pentagrama Lectorium Rosicrucianumnão o antigo, mas o universala cabala como processo de transformaçãoespinoza e a sabedoria judaicarealismo mágico – a magia da realidadea viagem de mantao 2015 3NÚMERO
Edição Revista Bimestral da EscolaRozekruis Pers Internacional da Rosacruz Áurea Lectorium RosicrucianumRedação FinalPeter Huijs A revista pentagrama dirige a atenção de seus lei tores para o desenvolvimento da humanidade nestaRedação nova era que se inicia.Kees Bode, Wendelijn van den Brul, Arwen Gerrits,Hugo van Hooreweeghe, Peter Huijs, Hans Peter O pentagrama tem sido, através dos tempos, oKnevel, Frans Spakman, Anneke Stokman-Griever, símbolo do homem renascido, do novo homem. EleGerreke Uljée, Lex van den Brul é também o símbolo do Universo e de seu eterno vir-a-ser, por meio do qual o plano de Deus se maDiagramação nifesta. Entretanto, um símbolo somente tem valorStudio Ivar Hamelink quando se torna realidade. O homem que realiza o pentagrama em seu microcosmo, em seu próprioSecretaria pequeno mundo, está no caminho da transfiguração.Kees Bode, Gerreke Uljée A revista pentagrama convida o leitor a operar essa revolução espiritual em seu próprio interior.RedaçãoPentagramMaartensdijkseweg 1NL-3723 MC Bilthoven, Países Baixose-mail: [email protected]ção brasileiraPentagrama Publicaçõeswww.pentagrama.org.brAdministraçãoPentagrama PublicaçõesC.Postal 39 13.240-000 Jarinu, [email protected]ção digitalAcesso gratuitoResponsável pela Edição BrasileiraAdriana PonteCoordenação, tradução e revisãoAdriana Ponte, Emanuel Saraiva, Leonel Oliveira, RossanaCilento, Amana da Matta, Denison de Sá, José de Jesus,Marcia Moraes, Marlene Tuacek, Mercês Rocha, Neusa Solis,Rafael Albert, Ellika Trindade, Fernando Leite, FranciscaLuz, João Batista Ponte, Lino Meyer, Luis Alfredo Pinheiro,Marcílio Mendonça, Roquefelix Luz, Urs SchmidDiagramação, capa e interiorDimitri SantosLectorium RosicrucianumSede no BrasilRua Sebastião Carneiro, 215, São Paulo - SPTel. & fax: (11) [email protected] em PortugalPraça Anônio Sardinha, 3A (Penha de França) 1170-022 [email protected] tugal@rosacr uzaurea.orgA revista Pentagrama é publicada seis vezes por ano emalemão, inglês, espanhol, francês, húngaro, holandês epor tuguês.Ela é publicada apenas quatro vezes por ano em búlgaro,finlandês, grego, italiano, polonês, russo, eslovaco, suecoe tcheco.© Stichting Rozekruis PersProibida qualquer reprodução semautorização prévia por escritoISSN 1677-2253 tijd voor leven 2
pentagrama ano 37 2015 número 3Viajantes! Se forem a Paris, Melbourne, Bruxelas ou outros Ilustração da capa: Triple blue water (Tríplice águafocos de conflitos atuais na terra, mandem nossa saudação azul). Uma combinação única de uma pintura depara os que caíram. Para onde quer que eles tenham ido, Pikka Blake com uma fotografia de Kos Evanslevem-lhes nossos cumprimentos com pensamentos de © CPN-Canon, Kos Evansamor e liberdade. Mas não se deixem levar pela retóricados que dizem que deram sua vida, pois ela lhes será tirada. o navio celeste no livro dos mortosE não fiquem entorpecidos com os gritos de “liberdade” ou egípcio“opinião” – pois as massas não conhecem liberdade alguma. não o antigo, mas o universalElas não se movem: elas são movidas! A liberdade nasce j. van rijckenborgh 2quando a própria pessoa se coloca em movimento interiormente. Chegamos ao conhecimento quando nos afastamos a cabala como processo depara fugir da vergonha da ignorância. transformaçãoEm uma recente edição da revista pentagrama, publicamos um artigo sobre a Gnosis que está por trás da daniel van egmond 6sabedoria islâmica dos sufis. espinoza e a sabedoria judaica 18Nesta edição, vocês podem entrar em contato com os a árvore da vida 27raios de luz da sabedoria judaica da cabala. Quem estiver realismo mágico – a magia daem busca da Luz e ansiar por ela, com certeza irá encontrá-la – e não importa de onde ela venha. realidade 28Por onde forem, mostrem a todos este poema de Al c.m. christian-Ma’arri (ca. 1050): a viagem do mantao 34Vossa boca clama: “Não há nenhum deus além de Deus!” a redescoberta da gnosis iii 38Mas vosso coração e alma têm medo de Lhe dar razão.Eu juro: vossa Torá não vos traz mais luznem a explica mais do que vosso vinho, que está nela.Tende cuidado com o relâmpago nas nuvens!Há espadas desembainhadas que realizam os desígnios do destino.Os muçulmanos erraram, os cristãos se desviaram do caminho reto,os judeus equivocaram-se, os zoroastristas desapareceram.Neste mundo existem apenas dois tipos de pessoas:Os homens inteligentes sem religiãoe os religiosos sem inteligência. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx 1 1
O NAVIO CELESTE NO LIVRO DOS MORTOS EGÍPCIOnão o antigo,mas o universalA filosofia da Rosacruz Áurea somente é atual em sua maneira de se expressar.A linguagem e as imagens são modernas, mas o conteúdo e o objetivo são tãoantigos quanto a própria humanidade dialética e estão em perfeita e pura sintoniacom a verdadeira sabedoria superior de todos os tempos. Basta que um lampejode reminiscência, ou seja, que a memória original ou consciência superior brilheem nós, para que reconheçamos imediatamente a natureza dessa filosofia. Mas osubconsciente e a consciência intelectual comum também podem, com um poucode dificuldade, descobrir que a filosofia da Rosacruz Áurea está segura e solidamente baseada na Doutrina Universal.Jan van RijckenborghTrata-se de cumprir uma tarefa de acordo cumprir” (Mateus, 5:17). O eterno, imperecí com uma verdade que é sempre a mes- vel, manifesta-se no tempo em concordância ma, imutável: levar de volta o homem com o agora.decaído para a pátria original, e, sem introdu- Se uma obra espiritual florescente não consezir nem sequer a mínima alteração, indicar-lhe guir perseverar nessa meta, estará morta. Todoo único caminho, a única verdade e a única movimento espiritual tem a missão de entendervida. Por outro lado, o que se altera é a épo- o universal no hoje. Talvez cause estranhezaca, a natureza e a profundidade da decadência chamarmos a atenção para o passado, e, maishumana, assim como o estado físico e psíquico ainda, para o navio celeste do Livro dos Mortosda humanidade. Como consequência, o ensina- egípcio. Fazemos isso numa tentativa de assimmento universal adapta-se às necessidades. firmar a atualidade por meio de um olhar paraNão pretendemos revivificar o antigo, mas sim o passado e, se possível, com essa tentativa,o universal. Não queremos testar os métodos transformar uma eventual parada no curso deantigos, mas os universais em seu significado nossa vida em um verdadeiro retorno à pátria.moral-racional dos dias de hoje. É a maneira Diz Paulo em II Coríntios (5:17): “o que eracomo entendemos a palavra de Cristo: “o que velho já passou; eis que tudo se fez novo”. Sim,era velho já passou; eis que tudo se fez novo” o que era velho passou, ficou novo. O que(II Coríntios, 5:17). E, em aparente contra- ficou novo? Ao observarmos a ilustração dodição: “Não penseis que vim revogar a lei ou Livro dos Mortos egípcio, não podemos deixaros profetas; não vim para revogar, vim para de ver o navio celeste, a barca solar. De um2 Pentagrama 3/2015
Jan van Rijckenborgh e Catharose de Petri são os fundadoresda Escola Internacional da Rosacruz Áurea. Nessa escola elesexplicaram aos alunos a senda da libertação da alma de váriasmaneiras, utilizando-se muitas vezes de textos originais dadoutrina universal, tendo sido um exemplo pra eles, pois alémde estudar seriamente a senda, realizaram-na em suas vidas. Nun levanta acima das águas originais a barca de Rá (indicada pelo escaravelho e pelo disco solar), tripulada por sete deuses com os quais se iniciam a Criação e o Tempo. Ilustração do Livro dos Mortos de Anhai, ca. 1050 a.C. Fonte: R.H. Wilkinson, The Complete Gods an Goddesses of Ancient Egypt, 2003 (Todos os deuses e deusas do Egito antigo) não o antigo, mas o universal 3
lado, vemos Osíris ocupando seu lugar na barca vidente de Patmos. E o significado é sempre osolar e contemplamos seus sete raios. A barca mesmo. Para melhor esclarecer esse significadotambém está quase sempre equipada com sete inalterável, tomemos o navio celeste de Yimaremadores ou tem sete remos. Às vezes Ísis está do Wendidád. Primeiro Yima faz uma wara, ousentada ao lado de Osíris e sete raios dão forma seja, um cercado, um lugar de trabalho. Nessaà criança – Horus. Quando Xisuthmis – o Noé wara ele constrói uma arca, um novo veículo,caldeu – é salvo, vemos sete deuses tomarem de acordo com a Lei Universal.seus lugares no navio celeste. Quando o chinês O homem da wara é o livre construtor: aqueYao sobe a bordo, vemos nitidamente como le que trabalha com o novo martelo e com asete figuras o acompanham. Podemos lembrar nova palavra. É o homem que cria um novotambém de Mani e os sete rishis que viajam lugar de trabalho, o homem que se distanciacom ele em sua arca. Podemos ainda chamar a terminantemente da vida terrena, aquele queatenção para relatos semelhantes nos Puranas, entra no novo campo de vida para ali conssobretudo para o Wendidád persa, um dos mais truir sua arca. Essa arca, a barca solar, o navioantigos livros sagrados. Ali, Ahura Mazda celeste, é a designação mística para o homemYima ordena a seu servo: “Faze uma wara – ou divino que retoma sua viagem para a pátriaseja, um cercado – e uma argha – uma arca – original. Para fazer isso – construir e empreum veículo. Leva na arca todos os germens dos ender viagem – é necessária uma wara, umseres vivos originais, tanto masculinos como fe cercado. O discípulo tem de distanciar-se funmininos, e tritura a terra com tuas mãos. Traze damental e estruturalmente da vida comum.à vida todas as luzes incriadas”. Tem de despedir-se de atitudes e métodos queNa arca de Noé não é diferente. Na barca solar são evidentemente falsos. Tem de triturar acom a qual saiu da inundação da natureza, terra, entregar o eu da natureza e, com a waraNoé levou todos os princípios de vida necessá que criou, construir um novo homem, um narios para uma vida realmente divina. Na Arca vio celeste com o qual possa entrar no temploda Aliança, no mais recôndito do tabernáculo, divino. Assim concluímos nossa viagem peloque se encontra no deserto, e no templo de passado.Jerusalém, vemos igualmente todos os atribu Seja qual for o sistema de despertar e de toquetos para uma vida verdadeiramente divina. O divino em que nos aprofundemos, a viagem àNovo Testamento fala a respeito de sete anjos pátria do Livro dos Mortos egípcio é a mesma quee sete trombetas. Os sete anjos sopram sucessi a do Apocalipse: “E vi um novo céu e uma novavamente em suas trombetas. “E o sétimo anjo terra” (21:1). E agora compreendemos melhor osoprou e elevaram-se sete potentes vozes no que é dito a respeito de Cristo: “Do Egito chacéu” como lemos no Apocalipse. mei meu Filho” (Oseias, 11:1 e Mateus, 2:15).As vozes jubilavam: todos os aspectos do nos Sem dúvida alguma, essa afirmação indica aso cosmo planetário vieram a ser por meio de inalterável mensagem de salvação que permanenosso Senhor e de seu Cristo. O templo divi ce sempre a mesma, a mesma missão, o mesmono no céu abre-se e, no centro, o discípulo vê caminho, a mesma verdade, a mesma obra. Oa arca, a barca solar, o navio celeste que che que era velho passou, já se tornou novo!gou. Vemos nitidamente em nossa consciência Então, em que sentido devemos entenderque a barca solar de Osíris, apresentada no isso atualmente? O velho sempre se maniLivro dos Mortos egípcio, é a mesma que a do festa de nova forma em concordância com a4 Pentagrama 3/2015
época, a missão e as circunstâncias da onda de Consciência. Assim como o Filho foi chavida humana. mado do Egito, essas atividades também oDe novo ressoa uma hora est (“a hora é ago são. Em outras palavras: elas encontram suara!”) que corresponde aos desenvolvimentos essência original no Livro dos Mortos egípno interior deste cosmo. Por essa razão, mui cio. Elas falam e testemunham de um novotos “aprendizes de construtor” estão se pre tempo, da eternidade universal. Porém oparando para edificar sua wara e sua arca. O axioma “ser chamado do Egito” tem aindatempo dos significados velados e dos símbolos outro significado e convém chamar a atenjá passou! A Escola Espiritual atual aponta ção para ele. A palavra “Egito” tambémpara os sete vezes sete aspectos de seu micro pode ser traduzida como “treva” e, portancosmo, seus sete campos de vida. Esses sete to, esse conhecido fragmento da Escrituracampos de vida com seus núcleos de consci Sagrada também pode ser lido como: “dasência – os sete rishis com seus estados de vida trevas chamei meu Filho”. A explicação– podem ser regenerados. Para tanto, já nos dessa frase traz em si uma lição importanfoi dada a força e o toque. Falamos a respei te, pois, se outrora já se falava em trevas,to de um novo campo de vida e, relacionado isso também vale para nossa época. Será quea ele, de uma nova Escola de Consciência já houve algum momento de tão compleSuperior com o auxílio da qual o homem sé ta desordem e degeneração internacional?tuplo deve edificar sua wara. Para que o aluno Agora, nesse estado de trevas, todo “Filhopossa orientar-se perfeitamente, encontra-se de Deus” é chamado. Toda criatura humaà sua disposição uma vasta filosofia, clara e na traz o verdadeiro Filho de Deus em seudetalhadamente definida. Para prosseguir em sistema microcósmico. Ele está aprisionadoseu novo caminho, é necessário que aconteça em meio à condição humana e a inúmerasuma separação evidente entre os que estão no mentiras, acorrentado às trevas e à ignoexterior da wara e os que estão dentro desse rância. É a esse ser nuclear acorrentado ecercado – ou seja, entre o exterior e o inte aprisionado que Deus está chamando! Orior do campo de trabalho da Escola. Todas chamado divino não é apenas uma voz queessas atividades têm consequências imensas! comove nossa consciência e desperta nossaAlgumas pessoas ficam estagnadas na vida co pré-memória, mas é igualmente uma forçamum e outras entram em seu navio celeste em atual que atinge o mundo inteiro e toda avista de uma transformação completa. E essa humanidade, ocasionando processos e desdotransformação, para ser bem sucedida, deve bramentos radicais. Portanto, o chamado noslevar em consideração as condições espirituais, questiona e devemos ver se queremos reagircósmicas e atmosféricas de nossa época. É por com inteligência e de modo consciente aessa razão que já não faz sentido estudar e essa força divina atual. Por esse motivo, nãoseguir os métodos antigos, as escolas antigas: tem o menor sentido retornarmos ao paselas já esgotaram sua missão! Até mesmo as sado se nos esquecermos das exigências doescolas de cinquenta anos atrás já não têm ne momento. Somente quando a expressão “donhum significado libertador. “O que era velho Egito chamei meu Filho” ganhar um sentidojá passou; eis que tudo se fez novo”. real e a obra de livre construção encontrarPor isso falamos sobre a Rosacruz Áurea obreiros preparados e dispostos essa força seatual, a nova filosofia e a nova Escola de tornará ativa no ser humano. µ não o antigo, mas o universal 5
