercadores, treinadores de agilidade, mercenários, estalajadeiros etc.Nesse mundo eu vejo que eu sou sempre eu, 5. Ataques: incursões empreendidas pormas que estou unido à totalidade de todas as grupos de gamers bem armados e expericoisas. Tudo está em todos, todos são unos entes em qualquer lugar de um domíniocom todos, e eu faço parte disso! É assim que controlado por adversários muito fortes.sempre foi e sempre será. A experiência adquirida é importante, e os objetos desse domínio são valiosos e muitoApós um período infinito em que simples- cobiçados.mente e com grande surpresa contemplei esse 6. Corporação: união entre gamers que semundo maravilhoso, fiz a única coisa que eu ajudam mutuamente, por exemplo na exe-sabia que podia fazer: eu me reconectei! cução de um ataque.Não posso simplesmente renunciar ao servidor. 7. Servidor: computador de ponta e tecnica-Afinal, ainda existem gamers que não sabem mente especial que compartilha pela inter-quem eles são de fato. Mas o servidor e os net grande quantidade de dados com muitosgamers já não me prendem. Eu me sirvo do ser- outros computadores na maior velocidadevidor, mas já não estou subordinado a ele µ possível. Ele “serve”, por assim dizer. 8. Downtime: tempo durante o qual o servi- dor não funciona, ou porque caiu ou porque está sendo aguardado. iluminação para gamers 31
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a nova palavraAlocução pronunciada no simpósio “A escola da sabedoria da vida”,em 27 de novembro de 2010, em Renova, por Frank Spakman.Avida é bela. Mas essas são brincadeiras infantis ao lado da A vida é cruel. crueldade que os homens se permitem entre si Como pode a beleza, por mais transi- e contra os animais.tória que seja, tocar-nos tão profundamente, A beleza que existe em meio aos sofrimentos,emocionar-nos e maravilhar-nos, tantas vezes? violências e crueldades não seria, acima deQue energia estará oculta por detrás da beleza tudo, um frágil e temporário consolo?da vida? É que a experiência do sofrimento, da cruelda-Estaria a beleza ligada à sabedoria e a cruelda- de e da violência pode levar-nos ao desespero,de não? Será que a sabedoria da vida se esforça e a alma já não pode suportar tudo isso, comopara expressar-se por meio da beleza porque testemunha o seguinte poema:sua harmonia fundamental não conhece nemlutas, nem vingança, nem crueldade? Já não suporto a tristeza,Por que a crueldade seria necessária na vida, nem os rostos banhados de lágrimas,justamente agora? nem as mais terríveis dores humanas,Será que existe sabedoria em uma vida cruel? nem aliviar os efeitos do mal.… E o extermínio? Seria um mal necessário, Também já não consigo consolar oscomo sugerem, por exemplo, o Antigo Testa- desanimados, sempre vítimas de difamação.mento, e também Vishnu e Alá? Também já não suporto escutar os… E o que será que a pretensa sabedoria da que lamentam ser vítimas de traição.crueldade da vida poderá ensinar-nos de verda-deiro? Ó alma, abre meus olhos!… Conforme as estações vão passando, na na- Mostra-me piedade sem lágrimas,tureza, vemos uma série de harmonias parar de e envolve-me com amorexistir. Muitas vezes desaparecem no auge de e grande paciência.sua beleza. Basta pensar nas folhas, cujas coresse desbotam no outono e depois caem e se de- Em que consiste, realmente, a sabedoria ligadacompõem. Depois da harmonia, vêm a cruel- à beleza? Será essa a beleza silenciosa, intocável,dade e o aniquilamento. A tempestade sacode a beleza intangível que já não pode ser compar-os galhos, arranca-os e não se importa que o tilhada? Que, radiante, se mantém distanciadabosque morra. de seu contexto? Quem cria o distanciamento: oO que devemos pensar das vítimas das catás- respeito ou a autoridade natural?trofes naturais? E das técnicas cada vez mais Será que a sabedoria permanece conservadarefinadas para caçar todos os tipos de animais na beleza? Onde reside a sabedoria da vida, eou para escapar deles? onde se pode aprendê-la? a nova palavra 33