a cabala como processode transformaçãoQuem lê o Zohar tenta deixar que o texto fale por si mesmo, que se desveleatravés das palavras, através dos conceitos formados durante sua própria vida.Dele testemhunha Daniël van Egmond, que, durante um simpósio organizadopela Fundação Rosa-Cruz, apresentou uma visão tão profunda do pensamentomístico judeu tal como ele se expressa na cabala.Inúmeras são as obras que tratam da cabala, sobretudo da cabala judaica ou cristã, como o Zohar, o Sepher Zohar, O livro doEsplendor. Trata-se de um livro místico cujoautor seria o rabino Shimon Bar Yochai,que viveu no primeiro ano da era cristã eescapou, durante o reinado de Adriano, àperseguição dos romanos. Na gruta em quese refugiara com seu filho, ele teve todo tipode visões. Depois de ter passado treze anosnessa gruta, ele redigiu o Zohar em aramaico,a língua da época.O CORAÇÃO DO ZOHAR Do ponto de vistaacadêmico, esse livro apareceu provavelmentebem mais tarde, por volta do décimo terceiroséculo. Entretanto, ele relata numerosashistórias, mitos e símbolos que remontamcertamente ao início de nossa era, senão auma época anterior. Para dizer a verdade, oZohar constitui um conjunto notável: não setrata verdadeiramente de um livro, porém deuma coleção de mais de vinte e cinco tratados. A parte principal, intitulada o Midrash,é uma exegese, um comentário místico daBíblia, uma tentativa, digamos, de desvelar osignificado profundo do Gênesis, do Êxodo ede alguns fragmentos de livros bíblicos maistardios. Uma tradução inglesa do Zohar estáem andamento; ela comportará doze volumesde aproximadamente quinhentas páginascada um. No Midrash estão inseridos tratadosde todo tipo, e o leitor precisa ter paciênciaantes de ser apresentado à parte essencial, o6 Pentagrama 3/2015
DANIËL VAN EGMOND E O PENSAMENTO MÍSTICO JUDEU a cabala como processo de transformação 7
A “árvore da vida” ou “árvore genealógica do homem”, a abordamos com espírito místico. Tentamossegundo a filosofia da natureza de Ernst Haeckel (1874) deixar que o próprio texto fale e se desvele através das palavras e dos conceitos forjados ao longo de nossa própria vida, desde que estejamos, por assim dizer, “iluminados pelo Espírito Santo”. De fato, segundo os cabalis tas, o Zohar é um texto tão sagrado quanto a Bíblia e o Talmude. No judaísmo cabalístico, ele ocupa o terceiro lugar entre os livros sagrados. Mas, para que seja para nós um texto sagrado, é preciso que nos abramos a ele, que o leiamos, não com o intelecto, mas fundamentados no coração e esclarecidos pelo Espírito Santo. É um texto que nos forma e nos transforma, porque é simbólico. Os símbolos ultrapassam o intelecto. Quanto mais nos abrimos aos símbolos, mais eles transformarão lenta e definitivamente nossa personalidade e despertarão o homem interior.Zohar, que por sua vez também é dividido A ÁRVORE DA VIDA Voltemos às milhares deem três partes: Livro do mistério oculto, que páginas de comentários do Midrash. O quecompreende de doze a vinte páginas em está oculto em todas as histórias relatadasaramaico; Livro da grande assembleia e Livro são expressões relativas à “árvore da vida”.da pequena assembleia. Estes dois últimos são Note-se que os primeiros leitores do Zoharcomentários do primeiro, e os três formam ignoravam esse conceito. Durante a leiturao coração do Zohar. Todos os outros estudos dessas narrativas, eles tentavam visualizar,que compõem o Zohar, essas milhares de representar, graças aos múltiplos símbolos,páginas a serem percorridas, constituem um as diferentes Sefirotes: era desse modo quetipo de preparação para a descoberta dos a árvore da vida começava a criar raízesmistérios ocultos. Como é feita a leitura neles. Assim, quando abordavam o chamadodo Zohar? Ele não é lido como um livro Livro do mistério oculto – que era difícil dequalquer, nem o lemos como a Bíblia quando compreender, e isso não somente à primeira8 Pentagrama 3/2015
O Zohar é, ao lado da Bíblia e doTalmude, o terceiro texto sagradosobre a sabedoria da cabalavista – a árvore da vida já estava viva Deus: Yaweh, ou Jeová – mais precisamentedentro deles. Yod-Hev-Vav-Heh.O GRANDE ROSTO Para o cabalista, seja ele ELE TRANSBORDA DE AMOR O Livro do mistéjudeu ou cristão, a árvore da vida se parece rio oculto trata, portanto, do “Grande Rosto”,um pouco com o esqueleto. Ela oferece uma que é uma expressão do Mais-Alto, El Elion.estrutura, mas não está terminada. Falta-lhe Na cabala, ele tem o nome de Ain Soph, “oalgo. É justamente no Livro do mistério oculto sem fim e sem limites” que, quando falamosque surge algo novo. De repente, a árvore da de forma humana, é aquele que transbordavida já não ocupa o lugar central, e parece de amor. No entanto, ele só pode dar esseflorescer na forma de três pessoas, às vezes amor se alguém o receber. Esse ser é o Filho,cinco. Talvez você saiba que a árvore da e somente é Filho aquele que se volta para ovida comporta subdivisões. Primeiro, existem Mais-Alto.as três Sefirotes superiores: Keter, Chokmah, Então, de repente, o Mais-Alto, que está alémBinah, chamadas de “Grande Rosto”. Não de todo conceito e mesmo além de toda formadevemos entender o termo “rosto” como o pessoal, aparece, apesar de tudo, como umade um homem, mas como o de uma “pessoa” pessoa, como Grande Rosto. Nasce, então,com a qual podemos nos relacionar de uma relação entre o Filho, que é o Pequenoalguma forma. As seis Sefirotes seguintes, Rosto, e o Grande Rosto. Mas não se tratade Gevurah a Malkhut e a sétima, que está de uma simples relação entre duas pessoas.oculta, formam o “Pequeno Rosto”. Malkhut, Na verdade, a força e o amor que afluem doa última a partir do alto, é a Filha, ou seja, Mais-Alto, recolhidos pelo Filho, provocama comunidade ou Eclésia. Ela corresponde, nele uma reversão, do mesmo modo que,na terminologia cabalística cristã, ao Espírito a seguir, o amor pode se derramar sobre oSanto, pois os cristãos que descobrem essa mundo. Chamamos a isso uma criação, poisobra reconhecem nela o Pai, o Filho e o o Grande Rosto do Livro do mistério oculto éEspírito Santo. Além do mais, foram os semelhante a YHVH, ao Deus do judaísmocristãos que imprimiram o Zohar; antes, essa clássico. Ele é o criador, embora haja emobra existia apenas como manuscrito. Depois, verdade sete criadores, os Eloim – seis mais oo Livro do mistério oculto e dois comentários sétimo, YHVH, que é simplesmente o núcleoforam traduzidos para o latim. Certos judeus oculto dos Eloim. Há, portanto, sete forçasviram nisso a prova de que o Zohar era, na criadoras, sete Sefirotes inferiores que severdade, um tipo de texto “cripto-cristão” consagram à criação. Podemos encontrar essedevido ao fato de reconhecermos apenas um fato expresso nos sete dias da criação. Seria a cabala como processo de transformação 9
preciso dizer: os seis dias da criação, pois nada começo do Dzenioutha, o Livro do mistériofoi criado no sétimo dia, conforme lemos no oculto, as relações pessoais se tornam centrais,Gênesis. O importante é compreender que são relações de amor. Deus é amor e toda aessa criação é um ato que diz respeito a uma criação exprime esse amor.relação entre pessoas: percebe-se que, a seguir, Ora, o amor implica em receber e dar. Essetudo que se exprime na criação é portador mesmo livro nos conta que antes da criaçãoda imagem do Filho, dessa pessoa. Isso quer do mundo, relatada no Gênesis, uma criaçãodizer que tudo que existe na criação é, totalmente nova teve lugar. Ela era obra dossimbolicamente, de uma maneira ou de outra, anjos bem como dos arcanjos que tiveramuma pessoa. A criação de que se trata não é por missão receber o amor proveniente doa do mundo terrestre, mas ela se refere a um Mais-Alto e restituí-lo por meio de hinos e YHVH é o núcleo oculto dos Eloim, das sete forças criadoras. As sete Sefirotes inferiores, que velam pela criação, encontram sua expressão nos sete dias da criaçãomundo situado, poderíamos dizer, por detrás preces. Assim, um contínuo movimento dedaquele que conhecemos e que chamamos de troca com o Mais-Alto foi mantido – uma“paraíso”. Acolhido pelo Filho, o Mais-Alto, dinâmica de receber e dar.aquele que está além do todo, aparece-lhecomo o Grande Rosto, como o Pai. Nós, DISTANCIAMENTO E VOLTA, QUEDA Eseres humanos, não estamos em condição de LIBERTAÇÃO O Livro do mistério ocultochegar até Ele, a não ser mediante o Filho, relata ter havido anjos que, em determinadosegundo as palavras de Jesus. Isso permite momento, quiseram receber e não dar. Desdecompreender por que os cristãos dos séculos então, a situação se deteriorou. A aliançaXVI e XVII ficaram tão fascinados por cósmica foi rompida. O anjo se transformouesse texto. “Ninguém vem ao Pai senão por em Satã, e esse foi o início de todos os males.mim.” Toda pessoa que quiser experimentar Significa que quis apropriar-se do amor:o Mais-Alto deve, de uma maneira ou de aceitava receber, mas recusava-se a transmioutra, unir-se ao Filho. Em suma, desde o tir. O Mais-Alto, contemplando o quadro10 Pentagrama 3/2015
da primeira criação do ao Adão feminino, àmundo angélico, obser Mãe. Adão é, portanto,vou que ele se rompera, formado da Mãe Adamah,não por obra de apenas e depois YHVH sopra nele aum, mas por uma multidão vida. O texto hebreu comportade anjos que já não acolhiam, vários termos que correspondem aque já não davam. Estes mergulharam nas essa história do Grande Rosto (o Mais-Alto),trevas profundas. Ora, como transborda de do Pequeno Rosto e da Filha. O que transamor, o Mais-Alto quis que, a todo custo, mite essa história do sopro?esses anjos fossem salvos. Então aconteceua obra da criação tal como é descrita no NÃO RETER O SOPRO O Santo, benditoprimeiro capítulo do Gênesis: uma criação seja seu nome, sopra em Adão seu próprioque tem por objetivo libertar o mal. Devo alento de vida! Evidentemente, não se tratareconhecer que quando li isso pela primeira de um sopro físico, mas da força vital. Essevez achei essa visão muito emocionante: a sopro que é do Santo se chama neschamah,criação – ainda não se trata da nossa criação, frequentemente traduzido por “alma”. Essafalaremos dela mais adiante – que é descrita alma é considerada tríplice: Keter, Chokmah,no Gênesis, no capítulo 1, tem lugar visando Binah, ou seja, precisamente os três Sefirotesa libertação do mal. superiores. Emitidos pela boca do Mais-AltoTudo o que existe participa dessa obra de (falando simbolicamente), o sopro penetra tolibertação. O lugar ocupado no Céu pelo dos os níveis da realidade. Ele se torna comomais importante dos anjos decaídos, Satã, um vento, rouach, frequentemente traduzidoprecisava ser retomado, e por isso Adão foi por “espírito”, mas às vezes também porcriado, conforme lemos no segundo capítulo “alma”. Ele entra pelo nariz de Adão, recémdo Gênesis. É dito que Adão – que significa -formado por Adamah, a terra vermelha, sua“homem” ao mesmo tempo masculino e Mãe, e lhe permite inspirar. Adão in-spira,feminino, portanto andrógino – foi criado, ao passo que o Santo ex-spira. Repleto desseformado por Yod-Hev-Vav-Heh Eloim. Isso sopro, Adão passa por uma fase de repousosignifica que YHVH como Filho – assistido chamada nephesh, a terceira alma. Nesse inpelos seis outros Eloim – elabora Adão com tervalo, com pouco fôlego, o Santo necessitabase em algo que anteriormente havia sido inspirar. Ao contrário, a nephesh, apaziguadafrequentemente traduzido por “campo” ou em Adão, começa a sair de seu repouso e se“terra”. Ora, na língua hebraica, a palavra torna rouach; então, atravessa tudo e chegaAdamah, com um h no final, refere-se ao Santo como neschamah. Relembremos que a cabala como processo de transformação 11
nunca se trata de respiração física, sendo que dar nome aos animais, quer dizer, aos seresesta manifesta o lado exterior desse processo vivos. Como Adão executa essa tarefa? Nãointerior. Com efeito, ainda não estamos no imaginando nomes, mas orientando-se peloplano deste mundo físico. Nessa história, é Santo e penetrando, mediante contemplação,importante ver que, mediante essa respiração, no poder do pensamento de Deus, onde lheAdão é religado, sem descontinuidade, de aparecem os tipos primordiais de tudo o queinstante a instante, ao Santo, bendito seja vive no paraíso. É então que ele recebe oseu nome! É preciso compreender bem que nome exato que, em seguida, pode “dar”.essa história é mítica, e os mitos tratam Isso significa que ele tem a capacidade dedo que se passa aqui e agora, e não dizem transmitir a cada criatura sua essência. Adãorespeito absolutamente nem ao espaço nem cria assim a ponte entre o céu e o paraíso.ao tempo nem ao passado. Esse processo de Ele não tem somente um corpo paradisíaco,respiração acontece no presente. De segundo mas já traz em si o germe de um corpoa segundo, cada um de nós recebe o sopro terrestre. Ora, é na parte terrestre dae cada um de nós é formado, é criado como criação que todos os anjos da queda são, por“alma vivente”. assim dizer, aprisionados! A principal razãoEntão, o mito nos permite ver que se trata da criação de Adão é servir de intermediáriode nos abrirmos ao sopro para recebê-lo e entre os Céus e os Infernos. Por isso, eleoferecê-lo da mesma forma, sem o reter. deve tanto ser ligado aos Céus, devido a seuAdão adquire vida e em seguida é colocado corpo de luz, quanto aos Infernos, devidono paraíso. Na terminologia dos quatro a seu núcleo terrestre. Se frequentementemundos, o paraíso corresponde ao mundo de dizemos que Adão precisa fazer a ligaçãoYetzirah, o mundo dos símbolos, o mundo dos entre o Céu e a Terra, estritamente falandomitos. Esse mundo não tem relação com o seria mais exato dizer: entre o Céu e oinconsciente coletivo de Jung, pois o mundo Inferno. Essa ligação somente é possívelde Yetzirah é muito mais real, sendo ele se Adão estiver continuamente abertomuito mais poderoso que o nosso mundo de ao Santo, consciente de receber dele seuexperiências sensoriais. sopro, de alçar-se pela contemplação a seuNa terra, nossos sentidos somente percebem poder de pensamento com a finalidade deas sombras daquilo que pertence ao paraíso, transmiti-lo como essência, como “nome”,o mundo de Yetzirah. a tudo o que vive. Por esse processo, os anjos corrompidos pela queda podem novaADÃO, O INTERMEDIÁRIO Colocado no mente ser religados a seus tipos primordiaisparaíso, Adão recebe uma missão. Ele deve celestes e, assim, ser libertos do Inferno.12 Pentagrama 3/2015
A sequência da história é bem conhecida: de nossa personalidade, da multiplicidadeAdão vai cometer o mesmo erro que os de nosso “eu”, tentamos nos apropriaranjos decaídos. Em dado momento, ele de todo tipo de coisas, criar certezas etc.descobre o mundo onde todos os símbolos Conhecemos isso. Pois bem, de tanto ler ocelestes encontram uma expressão concreta Zohar, de estudá-lo, não com o intelecto,tão atraente que, de certa maneira, ele mas abrindo nosso coração a seus símbolos,gostaria – não de se apossar deles – mas de uma pré-memória começa a despertar ematribuí-los a si mesmo. nós. Há uma diferença entre crer que DeusEssa é a simbologia da cena da maçã. existe – o que pode ser um ato mental,Adão se desvia, então, do Santo e se volta vindo da educação – e provar de repentetotalmente para o novo mundo. O que quer que somos chamados a nos tornar Adão, adizer que ele tudo recebe do Santo, mas se sair deste estado de fascinação pelo mundorecusa a assegurar a transmissão. Ele quer dos sentidos, a provar o sopro e a reviver,guardar tudo para si e se tornar, assim, como Adão, como ponte entre o Céu e aautônomo. Essa é precisamente a razão de Terra, ou, ainda mais forte, entre o Céu e oAdão ser banido do paraíso. Poderíamos Inferno, a fim de que o mal seja libertado!dizer que, dessa forma, ele mesmo deixa o Não podemos realizar essa tarefa por nossosparaíso. Nessa ocasião, outro fato intervém próprios meios, os meios de nossa personano paraíso: a separação entre masculino e lidade – isso é impossível – mas podemosfeminino. Mas esse é outro assunto. fazer isso se recebermos de novo, plenamen te, o sopro do Santo. Esse é o chamado, aNOSSO VERDADEIRO NOME As três almas, vocação que nos revela que somos chamadosNeschamah, Rouach e Nephesh, correspondem por nosso nome verdadeiro. Assim comoàs “pessoas” descritas no Livro do mistério Adão chamava os animais por seus nomes, ooculto. Neschamah é o Grande Rosto, o Santo, bendito seja ele, nos chama por nossoPai; Rouach é o Pequeno Rosto, o Filho; e verdadeiro nome. Não por nosso nome deNephesh, a Filha, o Espírito Santo. Uma vez batismo, o nome que nossos pais nos deram,que, como Adão, nós deixamos o paraíso mas sim um “nome inscrito numa pedrae estamos neste mundo, há apenas a alma branca” – conforme menciona o ApocalipseNephesh para nos fazer viver. No entanto, de João – que se torna, então, nosso nomerecebemos ainda algo do sopro do Santo, verdadeiro. “Eu te chamei pelo teu nome”,sem o que não poderíamos nos manter nesta também é dito em Isaías.vida. Por outro lado, já não estamos abertos Esse chamado, o fato de dar um nome, estáao Mais-Alto nem ao Filho, e, na base acontecendo toda hora! Cada um de nós é a cabala como processo de transformação 13
chamado a todo momento. Inúmeros são os trata-se de se des-identificar. O ser humanochamados, mas bem poucos os escolhidos, os que se perde sem cessar no mundo sensorialque respondem ao chamado. e psicológico, que se identifica com uma multiplicidade de coisas por meio de seusTORNAR-SE UMA PESSOA Como recuperar pensamentos, seus sentimentos, seus impulsosa relação com o Filho? Podemos fazer isso e sua vontade, precisa aprender não tanto alendo os textos de Zohar em receptividade repudiá-los, mas a não assimilá-los de agoracontemplativa; podemos conseguir isso oran em diante. Desse modo, é criado um espaçodo – mas somente se dermos ao “sopro” o onde todos os pensamentos podem ir e vir –significado dos três níveis da alma. Ao rece e já não importa se eu os deseje ou não – ober o sopro, mediante a oração, entramos em que vale é que eu já não me identifico comrelação com o Filho, com YHVH – na cabala eles.cristã, com Y-H-S-H-V-H, Ieshouah ou Jesus. Desde o século XVII nos inculcaram aAcolhendo o sopro em nossas meditações, ideia de que somos a fonte de nossos penimpregnando-nos dos símbolos, orando, samentos, de nossos sentimentos e de nossaentramos em relação mais estreita com o vontade. Ora, se fosse assim, deveríamosSanto, e somente então nos tornamos uma poder parar de pensar. Imagine! Uma mente“pessoa” mais que uma personalidade. No silenciosa sem qualquer f luir de pensamenLivro do mistério oculto, o Grande e o Pequeno to... Logo você vai perceber que isso nãoRosto são também “pessoas”. Uma pessoa é funciona. Conclusão: não somos a fonte deum ser único que não pode ser comparado a nossos pensamentos. Esse processo ocorrenenhum outro. Como há muito tempo não através de nós. Ele acontece por meio depodemos estar numa relação eu-e-você com o inúmeras forças, por certos fatores ao nossoFilho, o Pequeno Rosto, permanecemos uma redor, por outros indivíduos, pelos mortospersonalidade terrestre, ou seja, uma simples ou talvez por todos os anjos que caíram.“construção” determinada pela sociedade e Em todo lugar, sem descontinuidade, essespela cultura. pensamentos e sentimentos surgem em nós.Todos nós temos uma personalidade funda Além de tudo, isso é necessário, pois todosmentada em influências genéticas, culturais eles precisam ser liberados. No entanto, elese educacionais. É uma estrutura psicológica não o serão enquanto nos identificarmosartificial. “Ser uma pessoa” é totalmente com eles. E se cedemos a esses pensamentos,diferente. Para isso, é necessário estar em a esses sentimentos e a esses impulsos, torrelação com o Santo. namo-nos uma parte do problema. A tarefaPara um cabalista, seja ele cristão ou judeu, de um cabalista (em realidade, isso é válido14 Pentagrama 3/2015
Como há muito temponão podemos estar numarelação eu-e-você com oFilho, o Pequeno Rosto,permanecemos umapersonalidade, uma simples“construção” determinadapela sociedade e pela culturapara todos os que seguem um caminho OS TZADIKIM Para o cabalista, não se tratareligioso ou místico) é aprender a criar em de uma via que o libertaria do mundo. Osi mesmo um espaço acolhedor para o Filho, objetivo não é se retirar do mundo, pois esteaberto e receptivo para o Santo – um espaço necessita justamente de pontes para que oque possa receber o sopro e onde impulsos, Céu e a Terra (ou o Inferno) se reencontrem.sentimentos e pensamentos também sejam Em praticamente todas as culturas e religiõesadmitidos a fim de serem transformados. é mencionado ser necessário um númeroNem por isso nos tornamos de fato melhores. mínimo de tzadikim, de justos, de eixos doNão, isso nos desgasta. Por outro lado, mundo que façam a ponte entre os Céus e osoutros se tornam melhores. Como Adão, Infernos da Terra. Sem esses justos, a criaçãoessa é nossa tarefa. É desnecessário dizer estaria perdida. As passarelas são indispenque, trabalhando dessa forma, nós mesmos sáveis. Cada ser humano é chamado por seusomos progressivamente transformados de próprio nome para se tornar tal passarela.personalidade em “pessoa”. É importante que Como cumprir essa vocação? A respostatomemos essa tarefa para nós, pois a criação é mergulhar nos mitos; ou no interior dafoi concebida com esse fim, assim como tradição cabalista: ler o Zohar. AcolhendoAdão. Em poucas palavras: o homem foi os símbolos em nosso ser, a árvore da vida écriado tendo em vista a libertação do mal. erigida em nós. Quando chegamos ao Livro a cabala como processo de transformação 15
Uma “árvore da vida” moderna: representação gráfica dodesenvolvimento das espéciesde pássaros com base em umponto centraldo mistério oculto, descobrimos que existe do que recebemos e que deve ser passado.de fato um Grande Rosto e um Pequeno Foi isso o que fez o grande arcanjo Lúcifer,Rosto, que é possível comunicarmo-nos foi isso o que fez Adão. Todos nós temos essacom eles, fazer parte de uma Eclésia, de uma inclinação, essa tendência.comunidade – a Filha –, e tomar parte no Por essa razão o caminho da cabala exige quemovimento entre os três: o Grande Rosto, nos aprofundemos nos símbolos. E devemoso Pequeno Rosto e a Filha. Em resumo: ter fazer isso não de maneira teórica, aprensido chamado por seu nome é ter recebido dendo seus significados, pois é assim que ouma missão. A essa missão podemos respon fragmentamos! Precisamos despertar para ader com a oração regular, a meditação ou a realidade simbólica e estar, ao mesmo tempo,contemplação. Podemos também aumentar continuamente abertos ao Santo, sabendonosso “espaço interior”, não somente durante plenamente que nada podemos pensar por nósas horas de meditação, mas em nossa vida mesmos, nem sentir, nem querer o que quercotidiana. Dessa maneira, discretamente, que seja que valha a pena.tornamo-nos uma passarela entre o Céu e a Somos um aparelho receptor da mais altaTerra. No entanto, certas armadilhas surgem. importância! Afinal, é de dentro de nós queImagine só: em certo momento você percebe o mal pode ser liberado.que pode ser uma passarela. Logo há o riscode o eu interferir, pensando: “Como sou A TAREFA DE DAR NOMES Alguns de vocêsimportante! Como trabalho bem!” A partir devem ter ouvido mais de uma vez quedesse momento você está correndo o mesmo cabala significa “receber”, não no sentido derisco que Adão: ao voltar-se para si mesmo, receber ensinamentos, pois strictu sensu, nasofre mais uma queda! Grandes são as tenta cabala não há doutrinas nem teorias, as quaisções de tudo tomar para si, de se apropriar são produtos conceituais.16 Pentagrama 3/2015
Algo totalmente diferente é receber o Repetimos: numerosas são as tentações nessesopro e acolher os símbolos que operam caminho, especialmente a de tudo atribuira transformação. Trata-se de receber um a si mesmo e a de querer deixar este mundonome e ao mesmo tempo devolver o que o mais rápido possível, pois ele é apenas umrecebemos. O cabalista restitui tudo, tanto vale de lágrimas.ao Santo quanto a seu próximo, e sobretudo Nesses dois casos, não fazemos nosso papelà natureza, porque, como diz Paulo, a de passarela entre Céu e Terra. A tendêncianatureza sofre as dores do parto e também de querer deixar este mundo para trás e sequer ser liberta. elevar de qualquer maneira para nunca maisEssa natureza, bela como é, o tempo e os voltar é tão errônea quanto a inclinação ahomens a trazem acorrentada. Tudo que está se identificar com a Terra. A primeira podepresente na natureza tem seu protótipo no parecer mais espiritual, no entanto ela é tãomundo dos símbolos, o mundo de Yetzirah. egocêntrica quanto a atitude materialista,Ao longo de um passeio, você se aproxima pois a missão de Adão é ser uma ponte entrede uma árvore ou vê uma vaca, e, então, o Céu e a Terra. Adão foi aprisionado à Terracomo você é um “espaço”, um Adão, você e ao Céu, de modo que os dois pudessem serreliga essa vaca ou essa árvore ao tipo religados e o mal pudesse ser liberto. µprimordial dela. Você faz exatamente o queAdão fez no paraíso. Você dá à vaca um Daniël van Egmond realiza, há 15 anos, conferências e cursos denome, e assim, ela pode, por um instante, meditação na Fundação Arcana. Além de numerosos artigos,ser mesmo o que ela é em realidade. Essa ele escreveu quatro livros: Body, subject and self (O corpo, oé a tarefa de Adão: fazer o papel de ponte sujeito e o ser – 1993), De dood serieus nemen (Levar a morte aentre o Céu e a Terra. É nisso que consiste a sério – 1996), De mens en zijn engel (O homem e seu anjo – 2012)tarefa de dar nomes. e De wereld van de ziel (O mundo da alma – 2014)É dito que a cabala é típica da tradiçãojudaica, mas no início deste artigo tratamostambém da cabala cristã. Se, num ambienteacadêmico, devêssemos fazer um estudocomparativo, encontraríamos ao mesmotempo grandes similaridades e grandesdiferenças. Com efeito, as tradições judaicas ecristãs têm cada uma sua própria simbologia.Com maior frequência, reconhecemos nelas omesmo tipo de caminho. a cabala como processo de transformação 17