Quando permanecemos tranquilos, criamos perceptível. São qualidades que não se deixamharmonia ao nosso redor. Quando estamos captar, mas que sempre se oferecem ao serinquietos, então surge a devastação ao nosso humano.redor. Por isso, a condição para que haja beleza Essa sabedoria da vida, essa sabedoria plena,é a completa tranquilidade e paz interior. deve voltar-se para sua origem.Conhecer essa condição e agir de acordo com Na verdade, essa sabedoria se esforça para inci-ela, compreendendo e seguindo cada vez mais tar-nos a ir até sua fonte – e, se deixarmos quea voz interior: é nisso que consiste a sabedoria. ela penetre em nossa consciência pela atraçãoMuitos conhecem essa condição e anseiam que exerce através de sua beleza em olhos quepela paz que não pode ser compreendida pela veem e ouvidos que ouvem, não poderemos re-inteligência nem alimentada pelos sentidos. Eles sistir. Então, seduzidos pela beleza, aspiraremosa desejam como uma posse interior. Eles sabem pela sabedoria.que essa posse não está à venda. Afinal, a be- Assim vista e entendida, a filosofia não é umaleza não conserva a sabedoria: na verdade, ela necessidade intelectual ou mental, nem a artemostra seu esplendor com base na sabedoria. aguçada do raciocínio, porque a verdadeiraEssa sabedoria, na qualidade de posse interior e filosofia não tem necessidade de erudição, nemde fonte, é como um oceano. nenhum tipo de educação mental. Em tal ple- nitude e beleza, a própria vida pode levar-nos a“O Verbo [a palavra de Deus] é o oceano, vós, desejar a unidade. E assim, por causa dessa be-as nuvens”, diz Mirdad.1 A palavra de Deus, a leza e navegando conforme a bússola de nossonova palavra, “é um cadinho. O que ele cria, anseio puro, aproximamo-nos da fonte interiorele derrete e funde em um, nada aceitando da sabedoria e do conhecimento do caminhocomo valioso, nada rejeitando como sem valor.” que precisa ser aberto: a Gnosis, simples e plenaQual é a sonoridade dessa nova palavra? Ela é de equilíbrio, que, com uma força estimulante,fresca e transparente; e Mirdad recomenda que nos impulsiona para uma transformação.se busque o conhecimento dessa palavra. É uma beleza que dispensa e supera distânciasQual é o ritmo da nova palavra? Esse ritmo é ao invés de criá-las.o de uma dança, porque a vida participa desse É a sabedoria que tudo unifica pela nova pala-ritmo. vra e nos convida para as “núpcias alquímicas”,É o Verbo vivente que turbilhona, através das para a união, a “unificação”.coordenadas do espaço e tempo, a vibraçãointangível que coalesce, às vezes, numa beleza1 Naimy, M. O livro de Mirdad. 5. ed. Jarinu: Editora Rosacruz, 2005.cap.V.34 pentagrama 3/2011
© Elly Booi precisa da nova palavra. É ela que faz a com- preensão agir diretamente no nível desejado eO que o Verbo cria, ele “derrete e funde em torna possível o agir, a transformação.um”, diz Mirdad sobre a nova palavra. Muitas A característica essencial da nova palavra é opalavras já não representam nada de novo e valor de sua irradiação.forte porque, devido a seu uso frequente, seu Ela irradia em um tempo que não pode sersignificado e conteúdo se desgastaram e des- medido. Isso não significa que ela não tenhavalorizaram. Há, por assim dizer, uma inflação valor, ela apenas não tem um valor temporal!do significado, por exemplo, da palavra “verda- Uma de suas particularidades é que essa novade” ou da palavra “sabedoria”. Podemos acres- força gnóstica penetra facilmente em nossocentar os resultados de muitas pesquisas segun- sistema, pois ela é, em nós, o fator de umado as quais a verdade, a sabedoria, a bondade, transformação, de uma mudança energética,e assim por diante, não têm existência objetiva. de um suave processo ígneo. É um estímuloDa mesma forma que a beleza, elas murcham, e que ultrapassa obstáculos e é capaz de acenderjá não temos um ponto de apoio para encontrar uma chama.a sabedoria interior, o caminho que conduz à Mesmo de posse de toda a sabedoria destefonte, a essa fonte interior oceânica. O firme mundo, com nossa linguagem figurada erudi-conhecimento desses conceitos quase se dissol- ta, não conseguimos descrever nem articular ave na renovação reverberante da palavra, que nova palavra. É impossível acender o fogo daé a Gnosis. Entretanto, quando nos referimos nova palavra! Mas será que não existe um pon-e recorremos às palavras verdade, sabedoria, to de partida, uma orientação fundamental dabondade, estamos falando da verdade absoluta, sabedoria interior? Por exemplo, a consciência,da sabedoria absoluta e da bondade absoluta. a alma, a centelha-do-espírito?Pelo uso da palavra “absoluto” esses termos já Mas essas também são palavras que, com onão são desvalorizados pela força da cultura passar do tempo, se desgastam, perdem o valor,nem