espinoza e asabedoria judaicaUma exploração da mística judaica universal e de suas raízes de sabedoria quecontinuam até os dias atuais. Elas formam a base não expressa daquilo queEspinoza chamava de “caminho íngreme”, isto é, a conduta daquele que vivesegundo a razão.“Do modo como se conduz um homem racional.”D a antiga sabedoria procedem três en uma delas tem nome e sentido próprios. sinamentos ou sistemas que, outro Existe um movimento que vai de Ain Soph ra, foram autênticos caminhos para à Halakha e Tikkun. Ain Soph relaciona-seos alunos ou adeptos que se aplicavam em com o conceito espinoziano de Substância,estudá-los. Eram eles: a astrosof ia: o estudo como veremos. Halakha é uma noção relidos doze signos do zodíaco e dos dez plane giosa judaica muito antiga que signif ica “otas que mais tarde dariam origem à astrolo justo caminho da vida” (comparável ao Taogia; o tarô, o mais antigo dos sistemas, cujo chinês). Tikkun pode ser traduzido comouso bastante puro ressoa através da Rota dos empenho pela busca da harmonia com Ainrosa-cruzes com seus vinte e dois meta-arca Soph. Numa outra interpretação do cabalistanos; o ensinamento da árvore da vida com do século XV Isaac de Luria, Tikkun signisuas dez Sefirotes, ou luzes, e seus vinte e f ica “restauração”, o que é compreensíveldois caminhos. quando, segundo o escritor Gary Lachman,A cabala é, em sua forma, uma representa nos vemos como restauradores ou reparação da mística judaica e de seu pensamento dores do cosmo, tendo de corrigir os erroslibertador. Ela é claramente anterior ao sé cometidos por Deus quando da criação doculo XIII, época de seu surgimento público, universo.quando se propagou o ensinamento da árvore da vida. Do século XV ao século XVIII, A Ética de Espinoza é uma obra difícilesse ensinamento inf luenciou grandemente devido a suas argumentações de ordemo pensamento religioso judaico. “g e omét r ic a”.Fazer uma ligação entre Espinoza e a mís No século XVII, essa abordagem tornou-setica, sobretudo a mística judaica, poderia um critério: antes de encontrarmos o casuscitar uma controvérsia. Com efeito, a minho certo, avalizar equivalia a saber. Odireção da sinagoga Ets Haim de Amsterdam ponto de partida utilizado por Espinoza corexcomungou Espinoza, condenando-o à da responde exatamente àquilo que Eliphas Lévinação eterna, em termos de rara violência. explica nos Princípios da cabala em dez lições: “A paz perfeita pode ser alcançada pela calNo entanto, a sabedoria judaica tradicional ma do poder do pensamento e pela quietudetambém fala sobre a conduta do homem ra do coração. No fundo, o crente judeu aspiracional e mostra como a razão pode guiá-lo. ao shalom, isto é, à paz que restaura a terra”.Descobre-se a prática dessa sabedoria graças Eliphas Lévi explica ainda que o saberaos significados dados às ligações e passa tradicional dos antigos hebreus podiagens entre as dez Sefirotes, sendo que cada igualmente ser chamado de “aritmética do18 Pentagrama 3/2015
espinoza e a sabedoria judaica 19
cérebro humano”. Seria “a álgebra da fé” Descer ao jardim das nogueiras é uma expresque resolveria todos os problemas psíqui são utilizada pelos cabalistas durante suascos, como se tratasse de equações nas quais meditações sobre “o nada em tudo isso”.ter-se-ia eliminado as incógnitas e, por Notemos que Shakespeare faz Hamlet dizer:isso, as ideias e os pensamentos adquiri “O God! I could be bounded in a nutshell,riam a pura limpidez e a estrita exatidão and count myself a king of inf inite space...”dos números. No que concerne ao poder do (Meu Deus! Eu poderia viver recluso numapensamento, os resultados seriam infalíveis casca de noz e me considerar rei do espaço(mesmo se, na esfera do saber humano, eles inf inito). Ain Soph pode ser def inido comopermanecessem relativos); quanto ao cora o que não tem começo nem fim, a derração, ele conheceria a tranquilidade perfeita. deira e última realidade, o nada absoluto,Em suma, trata-se exatamente daquilo que aquele que evita dar um nome a Deus ouEspinoza quer obter com o auxílio de seu descrevê-lo de maneira realista. É o Deusmétodo filosófico inspirado pela geometria, sem nome, que se manifesta a Moisés.e seguido na Ética. A razão está a serviço dapaz do coração, e as emoções transformadas Observemos que a noção de Ain Soph ésuscitam a ação segundo o grau de entendi bastante parecida com as ideias de Mestremento racional atingido. O ponto de parti Eckhart, e portanto diferente da místicada, a base, é Ain Soph. judaica. Por volta do ano 1300, um cabalista que se manteve anônimo afirmou o seguinte:As Sefirotes são também representadas “Sabei que Ain Soph – o Único Cognoscívelcomo dez envoltórios ou casulos ao redor – não é mencionado nem pelos profetas, nemdo núcleo que é Ain Soph, o centro impene nas hagiografias, nem nas palavras dos sábiostrável e sem forma de tudo que existe. Pode do Talmude. Apenas os mestres a serviço deacontecer que esse centro seja colocado Deus (que são os místicos) recebem informaacima das Sefirotes, mas é justificado desig ções secretas a seu respeito”.ná-lo o que há de mais central, circundadopelos dez envoltórios. Um sábio holandês escreveu o seguinte:O Cântico dos Cânticos de Salomão (6:11) faz “Nas Sef irotes, as coisas ‘criaturais’ são orreferência a Ain Soph nos seguintes termos: denadas de tal maneira que, na intuição dos místicos, podem ser compreendidas comoDesci ao jardim das nogueiras, categorias do pensamento”. Segundo alpara ver se brotavam as vides, guns autores, os conceitos sef iróticos Yesodse f loresciam as romeiras. e Shekinah são colocados em relação com20 Pentagrama 3/2015
Árvore de conhecimento, correspon dendo às sete Sefirotes, os aspectos in feriores da árvore da vida. Valentin Weigel (1698), inspirado em Jacob Boehme Esses três modos de conhecimento refe rem-se claramente ao pensamento segundo linhas cabalísticas. Vemos neles qual é a relação entre o conhecimento e as Sefirotes. Segundo o Zohar, o conhecimento repre sentado pela árvore da vida leva em si a dualidade. Isso, porém, não concerne às três Sef irotes superiores: Keter (coroa), Binah (compreensão, inteligência) e Chokhmah (sabed or i a).os dois atributos da Substância acessíveis ao Em minha opinião, a não dualidade emhomem: o pensamento e a extensão, ideias Espinoza está relacionada à árvore daestas desenvolvidas por Espinoza. vida, portanto às três Sefirotes superiores,Foi talvez Espinoza quem fez a ligação e sobretudo a Ain Soph. O jovem Baruchentre Yesod e Malkhut, ou Shekinah, entre o seguiu, dos cinco aos quinze anos, o enpensamento e a extensão. Ele o fez como sinamento da escola Ets Haim. Baruch eraracionalista místico, como místico animado descendente de judeus expulsos de Portugalpela razão, consciente do Ain Soph, cons que se exilaram em Amsterdam no início dociente da Substância divina. século XVII. Na Península Ibérica, esses ju deus haviam haurido do abundante tesouroEspinoza distingue três graus do de filosofia e de sabedoria que enriqueceraconhecimento: durante séculos a elevada cultura árabe.– o conhecimento nascido daquilo que ésentido e experimentado; Espinoza foi mais que convenientemente– o conhecimento e a compreensão resultan formado em ciência e sabedoria judaicas.tes da observação, assimilados pela reflexão; Podemos supor que após abandonar o es– o conhecimento decorrente da intuição, tabelecimento, em 1647, ele teria mantidoou seja, do amor dirigido a Deus, ligado à relações pessoais com seus ex-professoresrazão (amor dei intellectualis). em forma de conversas ou mesmo aulas particulares. Ets Haim signif ica “árvore da vida”. Ain Soph, como centro de tudo o que exis te em si, manifesta-se, segundo Espinoza, espinoza e a sabedoria judaica 21
Vitral colorido em uma estação de metrô em Almaty, anteriormente Alma-Ata, no Cazaquistãomediante formas e atributos, dos quais dois Isso expressa a relação com a terceira e maissão acessíveis ao homem, segundo nossa elevada forma de sabedoria em Espinoza: af ilosof ia. Ele os denomina “pensamento” intuição do divino, cuja base é Malkhut oue “extensão”, conceitos abstratos próximos Shekinah.das Sef irotes Yesod e Shekinah.Podemos ver essas formas de manifesta Interessante em Espinoza é que ele nãoção como ef lúvios, emanações da unidade exclui uma “coabitação com Deus” (vivenpartindo do centro de todas as coisas, do te no interior do ser). Muito ao contrário.original ou do infinito, tal como sugere Diferentemente de Willem Blijenbergh, eleShakespeare pela boca de Hamlet. sugere de forma clara essa coabitação e liga -a de modo direto à lei do amor.Vemos que uma mão segura o que liga Yesod e Como filósofo, Espinoza desejava receberMalkhut ou Shekinah, o que liga o pensamento a sabedoria inalterável, e descreveu comoe a extensão, e que embora as três Sefirotes buscou recebê-la em sua alma. “Livre ésuperiores sejam diferentes, eles guardam uma aquele que compreende”, dizia Espinoza.relação vertical com Yesod e Malkhut. Essa é uma de suas mais lapidares frases.22 Pentagrama 3/2015
Livre é aquele que compreende elementos da cabala sempre atuais e relati vos à natureza divina. Vejamos, por exem plo, Ain Soph, o Deus oculto, que não tem começo nem f im, a saber, a última e derra deira realidade.O HASSIDISMO O ensinamento hassídi Já salientamos que há um paralelo a ser feico baseia-se igualmente na cabala mística to entre Ain Soph e as concepções de Mestrecom numerosos testemunhos que mostram Eckhart, muito particularmente no que diza importância do papel representado pelo respeito ao aspecto oculto de Deus. É poucojusto sentir; a autenticidade do hassidis conhecido o fato de que um filósofo modermo reside na prioridade dada ao coração. no como Espinoza designa esse mistério diAlguns desejam ir tão longe nessa orienta vino Substância, na qual estão contidas todasção exclusiva sobre o coração que conside as propriedades de Ain Soph. Essa Substância,ram sua abertura como o mais importante esse Deus oculto, não possui nenhuma relade tudo, chegando até a recusar toda ideia ção senão consigo mesma. Não obstante, dode competição. Observamos isso no taoísmo mistério originam-se as Sefirotes ou, comomas também, no século XX, na filosofia de diz Espinoza, os atributos, as característiMartin Heidegger. cas das diferentes formas de manifestação.Pelo fato de o hassidismo ser considerado Em todas as Sefirotes, portanto medianteum sistema filosófico, é importante exami todos os atributos, o Deus oculto expressanar o que fez a filosofia ocidental com os completamente o seu ser. Ademais, a pala vra “cifra” deriva do singular de Sef irotes: Sefira, expressão da mais profunda sabedo ria divina, que não possui qualquer outro objetivo fora de si mesma. O Deus oculto surge ao saber mais profundo, à intuição do cabalista, em dez aspectos. YESOD E SHEKINAH De acordo com a cabala, existem duas Sefirotes que são espinoza e a sabedoria judaica 23
imediatamente conhecidas pelo homem emsua condição de exílio. São eles Yesod, ofundamento de todas as formas ativas, eShekinah, o deus interior. Na cabala, essasduas Sefirotes são designadas árvore do conhecimento e árvore da vida.O PENSAMENTO E A EXTENSÃO Ain Soph, Na capa de Porta e Lucis (Riccius, 1516),de onde emanam Yesod e Shekinah, é, uma mão sustenta o que liga Yesodportanto, o que Espinoza traduziu como e Shekinah ou Malkhut. Espinoza falaSubstância, que se manifesta sob os atributos sobre o pensamento e a extensão.do pensamento e da extensão (Res cogitans As três Sefirotes superiores distinguem-et res extensa). Dessa maneira, ele traduziu se entre si, mas possuem uma ligaçãoo ensinamento místico da cabala em no vertical com Yesod e Shekinah, o quevos conceitos filosóficos, exprimindo-se na expressa a relação com a terceira eratio, na razão do século XVII. A ratio diz mais elevada forma de conhecimentorespeito ao eu isolado, solitário. Em seu en em Espinoza, a intuição divina, cujasinamento da cabala, Espinoza explica esse base é Malkhut ou Shekinaheu isolado, encerrado em res cogitans, istoé, em nosso pensamento. Ele tenta romper O que seria, então, essa razão original deesse isolamento mediante a negação de que Espinoza? Há apenas uma resposta possível:cogitatio (o pensamento) e extensio sejam a razão de Espinoza é um assunto do corasubstâncias, pois, afinal de contas, eles são as ção. Para ele é o “conhecimento do coraSef irotes, as luzes radiantes do Deus oculto. ção” que se manifesta na intuição, que é a mais elevada forma de conhecimento. EssaO CONHECIMENTO DO CORAÇÃO Espinoza intuição é, em realidade, o amor a Deus,desejava transformar a meta da cultura oci pois reconhece Deus como a origem dedental, caracterizada por suas pesquisas de todas as coisas. A compreensão daí decorordem tecnologica e seu desejo de poder, rente corresponde ao seguinte testemunhoem uma mística voltada à fonte do Deus hassídico: “O hassidismo se encontra em teuoculto. Seu grande mérito é ter consagrado coração”. O hassidim busca antes de tudotodos os seus esforços na tentativa de sub a alegria, e mesmo o êxtase que conduz aotrair a sociedade de sua época das garras do céu, estados esses produzidos em função dedesejo de posse. cada boa ação realizada na terra.24 Pentagrama 3/2015
A noção de ratio ou razão de Espinoza relaciona-seexclusivamente ao coração. É o conhecimento do coração,que se manifesta na inteligência superior, a intuiçãoREALISMO E CHOKHMAH Espinoza se mos visível com Deus, traduzida pela expressãotra realista quando afirma: “Deus não tem “caminhar com Deus”, mesmo que isso posqualquer objetivo, pois se o tivesse, faltar sa parecer impossível em nossa sociedade,-lhe-ia alguma coisa. O homem estabelece que não tem o mínimo conhecimento daobjetivos e tenta realizá-los; ele projeta Essência que move o mundo.esses objetivos em Deus”. Mas quandoEspinoza fala sobre a razão, essa ideia não Segundo os que entraram em contato comprovém do eu isolado, mas de seu coração, as fontes de sabedoria no Oriente, o nomeonde estão conservadas as lembranças de de “Deus” não pode ser pronunciado, nosuas relações concretas com os antigos, pois Ocidente, sem que isso represente umasuas concepções indicam uma relação evi blasfêmia. Eles compreendiam que não eradente com a literatura bíblica. possível falar de Deus e pronunciar seu nome sem ofuscar a perfeição do ser divino.Chokmah, a sabedoria, é um atributo divino. Eles entenderam que as projeções humanasNo livro dos Provérbios (8:22-23) da Bíblia, são impróprias para expressar o conceitoa sabedoria se expressa da seguinte ma de Deus. Sobretudo a Europa, a América eneira: “O Senhor me possuía no início de outras partes do mundo estão contaminasua obra, antes de suas obras mais antigas. das por imagens caducas e inapropriadas deDesde a eternidade fui estabelecida, des Deus, cada dia mais difundidas.de o princípio, antes do começo da terra”.Essa sabedoria divina original é comunica A RELAÇÃO OCULTA É UM ENCONTRO Osda ao coração humano. O Salmo 90:12 diz: místicos e os filósofos herméticos dizem“Ensina-nos a contar os nossos dias, para que a relação secreta se torna possívelque alcancemos coração sábio.” quando se experimenta ser envolto em Ain Soph. O Deus de Espinoza pode ser enconOCULTO, NÃO OBSTANTE PRESENTE Vimos, trado com a condição de que a consciênportanto, que o Deus oculto não está au cia compreenda e experimente Ain Soph:sente, apesar das aparências, e que por o Único que mantém o Todo em si, que éconseguinte uma relação secreta é possível infinito e está oculto para a consciência coquando se toma consciência de Ain Soph e mum. Catharose de Petri, co-fundadora dose vivencia uma elevação até ele. Trata-se Lectorium Rosicrucianum, expressou issode uma relação de profunda confiança. Essa de maneira lírica:relação pode ser tão intensa que traz em “... Pois quem parte em busca da Unidadesi a certeza absoluta do retorno da relação e vai ao encontro de Deus, espinoza e a sabedoria judaica 25
desvenda todos os númerose, munido de poder inviolável,avança em Deus de força em força,e não fraquejará no caminho.”Em outras palavras, quando, ligado a Por esse ângulo, a estrita construção geoAin Soph, se parte em busca de Deus, no métrica da Ética deve ser compreendidamesmo instante inicia-se a relação secre assim: a lógica, inspirada pela razão supeta com Deus. Adquire-se então pouco a rior, liga-se à estrutura das emoções, daspouco os atributos do homem divino, bem sensações e dissolve-os no amor, o amor deicomo a possibilidade de decifrar os nú intellectualis. A medida humana e a medidameros ou cifras: as Sef irotes. Torna-se um divina tornam-se visíveis em sua relação“iluminado” que, de força em força, vive pura e original. Assim, o mistério, o queem Deus. Desse modo Espinoza ensina que está oculto, pode se revelar.a luz mística coincide com a luz da razão(conhecimento do coração), assim como ohassidismo do coração se harmoniza com acabala. De fato, a cabala estabelece que oDeus oculto não tem qualquer relação senãoconsigo mesmo, estando, contudo, profundamente ligado à sua criação que, por issomesmo, possui propriedades divinas.TIKKUN E A DIVINA INTUIÇÃO Segundo 1. G. Scholem, Ma’arechen ha eluhath, Mantua 1558 e Die JudischeEspinoza, na intuitio dei – assim ele denomi Mystik (A Mística Judaica), Zurique 1957na o mais elevado conhecimento – , o sábio 2. Como os Breslovs - segundo Rebbe Nachman de Breslov (1772desvenda o mistério da separação aparente. 1810), (bisneto de Baal Shem Tov)Para os cabalistas, este conhecimento é ao 3. Dr. F. de Graaff, Espinoza en de crisis van de westerse cultuurmesmo tempo uma conduta: Tikkun, a busca (Espinoza e a crise da cultura ocidental), J.N. Voorhoeve, 1977da harmonia com Ain Soph. Em Espinozanovamente encontramos Tikkun como amordei intellectualis. E na Intuitio, o sábio buscaa harmonia perfeita com a Substância, o quelhe permite decodificar as cifras.26 Pentagrama 3/2015
a árvore da vidaC abala signif ica “recepção” ou “revela vina derrama-se do alto em direção ao que ção”. A cabala é uma doutrina espiri está embaixo. tual israelita simbolizada pela árvore O significado das dez luzes é profundo, ricoda vida e suas dez luzes ou Sefirotes. Essa e expressivo. Mal conseguimos interpretá-losabedoria primordial foi revelada a Abraão, com palavras. Nenhuma das dez Sefirotes étransmitida oralmente por centenas de anos independente. Juntas, elas formam uma unie, mais tarde, no século XIII, legada à hu dade que liga os quatro mundos, que são:manidade por escrito no Sepher Zohar. • o mundo do segredoAs dez Sefirotes são interligadas por 22 • o mundo da criação“sendas”. Estas estão em concordância com • o mundo da formaçãoas 22 letras do alfabeto hebraico, que são • o mundo da completa realizaçãoconsideradas a fórmula sublime da Criaçãodivina. Cada letra tem um valor numéri O pequeno mundo do verdadeiro homem,co, uma cor e um valor simbólico. As três ou seja, o microcosmo, é uma unidade em siletras matrizes Alef, Mem e Schem são as três mesma e tem suas raízes nos quatro mundos“letras-Mães”, ou seja, são a base para toda mencionados acima. Portanto, esse ser estáa Criação, mas também as demais letras têm inteiramente em concordância com o macrosignificados profundos. cosmo: ele é o chamado Adão Kadmon.O capítulo II do Gênesis fala sobre duas As dez Sef irotes são:árvores, dois princípios vitais: a árvore da Keter ou coroavida e a árvore do conhecimento do bem e Chokhmah ou sabedoriado mal. Desta última o homem não podia Binah ou conhecimento, entendimentocomer, isto é, não podia ligar-se a ela, ser Chessed ou amor, misericórdianutrido por ela, viver dela. Comer do fru Gevurah (Din) ou julgamento, poderto proibido foi a causa de o homem ter sido Tifereth ou belezaexpulso do paraíso. Por ter saído da evolução Hod ou glória, majestade, esplendorharmônica da unidade divina, Adão caiu na Netzach ou vitóriaoposição polarizada da dualidade. Yesod ou fundamento, alicerce do mundo Malkhut ou reino, realezaAs dez Sefirotes formam, juntas, uma imagem da Árvore da Vida. Os três círculos à Essas dez Sefirotes são unidas por 22 linhasesquerda representam a Sefira masculina; (sendas). A cada senda corresponde umae os três círculos à direita representam as letra do alfabeto. As sendas representamcaracterísticas femininas. Quatro círculos no inteligências, por exemplo: a inteligênciacentro mantêm as características masculinas renovadora, a imaginativa, a triunfante, ae femininas em equilíbrio – missão da vida reunificadora, a ordenadora. µde todo Adão, todo ser humano. A estrela de Davi, com seis pontas, que também éo selo de Salomão, ref lete esse equilíbrio.O triângulo da busca terrestre está voltadopara o alto; e o triângulo da plenitude di a árvore da vida 27
realismo mágico Este artigo também não vai envolver o leitor O microcosmo representa a cidade antiga – uma com a distinção entre magia branca, negra das duas realidades. O núcleo do microcosmo, o ou cinza, mesmo que uma experiência átomo centelha do Espírito, desperta em nossovivenciada em matéria de magia possa ser uma coração humano uma reminiscência indefinida.ajuda para compreender do que se trata, ou seja: Sentimos um desejo perturbador, que se misdefender um comportamento realista-mágico. tura com certa inquietude: ansiamos por outraO ponto de partida é a convicção de que nossa realidade.conduta é sempre mágica, ou, em outras pala A condição do microcosmo – para que possa pervras: é ela quem determina nossa realidade. manecer nesta realidade aqui embaixo, cada vez éO autor tenta colocar claramente diante da habitado por um ser mortal diferente – faz que aconsciência do leitor que, se sua maneira de agir outra realidade somente possa falar em nós sob asimplesmente realista pode ser vivida de maneira forma de reminiscência imagética de um mundomágica, isso significa que ele definitivamente já maravilhoso, inacessível.atravessou uma fronteira. Eventuais experiências Essa reminiscência nada tem a ver com umaanteriores situadas no “limite” (nas fronteiras) antiga felicidade, com uma relação anterior, nemserão preciosas – talvez até mesmo indispensá com todos os que ocuparam anteriormente aveis para que ele possa compreender melhor do morada microcósmica, por mais que nela estejaque se trata. registrado e armazenado tudo o que tenha sidoO ponto de partida é essencial: há duas reali vivido ali. São todos esses tesouros de nossodades de consciência. Entre as duas, a frontei sótão que exercem certo fascínio sobre nós.ra está muito bem demarcada. Podemos vê-la Lembre-se de sua infância e de como o sótãocomo uma muralha que atravessa nossa cidade e da casa de seus avós era atraente! Uma pobreque nos separa da cidade antiga – que, aliás, já lampadinha e um raro raio de sol revelavamnão reconhecemos. cartões, móveis, tecidos, diversos objetos... um mundo mágico para uma criança que logo seUMA PASSAGEM PELO SÓTÃO Todos os seres hu via transportada para um lugar completamentemanos são envolvidos por um microcosmo, e isso diferente, nas nuvens! Essa viagem pelas descoquer dizer que todos os aspectos do macrocosmo bertas apaixonantes se parece com a viagem queestão no interior de nosso próprio sistema, nosso podemos fazer até o interior de nosso própriopequeno mundo. Como homens microcósmicos, microcosmo.pertencemos às duas realidades. Nossa consciênciaoscila entre os dois polos e não é fácil ultrapassar O QUE VEM ANTES DA VIAGEM Pode parecera muralha que delimita as duas realidades. Já não perturbador – sim, pois será que somos mesmoconseguimos achar a passagem. esse tipo de viajante? – e é bem verdade que28 Pentagrama 3/2015
a magia da realidadeO objetivo deste artigo não é falar de um gênero literário, mesmo que orealismo mágico de certos romances, sob um ou outro aspecto, conviesseperfeitamente para interpretar diferentes níveis de consciência. Talvez certabagagem literária possa servir de auxílio, mas não é indispensável para compreender o que se segue. O romance não se apresenta na vida de todas aspessoas, mas a vida de cada pessoa mostra que pode ser, ao mesmo tempo,uma realidade e um milagre mágico.Silo, de Peter Vlot realismo mágico - a magia da realidade 29
esse tipo de viagem ao interior de nós mesmos sencadeou vento tão terrível que nada pudeé uma forma realista e mágica de agir. Essas pensar senão que se desmoronara, por força daviagens nos permitem descobrir quais são os violência, a montanha em que estava escavadaelementos de um eventual passado longínquo minha casinha. Contudo, tal tentativa do Diaque ainda estão determinando nossa existência. bo, que me havia causado muitas penas, nãoSão os fios de nosso destino que nos prendem! me surpreendeu. Cobrei ânimo e prosseguiEles nos fazem descobrir a construção de nossa minha meditação até alguém tocar-me as cosprisão. É uma busca interessante, que lança luz tas, assustando-me de tal modo que não ouseisobre o que está impedindo nossa alma de ultra volver-me. Conservei a confiança, porém, atépassar a fronteira: a fronteira do país que ela, na onde pode fazê-lo a fraqueza humana, em taisverdade, jamais abandonou. circunstâncias. Todavia, ao ser puxado peloA alma recebe um chamado, que vem de seu casaco repetidas vezes, volvi-me. Vi então mamundo: um chamado para que ela volte para ravilhosa figura feminina, trajando um vestidolá. Encontramos isso na Canção da Pérola (mito de cor azul como o céu e magnificamente cognóstico transcrito no Evangelho de Tomé): a berto de estrelas douradas. Na mão direita elaalma recebe uma carta, trazida por uma águia. levava uma trombeta de ouro maciço, em queEssa carta, que está endereçada a ela, vem da estava gravado um nome que bem pude ler,parte de seu Pai-Mãe, do país que um dia ela porém que mais tarde me foi proibido revelar.deixou para trás. Na mão esquerda tinha um volumoso maçoEla observa as palavras transcritas na carta e de cartas, escritas em diversos idiomas, quesente que correspondem às palavras que traz no ela, como soube mais tarde, deveria distribuircoração. por todos os países. [...] Tão logo me volvi,Esse convite que a alma recebe também pode ser buscou entre suas cartas, extraindo dentre elasvisto no livro As núpcias alquímicas de Christian uma pequena, que colocou sobre a mesa comRosenkreuz: profunda reverência, retirando-se de minha“Uma noite, véspera do dia de Páscoa, esta presença sem dizer sequer uma palavra. [...]va sentado à mesa e, segundo meu costume, Mesmo fora ela de ouro maciço, não seria tãohavia conversado com o Criador em humilde pesada como era. Ao examiná-la com cuidaoração e meditado sobre grandiosos segredos do, descobri um pequeno selo com que estava– pelos quais o Pai das Luzes mostrara-me, fechada. Neste estava gravada uma cruz delicadaem profusão, sua majestade. Desejava, pois, com a inscrição: In hoc signo vinces (Com estepreparar no coração, juntamente com meu sinal vencerás). [...] Abri cuidadosamente, pois,bem-amado cordeiro pascal, um bolo ázimo a carta. Nela estavam escritos, em fundo azul eimaculado, quando repentinamente se de com letras douradas, os seguintes versos:30 Pentagrama 3/2015