submissos à “inflação” do significado. Mas a força, e suas imagens mentais são novamentea própria vida nos oferece a experiência e a apagadas pela vida cotidiana comum. Prova-sabedoria necessárias para o caminho interior. velmente também vivemos num período noNenhum conceito exterior absoluto nos levará qual o significado e a vitalidade das palavrasà interiorização, nem fará que adquiramos nos- se desgastam mais rápido do que nunca. Osa real posse interior. Portanto, o caminho que estardalhaço da mídia é cada vez mais rápido evai do exterior para o conhecimento interior cheio de impetuosidade. Nossas vivências logo se enfraquecem e acabamos nos perguntando: “Para onde estamos deixando que nos levem?” a nova palavra 35
Qual será a condição para descobrir a nova é preciso deixar que a nova palavra realize seupalavra, a palavra incomensurável? Como ela trabalho em nós, equilibradamente, dia apóshaverá de entrar em nosso ser filosófico cheio dia. Para isso, é preciso ser firme e perseveran-de aspirações? te. Precisamos lembrar-nos bem disso!Precisamos esquecer-nos de nós mesmos. E, Não devemos ter medo de que essa seja maispara alguém conseguir esquecer-se de si mes- uma lastimável tentativa egocêntrica. Afinal,mo, precisa ser ele mesmo! Quando nos emo- vivemos com base na consciência da alma e jácionamos e nos encantamos, quando fazemos não temos nenhuma necessidade de ter, pos-alguma coisa para os outros, quando, em nosso suir, manter. Somos apenas nós mesmos! Po-trabalho, desistimos de imprimir nosso nar- demos fazer uma comparação com a música:cisismo, avidez e ganância e já não sentimos ela pode tocar-nos e emocionar-nos. Podemoso impulso de firmar nossa própria posição e conhecer alguns compassos dessa música, epoder, então a força turbilhonante que é a vida nesse momento a melodia e o som significamverdadeira já não encontra nenhuma resistência para nós a dança da vida. Mas não queremosem nosso sistema. agarrá-la ou possui-la, conservá-la para nós ou cristalizá-la. Afinal, sabemos que isso é im-Sim, nesse momento a nova palavra nos penetra, possível e sem sentido.e a nova vida impregna nosso microcosmo comovibração de sabedoria e o eleva a um novo nível, O valor não consiste em uma qualidade pal-no qual a transformação se torna possível. pável. O que vale são os momentos em queQuando somos tocados, passamos por um pro- ousamos ser nós mesmos e nos quais reconhe-cesso de fusão. cemos o processo da fusão da nova união e abrimos a possibilidade para que esse processoPara Mirdad é necessário que, graças à nova aconteça.palavra, nos incorporemos em uma nova unida-de. Quando ficamos impressionados ou como- É assim que a nova palavra opera e semprevidos, tornamo-nos um tanto confusos. E, por operou. Esse é o verdadeiro objetivo da vida.estarmos alterados, esquecemo-nos de nós mes- A nova palavra é, na verdade, muito antiga.mos. Essa é a sabedoria da vida. Somos apenas Afinal, é impossível medir seu tempo. Ela éuma gota no oceano da sabedoria! O que im- atemporal – mesmo que seja o Verbo viventeporta é ser nós mesmos e não mergulhar nesse no “aqui e agora” µoceano de lágrimas e comoção. Pelo contrário,36 pentagrama 3/2011
Inúmeros mitos foram-nos transmitidos por civilizações dos períodosmais diversos. Eles revelam concepções da antiga humanidade sobreo aparecimento do mundo, sobre a atividade das forças naturais,sobre os deuses, e sobre o nosso destino após a morte.a árvore do mundo é um reflexo cosmológico do universo.mundo Simboliza o ponto central atemporal e eter- no do mundo; carrega e sustenta o universo; No número anterior, citamos o versículo 2 mantém a coesão do mundo. Reflete tanto uma do cântico da Edda: estrutura espiritual como um impulso que visa a uma evolução. Lembro-me dos gigantes do princípio Os nove mundos ou nove moradas dão uma que em tempos longíquos me deram vida. imagem da edificação nônupla da criação que se reflete no homem: o homem nônuplo de E Völuspá, a vidente, prossegue: outrora. Nove níveis de consciência em desen- volvimento estão diante de nós: os três vezes De nove mundos me recordo, três aspectos do corpo, da alma e do espírito, nove moradas na árvore do mundo em estreita relação. No corpo, falam a alma e de raízes poderosas sob a terra. o espírito. Na alma, exprimem-se igualmente o corpo e o espírito. No espírito, a alma e oEm uma revista Pentagrama anterior (n.