Um ato mágico é uma experiência fascinanteque modifica toda a nossa realidadeHoje, hoje, hoje tos, a fim de ver o que há dentro de nós, deé o dia das núpcias do rei. ver o que realmente somos. O que observamosSe para nelas tomar parte hás nascido precisa ser colocado à prova: confrontados come por Deus para a alegria eleito foste, a exigência de um “banho de purificação”,podes vir até a montanha precisamos ser lavados de todos os pecados.em que os três templos se encontram Cumprir sinceramente essa tarefa é um atoe lá o milagre contemplar. mágico. É uma experiência fascinante que mo difica toda a nossa realidade.Sê vigilante! Na verdade, o que acontece? Na história daExamina-te prudentemente! Canção da Pérola, vimos a águia que vem doSe não te purificares, país do Pai-Mãe e traz a carta que, no coraAs núpcias podem causar-te dano. ção do filho, provoca um efeito de espelho,Quem dos pecados não se lavar, um reconhecimento. Isso significa que a LuzDemasiado leve achado será! exterior, que nos convida, pode ser reconhe cida como sendo a Luz interior, que brilha noEmbaixo estava: Sponsus et Sponsa (esposo e esposa) espaço do coração. A linguagem do elemen to-Luz em nós faz eco às vibrações da ouEsta narrativa é, portanto, um convite para as tra realidade de consciência – a realidade donúpcias reais. Ao mesmo tempo, é um convi campo de Luz que nos envolve. Esse efeito dete para iniciarmos o caminho, para subirmos a ressonância comunica-se com nossa consciênmontanha. E a condição para conseguir um bom cia sob a forma de aspiração, de inquietude, dedesempenho é observada com precisão: estar nostalgia. À medida que essa transmissão depurificado, lavado de todos os pecados. força for aumentando, essa ressonância fará ex plodir nossa crosta endurecida, nossa carapaçaA QUEM ESTÁ ENDEREÇADO O CONVITE? protetora. Essa carapaça que se encontra entreA partir dessa narrativa, percebe-se que a con a Luz interior e a Luz exterior nada mais é quedição para ser convidado é manter uma relação nossa teimosia arisca, nosso velho pensamentoe um diálogo íntimo com “o Pai das Luzes”. E, berrando a plenos pulmões.no coração do convidado, deve ser produzidoalgo completamente novo, em virtude dos atos VAMOS FALAR SOBRE O REALISMO MÁGICOque se apresentam: “um bolo ázimo [sem fer Nesse momento, existe apenas a inquietudemento] imaculado”. que, com nossa vontade de compreender, nosAlém disso, o realismo é exigido: “Sê vigilan persegue na Terra, no mundo humano, atravéste!” Examinar-nos! É preciso estarmos desper da rede de nossas relações. E isso vai aconte realismo mágico - a magia da realidade 31
Vamos removendo delicadamente nosso fio pessoaldo tecido, para que ele seja utilizado em uma novatecelagem, muito mais livrecendo até que, em nosso sangue, fica registrado precisamos da Luz – tanto da exterior comoo conhecimento de que o país fascinante de da interior. Em conjunto, elas terminarão pornossa pré-memória não fica em nenhuma parte chegar até nós, tocando nossa consciência e,deste globo e percebemos que “a mulher bela melhor ainda: expressando-se em nós. Algumae misteriosa” para quem nosso coração pare hora, de tanto sermos puxados pela manga dace estar inclinado é uma aparição que não faz camisa, vamos nos virar para ver que estamosparte da multidão humana – como se fosse um sendo convidados! Resumindo: nossa alma estácacho de cabelos dourados perdido em nossa recebendo uma carta-convite para mudar depré-memória, embaixo de um casaco cinzen rumo e voltar-se para o Pai-Mãe que um diato – e, com certeza, também não faz parte do ela deixou para trás.clube seleto de personalidades supereducadas denosso meio social. O REALISMO VAI ABRINDO O CAMINHOEntão, a busca desenfreada e apaixonada relaxa Quando a consciência sente esse desejo tão esum pouco e começa uma viagem interior, uma pecial que jorra da centelha do Espírito que foidescida a nós mesmos, desta vez conduzida pela tocada, ela somente quer falar sobre isso, cantaralma. Em seguida, aparentemente como um seu anseio pelo outro país, seu desejo de unir-sedos personagens de Gustav Meyrink, desco a Deus, à Luz, à felicidade, à beleza, à sabedoriabrimos – completamente por acaso – um velho e à verdade. Quando a consciência capta tudomanuscrito em um nicho da antiga mansão. isso e se identifica, a alma se sente como umaAssim, começamos a fazer uma leitura do jovem adolescente que, apaixonada, sempre estápassado dos antigos moradores de nossa casa. buscando o castelo onde, em uma festa maraEstados, climas, predecessores de um passado vilhosa, ela se encontrará com seu bem-amado.longínquo, lembranças comoventes ou estres Mas, quando a consciência consegue reconhecersantes, tudo isso nos faz lembrar o motivo pelo que essa aspiração é um desejo da alma, entãoqual estamos interessados nesses personagens uma nova possibilidade é liberada.– e talvez sintamos a proximidade de velhos É uma nova lucidez, um realismo que vai abrinfantasmas que nos observam e nos convidam do caminho. O homem se transforma em umpara um baile de máscaras. mágico realista, preparado para trazer tranquiliE aí está a oportunidade, que nos é oferecida, dade e limpidez ao seu campo de respiração, depara olhar através dessas máscaras! Existe a Luz tal modo que os raios de Luz, agora menos fragexterior e a Luz interior. Entre as duas, está mentados, fiquem mais intensos para que o fluxonosso pensamento presente, com suas preo de energias construtoras não seja interrompido.cupações bipolares, às quais nossa consciência Essa possibilidade traz consigo outra magia: aestá acorrentada. Para decifrar essa situação, magia gnóstica pela qual o interior, tal como32 Pentagrama 3/2015
um espelho sem manchas, imaculado, reflete realismo mágico, se estivermos preparados paraclaramente a nova realidade da consciência para ver que o que nos anima vem da Luz do coratodos e no interior de todos. ção, então cada encontro vai trazer um conviteGrandes sábios imaginavam a humanidade e cada consentimento efetivo vai modificar algocomo um conjunto – como um amontoado de de nosso ser. É assim que observamos que nossosbolas, de volumes esféricos, como se fossem “altos e baixos” não são jogos do acaso nemamoras ou framboesas: como uma só fruta o resultado de uma existência solitária. Então,composta de milhões de pequenas “esferas” – começamos a enxergar que há um fio douradopalavra grega para denominar “bolas”. Nossa que atravessa todas as situações que sucedem emesfera ou bola individual está rodeada por uma nossa vida.carapaça. Quando permitimos que a ressonân Seguir nosso próprio fio dourado passa a sercia da luz entre, o escudo protetor do eu se um movimento de retorno. Vamos removendoabre e nossa bola se torna mais transparente. delicadamente nosso fio pessoal do tecido, paraA Terra e toda a comunidade humana também que ele seja utilizado em uma nova tecelagem,estão envolvidas por essa carapaça, um anel muito mais livre!delimitador. De certo modo, podemos dizer E, é claro, ao realizar essa tarefa, vamos nosque a Terra é a humanidade e que a humani cruzar com inúmeros fios da trama formadadade é a Terra. por todos esses novelos de homens e mulheresQuando todas essas pequenas esferas que são com os quais iremos nos encontrar. Toda relaçãotodos os seres humanos se tornarem fontes entre duas pessoas é feita de nós, de laços, deluminosas e translúcidas, a terra irá ficar muito pontos de contatos extremamente individuais.parecida com um... sol! Quando desfazemos este ou aquele nó, perce bemos que a ligação se dissolve, desaparece: jáO FIO DOURADO DA “VOLTA À CASA DO PAI” não há uma ligação obrigatória, como se fosseO convite sobre o qual estamos falando tem a ditada pelo destino, limitando nosso espaçointenção de nos fazer tomar nosso rumo, pegar e nossa liberdade. Já não há, por exemplo, aa estrada! Há um caminho a ser seguido. Na predominância de um sobre o outro, nem umaprimeira etapa é só seguir a luz de seu próprio relação afetiva desesperada. Desaparece o sencoração. Para ter mais informação, uma Escola timento maternal que constrange e pressiona,Espiritual é de grande utilidade! Concretamente, já não existe aquele desespero diante de umatrata-se da vida comum – a nossa vida – com separação ou da perda de um ente querido...todas as suas agitações, seus encontros, confli Por outro lado, a liberdade vai ganhando tertos, “bom dia, boa tarde, boa noite”, suspiros reno. Afinal, não há nada mais mágico do quede aflição... Se estivermos dispostos a perceber o renunciar a si mesmo! µ realismo mágico - a magia da realidade 33
a viagem de mantaoC.M. CHRISTIAN*De onde vens?Às primeiras horas da manhã, quando o Muito zeloso e feliz, aproximei-me do tron campo ainda estava envolvido por sua ves co. Como era notável essa árvore! Logo comecei te rosada como uma jovem esposa ador a subir por ela até ficar envolvido por sua rama.nada com seus véus, quando miríades de péro Quanto silêncio à minha volta! Eu me sentia enlas refletiam a luz do sol, meu pai, o rei Man, e eu volvido pelo mistério e, ao meu redor, volteavammesmo, seu filho Mantao, fazíamos um passeio no maravilhas. Os pássaros haviam cessado de cantar,magnífico jardim. Quanto encantamento havia no as folhas já não sussurravam, lágrimas douradasaroma e no esplendor das flores que iam desper escorriam pelos galhos, e, na ramada planava umtando suavemente! profundo silêncio. Eu ia me aventurando cada vezFizemos uma pausa em um local onde jorra mais alto através da densa folhagem. Uma pombava uma resplandescente fonte prateada, encanta me seguia, arrulhando suavemente até eu alcandos pelo canto jubiloso dos pássaros empoleirados çar o cimo. Lá, descobri acima de mim o mais deno alto cimo de uma velha árvore. Essa árvore era licado dos frutos. Seu odor era suave. Poderíamostão antiga que ninguém sabia qual seria sua idade. dizer que era um fruto de ouro completamenDe acordo com a lenda, ela estava lá, elevando-se te maduro, incrivelmente belo. Fiquei tão espantafirmemente com toda a sua força, desde tempos do que não ousava nem sequer estender a mão emimemoriais. E ali ficamos ao pé da árvore por um sua direção. Subitamente, ouvi um sibilar acimatempo. Em profunda meditação, eu me indagava de mim. Inclinei a cabeça e enxerguei uma pesobre seu mistério. quena serpente que se contorcia.“Diz-me, querido pai: o que é o tempo?” “Segue meu conselho!”, disse ela, “antes de levarNo entanto, Man, meu pai, não respondeu. Nem o fruto a teu pai, morde-o e vê o que há dentropor isso desisti e refiz minha pergunta: “Diz-me, dele. Assim, saberás tudo o que queres saber”.eu te rogo, meu pai: o que é o tempo?” Eu a escutava, fascinado. Porém, quando sentiNovamente meu pai guardou silêncio, como se uma sombra sobre minha cabeça, disse a ela:desejasse que eu não houvesse feito a pergunta. “Não, não! Quero primeiro levá-lo a meu pai.”Nem isso conseguiu me apaziguar e, com obstina “Escuta”, insistiu a pequena serpente, “este frução infantil, indaguei pela terceira vez: “Não sa to divino traz em si o segredo do Tempo! Teu paiber isso é uma tortura para mim, pai. Se é um se não irá revelar-te esse segredo. Portanto, se queresgredo, confia-o a mim! É preciso que eu saiba: o conhecê-lo, morde-o e vê o que há dentro dele!”que é o tempo?” No mesmo instante meu coração se pôs a tremerUma sombra deslizou pela fronte de Man; logo de desejo. Um anseio até então desconhecido toele a varreu para longe de si. Então, amigavel mou conta de mim. Estendi a mão em direção aomente, ergueu a mão e apontou para a velha fruto... Ainda ouço o arrulhar plangente da pomárvore. ba. Tremendo, colhi o fruto e, logo que o tive em“Se persistires e quiseres realmente sabê-lo, meu minhas mãos... o mordi e olhei para seu interior.menino, primeiro colhe para mim, no alto cimo Ah, como lamentei ter feito isso! O fruto me esdesta árvore, o fruto mais belo!” capou das mãos e rolou lá para baixo, muito longe34 Pentagrama 3/2015
de Vem,mim. meu ra-Como pazinho.que atin- Segue-me,gido por que te mostrareium raio, per- um pouco do cadi o equilíbrio e so- minho durante tua viafri uma queda: tive a im- gem através do mundo”.pressão de mergulhar, através Docilmente, segui a tartaruga nada fonte, em um abismo. poeira. Ela me explicou muitas coisas: “ErgueQuando despertei, tudo à minha volta estava es a cabeça! Estás vendo aquela luminária ali? Poiscuro e endurecido. Já não havia luz. Haviam de bem: a partir de agora, ela será teu sol. Ela forsaparecido o esplendor, a coroa, as vestes res nece luz somente durante o dia, quando não estáplandescentes. O reino do Pai-Mãe-Filho estava oculta pelas nuvens. Ela pode também queimaresquecido. Meu olho solar estava fechado. Tudo o tua pele. Ela é o espelho do verdadeiro Sol e ofeque havia à minha volta era uma noite fria. rece, durante certo tempo, um pouco de sua forçaEu me arrastava, engatinhando, de pedra em pe para os seres que vivem na Terra: ela também lhesdra, de arbusto em arbusto. Súbito, ouvi uma voz: oferece luz para seus olhos. É por isso que deves“Olha! Temos um novo hóspede no reino!” ser reconhecido a ela, pois sem ela estarias perdi“Onde estou?”, perguntei, enquanto ia me es do! Além disso, olha: à noite uma lente de pratagueirando como um animal medroso, rastejan lá de cima ilumina o mundo - é a Lua. Ela te ligado pela terra. Uma tartaruga gigante saiu de seu à rede dos sonhos, tecida com os fios multicoburaco e me respondeu: “Estás no reino do so res de teus desejos, a fim de que jamais eles deiberando de duas cabeças! Ele reina com muitos xem de ser saciados, tanto na infelicidade como‘sins’ e ‘nãos’, com ‘sinto muito!’ e ‘Ah-há-há!’. na felicidade. a viagem de mantao 35