° 5, corpo se revelam. 2010), escrevemos: “Os mitos reunidos na Edda falam sobre os mistérios do desenvol- OS RAMOS DE IGGDRASIL Uma prova disso nos vimento do mundo”. Eles descrevem o grande dão os ramos de Iggdrasil, que se estendem (macrocosmo) e o pequeno mundo (micro- pelo mundo inteiro e atingem o firmamento! A cosmo). Nesses versículos, a vidente dá-nos coroa da árvore (espiritual) é Asgard, a morada uma visão. Ela contempla os nove mundos em dos deuses. É o cosmo dos æsires, os deuses que formação e os nove ramos da árvore do mun- vivem na luz. O princípio supremo, eterno e do da evolução humana: o freixo primordial, espiritual é Gimlé, a aurora nascente. Quando Iggdrasil, na mitologia nórdica. Essa árvore do Asgard for um dia destruída pelo Ragnarök – o ponto de reversão na história – é Gimlé que tornará possível a renovação. Sobre Bifröst, a ponte dos æsires ou a ponte do arco-íris que interliga o mundo dos deuses e o dos homens, monta guarda Heimdall, o æsir branco, a figura luminosa com espada e chifre. Os homens chamam essa ponte de “arco-íris”. Essa é uma esfera específica da alma, que liga o “que está em cima” ao “que está embaixo”, céu e terra. a árvore do mundo 37
A árvore do mundo da mitologia nórdica possui visivelmente muitas características do freixo (ou teixo). O freixo nuncaperde suas folhas verdes e, por isso, era considerado sagrado. Além disso, ele emite um gás que, em tempos quentes,pode provocar alucinações no ser humano. Sua longevidade é grande. Na Escócia, foi encontrado um freixo de dois milanos. Ele também é muito utilizado em rituais xamânicos, uma vez que sua seiva pode causar experiências de morte imi-nente. Depois de ficar dependurado durante nove dias na árvore, Odin recebeu a sabedoria e a inteligência das runas.Mas para isso ele teve de sacrificar um olho.Essa ponte parece indestrutível, mas se dissolve “de cima” e “de baixo”. O que lhes acontecelogo após um período de desenvolvimento. após a morte é determinado pelo seu próprioAssim como os ramos, as raízes de Iggdrasil comportamento durante a vida. Os guerreirostambém se estendem e abarcam o mundo in- que morreram com glória em combate são le-teiro. Há três raízes. É na base de uma delas (a vados por Odin ao Valhalla, o salão dos caídos,que conduz até os æsires, os deuses) que vivem que fica em Asgard. Aí eles se exercitam noos homens. A morada dos homens chama-se combate e podem cavalgar de vez em quando,Midgard, o mundo intermediário. Esse lugar é sob a direção de Odin, para o mundo dos ho-cercado por um círculo externo: Utgard, o rei- mens, a fim de participar da “caçada selvagem”.no dos gigantes de gelo, que são inimigos dos No entanto, a alma dos que morriam de outraæsires. Todos os reinos habitados são cercados maneira ia para Hellheim ou Hellgard, que é,pela serpente de Midgard, Jormungard, que na mitologia nórdica, o “mundo inferior”, ocorresponde à serpente Ouroboro. Ela é o equi- reino da deusa dos mortos, Hel. Esse reino ficavalente simbólico da serpente cósmica cundali- sob a segunda raiz de Iggdrasil, onde serpentesni, que envolve o mundo dos homens como um roem a árvore, e também vive o demônio devo-anel cósmico. Ela cresce indefinidamente, mas rador de cadáveres, o dragão Nidogue.continua adormecida, como a serpente Ourobo- É debaixo das raízes que, a partir de umaro, até que eclode a grandiosa luta final contra fonte, salta uma água glacial que empurraos deuses. Então, a serpente desenrola-se e para longe todos os que não podem ou já nãorevela o lado destrutivo de sua natureza dupla. querem viver. Ao mesmo tempo, essa corren-No local onde moram os homens se encontra te mortal cuida da renovação, uma vez que,a fonte de Urd. Também é aí que os deuses se inevitavelmente, leva embora as forças mortais,reúnem todos os dias. É a fonte do destino, a as limitações e os obstáculos. É assim que elafonte das três Nornas: Urd, Skuld e Verdandi. purifica essas regiões, tendo em vista um novoAs três reúnem-se ao redor do berço de cada crescimento.recém-nascido e transmitem-lhe seu destino. Por fim, perto da terceira raiz se encontra aEntre outras tarefas, devem regar diariamente fonte do gigante Mimir, o guardião da fontea árvore com a água curadora e conservá-la da sabedoria, da razão, da memória. Ele matasempre verde. Como relata um dos cânticos da a sede todos os dias na fonte da sabedoria.Edda: “o freixo Iggdrasil suporta mais injustiças Por isso, é tido como a mais sábia de todas asdo que os homens imaginam”. entidades imateriais: o próprio Odin (Wotan) lhe pede conselho com frequência. A esfera deAS RAÍZES DA ÁRVORE Os seres humanos rea- Mimir é comparável ao conceito que o esote-lizam suas atividades na polaridade das forças rismo atual conhece como “o banco psi” ou “a38 pentagrama 3/2011
Representação do século 19 do freixo do mundo, Iggdrasil. Johann Wilhelm Heine, 1886crônica do Akasha” da tradição oriental: trata- posição de todos os que querem passar os olhos-se de uma vibrante rede de energia dentro da nela e são suficientemente puros, sem precon-qual tudo e todos são conectados regularmen- ceito e cheios de amor. É interessante notar quete. Nessa “rede” nada se perde: experiências, o próprio Odin, ao pedir para beber um goleacontecimentos, pensamentos, atos de todos e da fonte da sabedoria, tem de sacrificar umde cada um são aí armazenados e ficam à dis- olho a Mimir. a árvore do mundo 39
As três NornasA fonte original, a fonte do destino, encontra-se ao pé da árvore Iggdrasil, escondida nas profundezas do subconscientede cada homem. É nela que residem três mulheres sábias – as três Nornas, Urd, Verdandi e Skuld.Urd significa “origem”, e sua ação estende-se desde o passado remoto até o presente. Verdandi é “o que há de vir, o vir-a-ser”,e Skuld determina o destino atual do homem. As deusas do destino tecem os fios do tempo e ligam passado, presente e futuro.Enquanto o homem não tinha consciência de si mesmo, o tempo não existia para ele. Tudo era “o presente”. Ask e Em-bla, o primeiro casal de seres humanos da natureza que Odin encontrou “na margem”, eram “desprovidos de força”.Sem a sensação do tempo e sem o conhecimento das leis espirituais não existe responsabilidade nem destino. No en-tanto, o desenvolvimento continuou. As Nornas deram ao homem a consciência do tempo. A crescente materializaçãoforçou o homem a entrar na dimensão da percepção e sentir conscientemente o espaço e tempo. O que antes era atem-poral num “aqui e agora” eterno transforma-se atualmente em “passado” e “futuro”. Olhando para trás, a consciênciacomeçou a reconhecer seus próprios atos e a projetar sua visão adiante. Então, o homem tomou consciência das energiasque provinham do espiritual. Foi assim que o homem se pôs a refletir sobre sua origem e seu destino.Os fios do destino, tecidos pelas Nornas, podem ser vistos como o carma, que opera de uma encarnação microcósmicapara outra. Assim, são como os fios da vida, que ligam todas as encarnações entre si.UM ESPETÁCULO INTERIOR Quando a vidente isso que achavam tão importante combater!falava da árvore do mundo, Iggdrasil, de suas Afinal, a coragem do sacrifício do eu duranteraízes e de sua coroa, todos os que a ouviam o combate contra as forças e as propriedades daconseguiam ver essas imagens diante de si. Eles natureza já era o início de um desenvolvimentopercebiam essas coisas de maneira muito dife- da consciência, que finalmente seria coroada norente do que nós, homens modernos, estamos Valhalla.habituados. Eles não conheciam essa faculda- E, por fim, estabelece-se uma relação no ní-de crítica, que faz diferença entre “o que se vel da terceira raiz, onde nasce a sabedoria.escuta” e “o indivíduo que está escutando”. Dentro deles ainda se ouvia a voz da memóriaEles entregavam-se totalmente ao que ia sendo da natureza, na qual está gravado tudo o quegravado em seu foro íntimo – ou seja, na trama já aconteceu. Compreenderam então por quevital que está na base da existência do macro- havia guerra: porque o homem apenas adquire acosmo e do microcosmo humano. Foi assim sabedoria quando, em seu ser interior, o espi-que, no nível da primeira raiz, eles começaram ritual e o natural realizam um combate, dispu-a experimentar sua própria vida e a vivenciar o tando o coração.desenvolvimento da consciência.Eles ficavam conhecendo os mandamentos dos O LAR DA ALEGRIA NO JARDIM DOS DEUSESdeuses e, quando não se conduziam de acordo No alto da copa da árvore Iggdrasil, por suacom essas leis universais, tinham de aprender coragem intrépida, o homem capta as energiasa assumir a própria responsabilidade. Foi assim do puro éter espiritual. É aqui, em Asgard,que sentiram a proximidade da fonte do des- que se encontra “o lar da alegria”, Gladsheim,tino. No nível da segunda raiz, descobriram uma das três residências de Odin. Trata-se deque algo emergia das profundezas do que hoje um nível, um campo específico que os antigoschamamos de subconsciente. Ao morrer, se pelo povos nórdicos personificavam e reverencia-menos um pouco da divina coragem de Odin vam como a mais alta Divindade. Odin residenão chegasse a manifestar-se neles, sentiam que em Gladsheim, mas é visto frequentemente emmergulhavam inexoravelmente na morte. É por Valaskjalf. Lá fica seu trono, Hlidskjalf. É daí40 pentagrama 3/2011
Pedra rúnica pendurado durante nove noites na árvore do em Södra Ving, mundo. O divino precisou empreender uma luta Höderum, dentro dele, ao longo de nove estados de cons- Suécia. Lemos ciência. Apareceram, então, nove esferas, nove no texto: reinos do mundo, porque a chama do espírito Tulir e Bunir que deu origem a elas se inflamou no universo. fizeram esse Todas as centelhas que um dia se originaram do cairn (monte Espírito percorrem esse mesmo caminho! Em de pedras) para cada esfera, o homem atinge uma nova fase de Buri e Klaka, desenvolvimento. É o caminho “do guerreiro seus filhos glorioso”! São nove processos sublimes, no pla- no físico, no plano da alma e no plano espiri-que ele contempla, de longe, os nove mundos. tual, ao longo de três vezes três fases, ao longoA mitologia indica, além disso, que se trata de dos nove ramos da árvore da vida, da raiz àuma divindade que, por sua ligação com os coroa, até à unificação na consciência espiritual,homens, cresce em amplitude e profundeza. A em Odin.Divindade “amplia-se”, por assim dizer, quando Essa grandiosa evolução passa por grandes pe-o homem pode novamente dispor do olho de rigos no plano inferior, na esfera da matéria. Es-Odin, a glândula pineal ou epífise. Realmente: ses perigos apresentam-se pelo fato de que a ra-ela é o órgão com o qual o homem pode “ver” zão obstinada começa a dar o tom e a tomar oem Gladsheim, o lar da alegria em Asgard – o primeiro lugar, sob a forma do semideus Loki: éjardim dos deuses. É desde esse local que ele uma tentativa de desviar a força de vontade dodesce, todos os dias, para Midgard – que fica no guerreiro puro do mundo espiritual, Gladsheim,centro do corpo. Quando o divino se expande para concentrá-lo em interesses pessoais. Lokiefetivamente em um ser humano, o símbolo das corresponde a Lúcifer. A descoberta da vonta-propriedades de consciência da alma-espírito é de pessoal é uma experiência tanto fascinanteOdin. Na linguagem da mitologia nórdica, ele quanto apavoradora para o jovem ego. Encaradoé o brilhante salvador, o imaculado, o poeta segundo o nível de consciência atingido, ele vêinspirado, o mestre da linguagem e dos escri- sua tarefa, sua responsabilidade e os perigos emtos. No entanto, quando um homem ainda está seu caminho. Tudo isso cria dentro dele umasob o império das forças da natureza, sente impressão que o aterroriza. Fica evidente oOdin como ameaça a seu estado de ser, como o quanto o desenvolvimento do homem está liga-sanguinário, o colérico, o líder do exército dos do à árvore do mundo no fato de que o termoguerreiros selvagens: ele é o símbolo da força “üggr” significa tremer µmotriz do espírito, que leva o homem a evoluirou recair nas profundezas de Helheim.DEPENDURADO DURANTE NOVE NOITES Osmitos também contam que Odin ficou de- a árvore do mundo 41
resenha de livro: o CAMINHO de MESTREECKHART PARA A CONSCIÊNCIA CÓSMICAum fio condutor para amística prática“Nosso desejo de viver a eternidade é, na verdade, o desejo da eternidadeque vive em nós. Quem busca a Deus também é buscado por ele.”M ais do que nunca, as pessoas hoje suscitar a cruzada contra os albigenses: eles se perguntam: “Qual é o sentido atiçaram o ódio na Espanha e no sul da Fran- da vida?” O grande místico mestre ça, estimulando o intelecto a fim de refutar os Eckhart (1260–1328), conhecido por seus ensi- ensinamentos cátaros. No início do século 14, namentos religiosos e filosóficos no Ocidente, eles lançaram-se ferozmente contra os últimos Grécia, Egito, Oriente Médio e até mesmo na grupos cátaros: realizavam interrogatórios Ásia, desperta novamente nossa atenção. Sua com crueldade insuportável, sujeitando os que religião vai muito além da crença comum. É resistiam a mortes indescritíveis. como se, do alto de uma montanha, ele es- Apesar de tudo, a obra libertadora dessa fra- perasse que todos os caminhos do vale con- ternidade continuou no Ocidente, onde, por vergissem para ela. Hoje, somos capazes de falta de melhores oportunidades, sua ativi- reconhecer nele – que não recuava diante do dade muitas vezes se manifestou até mesmo insondável – o anunciador inspirado de uma no interior das ordens religiosas existentes. religião cósmica universal. Foi daí que surgiram importantes tentativas de renovação e de reforma de várias ordens Eckhart pertencia à ordem dos pregadores do- religiosas. Basta pensar em Pedro Valdo, o minicanos. Essa ordem religiosa se distinguia fundador da Ordem dos valdenses, ou em por suas pretensões intelectuais. No século 13, Lutero, sem mencionar os filósofos herméticos sob a direção de seu fundador, Domingos de italianos, como Marcílio Ficino e Pico della Gusmão (São Domingos), os dominicanos po- Mirandola. Não é realmente estranho – e até liram suas mais mortíferas armas mentais para mesmo irônico – verificar que a Ordem dos42 pentagrama 3/2011
Dominicanos, para quem os gnósticos ensi- que o divino se encontra na alma como umanaram a necessidade de observar a discrição “centelha divina”, e que, em cada um, ressoa oe o comedimento, apresente-se como um dos chamado para tornar-se um filho de Deus, talfocos de onde partiram os primeiros impulsos qual o próprio Cristo.de renovação no sentido de uma vida interior Até que ponto Eckhart foi um sutil “mestrecrescente? É extraordinário e até difícil com- em teologia”, com grande reputação em maté-preender como, a despeito de tudo, o univer- ria de escolástica, por sondar questões e refle-sal sempre sabe como penetrar até o âmago xões que, nos dia de hoje, mal são lembradas?do coração dos homens que estão prontos a Ele preferiu transmitir a seus conterrâneos daentregar todo o seu ser, predispostos a alcan- região do rio Reno o puro ensinamento doçar o que transcende a alma natural. princípio do “Deus que está no interior deNo início do século 14, a Ordem dos Domi- todos os seres humanos”. Como pode a almanicanos ainda se mantinha discretamente ativa desenvolver-se? Em que consiste a ética dona região de Estrasburgo, norte da França. coração? Onde o ser humano pode encontrarComo havia muito tempo que a fé se havia seu ideal? Eckhart insistia na ideia de que hátornado um ponto focal dos teólogos, mestre uma centelha provinda de Deus presente emEckhart, fundamentado em uma inspiração re- todos; e também na ideia de que a alma hu-vivificada, dinamizou a fé vivente das ficções mana, que é o veículo dessa centelha divina,científicas em vigor na época. recebe o poder para purificar-se de todo o seuMestre Eckhart era muito conhecido: ele egocentrismo. Isso vai muito além de simples-formou-se na mesma ordem monástica onde mente seguir regras. Eckhart declara: “DeusAlberto, o Grande, lecionava – onde a for- jamais apresentou um modelo de salvaçãote influência de Tomás de Aquino, falecido para o homem. É por isso que precisamos serpouco antes, estava ainda muito presente. preenchidos pela presença divina, animadosAluno exemplar, Eckhart desenvolveu car- pelo Deus bem-amado que está em nós, de talreira brilhante. Ainda jovem, foi convidado a maneira que essa presença possa irradiar deensinar teologia no convento St. Jacques, em nós sem que necessitemos de esforço especialParis, que era um dos centros mais renomados para tanto”.da época. Foi nesse convento que ele conquis- Essa é a base simples, em que o eu está ausente,tou a intimidade dos franciscanos, depois de para uma vida cristã ideal e uma ética verdadei-um debate no qual fez conhecer sua opinião ra. É assim que o ser humano libera o caminhosobre a ligação do homem com Deus graças a que pode elevar a alma até sua unificação com auma consciência interiorizada e mística. Nessa (ou como Eckhart afirma, “dissolução na”)oportunidade, pela primeira vez, ele declarou Divindade, a consciência que interpenetra o ser um fio condutor para a mística prática 43
Karl Otto Schmidt (1904-1977), autor do livro Meester de suas ideias foram julgadas heréticas. Mas a Eckeharts weg tot kosmisch bewustzijn (O caminho de mestre influência dessa corrente de pensamento não Eckhart para a consciência cósmica), escreveu uma centena pôde ser contida. Os “amigos de Deus” e seus de obras sobre temas como: vontade, meditação, mística, alunos, Johannes Täuler e Jan van Ruysbroek, vida e morte. Fundamentou-se em suas experiências sobre a entre outros místicos do Reno, desenvolveram imortalidade do princípio intrínseco do homem e sobre seu importante papel na tomada de consciência toque pela Luz. A partir de 1930, ele representou a Alemanha dos buscadores da Idade Média acerca da pre- nos movimentos internacionais voltados para “a abordagem sença do reino de Deus em nós. fundamental das religiões”. Detido em 1941, ele sobreviveu à reclusão no campo de concentração de Welzheim. Nesta obra, o autor K. O. Schmidt nos con- duz através da via da consciência cósmica. Ele Em 1970, foi nomeado para a direção da “Liga por uma apresenta as três etapas de desenvolvimento Religião Universal” (Liga voor Universele Religie). Em 1972, a desse trabalho interior. São dez passos, no Cruz do Mérito da República Federal da Alemanha recom- total, a saber: pensou seu trabalho. Ele morreu em 1977 em Reutligen, na 1. Os quatro primeiros passos constituem a Alemanha. Após sua morte, foi homenageado com o título de doutor honoris causa da United Church of Religious Science fase da purificação. (Igreja Unida da Ciência Religiosa) de Los Angeles. 2. Os três seguintes, a fase da espiritualiza-humano e o universo como um todo. Ele teve ção ou iluminação.de pagar por sua coragem e franqueza, sendo 3. Os três últimos, a fase da divinização ouobrigado por seus superiores a retratar suasideias. Sofreu acusação e mesmo perseguição, união com o divino µnuma situação cuja gravidade o obrigou aencontrar-se com o papa, em seu palácio de Rozekruis Pers HaarlemAvignon, para apresentar sua defesa. Segundo ISBN 97890 6732 387 1Eckhart, foi-lhe possível demonstrar seu pontode vista com muita clareza, mas o vereditonão lhe foi revelado. Morreu de forma enig-mática quando retornava de Avignon.A partir daí, a igreja não soube o que fazer arespeito de Eckhart e seus adeptos, esses místi-cos muito respeitados. Sabemos que boa parte44 pentagrama 3/2011
mAalisguprmoasfupanldaovrdaos sdeor Algumas palavras do mais profundo do serDas forças mágicas da natureza Karl von Eckartshausen As escolas de mistérios possuem um as- pecto exterior, o Átrio, um aspecto interior, o Santo, e também um aspecto interior mais profundo, o Santo dos Santos. Eles estão interligados e cons- tituem um caminho. Neste livro, o autor apresenta regras para esses três aspectos e palavras de consolo para os que aguardam. É preciso bus- car a perfeição, na qual estão força e poder, a fim de alcançar a verdade. Essa fonte de perfeição está em Deus. Das forças mágicas da natureza Karl von Eckartshausen “Em nosso âmago estão todas as forças; porque nele está Deus em sua trindade. Se essa trindade cresce em nosso cora- ção, com ela crescem poder, sabedoria e amor; não podemos querer senão o que é bom, verdadeiro e belo, e a essa vontade tudo deve obedecer, porque é a vontade de Deus.” Eis a quinta-essência desse livro. Com uma introdução do Prof. Antoine Faivre, catedrático da Sorbonne de Paris. Pentagrama Publicações Caixa Postal 39 – 13240-970 Jarinu - SP – Brasil Tel. (11) 4016.1817 – fax (11) 4016.3405 www.rosacruzaurea.org.br – [email protected]
R$ 16,00Precisamos esquecer-nos de nós mesmos!E, para alguém conseguir esquecer-se de si mesmo, precisa ser elemesmo! Quando nos emocionamos e nos encantamos, quandofazemos alguma coisa para os outros, quando, em nosso trabalho,desistimos de imprimir nosso narcisismo, avidez e ganância e já nãosentimos o impulso de firmar nossa própria posição e poder, então aforça turbilhonante que é a vida verdadeira já não encontra nenhumaresistência em nosso sistema. Sim, nesse momento a nova palavra nospenetra, e a nova vida impregna nosso microcosmo como vibração desabedoria e o eleva a um novo nível, no qual a transformação se tornapossível.Quando somos tocados, passamos por um processo de fusão. E, graças ànova palavra, nos incorporamos em uma nova unidade. Quando ficamosimpressionados ou comovidos, tornamo-nos um tanto confusos. E, porestarmos alterados, esquecemo-nos de nós mesmos. Essa é a sabedoria davida. O que importa é ser nós mesmos e não mergulhar nesse oceano delágrimas e comoção. Pelo contrário, é preciso deixar que a nova palavrarealize seu trabalho em nós, equilibradamente, dia após dia.Para isso, é preciso ser firme e perseverante. A escola de sabedoria da vida
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