... aqui, eu me encontrava como um rei em meio a cavalheiros edamas de grande distinção – Ah, que felicidade!... ali, precisava deixar tudo para trás e fugir para longe de umacidade incendiada – Oh, que infelicidade!E lá adiante, na feérica tranquilidade da veste da Quando olhei para o outro, via, na escuridão àrainha da noite, estás vendo todos aqueles ponti minha volta, uns camaradas esquisidos, armadosnhos brilhantes? São as estrelas. Com seus olhos com porretes. Eles baterem em mim até quase megelados, elas te atraem com seus fios, de alto a matar, e ouvi meu próprio grito de morte. − Oh!baixo, da esquerda para a direita, bem perto ou Ah-há! Então, eu já estava ali, sentado ao pé delonge, no mundo inteiro! De acordo com tuas ex uma fonte onde jovens encantadoras enchiampectativas, elas te mostrarão, talvez um dia, o seus jarros e me atraíam, rindo, para que eu fossesentido do mundo”. beber com elas.E assim ela foi me ensinando muitas outras coisas, Oh! De repente eu já estava lá, entre velhosa velha tartaruga, sábia guardiã do reino do sobe exaustos, atormentados e indefesos, rodando emrano de duas cabeças. Subindo e descendo, eu ia círculos, mancando. Abandonados, os infelizes seseguindo seu rastro, dia e noite, noite e dia, a fim arrastavam rumo às suas tumbas.de aprender a caminhar no movimento circular Aqui, em salas suntuosas, eu me encontrava comodo relógio do mundo. um rei em meio a senhores e damas de grandeUm dia, sem dúvida exausta de me mostrar tudo, distinção, me embebedando de glória, riqueza eela me abandonou e arrastou-se para seu buraco, poder, como entoxicado por um vinho deliciosopara que eu fizesse meu caminho por mim mes − Ah! Ah-há!mo. Desde esse momento, só consegui andar em Ali, eu estava ajoelhado com os mancos e mendicírculos. No entanto, logo me dei conta de que eu gos chorosos, atormentados pela miséria, corroídoshavia sido seguido secretamente. Dois camaradas pela lepra, nos degraus de mármore dos paláciosmuito estranhos dançavam à minha volta, zom dos ricos. − Oh, oh, oh!bando de mim e me provocando, ora debochando Aqui, eu vivia com uma esposa corajosa e um círcuora fazendo elogios. lo alegre de filhos e filhas. Uma verdadeira bênção,Brincavam comigo suspirando “Oh!”, ou gar esse tranquilo espírito familiar! – Que felicidade!galhando “Há-há-há!”. Poderia jurar que que Ali, em uma cidade incendiada, eu tinha de deiriam me prender. Cada um manejava um espe xar para trás todos os meus bens e fugir do inilho ligado a uma haste longa – um com “Oh” migo, com mulheres e crianças em prantos. −e outro com “Ah!”. Ficavam me rodeando sem Que infelicidade!parar: “Olha aqui! Olha ali!”, “Oh!”, “Ah!”. E Aqui, eu era um erudito entre sábios, honrava aassim eles iam me arrastando, criando em mim ciência e me enriquecia com tudo o que havia dedesejos diferentes. Muitas vezes eu desistia e prudência, saber e arte. – Que felicidade!caía em armadilhas. Eu estava preso aos espe Ali, eu chafurdava na lama de minhas paixões,lhos “Oh” e “Ah!” por meio de todos os meus onde a volúpia e a dependência nutriam o pecadosentidos. e o vício – e onde o temor do castigo atraía sofriQuando olhei para um deles, vi-me deitado em mento, doença e morte. Oh, meu Deus!um berço na casa de minha mãezinha: crianças Aqui, eu ficava fascinado com as maravilhas dobrincavam ao Sol, correndo atrás de borboletas, Todo Poderoso e seu múltiplo esplendor, pelo jogoem uma pradaria florida. − Ah! dos elementos e do insaciável instinto de vida.36 Pentagrama 3/2015
− Ah! Que maravilha! Ajoelhei-me. Do fundo de meu coração elevouAli, eu me via frente a frente com a impotência das -se uma chama, um ardente desejo. Uma voz faloucriaturas, a adversidade, a decadência, a decomposi dentro de mim, muito serena e doce: “Esquecesteção, a destruição e a morte inevitável. – Miséria! o Outro em ti, o Pai-Mãe-Filho, e nosso Reino deAqui, eu descobria as artes e magníficas obras, Luz? Será mesmo que esqueceste completamenteimaginadas de forma genial pelos pensadores e da veste de luz, da coroa, da fonte e da velha árexecutadas com destreza pelos artesãos: tantas ex vore, da pura claridade do espaço ilimitado...?”pressões de todos os povos e de suas culturas flo Quando ouvi essas palavras, pus-me a chorescentes. – Quanta beleza! rar amargamente. Enquanto vertia minhas lágriDepois, abria-se para mim o inferno e sua malda mas, entregue a meu desespero, subitamente sende, com as obras astutas cheias de mentiras ardi ti um toque leve e enternecido em minhas costas.losas: o reino da cupidez, do poder e da ilusão. − Então, eu me virei. Era um burrinho de olharOh! Cala-te! fiel, de fronte clara, que trazia uma flor em seuEm seguida, eu encontrava as primícias da pri focinho. Ele colocou a flor diante de mim e disse:mavera iminente da fé, da esperança e do amor. “Irmão dos homens, deixa-me auxiliar-te em teuComo isso fazia bem! caminho de volta!”Mas logo o frio, a pura inveja, a hipocrisia, o “De volta? Então sabes que sou um estrangeiroódio, a iniquidade, a crueldade, a tirania e a sub neste mundo?”, indaguei-lhe, surpreso.serviência iam se desvelando diante de meus “És um estrangeiro aqui e desejas voltar ao reiolhos. – Que horror! no de teu Pai. Mas sabes realmente por que esQuanto tempo vagueei assim, sem rumo, em meio tás aqui?”à engrenagem do relógio do mundo, com seus “Não sei”, confessei com suavidade.Ahs! e Ohs!, suas felicidades e infelicidades? Já não O burrinho murchou as orelhas.sei. Quantas vezes fui pendurado nessas rodas, ora “Perdeste uma coisa maravilhos. Primeiro, tenssubindo, ora descendo, do berço ao túmulo, do tú de reencontrá-la, antes de voltar para perto demulo ao berço, ora mais baixo, ora mais alto, em teu Pai.”um circuito delirante? Já nem sei mais. “Perdi algo maravilhoso?”, gritei, espantado. “E oSó sei de uma coisa: eu era prisioneiro dos jo que seria isso?”gos dos espelhos das forças gêmeas do soberano “Aguns o chamam de ‘pedra filosofal, a pedra dosde duas cabeças! Tudo o que eu sentia, tanto de sabios’ e outros de ‘o fruto dourado do Paraiso’.”prazer como de dor, acabava se revelando como “Então, vamos sair em busca desse tesouro!” exsempre como uma quimera, uma ilusão, de tan clamei do fundo de meu coração angustiado.to que eu era enganado pelo vai e vem incessan “Bom, então vamos!”, disse ele.te dos espelhos. Menos de uma hora mais tarde, já estávamos toUm dia, finalmente, fiquei farto de tudo isso. mando a direção do Oriente. Situada em umaCansado de tanta ilusão. Exausto de tanto ser jo alta muralha, havia uma passagem, que nos congado de alto a baixo na engrenagem do reló duziu a uma portinha, que se abria para uma vasgio, na roda do tempo. Farto do jogo das mudan ta planície.ças com seus Ahs! e Ohs!, sempre com seus Sins e Foi assim que o burrinho e eu seguimos caminho. µNãos logo em seguida. Farto do nascimento e damorte, do dia e da noite... Eu queria ficar livre das Continua na próxima ediçãoforças gêmeas!E então, de repente, aconteceu! No meio de uma * A história da viagem de Mantao é uma adaptação em prosa do livronoite de angústia interior, as estrelas brilharamacima de mim, de um jeito tão luminoso, mais Die Reise des Mantao – Eine Perlenlied der Gegenwart (A viagem deresplandecentes do que nunca. Mantao – uma Canção da Pérola da atualidade), de C.M. Christian, (DRP) distribuído pela Editora Rosa-Cruz alemã – 1944 a viagem de mantao 37
a redescobertada gnosis IIINa ocasião da aparição em holandês do livro Ecos da Gnosis, umaConferência pública foi realizada em 6 de novembro de 2013, nalivraria Pentagrama de Haarlem, nos Países Baixos, sob o título:Por que George R.S. Mead pode ser chamado o primeiro gnósticomoderno. Exporemos aqui a terceira parte dessa conferência.Graças à descoberta feita em Nag de 1951. Contudo, nem mesmo o fato de Hammadi, a visão que se tinha dos Quispel ser um cientista perfeitamente co gnósticos, até então na maior parte nhecedor da tradição gnóstica e ter a esseobra de seus oponentes, mudou radicalmen respeito uma visão muito ampla e até oute. Carl Gustav Jung teve grande significa sada foi suficiente para retratá-lo como umdo na difusão do pensamento gnóstico ao autêntico gnóstico. No início, sua concepçãoconvidar Gilles Quispel a fazer um pronun do conhecimento de si mesmo se aproximaciamento em uma Conferência Eranos*, em va muito da concepção de Jung; mas tendoAscona, dando-lhe, assim, a oportunidade e se tornado emérito, e em consequência dosadquirir o Codex Jung, no qual figurava O contatos que manteve com a BibliothecaEvangelho da Verdade. Philosophica Hermetica, ele ousou falarPoderíamos ver com reserva a maneira como mais livremente. As fontes do EvangelhoJung se aproximou e tratou a Gnosis, pois de Tomé, reconhecidas como muito antigasnem sempre o respeito por sua individuali por Quispel, são para alguns, anteriores aosdade está contido em sua descrição do in quatro evangelhos; mas é com prudênciaconsciente coletivo e dos arquétipos que são que ele os qualif ica de “protognósticos”.seu fruto. A esse respeito, a ideia do incons Segundo ele, essas fontes poderiam estar baciente coletivo lhe veio ao espírito quando seadas no evangelho aramaico dos hebreus,um paciente psicótico lhe contou um sonho que continha autênticas palavras de Jesus, ocuja descrição correspondia literalmente à que situaria esse evangelho muito próximode um ritual mitríaco que ele havia lido do Jesus histórico. Mas, para um verdadeirono livro de Dietrich. Esse ritual é, aliás, gnóstico, isso não é pertinente, pois a gnosisigualmente mencionado em Visões, sonhos ensina que não há nada nem ninguém entree rituais, onde Mead fala de um conduto o divino e o homem. A “sensibilidade gnós– que, para o paciente, é um falo – saindo tica” de Quispel é incontestável, como testedo sol e produzindo vento assim que ele se munham seus estudos sobre Valentino e sopõe em movimento. Voltando a falar sobre bre o Evangelho de Tomé. Que a herança doQuispel, ele foi o primeiro acadêmico a ter pensamento gnóstico constitui uma religiãotido a audácia de falar, em relação à “gno de amplitude mundial, como Quispel chesis”, como uma “religião mundial”. Aliás, o gou a demonstrar, era algo de que Georgetítulo da obra que inscreveu definitivamen Mead já estava convencido muito tempote seu nome no repertório da pesquisa em antes dele. Como pode acontecer então quematéria de gnosis foi Gnose als Weltreligon a obra de Mead tenha ficado tanto tempo(A Gnosis como religião mundial), datado fora dos radares da busca? Seria pelo fato de38 Pentagrama 3/2015
GEORGE STOWE MEAD, O PRIMEIRO GNÓSTICO MODERNOMead não ser um acadêmico desejoso de re que era um fator exponencial contra o dognomada reputação científica? Ou por ele não matismo eclesiástico, atestando de formaser um teólogo disposto a manter o ensina diametralmente oposta a Gnosis em todas asmento da Igreja? Ou sobretudo porque ele suas manifestações, a história dos perdedoresqueria ser um teósofo não apenas de nome, que, segundo ela, continuava a ser escrita.mas sim do mais profundo de seu coração, Deixemos que ela mesma fale: “Ainda queum amante da sabedoria divina? Essa era, os gnósticos fossem exterminados, a gnosis,aliás, a razão pela qual ele havia se filiado à baseada no saber oculto dos conhecimentos,Sociedade Teosóf ica que, na sua opinião, era sobreviveria! A gnosis ou saber tradiciona época a única instituição a buscar uma nal nunca ficou sem seus representantes emverdadeira vida espiritual. Para um homem qualquer época ou lugar!”. Sem a f igura decomo Müller (autor dos Livros sagrados do Blavatsky, a reabilitação dos gnósticos doOriente) era incompreensível que alguém passado seria inconcebível. Mesmo considedesperdiçasse seus talentos relacionando rando sem dif iculdade a Sociedade Teosóf ica-se com pessoas como a senhora Blavatsky, a única e verdadeira herdeira desse legadovista com suspeita em círculos respeitados. gnóstico, ela sabia dos ensinamentos esotéGeorge Mead, no entanto, era colaborador ricos subjacentes a todas as religiões e foipróximo de H.P.B. desde sua nomeação e foi quem os tirou do esquecimento e os colocouseu secretário até a sua morte. E sim, para sob a atenção do grande público. Todavia,ele tudo teve início com Helena Blavatsky. temos dúvidas quanto a considerá-la umaSe por um lado ela lhe abriu o caminho, ele, gnóstica de pleno direito. Blavatsky tampor outro, ousou se associar a ela apesar de bém era chamada de “esf inge”, o que seusua reputação. Para o mundo intelectual da secretário confirmou: “Ninguém a conheciaépoca, ela era uma figura muito controver verdadeiramente”. Em resumo, ela tambémsa, até mesmo uma impostora e mitômana. era médium, o que constituía tanto suaMas esse mundo não se saiu tão bem quan força como sua fraqueza. Nem sempre haviado, em sua monumental obra Isis sem Véu, uma clara visão do pano de fundo de ondeela deu tanta atenção à antiga sabedoria dos lhe vinham seus conhecimentos “secretos”.mistérios com provas convincentes de um Hoje, se falaria de mensagens canalizadas,entendimento muito além da compreensão mas, segundo suas próprias palavras, seu tramundial. Dessa forma, Blavatsky provocou balho era inspirado por mahatmas, mestresuma imensa revolução espiritual na Europa ou iniciados. Durante certo tempo, pareceue no mundo inteiro. Ela foi de encontro ao claro que estes eram de origem ocidental,materialismo ascendente e do darwinismo, mais precisamente do círculo de adeptos que a redescoberta da gnosis iii 39
tinham igualmente inspirado os rosa-cruzes citados a deixaram. Por uma razão similar,clássicos. Assim como a Sociedade Teosóf ica o poeta irlandês W. B. Yeats preferiu entrarera, no princípio, fundamentada no modelo na ordem hermética Golden Dawn (Aurorade lojas franco maçônicas, a coluna vertebral dourada) – um grupo que ainda não dava ode seu trabalho era constituída da heran devido valor ao ativo participante Arthurça do pensamento do esoterismo ocidental E. Waite e que depressa descarrilou quando(pelo menos essa é também a opinião do personagens como Aleister Crowley assumiprofessor Hanegraaff ). Porém, quando, em ram posições de liderança. Enquanto isso,1887, Mead se af iliou à Sociedade Teosóf ica, a Sociedade Teosófica se tornou palco deuma mudança em direção à sabedoria orien uma grave luta por poder que explodiu logotal fez-se claramente perceptível, particular que H.P.B. faleceu prematuramente poumente à do hinduísmo e do budismo. Alguns co após a aparição de A Doutrina Secreta.membros diziam que os adeptos ocidentais Contrariamente ao que era esperado, Willianhaviam abandonado a Sociedade e se encon Q. Judge não foi nomeado presidente, mastravam sob a inf luência dos mestres tibeta sim Annie Besant, membro recente, sendonos Morya e Koot Hoomi. De fato, pouco que a escola esotérica também foi colocadatempo depois, em 1878-1879, a senhora a seus cuidados, numa clara concentração deBlavatsky e o coronel Olcott transferiram poder. Especialmente quando a atenção dea sede central da Sociedade para Adyar, na Besant se voltou politicamente para a Índia,India. Lá, aconteceram fatos desagradáveis todos perceberam que deviam desistir daque lhes causaram sérios problemas, o que verdadeira escola de caminho interior com aos levou a ser objeto de inquérito judi qual sonhavam. Foi exatamente o que aconcial, cuja comissão foi liderada por certo teceu com a chegada do bispo Leadbeater,Hodgson, da Psychical Research Society que introduziu um ritualismo e um cerimo(Sociedade da Pesquisa Psíquica). nialismo tão estranhos quanto superficiais,Eles decidiram se demitir da direção da sem falar das diversas extravagâncias como aSociedade Teosófica. Embora mais tarde ela fundação na Austrália de uma igreja católicatenha sido absolvida de todas as acusações, à moda antiga. Em seguida, houve ainda ao dano já havia sido feito. Além disso, as “descoberta” do jovem Krishnamurti comodificuldades não demoraram a aparecer na o futuro Maitreya. Em torno dele foi criadasecção inglesa, então sob a direção de Anna a Ordem da Estrela, sendo ele também a fiKingsford e Edward Maitland, os quais gura central dos famosos Campos Estrela emeram coautores de um livro magnífico: O Ommen, nos Países Baixos. µcaminho perfeito; ou, a descoberta de Cristo.Este livro, pela primeira vez na época mo Continua na próxima ediçãoderna, descreveu de maneira brilhante ocaminho de iniciação cristão-hermético e * Eranos: grupo de discussão intelectual dedicado ao estudo da psique, surpreendentemente, já fez referência à base hermética e, portanto, egípcia cologia, religião, filosofia e espiritualidade, que se reúne anualmentedo cristianismo. Foi precisamente porquea Sociedade Teosofica ja não dava a ele a na Suíca desde 1933importância desejada que os dois autores40 Pentagrama 3/2015
nós somos os recriadoresColetamos NÓS SOMOS ASapaixonadamente ABELHAS DO INVISÍVELo mel do visível,para guardá-lona grande colmeia douradado Invisível.Assim inicia a carta, que Rainer Maria Rilke escreveu ao seu tradutor Hulewicz. Ele tenta lhe explicar doque tratam as Elegias de Duino, uma obra queiniciara no Castelo de Duino, a poucos quilômetros ao norte da cidade italiana de Trieste,e só terminaria dez anos mais tarde, na Suiça.Em 1912, ele ouviu uma voz em meio a umatempestade:Quem, se eu gritasse, me ouviria entre as hierarquias dos anjos?Quem, quando eu chamo, ouviu de onde eu chamo?Quem, quando eu chamo, me ouviu falar dele?Sua distância se eleva infinitamente acima de mim.Durante as noites no castelo de Duino, às margens do Adriático, Rilke escreveu a primeiraElegia, a segunda, trechos da terceira e depois adécima. Em 1915, ele escreveu a quarta Elegia,em Munique. Devido às profundas feridas quea guerra lhe causou, ele não conseguia escrever. Somente em 1922, quando se isola em umatorre em Muzot, e faz dela sua residencia, aspróximas Elegias surgem.Ao escrevê-las, ele é tão exigente que morrepouco tempo depois. Há muitas obras dedicadas a explicar e desvendar as Elegias de Duino.Inúmeros estudiosos tentaram sondar o significado profundo desses versos, que acreditavam estar na própria linguagem, mas suas nós somos os recriadores 41
O anjo das Elegias é esse ser em quem a transformaçãodo visível para o invisível, que nos esforçamos por realizar,já parece concluídaVinte quilômetros a noroeste da cidade de Trieste, no cimo de uma rocha, que se eleva acima do marAdriático, localiza-se o castelo de Duino, do século XIV. Um belo jardim com terraço oferece vistas inesperadas e belas, e uma escada com duzentos degraus conduz até o mar.explicações não atingem a essência das imagens em linguagem clara e leve.pensadas pelo poeta. Assim ele lapida sua própria obra e a torna deTambém em sua forma as Elegias não se dei uma atualidade apaixonante. É um apelo para quexam capturar. Rilke deixou seus versos dan o ser humano inicie sua missão: recriar as coisas,çarem além de todas as regras da métrica e da recriar a vida e, portanto, recriar a si mesmo.rima; eles abrem um caminho além desse corpoformalista e, assim, escapam a qualquer análise. As Elegias nos lembram de nossa tarefa, a saber,Apesar de sua força de expressão poética e de iniciar uma transformação. Para Rilke, trata-seseu estilo magnífico, não são versos miste de um processo íntimo e sério que engendrariosos que se referem a um universo poético uma nova consciência conforme descrito nasparticular. tradições antigas. Mas ele nos adverte quanto àNa carta a seu tradutor, Rainer Maria Rilke interpretação de termos como “morte” e “anjo”consegue explicar, com precisão, suas elegias no sentido da religião católica.42 Pentagrama 3/2015
“A verdadeira vida como um todo se estende em elas partilham conosco –, esses fenômenos e esdois domínios. O sangue, saído do circuito maior, ses objetos devem ser considerados e recriadosflui através de ambos: não há nem um aqui e nem com uma clara compreensão.um lá, apenas uma grande unidade, onde os seres Recriar? Sim, porque é a nossa missão imprimiracima de nós, os anjos, estão em casa.” essa terra perecível e provisória em nosso ser“Nós, seres humanos do aqui e agora, jamais com tal profundidade que sua natureza ressusestamos satisfeitos neste mundo temporal, nem cite em nós sob uma forma invisível.”estamos atados a ele: sempre e repetidamente Durante todos esses anos Rilke manteve amivamos aos que nos precederam, à nossa origem, zade com o escultor Rodin, que lhe ensinou ae aos que nos sucederão. olhar, a olhar verdadeiramente as coisas ao seuO que é efêmero mergulha na profundida redor. Esse olhar devia nascer de uma preode do Ser. E, assim, o que tomou forma não cupação e uma concentração de desvendar odeve apenas ser usado dentro dos limites mistério, a realidade por trás das coisas. Aodo tempo, mas devemos, dentro de nossas escrever seus poemas sobre as coisas, o poeta sepossibilidades, dar-lhe espaço num senti impregnou de tudo o que estava ao seu redor.do superior que nos ultrapassa, mas no qual Ele não rejeitou o mundo, ele tratou de pene-temos parte. Não no sentido cristão do qual trá-lo com cuidado e, mediante o olhar coreu sempre me distancio deliberadamente, mas reto, tentou receber uma nova impressão. Nascom uma consciência puramente terrestre, Elegias ele menciona anjos, mas, em sua cartaprofunda e sadiamente terrestre. Trata-se da ele adverte que o termo “anjo” não deve serintrodução em um ambiente mais amplo, no mal interpretado.espaço mais vasto possível, aqui sentido e “O anjo das Elegias é esse ser em quem aobservado. Não num além que ainda escu transformação do visível para o invisível, querece de sombra a terra, mas num conjunto, nos esforçamos por realizar, já parece concluíno todo. A natureza, os objetos que nos são da. O anjo é o ser que tem a garantia de verfamiliares e que usamos, são temporários e no invisível um grau superior de realidade.perecíveis. No entanto, são essas coisas que, Para nós é surpreendente, porque mesmo queenquanto estivermos aqui, são nossa pro recriemos o amor, ainda nos prendemos aopriedade e nossos amigos, elas participam de que é visível.”nossas necessidades e alegrias, assim como já As Elegias mostram, assim, o trabalho de incesforam familiares a nossos antepassados. sante transformação das coisas visíveis e tangíPor isso, é importante não denegrir nem me veis, que nos são caras, em vibrações e sensanosprezar as coisas terrenas, porém, justamente ções invisíveis de nossa natureza, a qual eleva apor meio dessa característica temporária – que taxa vibratória das esferas do nosso universo. nós somos os recriadores 43
Rainer Maria Rilke, nascido em 1875, em Praga, tornou-se Somos capazes de compreender e penetrar essesum poeta renomado com suas obras O Livro das Horas versos em seu verdadeiro significado? De olhare O Livro das Imagens, ao impressionar o mundo literário para todo o nosso derredor e recriá-los? Decom a publicação de duas partes dos Novos Poemas 1907 ouvir e sentir o pulsar dos dois domínios e, ae 1908, que lhe renderam fama mundial. seguir, unificá-los?O mundo literário permaneceu interditado para eleaté que essas duas publicações lhe deram celebridade Observemos novamente.mundial. Esses novos poemas reuniam o melhor das que tudo que é exterior,obras de um dos períodos mais férteis, passado em Paris. se torna novamente interior.Rilke, nessa época, estava muito impressionado com o Ouçamos ressoarescultor Auguste Rodin, para o qual trabalhou como o coração que bate.secretário particular durante algum tempo. “Rodin”, disseele, “ensinou-me a olhar.” Isso significava concentrar-se Como compreender o que Rilke quer dizerintensamente para conseguir ver o mistério por trás da com “olhar verdadeiramente”?realidade aparente. Como “olhar” pode nos levar a uma vidaEle se aprofundava em algo, um objeto, um animal, um espiritual?mito ou uma figura alegórica, até este “algo” começar a De fato, Rilke não fala apenas da simplesviver intensamente para ele, a ponto de lhe falar em uma observação sensorial, mas sobre a observaçãolinguagem realmente nova. Os Novos Poemas de Rilke como um processo. Enquanto olhamos comosoam complexos em função de seu estilo denso, mas espectadores, colocamo-nos em uma dualinunca são herméticos, como as obras de seu último pe dade. Mas se “estamos” no Ser sem observar,ríodo. Suas obras mais maduras, como as Elegias de Duino podemos estar na unidade, ou seja, tudo à(1912-1923) e os simplesmente maravilhosos Sonetos para nossa volta faz parte de nós. Mas enquanto nosOrfeu (1924) ilustram sua visão suprassensível do indizível, mantivermos na dualidade não poderemos nosque ele traduz numa linguagem musical hermética. elevar à unidade.Em 1926, Rilke morre em um sanatório em Valmont, No mundo material só o ser humano é capaz deSuiça, em decorrência de leucemia. religar os dois mundos – o divino e o material –Fonte: http://www.kunstbus.nl/literair/rainer+maria+rilke.html desde que transforme sua consciência, seu olhar. Assim, ele pode se tornar consciente da inter dependência universal. Se conseguirmos fazer a imagem interior e ligarmos os dois polos, estaremos aptos a nos tornar um homem-espírito. Então seremos ver dadeiros recriadores. µ44 Pentagrama 3/2015
as palavrasdo anjoVocê não está mais próximo de Deus Os anjos estão cada vez mais raros,e de sua Glória do que nós estão espalhados, sentem-se oprimidos.mas, veja, suas mãos me dizem A aspiração que sempre aguardaque você é abençoada. é vaga e indefinida.Como as de nenhuma outra mulher, Quiçá em pouco tempo se produzirásuas mãos são tão finas e tão piedosas. aquilo que crescerá nos seus sonhos.Eu sou o dia, eu sou o orvalho, Eu a saúdo! Aqui está o que revela minha alma.Mas você, você é a árvore. Você está adornada, radiante. Você é uma porta ampla, elevadaAcabei de fazer uma viagem difícil que em breve permanecerá aberta.a ponto de quase esquecer o que Eu o sinto: meu canto ressoa e preenche vocêanuncia você, por Seu mensageiro, Eu sei: o eco da minha palavraAquele que reina alto na luz se fundiu com você.de mil e um sóis,- o espaço torna-se tão indolente. Eu vim. Eu uniEu sou aquele que começa, o prodígio ao seu sonho.Mas você, você é a árvore. Deus pousou seu olhar sobre mim: Seu olhar que cega...Como um som de tempestadeo amplo bater de minhas asas sussurrava ao descer. Mas você, você é a árvore.Minha veste larga ondula e preencheo espaço estreito de sua casa. Rainer Maria Rilke, Die Worte des Engels.Entretanto você é apenas uma criança pensativa, Das Buch der Bilder, Berlim, 1902isolada em seus sonhos:Eu sou o vento matinal na floresta,Mas você, você é a árvore.
É incrível como a realidade costuma ser a melhor fonte de metá-foras espirituais. Um barco que içar suas velas ao vento segue seupróprio curso. Antigamente, um navio aparentemente perdidona vastidão dos mares contava apenas com a posição do sol paraorientar seu rumo de navegação, ou somente com o brilho dasestrelas da Via Láctea para não se desviar dele. E mesmo assim eraconduzido até o porto!Assim também a arca dos mistérios, em forma de barco, traça seucurso no Mar Acadêmico para chegar ao porto espiritual.Essa arca é o poder gerador feminino, simbolizado pela Lua.O Sol espiritual é a força orientadora que mantém a bordo todosos portadores da chama do homem celeste: é assim que o naviopermanence na rota correta, previamente definida.
Search
Read the Text Version
- 1 - 48
Pages: