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Revista Pentagrama 2009-4

Published by Pentagrama Publicações, 2016-06-13 21:21:49

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pentagrama Lectorium Rosicrucianum Zen, intuição e arte O zen como instrumento de conhecimento A história de Pietje Aproximar-se do zen O valor pessoal A dualidade do homem2009 4AgostoNÚMERO

Editor responsável Revista Bimestral da EscolaA. H. v. d. Brul Internacional da Rosacruz ÁureaRedação finalP. Huis Lectorium RosicrucianumImagens A revista Pentagrama propõe-se a atrair a atenção deI. W. v. d. Brul, G. P. Olsthoom seus leitores para a nova era que já se iniciou para o desenvolvimento da humanidade.Redação O pentagrama tem sido, através dos tempos, o símboloC. Bode, A. Gerrits, H. P. Knevel, G. P. Olsthom, do homem renascido, do novo homem. Ele é tambémA. Stokman-Griever, G. Uljée, I. W. v. d. Brul o símbolo do Universo e de seu eterno devir, por meio do qual o plano de Deus se manifesta. Entretan-Secretaria to, um símbolo somente tem valor quando se tornaC. Bode, G. Uljée realidade.O homem que realiza o pentagrama em seu microcosmo, em seu próprio pequeno mundo, está noEndereço da Redação caminho da transfiguração.Pentagram A revista Pentagrama convida o leitor a operar essaMaartensdijkseweg I, revolução espiritual em seu próprio interior.NL – 3723 MC Bilthoven, [email protected]ção BrasileiraLectorium RosicrucianumAdministração, assinaturas e vendasTel: (011) 4016-1817Fax: (011) 4016-5638www.editoralrc.com.brResponsável pela Edição BrasileiraM. D. Eddé de OliveiraRevisão finalM. R. de Matos MoraesTradutores e revisoresA. S. Abdalla, S. P. Cachemaille,M. H. Figueiredo, J. Jesus, R. Dias de Luz,F. M. da Silva Luz, M. S. Sader,U. B. Schmid, M.V. Mesquita de Sousa,C.H.Vasconcelos.Diagramação, capa e interiorD. B. Santos NevesLectorium RosicrucianumSede no BrasilRua Sebastião Carneiro, 215, São Paulo, [email protected] em PortugalTravessa das Pedras Negras, 1, 1º, [email protected]© Stichting Rozekruis PersProibida qualquer reprodução semautorização prévia por escritoISSN 1677-2253

p e n t a g r a m a Ano 32 número 4 2009O caminho do zen sumárioNeste número da revista Pentagrama, empreendemos dos ensinamentos de hermesuma viagem de descoberta pelos ricos campos do j. van rijckenborgh 2zen, com o auxílio de imagens e textos que ultrapas- intuição no zen e za-zen 7sam a lógica do pensamento racional. a história de pietje - a arte zen do tiro comO Espírito original não faz distinção entre as “dez mil o arco e a verdadeira esperacoisas” que nos cercam; elas são como são e provêm guido van meir 12do mesmo núcleo central. Se quisermos compreen- a arte zender o mistério de sua essência comum, devemos nos francisco casanueva 18libertar de toda ilusão. O Espírito reconhece o movi- o zen como instrumento de conhecimentomento na calma e a calma no movimento. Assim, um jesús zatón 22se dissolve no outro. Se esses princípios contrários aproximar-se do zen 29desaparecessem, a própria unidade talvez deixasse de zen, intuição e arteexistir. A essa verdade superior não se aplicam nem lei mar lópez 32nem descrições. Conhecemos nós o Espírito universal? o valor pessoal 36Ele está em total harmonia com o caminho quandotodo desejo egocêntrico desaparece. Dúvidas e hesi-tações dissolvem-se em uma vida plena de confiança.De um golpe somos libertos de nossa prisão, nadanos prende e não nos prendemos a nada. Capa: Flores de cerejeira no templo Kaneit de Tóquio. No Japão há uma sentença de um mestre zen que diz:“O sábio escuta que não há som e vê que não há forma”. Foto de Daniel e Olivier Föllmi xxxxxxxxxxxxxxxx 1

a dualidadedo homemDOS ENSINAMENTOS DE HERMES de vossa dualidade – por um lado o ser natural, por outro lado a rosa do coração, o verdadeiro homem“Dentre todas as criaturas da natureza, só original – e vede a possibilidade de salvação, se o homem é dual”, assim diz Pimandro estiverdes conscientes de possuir uma centelha do no Corpus Hermeticum. Por um lado, Espírito. Então, não sois culpados pessoalmente,encontra-se no sistema humano a semente de imor- como ser natural, da essência do pecado, como ostalidade, a centelha do Espírito, também denomina- nossos antepassados reformadores ortodoxos sugeri-da rosa-do-coração; por outro, encontra-se a nature- ram; pois, como entidade nascida da natureza, soisza humana mortal, a forma natural. Não se encontra completamente unos com a essência da dialética. Ooutro ser que possua semelhante natureza dupla. caminhar das coisas na sétima região cósmica foi e éE assim surgiu, pela queda dos filhos primordiais de inevitável para toda entidade ligada a esta natureza.Deus, este estado muito notável, o fato de que, em Não, como possuidor da rosa, o homem só podemiríades de entidades mortais, encontra-se diferen- tornar-se consciente da incoerência existencial,ciada a semente do Espírito; e que todas essas mirí- da absurda existência do aprisionamento. Essa é aades de entidades, nas quais se encontra a semente consciência do pecado, que a Doutrina Universalde Deus, reunidas como povo dos filhos de Deus, considera desde o princípio: que o homem verda-podem multiplicar-se, tornando-se uma multidão deiro, o homem-espírito, torne-se consciente de seuque ninguém pode contar. calabouço, de seu presente estado de ser.Assim pode acontecer, e acontecerá, que tudo o que A consciência do pecado é, segundo o versículoa princípio era pecado e culpa, e mais as suas corres- 39 [de Pimandro], estar consciente de sua absolutapondentes conseqüências, transformar-se-á final- imortalidade e do seu poder sobre todas as coisas e,mente numa maravilha ainda maior e mais poderosa apesar disso, sofrer o destino dos mortais, em razãodo que antes fora possível, numa inesperada bênção. de estar submetido ao fatum; de ser mais nobre doMas, para que essa bênção se manifeste realmente, que tudo o que há na dialética e, no entanto, ter deuma vigorosa intervenção torna-se essencial. Então ser seu servo; saber que “o Pai está em mim, aquelemuito deve acontecer! Portanto, só aqui se encontra que não dorme, que me governa e, apesar disso,a grande possibilidade, encontra-se oculto o mistério estou sob o poder do aprisionamento inconscien-de que por efeito de uma queda, por efeito de pe- te”. Isso é consciência do pecado. E as palavras decado e culpa, pode resultar semelhante bênção, para Hermes provam que ele reconheceu esse estado.provar que o Espírito, o amor, é sempre o vitorioso. O homem hermético compreende essa situação; masQuem alcança o discernimento sobre a índole de para a maioria dos homens isso tudo é um grandeseu ser nascido da natureza é capaz de se libertar de prodígio; o prodígio da mescla da natureza com asua dualidade e de retornar à sua divindade original. humanidade. E o aspecto dramático disso é a quedaReconhecei isso, se pelo menos já estiverdes cons- evidente que se manifesta dessa mescla e a culpa quecientes neste momento de que possuís uma centelhado Espírito. Reconhecei agora se estais conscientes2 pentagrama 4/2009

Em uma série de artigos com esse nome, desejamos deixar Hermes falar, assim comoJ. van Rijckenborgh fez para seus alunos nos comentários do Corpus Hermeticum.Hermes é o homem nascido da natureza que, no caminho de libertação da nova alma, adquiriu-a e, continuando a trabalhar, está a caminho de tecer a veste áurea de núpcias. Nesse caminho, num momento crucial, revela-se a nova consciência, ou consciência hermética. Assim que essa nova consciência opera surge “Pimandro”, a sabedoria onipresente de Deus, “o Verbo do princípio”.J. van RijckenborghHermes com Dionísio menino. Praxíteles, 360 aC vir-a-ser desse prodígio no versículo 45: “A terra foi a matriz; a água o elemento gerador; o fogo levou odisso resulta; e não obstante o Espírito anseie por processo de formação à maturidade; a natureza re-vencer e deva vencer, ele chega, por esse aconteci- cebeu do éter o alento de vida e produziu os corposmento dramático, a uma fragmentação da ordem segundo a forma do homem”.de milhões e assim concede a todos esses milhões o Quando Pimandro se refere ao “homem”, ele estápoder de novamente tornarem-se filhos de Deus. se referindo ao homem original, ao homem di-Por isso, o versículo 41 diz que pela mescla da na- vino, à entidade espiritual.Quanto ao mais, eletureza com a humanidade é produzido um prodí-gio admirável. Em seguida, Pimandro descreve o a dualidade do homem 3

Pimandro, versículos 37-48 simplesmente se refere ao corpo, à figura natural. O corpo recebeu uma forma humana ilusória. Em37. E quanto a ele mesmo: ao ver essa forma seguida, é mostrado como a forma natural foi pro-que se lhe assemelhava tanto refletida na duzida das radiações astrais e etéricas da natureza daágua, na natureza, dela se enamorou e quis morte. Essa forma natural é simplesmente denomi-morar ali. O que ele quis, fê-lo imediata- nada “o corpo”, e este é o que o mundo dialéticomente, e assim começou a residir na forma considera geralmente como o “homem”. Que enga-irracional. E tendo a natureza acolhido o seu no! É que a forma natural, em razão de sua natureza,amado, envolveu-o totalmente e tornaram- possui uma vida própria, uma consciência pessoal;se um, pois o ardor de seu desejo era em suma, a forma natural é um ser vivente.grande. No homem estão presentes duas vidas: a vida origi-38. É por isso que, dentre todas as criatu- nal e a vida da forma natural. E Pimandro destacaras da natureza, só o homem é dual, isto é, esse fato ao dizer: “o homem verdadeiro provém damortal segundo o corpo e imortal segundo vida e da luz. Saindo da única vida divina, o homemo homem verdadeiro. verdadeiro tornou-se um ser anímico; e, saindo da39.Apesar de ser imortal e ter poder sobre luz universal, tornou-se um Noûs. Com isso pensa-todas as coisas, ele está submetido à sorte se num ser-sentimento de natureza anímica excep-dos mortais, sujeito que está ao destino. cional, ser esse ligado ao Espírito”. O verdadeiroAssim, não obstante seu lar se situar acima homem possui um coração puro, ele é o coração.da força que interliga as esferas, tornou-se Ele mora como um deus no coração da forma natu-escravo dessa força.Apesar de ser masculino­ ral. O verdadeiro homem também é, como desco-e feminino, porque nasceu de um pai que é, brimos em seguida, hermafrodita em si mesmo, nãoele próprio, masculino e f­eminino e, mesmo obstante ser masculino ou feminino exteriormente.sendo livre do sono, porque proveio de um As formas naturais, pelo contrário, foram separadasser que é, ele próprio, livre do sono, ele foi sexualmente. Para compreender todas essas coisasvencido pelos apetites dos sentidos e pelo de modo correto é preciso ter em vista o seguinte:sono.” a figura natural está dividida sexualmente, ela é ou40. Então eu disse:“Ó Espírito em mim, masculina ou feminina. O homem-alma, pelo con-também eu amo o Verbo!” trário, é tanto masculino como feminino, apesar de41. E Pimandro continuou:“O que vou dizer ser masculino ou feminino exteriormente. [...]é o mistério que permaneceu oculto até Significativa também é a lei que vale para todoeste dia.Ao tornar-se una com o homem, a verdadeiro rosacruz, “que ele não deve desejarnatureza produziu uma admirável maravilha. viver mais do que Deus lhe determinou”, porqueO homem tinha em si a natureza de todos o homem dialético, impelido por sua condição deos sete regentes, composta, como já te dis-se, de fogo e de alento; a natureza produziusem demora sete homens, em concordânciacom o gênero dos sete regentes, ao mesmotempo masculino e feminino e de figuraereta”.42. Então exclamei:“Ó Pimandro, brotou emmim agora um desejosingular e estou ansioso por ouvir. Peço-te,prossegue!”4 pentagrama 4/2009

ser natural, sempre corre o perigo de cair abaixo do 43. Respondeu Pimandro:“Cala-te, por-nível da ordem dialética. A divisão sexual tem por quanto ainda não terminei a minha primeiraincumbência cuidar de que continuamente nas- exposição!” çam novos seres naturais, e a vida mesma cuida de 44.“Calo-me”, respondi.que eles, a seu tempo, sejam novamente triturados. 45.“Pois bem: a criação desses primeirosDesse modo, por meio da dura escola da experiência sete homens, como eu disse,profunda, é executado o plano de salvação. E assim foi assim: a terra foi a matriz; a água o ele-pode ser trilhado o caminho que leva ao autoconhe- mento gerador; o fogo levou o processo decimento. A separação dos sexos das formas naturais formação à maturidade; a natureza recebeué, para isso, condição necessária, porque assim a roda do éter o alento de vida e produziu os cor-do nascimento e da morte gira ininterruptamente; pos segundo a forma do homem.e a caminhada pela vida é a indispensável escola da 46. E o homem, feito de vida e de luz, tor-experiência, diz Pimandro. nou-se alma e Noûs; a vida tornou-se alma;E quem, nessa escola da vida, é impelido para frente a luz, Noûs. E todos os seres do mundoe possui o Noûs, isto é, um santuário do coração sensorial permaneceram nesse estado até ocapaz de vibrar em harmonia com a rosa, e está fim do ciclo e até o começo das espécies.aberto à luz gnóstica, um dia se reconhecerá em sua 47. E então, presta atenção ao que tanto de-verdadeira natureza e sentirá profundamente a sua sejas ouvir. Completado esse ciclo, o vínculodualidade. Esse homem saberá, então, que o amor à que tudo unia foi rompido pela vontade deforma natural, o desejo da prisão da carne, é a causa Deus.Todos os animais, até esse momentoda morte com todas as suas conseqüências. macho e fêmea ao mesmo tempo, foram se-Assim foi implantada a união e instituída a reprodu- parados, assim como o homem, nesses doisção, a reprodução das espécies pela divisão sexual, tal aspectos, e assim alguns animais se tornaramcomo se processa nos reinos animal e vegetal. Nesse machos, e outros, fêmeas. Então Deus pro-caminho, quem consegue o autoconhecimento é nunciou a palavra sagrada:‘Crescei e aumen-conduzido à senda da humanidade-alma; e quem tai, multiplicai-vos abundantemente, todoscontinua a prender-se à forma natural extravia-se vós que fostes criados. E os que possuem onas trevas e experimenta, de modo doloroso, o que Noûs reconheçam-se como seres imortaisé da morte. [...] e saibam que a causa da morte é o amor aoO homem, como ser nascido da natureza, somente corpo e a tudo o que é terreno’.pode recusar e rejeitar a forma natural mediante 48.Tendo Deus assim falado, a providência,anelo consciente e esforços ativos para ser absorvido mediante o destino e a força que interliganovamente pela forma anímica. Porém, quando não as esferas, estabeleceu as uniões e instituiuse procura o caminho ascendente ou não se quer a geração; e todos os seres se multiplicaram segundo a sua espécie; e quem a si mesmo se reconheceu como ser imortal é eleito dentre todos, ao passo que quem amou o corpo nascido da ilusão dos desejos per- manece errando nas trevas e deve sofrer a experiência da morte.” a dualidade do homem 5

Amar sua própria forma natural, buscar elevar-se nessaforma natural, fazer de seu ser o centro dos interesses,esses são os erros assinalados por Hermessegui-lo, se os impulsos hormonais permanecem de socorro, com sua humanidade, afundaria abaixocomo eram e a forma natural continua nesse fogo do nível das leis da natureza.hormonal, é inevitável que se manifeste um desen- O amor à própria forma natural, o completo abrir-volvimento antinatural. [...] se nela, colocá-la como centro, considerá-la comoEm relação ao versículo 48 do livro Pimandro, há o homem verdadeiro, esse é o erro acusado porainda um aspecto a que devemos aludir. Sempre se Hermes no versículo 48.tem compreendido mal o que é citado nesse versícu- Se compreendestes tudo isso e perguntardes comolo, e na referida sentença da filosofia hermética quis- alcançar a pureza, essa purificação da vida, que ése ver uma espécie de advertência. Lá está escrito: condição para se erguer à realização da liberdade,“Quem amou o corpo nascido da ilusão dos desejos é preciso que saibais que a pureza pela qual umpermanece errando nas trevas”. homem em sua forma natural deve esforçar-se éEssa passagem tem sido freqüentemente conside- sempre a pureza do coração, a purificação sétuplarada como uma advertência de Hermes visando o do santuário do coração, pois o coração é, emcasamento terrestre e tudo o que se compreende certo sentido, a morada da rosa. O santuário docomo relacionado a esse casamento. Porém não se coração é o espelho da luz universal. O santuáriotrata disso. Pelo contrário, a Gnose original mostra do coração é Deus.como a separação sexual e suas conseqüências são Pimandro fala ao candidato no coração. E, por isso,uma necessidade para manter girando a roda do nas- todo aluno sincero da Gnose esforça-se por umacimento e da morte. Com relação a amar o corpo, verdadeira purificação sétupla do coração. E quandocorpo nascido da ilusão dos desejos, é indicado o um homem torna-se puro segundo o santuário doamor à natureza dialética, [...] cuja conseqüência foi coração, quando o candidato sincero assiduamenteo nascimento da forma natural mortal. E não faz esforça-se por tal purificação e, em conseqüência,nenhuma diferença estar diante disso na condição a luz pode residir nele, com a vida de sentimentosde casado ou solteiro, com aversão pela natureza também se transforma completamente a vida deou não, em solidão ou em companhia. Quem quer pensamentos; e a vida de ações se harmonizará per-ultrapassar a forma natural precisa, em concordân- feitamente com essa purificação sétupla do coração.cia com o plano divino de salvação, abandonar o Assim o homem é puro em tudo o que faz oumundo dialético e tudo o que a ele é inerente, para deixa de fazer. Somente então também se modi-palmilhar a senda da alma, o caminho de retorno ficam as funções hormonais no sistema humano,para o alto. Conseqüentemente, se a humanidade e o candidato ingressa na esfera do bem, comofutura fosse impedida de seguir o caminho de sua o denomina Pimandro: no estado do verdadeironatureza e nisso houvesse êxito, tal como se procura crescimento da alma µfazê-lo mediante o prolongamento da vida, isso sig-nificaria o fim irrevogável; pois logo toda a ordem Rijckenborgh, J. v., A Gnose original egípcia, t.1, 2 ed. Jarinu: Editora Rosacruz, 2006, cap.8.6 pentagrama 4/2009

intuição no zen e za-zen“Todas as coisas dirigem-se para o único regresso, mas para onde conduz o único regresso?”“Se num bosque onde não há ninguém uma árvore cai ela faz barulho?”No primeiro caráter dogmático do século da Mahayana, fez flo- nossa rescer a idéia doera, no conclave “vazio” da exis-de Jalandhara, tência pessoal.tentou-se AVerdade ab-restabelecer soluta, declaraa unidade ele, é verificardo ensino que a verdadebudista. Foi que percebe-um malo- mos é apenasgro. E desde um véu queentão, duas oculta o fatoimportantes de que tudo écorrentes es- “vazio”, despro-pirituais domi- vido de existên-nam: o budismo cia ou substância,Mahayana (o grande e, por conseguinte, éveículo), e o budismoHinayana (o pequeno totalmente ilusória.Talveículo).A primeira corrente idéia conduz ao nirvana,de desenvolvimento espiritual é porque asfixia o desejo deacessível a todas as pessoas, a segunda está vida ou de ausência de vida.“Tudoaberta apenas aos monges. é possível àquele para quem o vazio é pos- sível; mas nada é possível àquele para quem o vazio éREFORMAS No segundo século, o Mahayana se impossível, conclui Nagarjuna.ramificou. Esse budismo reduzia-se a rituais econceitos definidos. Em reação a isso formou-se ZEN No século 5 d.C., o monge Bodhidharmaum movimento intitulado sunyavada de acordo propagou este ensinamento na China, onde desco-com o próprio fundamento da sua doutrina: a única briu sua grande afinidade com o puro ensinamentoVerdade ao alcance do ser humano é a noção de do Tao, e essas correntes propagaram-se extensiva-“vazio” (sunya). Esse movimento constituiu-se em mente. Sob o conceito “dhyana” (palavra sânscritaimportante fonte de inspiração para o budismo zen. para “atenção”) esse ensinamento, na China, teve seuFoi o filósofo hindu Nagarjuna que, quebrando o nome alterado para “ch’an” e depois no Japão, para zen. intuição no zen e za-zen 7

ZA-ZEN No zen, o aluno pratica o za-zen: medi- A ILUMINAÇÃO Um dia, Huai-jang viu seuta para vencer a influência vinculativa dos sentidos aluno Matsoe perdido em suas meditações.e dos pensamentos. O objetivo de suas meditações Questionou-o sobre o objetivo dessa práti-é alcançar calma e silêncio interior, um estado no ca. Matsoe respondeu imediatamente: “Queroqual as motivações que reforçam o ego, a identifica- tornar-me um Buda. Huai-jang não disse nada,ção com o ego, e por conseguinte, a consciência da mas pegou tranqüilamente uma telha e come-dualidade, são paralisadas. Tudo isso é eliminado e çou a poli-la contra uma rocha. Matsoe, curio-o aluno chega ao estado de consciência que se cha- so, perguntou-lhe: “Por que fricciona essa telhama satori no zen tradicional e, no budismo, samadhi. contra esta rocha?” Huai-jang respondeu: “QueroSer “iluminado” é bonito, mas esse estado nunca poli-la para fazer um espelho”. Matsoe exclamou:pode ser um objetivo em si; ele não pode ser força- “Como quer fazer um espelho polindo uma telhado, pois seria tão-somente uma atividade do ego. contra uma pedra?” Huai-jang respondeu:“Como quer encontrar a iluminação ficando sentadoO KOAN O zen conhece o paradoxo de agir para meditando?”nada atingir, portanto o koan, o paradoxo do obje- À medida que o zen se instalava na China, al-tivo de não buscar. Koans são diálogos que o mes- guns movimentos opostos surgiram em direçãotre tem com o aluno, com o objetivo de instruí-lo. ao ch’an do norte e ao ch’an do sul. A correnteDe maneira sistemática, o mestre utiliza o método do norte foi representada pelos mestres Shen-siudo koan para levar o aluno até o limite extremo dos e P’oe-chi, que praticavam o dhyana clássico: aseus pensamentos a fim de prepará-lo para a intui- aquisição progressiva da compreensão. A escola doção. Contudo, enquanto houver, aberta ou secreta- Sul (Hui-neng e Shen-hui) originava-se da idéiamente, qualquer tipo de apego, o objetivo ou satori de iluminação espontânea: “A meditação não fazpermanecerá inatingível. A essência mesma do zen de ninguém um Buda, é necessário ter a essência.é “sermos desapegados”. Disso resulta que as téc- O reconhecimento de estar salvo no mais pro-nicas de meditação, de fato, não são necessárias. O fundo do ser pode fazer que, diretamente, numhumor e a ironia para com o “eu” são meios para instante, o pensamento horizontal renuncie à suarelativizar o que temos a ilusão de ter alcançado in- influência sobre a consciência. A tarefa do mes-teriormente. “A frente é como o verso!” Os dois tre é desenraizar os pensamentos que subjugam okoans importantes são o Mumonkan (A porta sem aluno.”porta) e o Hekiganroku (Contos das rochas azuis).São histórias contadas pelos mestres zen dos primei- O ZEN NO JAPÃO Na longa história do zen noros séculos do “ch’an”, ornadas de comentários e Japão, o mestre mais importante do koan é opoemas posteriores. lendário Hakuin (1686-1769). Ele fez reviver a tradição koan que ameaçava se apagar na8 pentagrama 4/2009

As oito ou dez representações tradicionais do homem e do touro são a expressão da própria essên-cia do zen. O touro simboliza a natureza inferior, e o personagem do buscador é a personalidade.Quem busca é o Espírito, o “homem original” (ilustração da p.7). O Espírito, ou “pastor”, está perdi-do no deserto deste mundo e procura um homem que possa levá-lo de volta à sua verdadeira pátria.No princípio, esse homem ainda não consegue. Ele é como um touro negro, selvagem, indomado,submisso a seus impulsos e paixões. Mas ele começa a ser domado. Há o senhor (a corda) da vonta-de espiritual e a disciplina das leis da ordem do Espírito (o látego). Na ilustração 5, a personalidadeestá totalmente voltada para o Espírito e já está metade branca.Então começa um período feliz de repouso e aprendizado. O hino do Espírito soa; o touro torna-secompletamente branco, um verdadeiro homem-alma, e já não precisa de rédeas. O homem espiri-tual aproxima-se cada vez mais da vida original e, nessa esfera sutil, a forma desaparece. Na imagem8 está escrito:“o touro e seu guia, completo esquecimento”.civilização decadente. O koan “Que barulho faz agrada e o que te desagrada é apenas uma doençao bater das palmas?” é criação sua. Ele formu- do espírito. Enquanto não compreenderes olou os três fundamentos do zen, que são: uma profundo significado das coisas, necessariamente,profunda confiança, um grande ceticismo, um teu espírito e teu coração irritam-se inutilmente.compromisso ilimitado. Para ele, não é neces- O caminho é perfeito se nada quebra ou sobre-sário separar a meditação das atividades diárias: carrega o espaço interno infinito. Na realidade,“Se alguém, por azar, deixa cair duas ou três por estarmos sempre aceitando isto e rejeitandomoedas de ouro numa rua cheia de gente, aquilo, não vemos a verdadeira natureza dasesquecerá ele do dinheiro porque todos os coisas. Não vivemos de acordo com a únicaolhos voltam-se para ele? Alguém que se volta senda tanto por falta de atividade como tambémpara a meditação no meio da agitação e das por passividade, por falta de orientação externapreocupações diárias é como aquele que deixa como por indiferença. Se ignoras a realidadecair moedas de ouro e trata de reencontrá-las”. das coisas, foges à tua realidade. Se insistes naÀ pergunta: “O que é a verdadeira meditação?” superficialidade das coisas, escapas à tua verda-ele responde: “É tudo: engolir, tossir, agitar os deira existência. Quanto mais falas da Verdadebraços, se mexer, estar tranqüilo, agir, fazer o e quanto mais pensas nela, mais ela te escapa.bem e o mal, ter êxito e fazer escândalo, ganhar Cessa de falar e de pensar, e nada te será incom-e perder, ser justo e injusto, e fazer do todo um preensível. Voltar-se para as origens significasó koan”.1 descobrir o sentido profundo, mas aspirar à aparência superficial impede a visão da origem.“O grande caminho não é difícil para quem não Não procures a Verdade, e apega-te apenas àstem preferências. Quando, juntos, amor e ódio opiniões certas. Se nenhum pensamento críticoestão presentes, tudo ilumina-se e revela-se. Se ocorre, o antigo espírito continua a existir. Secontudo fazes a mais ínfima distinção, o céu e não fazes nenhuma distinção entre o grosseiroa terra afastam-se infinitamente um do outro. e o refinado, não te tornarás nem rígido nemSe queres ver a Verdade, não sejas a favor ou cheio de preconceitos. Viver de acordo com acontra nada. Fazer a comparação entre o que te grande senda não é difícil. Mas não olhes muito intuição no zen e za-zen 9

Na imagem 9 nada encontramos de terrestre (o “animal” desapareceu); em nova unidade, o Espírito e a forma dissolvem-se na vida origi- nal. Antes do século 12, essa era a última imagem da série. Esse testemunho em forma de imagem é do mestre zen Shoeboen (século 15). Outro mestre, Kakoean Sjen, acrescentou às imagens a idéia de que “uma iluminação incita ao serviço à humanidade e faz retornar ao mundo cotidiano comum”. Trata-se da última grande ilustração da página 11, “De mãos abertas para o mercado.” Na praça do mercado desenvolve-se a vida social. É lá que o sábio reencontra seus irmãos, de coração aberto (o peito desnudo), descalço (pronto para ir aonde for necessário), como homem entre homens. Um sorri- so feliz conforta as pessoas que o cercam, tudo se anima e alegra com sua presença.longe, senão serás tomado de angústia e incerte- de falsas conclusões. Estas são como floresza: quanto mais pressa tiveres, mais lentamente imaginárias que flutuam no ar: é loucuraavançarás. querer apanhá-las. Ganhar e perder, o bem e o mal: rejeita definitivamente essasO apego não se limita a um só domínio; e concepções. Se o olho nunca se fecha, todosainda que te apegues à idéia de iluminação, irás os sonhos desaparecem. Se o Espírito não fazencontrar-te no mau caminho. Adapta-te à natu- nenhuma discriminação, as dez mil coisas sãoreza das coisas e poderás agir em total liberdade para ti como são: provêm todas do mesmoe tranqüilidade. Se teus pensamentos não estão fundamento. Se compreendes na sua essêncialivres, a Verdade continua a ser ocultada, tudo o mistério desta comunidade, estás livre deé infectado e perturbado. O hábito opressivo de qualquer confusão. Se estudas o movimentotudo criticar gera irritação e esgotamento. Qual na calma, e a calma no movimento, a calmaé o interesse em criar dificuldades e se apegar e o movimento desaparecem; e quando essesa preconceitos? Se queres percorrer a senda extremos desaparecem, já não existe nemúnica, não rejeites nem mesmo o mundo dos mesmo a unidade.sentidos e das idéias. Sim, essa total aceitaçãode todas as coisas é semelhante à verdadeira E nenhuma lei nem descrição existe para ailuminação. O sábio não persegue nada, mas o aplicação desta Verdade suprema. Em relaçãolouco se acorrenta a si próprio. Há apenas um só ao Espírito onipresente em harmonia com adharma, não vários; os tolos desejos são causa de senda, qualquer esforço egocêntrico desapare-discriminação. ce. Hesitações e dúvidas desaparecem e dão lu- gar a uma vida cheia de confiança. De uma sóProcurar o Espírito estando cheio de precon- vez libertamo-nos de nosso aprisionamento;ceitos é o maior dos erros. Tranqüilidade e nada mais nos retém e já não nos aprisionamosperturbação provêm da ilusão; a iluminação a nada. Tudo é vazio, claro, evidente, se já nãonão conhece nem preferências nem aversões. deixamos nosso intelecto apoderar-se de tudo;Todas as coisas tidas como contrárias provêm em outras circunstâncias, nossos pensamentos10 pentagrama 4/2009

e nossos sentimen- Não desperdices teutos, nosso saber e tempo a questionarnossa imagina- e raciocinar, queção intuitiva já nada têm a vernão nos falam. com isso.Neste mundo De uma sódo “ser puro coisa ou dee simples” já todas asnão há nem coisas já não“eu” nem te separes,nada di- vive emferente de pleno centro,“si”. Para sem discri-lembrar-te minação. Sediretamente tens consciên-dessa realidade cia de tudo isso,se sentes dúvida, não te preocupesdiz simplesmente: com nenhuma das‘Não existem duascoisas’, ou seja, não fa- imperfeições.ças nem distinção nem ex-clusão. Pouco importam lugar Viver de acordo com essae tempo, a iluminação significa quepenetras a Verdade. E esta não pode ficar nem crença é o caminho que conduzmaior nem menor no tempo ou no espaço; naVerdade, um único pensamento dura milhares à unidade, porque ao não fazermosde anos. distinção voltamos a viver em unidade com oEsvazia aqui, esvazia ali, e, no entanto, o uni-verso infinito continua visível ao teu redor. O Espírito que se entrega a nós.infinitamente grande e o infinitamente pequenonão fazem diferença alguma, as definições desa- Palavras!pareceram e em parte alguma há limite. Tantofaz ser ou não ser. Ora, a senda não pode exprimir-se pela palavra, não conhece nem o ontem, nem o presente, nem o 1. Hsin hsin ming,Versos de amanhã.”2 µ Sosan Zenji (? - 606), China, terceiro patriarca zen. 2.Tradução em holandês de Lucy Kooman, conforme Dennis Genpo Merzel. intuição no zen e za-zen 11

a história de pietjePietje não estava em lugar nenhum. Eu já pensava em deixar o artigo sobreos campeões para lá e dar meia volta quando ouvi um leve ruído vindode seu trailer. Ao abrir a porta, o mau pressentimento que eu tinha semostrou verdadeiro.Pietje estava na cama e parecia tão mal pânico. “O pior já passou”, ele murmurou, “mi- que quase não o reconheci. Sua face es- nha hora ainda não chegou.” Quando pergun- tava murcha e seus olhos, normalmen- tei o que tinha acontecido, ele fez uma careta tí-te tão vivos e penetrantes, brilhavam de febre. mida e mostrou seus olhos com o dedo. “PietjeEle sorriu sutilmente para mim e afastou com envelheceu”, ele suspirou “já não devo ir co-um gesto fraco das mãos minha expressão de lher cogumelos sem os óculos.” Após um silêncio12 pentagrama 4/2009

Guido van Meirangustiante, ele disse: “Imagine por um momen- O tiro com o arco no zento que eu estivesse morto. Como, no céu, pode- ou a arte da verdadeira esperaria ter explicado ao meu amigo Stakke Wanneque havia confundido um cogumelo amani- Nos anos sessenta do século passado, o budismo tibetano teveta pantera com um amanita real. Envergonhado, grande destaque na nossa civilização ocidental, pois acentuava anão teria ousado aparecer lá em cima”. “Mas um importância de um espírito aberto, o Espírito da origem, e nu- merosos jovens que rejeitavam uma sociedade sem saída ade- riam a ele. “Nosso espírito está perturbado, dominado por jul- gamentos de valores positivos e negativos, e isso nos impede de ver o mundo como ele realmente é. O zen nos oferece um mé- todo para que, novamente, possamos enxergar a realidade, para nos desapegarmos do que é terrestre, de nós mesmos, do eu, e assim nos religar ao Tao, a “doutrina da madeira bruta”, ou o en- sinamento do que é indizível...” diziam eles. Livros como O zen e a arte da manutenção de motocicletas1 esta- vam muito em voga nessa época, e nesse livro, segundo alguns, “tudo estava dito”. Essa obra não fala, aliás, nem de manutenção de motocicleta nem de budismo zen, mas sim do valor de um e de outro. Outro livro muito em voga era o de Eugen Herrigel que, de 1924 a 1929, ensinou Filosofia na Universidade Imperial de Sendia, no Japão: A arte cavalheiresca do arqueiro zen2 é um rela- to sobre o arco e flecha. Nele o aluno descobre que o livro tra- ta de coisas bem diferentes das que ele imaginava no começo. Nem o tiro propriamente dito, nem atingir o alvo são importan- tes em si. A ênfase recai principalmente no processo, tanto in- terior como exterior, na respiração e na atenção descontraída. Dessa forma, o aluno percebe que por meio do ritual exterior do arco e flecha, ele é iniciado na mística espiritual do budismo zen. Herrigel foi por muito tempo considerado o primeiro euro- peu a ter aprendido essa arte tão especial, até Guido van Meir, redator do Humo3, descobrir que um de seus velhos amigos, Pietje, estivera na casa do mestre Kenzo Awa na mesma época. a história de pietje 13

Lá aconteceram coisas que vi com meuspróprios olhos e das quais duvido até hojeamanita pantera é fatal! Não acha que devo cha- que os comunistas devem seguir é esta: esti-mar um médico?” Ele negou com a cabeça. “Foi car o arco e não atirar, simplesmente indicar osó um pedacinho e tomei as providências neces- movimento”.sárias. Deixe-me repousar um pouco e, sobretu- Por alguma razão a imagem do arco pareceudo, não coma o omelete com cogumelos que está emocionar Pietje. “É isso mesmo, ele sussurrou,na mesa”. compreendeu o que Mao quis dizer?” AchavaCompreendi então que meu artigo ia cair por meio estranho começar uma discussão sobreterra, pois Pietje já não parecia querer continuar Mao com um velhinho febril.falando sobre os cogumelos; estava claro que ele “Ele quis dizer exatamente o que está escrito”havia jantado parte deles. Eu começava a tirar a eu respondi.mesa e colocar lenha no fogo. Enquanto termi- “Deixe o livro e me dê um pouco de água, pe-nava de lavar a louça, Pietje acordou e acenou diu Pietje, vou te contar uma coisa.”para que eu sentasse a seu lado. Sentia-se mui-to agitado para voltar a dormir e me pediu, para O TIRO DE AWA “Está vendo aquele arco ali,distrair, que lesse para ele. Para minha gran- contra o muro?” O magnífico arco em bambude surpresa, ele tirou de baixo de seu travessei- de dois metros me intrigava por um tempo já.ro um livro enorme, a primeira parte das Obras Pietje fazia grande mistério desse arco e me ha-Completas de Mao Tsé-Tung, o que não me pa- via formalmente proibido de tocá-lo ou sequerrecia uma leitura muito adequada para alguém apontar para ele com o dedo. Um dia ele o esti-que acabava de travar uma luta mortal contra cou e depois relaxou, sem atirar a flecha. A cor-um amanita pantera. da fez um barulho curto e seco, seguido de umaMas, que fosse, comecei a ler a partir do meio vibração sonora que, segundo Pietje, expulsavado capítulo intitulado “Pesquisa sobre o movi- os maus espíritos.mento camponês em Hunan”. Após ter lido al- “Esse arco que você vê, recebi de mestre Kenzogumas páginas monótonas, tudo indicava que Awa, quando saí do Japão em 1929, após terPietje havia dormido profundamente quando, sido seu aluno durante cinco anos. Isso aconte-de repente, ele falou tão bruscamente que qua- ceu por pura casualidade. Uma noite, eu o sal-se caí do meu assento: “Pare! Repita o que você vei das mãos de bandidos, nos arredores da uni-acabou de ler!” Reprimi um movimento de rai- versidade de Tokohu. Perdi meu barco, pois euva e repeti pacientemente: “Foram os próprios havia recebido violentas facadas. Como agrade-camponeses que erigiram seus ídolos; e há de cimento, ele me iniciou na arte do arco e flechachegar a hora em que os demolirão com suas zen. Fui o primeiro europeu a ser iniciado nes-próprias mãos; não é necessário que outros o fa- sa arte, eu e um professor alemão. Mestre Awaçam em seu lugar. A estratégia de propaganda tinha duas lindas filhas...” Pietje, mergulhado14 pentagrama 4/2009

em suas lembranças, ficou silencioso até que, havia posicionado uma flecha e esticado o arco.não podendo mais segurar minha impaciência, Ficou assim sem se mexer e me convidou paracomecei a tossir insistentemente. Ele retomou vir tocar os músculos dos braços e dos ombros.consciência da minha presença. Ele via clara- Estavam alongados e flexíveis como se ele es-mente que eu queimava de curiosidade, mas tendesse o arco sem fazer força alguma!acreditava que não seria útil continuar já que eu “Só me sirvo dos músculos de minhas duasnão iria acreditar nele... mãos...” ele explicou, “os outros músculos fi-“Lá aconteceram coisas que vi com meus pró- cam descontraídos. No começo não conseguiaprios olhos e das quais duvido até hoje. Uma de jeito nenhum. Assim que segurava o arconoite, estávamos sentados sobre almofadas, um com as mãos, elas começavam a tremer e euna frente do outro. O mestre havia feito chá e perdia o fôlego. Foi preciso semanas até que oescutávamos o canto da água borbulhante sobre mestre Awa quisesse finalmente me dizer o quea brasa. De repente, ele me convidou a segui-lo não ia bem. ‘Meu menino’, disse-me ele, ‘vocêaté o estande de tiro; estava escuro já, como se não vai nunca aprender enquanto não respi-estivéssemos dentro de um forno. Ele não acen- rar da maneira correta’.” Foi só nesse momen-deu a luz, mas me fez acender diante da mira to que percebi que a respiração de Pietje haviauma única vela plantada na areia, longa e fina mudado desde o momento em que ele esten-como uma agulha de tricô. Isso criava um pon- dera o arco. Ele inspirava o ar rapidamente e oto luminoso minúsculo, quase invisível do lo- prendia um bom tempo antes de expirar, lenta ecal onde ele estava, a sessenta metros da mira, progressivamente.mais ou menos a distância daqui até a via férrea! “Pietje, volte para a cama imediatamente,” in-O mestre então executou a dança ritual e atirou sistia eu, “você está doente.” Mas já nada podiaa primeira flecha. Pelo som do impacto na mira, fazê-lo parar.eu soube o que ela havia acertado. A mesmacoisa aconteceu com a segunda flecha. Quando A VERDADEIRA ESPERA “Levei mais de um anoiluminei a mira, vi que a primeira flecha atin- para estender o arco corretamente, mas os ver-gira em cheio o ponto central, o que já era in- dadeiros problemas começaram com o tiro. Atécrível por si. Mas o mais espantoso foi o feito da aquele momento, o tiro não era importante, eusegunda flecha. Ela havia quebrado a haste da me contentava em soltar quando já não conse-primeira e se fixara na mira, bem ao lado dela! guia manter o arco estendido. Não me impor-Para minha surpresa, Pietje, como um raio, sal- tava também com o lugar onde a flecha aterris-tou da cama e pegou o arco suspenso no muro. sava, era suficiente enfiá-la no monte de fenoAntes de haver me recuperado do meu espan- situado a menos de dois metros dali. Cada tiroto, com um único movimento fluido, ele já era estragado antecipadamente pelo choque a história de pietje 15

Para atirar, é preciso abrir os dedos para que a força da corda afaste o polegar. O braço se lança então para o alto, e a mão direita se estende num movimento suave, sem o menor choqueque eu recebia a cada vez pelo corpo todo. como fruta madura. Você não consegue porqueOlhe a minha mão.” Com seu polegar, ele es- não se desliga de si mesmo; você deve apren-ticou a corda abaixo da flecha, seus dedos cur- der a espera verdadeira. Aprender, pela concen-vados se fechando por cima a fim de segurá-la tração e a respiração, a se tornar “sem eu”. Tudofirmemente. deve parar até se tornar somente um fraco mur-“Para atirar, é preciso abrir os dedos para que a múrio, como o som do mar. Observe uma fo-força da corda afaste o polegar. O braço se lan- lha de bambu: ela se inclina cada vez mais sobça então para o alto, e a mão direita se esten- o peso da neve; depois, de repente, a neve es-de num movimento suave, sem o menor cho- correga sem que a folha tenha se mexido. Sejaque. Durante meses treinei continuamente, mas como essa folha, mergulhado na mais extrematudo em vão. Durante dois anos Awa me deixou tensão até que o tiro aconteça sozinho, até queali me debatendo, até eu já não agüentar mais “Isso” atire’.” Eu estava tão absorvido por suasaquilo. Depois, um dia enquanto tomávamos palavras que, quando Pietje atirou, fui surpre-chá, pedi explicações. ‘É normal que você não endido como por um trovão. Graciosamente,consiga’, ele me disse, ‘você não deve abrir a sua mão se elevou outra vez e, com um golpemão voluntariamente. Um tiro só pode ser dado seco, a flecha transpassou a porta do trailer. Nacom um movimento suave e correto se o pró- sua mão, o arco zunia com um som surdo que,prio atirador for surpreendido, como se a cor- supunha-se, perseguia os maus espíritos.da de repente cortasse o polegar em dois, como “Desculpe”, disse ele, “não fiz de propósito.”um bichinho de marzipã. A mão deve estalar Ele pegou outra flecha e, com o mesmo movi- mento fluido, estendeu o arco. “Eu não progre- dia. Exercitava-me e ficava observando até que as câimbras retorciam meus dedos, mas ‘Isso’ não atirava; então, decidia ajudar ‘Isso’ um pou- co. Descobri que se estendesse muito lentamen- te os dedos, em dado momento meu polegar já não podia segurar a corda, e o tiro aconte- cia por si só, como se caído do céu. Pensava ter descoberto o segredo que o oriental me havia deliberadamente escondido. Durante a aula se- guinte, consegui um tiro tão bom que mestre Awa me olhou estupefato e me perguntou se eu queria recomeçar. O tiro seguinte foi igualmen- te magnífico! Então, sem dizer uma palavra,16 pentagrama 4/2009

o mestre chegou perto de mim, retirou o arco disse não é um elogio, é só uma simples verifi-de minhas mãos e foi sentar-se na sua almofa- cação que deveria deixá-lo impassível. Continueda, de costas para mim. Com a face vermelha a treinar como se nada tivesse acontecido!’ Foide vergonha, bati em retirada. Ele já não queria só muito depois que fiz novamente um bomme ensinar. Estava tudo acabado. Havia tenta- tiro de improviso, e depois também de temposdo enganá-lo. Foi só após ter insistido por mui- em tempos, até que por fim pudesse treinar noto tempo que sua filha Yoko, que havia interce- stand de tiro de 60 metros de comprimento.”dido a meu favor, o fez ceder... Sim, a pequena Eu continuava absorvido pelo que Pietje dizia;Yoko tinha uma queda por mim...” estava curioso para saber como sua formaçãoDessa vez, ele teve tanto medo quanto eu quan- havia terminado, se ele havia por fim domina-do, bruscamente, a flecha partiu e atravessou a do essa arte ou se havia fracassado. Mas ele con-porta fechada. Eu começava a achar o velho re- tinuou mudo, os olhos fechados, como se hou-almente perigoso com o seu arco; foi um grande vesse superado um momento de fraqueza.alívio, portanto, quando decidiu prudentemente “Onde estávamos?” perguntou ele por fim.pendurá-lo em seu prego. O empreendimento o “O senhor podia começar a treinar no stand dehavia cansado. Voltou para a cama e enxugou a tiro.”testa com seu lenço. “Quis dizer no livro de Mao”, disse ele com impaciência, “onde você estava?”“ISSO” ATIROU! “Tive o direito de voltar ao “Estava no provérbio máximo: ‘Esticar o arcocurso contanto que prometesse formalmente já sem atirar, somente indicar o movimento’.”não pecar contra a grande doutrina. Semanas se “Exatamente. Compreende agora o que Maopassaram sem que eu progredisse nem um passo. queria dizer? Bem, agora continue a ler.”Finalmente, já tanto fazia para mim. Estava no Após apenas algumas páginas, ele dormiu pro-Japão há mais de quatro anos e sentia que havia fundamente, a tal ponto que seus roncos co-chegado a hora de me engajar como ajudante briam o som da minha voz. Fechei suavementede cozinheiro. Continuava a ir aos treinamen- o livro, apaguei a lamparina e caminhei em di-tos, mas mais pelo mestre e por Yoko que por reção ao meu carro, que estava estacionado maisverdadeiro interesse. E então, um dia, de for- adiante a fim de evitar os comentários cáusticosma inesperada, após eu ter atirado a flecha, mes- de Pietje sobre poluição do ar e preguiça.tre Awa se inclinou profundamente e parou a li- Ao aproximar-me do carro, vi as duasção. ‘“Isso” atirou!’ ele exclamou. Idiota que eu flechas fincadas no pneu dianteiro esquerdo,era, não entendi na hora o que ele queria dizer, exatamente nos dois “os” de Goodyear.e então comecei a gritar e pular de alegria. ‘Eh, Coincidência infeliz ou precisão diabólica? NãoPietje’, disse o mestre severamente, ‘o que eu saberei jamais µ a história de pietje 17

Na praça do mercado, o coração aberto, os pés descalços e sorridente (ver p.9)18 pentagrama 4/2009

a arte zen como instrumentode conhecimentoUm mestre japonês recebeu a visita de um professor universitário que buscava informações sobre o zen.O mestre convidou-o para tomar chá. Ele encheu completamente a xícara de seu visitante, até que trans-bordasse e derramasse. Não podendo se controlar o professor disse:“Ela já está cheia. Pare, por favor.” Jesús ZatónEntão o mestre disse: “Como esta xícara, você retornar, livre de todo preconceito, ao estado está cheio de suas próprias opiniões e especula- original do Espírito. ções. Como posso lhe mostrar o zen a menos que Nos sutras de O livro da verdadeira fé, do mestrevocê primeiro esvazie sua xícara?” Sosan, o terceiro patriarca após o Bodhidharma, lemos:Uma das hipóteses fundamentais do zen é anecessidade de nos esvaziarmos de todas as “O grande caminho não é difícilconcepções e teorias, convicções e frustrações, para aquele que não têm preferências;preconceitos e generalizações, em suma, liber- quando ambos, ódio e amor estão ausentestar-nos de todo dualismo, de todos os limites tudo se torna claro e transparente.que separam os extremos (bem-mal, justiça- Contudo, fazendo-se a menor distinção,injustiça, belo-feio etc.) a fim de que a natureza o céu e a terra se distanciam infinitamente;original possa fazer outra vez brilhar o ser se queres ver a verdade,verdadeiro. então não tenhas opiniões a favor ou contraO budismo zen baseia essa hipótese no fato de coisa alguma.sermos incapazes de perceber o mundo real. Em A luta entre o correto e o falso é uma doençavez disso, experimentamos e observamos uma para a mente.”pseudo realidade enganadora, que criamos comum pseudo-ser. A percepção dualista do mundo A mente não cessa de diferenciar entre o eué, por conseguinte, uma ilusão proveniente de pessoal e os demais eus que a cercam, entre elanossa profunda ignorância a respeito da dimen- mesma e a natureza. Conseqüentemente, sempresão espiritual. toma partido e envolve-se com os fenômenos,Porque o zen representa a essência mesma da com as formas aparentes da dualidade.mente, sua verdadeira natureza, a iluminação. Com o objetivo de atingir a iluminação, o zen,E se a mente não é dessa essência, isso deve ser ao longo dos séculos, desenvolveu um método,atribuído ao fato de que ela ainda não se liber- seria talvez preferível dizer um “não-método”,tou das idéias falsas nem das emoções enganosas baseado na investigação de sua própria naturezae negativas. Por isso, para que se atinja o desper- e no apaziguamento dos pensamentos através datar, a penetração e a iluminação, o zen ensina meditação.que a mente deve se encontrar numa liberdade De acordo com o zen, nenhum esforço é neces-total, num vazio total; e isso implica que é sário para atingir um objetivo ou para se chegarnecessário desvencilhar-se de todo e qualquer a um lugar, pois o objetivo é a visão do âmagoformalismo, dogmatismo, apego, considera- de si mesmo. Em suma, trata-se de sentir em sições e influências externas, com o objetivo de “o homem verdadeiro”, aqui e agora. Segundo o a arte zen como instrumento de conhecimento 19

©hugh mcleod/gaping void, stormhoek winery pela idéia de que o “grande caminho” que conduz à iluminação passaria pelo possível cultivo da per-zen, o que nos distancia da iluminação imediata cepção da verdadeira natureza.é nossa falta de confiança em nossa capacidade, Curiosamente, o monge, personagem da maioriaacompanhada de uma falsa preocupação com dos contos zen, não desperta progressivamente,aspectos exteriores da religião. mas de maneira imediata, instantânea, após terPartindo de tais hipóteses fica claro que o zen tempouca consideração por discursos ou diálogos, ou20 pentagrama 4/2009

ouvido o canto de um pássaro, compreendido um verdadeiro e profundo” e “retorno ao espíritokoan, escutado o grito de um mestre ou rece- puro e original do ser humano”.bido uma pancada na cabeça. Pois não se trata de Assim, o zen consiste em viver na consciênciaacumular conhecimentos, mas de criar o vácuo a do presente, do instante presente, pois é nessefim de libertar a mente. Na verdade, a tradução instante que aparece o Atman, o verdadeiro Serda palavra “zen” (“ch’an” em chinês) é “silêncio espiritual. a arte zen como instrumento de conhecimento 21

As quatro realizações. Tela clássica japonesaPara compreender a essência do zen, os mes- não dependa das palavras, da compreensão inte-tres dizem que a primeira coisa a fazer é deixar lectual, a fim de perceber verdadeiramente porde buscá-la, já que todas as realizações do ser meio da intuição. Nessas condições, os métodoshumano procedem do intelecto. Talvez fosse de ensinamento do zen comportam expressõesmais justo dizer que devemos deixar de buscar como gritos e estalos. Da compilação intituladafora de nós mesmos, tal como afirma o mestre Máximas do mestre Zen Linji, citamos um frag-Linji: mento que ilustra essa prática: “O mestre bateu com o punho no púlpito e proferiu este sermão:“A luz pura que brilha em tua consciência a cada ‘Nesta massa de carne vermelha há o homeminstante é a essência mesma do Buda que habita verdadeiro sem posição, que entra e sai de vósem teu âmago.” pelas portas de vossos olhos. Aqueles que ainda não testemunharam o fato, olhem, olhem!’ UmAqui torna-se necessário compreender que o monge adiantou-se e perguntou: ‘Como essekoan é uma das mais importantes ferramen- homem sem posição se revela?’ O mestre desceutas oferecidas pelo zen. Koan é um termo que do púlpito e, agarrando o monge pelo braço,define uma prática mental cujo objetivo é fazer disse-lhe: ‘Fala, fala!’”o pesquisador abandonar o modo comum defuncionamento de seu mental e se aproximar da Visto do exterior, esse relato pode ser consi-Verdade por outros meios. Em vez de raciocínio derado como uma série de absurdos. Ele podelógico, o koan propõe o irracional, o absurdo, parecer superficial e sem autoridade. Mas o quetudo que se opõe ao nosso equilíbrio e ao que o mestre quer dizer, a princípio, é que na vesti-nos conduz à lógica e ao racional, a fim de que menta de carne do discípulo bate o coração donos submetamos aos pensamentos oriundos do homem esclarecido e imortal. Este entra e saicoração. O koan nos impede de confiar na lógica continuamente do homem de carne, através dee na razão, ele pede que a mente do discípulo já seus órgãos dos sentidos: visão, audição, paladar,22 pentagrama 4/2009

Do coração do pintor elevam-se asmontanhas e aprofundam-se as cavernastato, intelecto; ele percebe e pode ser percebido, Conectado com a realidade e com o Tao, opois sempre está presente; todavia, o homem artista age graças à força que dá vida à manifes-natural não se dá conta disso. Quando um dos tação inteira, pois ele não é um eu alienado, masmonges indaga “Então qual é o aspecto desse uma expressão transcendente da realidade.homem verdadeiro?” e o mestre sacode-o ener- Assim, é preciso compreender que a prática dogicamente gritando “Fala! Fala!”, ele tenta fazer zen é um dos meios mediante o qual o artistao discípulo compreender que ele é um homem pode chegar à união com a natureza, ou seja,verdadeiro e que por isso ele deve falar, ou seja, com o universo. O pintor zen não é um bus-manifestar-se. cador, pois ele compreende que não ha nada aNo processo que, segundo o zen, promove o buscar, sua consciência não persegue objetivodespertar, existem diversas formas de arte: a algum e, paradoxalmente, de repente atinge seupintura, a cerimônia do chá, os arranjos florais, objetivo; sua integração na continuidade cós-os jardins de pedra, a poesia (haikai), a arte de mica. Um texto zen explica:contar histórias etc. Todas as formas de artepossibilitam o satori, a experiência do “desper- “Somente quando tiveres montanhas nos olhostar”, mas elas perdem seu valor quando o homem poderás pintar árvores, somente quando tiveresage de modo egocêntrico. A arte zen não produz água no espírito poderás pintar montanhas”.“obras de arte” como imaginamos, mas repre-senta expressões transcendentes do cotidiano. No zen, a água é a montanha, e a montanhaPor isso o zen, ao contrário da arte ocidental nada é senão árvores e olhos. E as imagensda mesma época, concentra-se tanto sobre seu esboçadas pelo pincel transformam-se em meiosvalor técnico quanto sobre sua capacidade de para penetrar nas mais profundas regiões daestabelecer contato com o Espírito universal, de consciência. O artista apenas pinta, ele penetralibertar o que ele tem em comum com o Espírito no silêncio original, no vazio onde as imagens jáuniversal que impregna todas as manifestações não perturbam o olhar. O artista purifica a lem-da vida. brança apagando eventuais traços com o objetivoO pintor zen rejeita as considerações estéticas de reencontrar a harmonia original. Grandesformais, pois ele quer antes de tudo sondar a possibilidades lhe são oferecidas quando conse-corrente incessante de causas e forças criado- gue criar o vazio em sua consciência, quandoras. O mestre Wan Yu explica isso da seguinte aprende a eliminar o menor traço de desejo.maneira: Desse modo, no koan, a pintura tem a função de provocar um choque, permitindo assim a“Do coração do pintor elevam-se as montanhas e aparição súbita de determinado estado de cons-aprofundam-se as cavernas.” ciência. Como já explicamos, trata-se de uma a arte zen como instrumento de conhecimento 23

Todas as formas de arte possibilitam o satori, aexperiência do “despertar”, mas elas perdem seu valorquando o homem age de modo egocêntricopintura representando o paradoxal, o irracional, O pintor deve estudar minuciosamente a natu-o vazio. A relação “cheio-vazio” (ying-yang) reza, meditar sobre ela até que sua essência oestá presente nos elementos formais com os penetre, que a primeira pincelada conduza àquais o pintor trabalha e, mais concretamente, execução da obra, pois o artista zen pinta paranos toques do pincel. O toque do pincel, base alcançar o satori. E o próprio ato de pintar édo princípio dinâmico do trabalho, delimita satori, ou seja, ele capta a respiração rítmica queo espaço e as relações formais entre “cheio e anima todos os seres vivos. Por isso o artista nãovazio”. Um toque de pincel denso delimita o tenta reproduzir a natureza, e sim reproduzir,espaço, vivifica o conceito de “cheio”, ao passo em seu princípio, a pulsação da criação univer-que um toque mais leve e mais transparente sal. O único e verdadeiro toque do pincel sórepresenta uma abordagem do conceito “vazio”. pode ser obtido no vazio absoluto. Mas, eviden-Em sua busca pelo vazio, a arte zen tende a pro- temente, semelhante vazio não pode se entregarduzir obras que comportam o mínimo possível ao inconsciente, ser automático. Porque ode elementos formais, realizados de maneira vazio do zen exige uma grande disciplina e umdireta e espontânea, sem possibilidade de reto- evidente esforço da vontade. Antes da primeiraques. Essa forma exige uma mestria perfeita da pincelada existe apenas o vazio sem forma.técnica, mas sobretudo uma estreita concor- Mediante o primeiro gesto criador do artista, odância com o que se deseja pintar. Cada tipo de pintor e a plenitude da unidade identificam-setoque de pincel possui um nome e um traçado com a criação inteira. Porque a arte da pinturaparticular. Um toque de pincel encostado ou zen torna-se, mediante o culto à beleza, um ins-não, deslizado, leve ou até mesmo um toque trumento de conhecimento, cujo produto final“de nada”, exprime o pulso interior próprio ao deve ser um espelho. E nesse espelho descobri-artista. No entanto, a técnica nunca é o objetivo mos o grau de espiritualidade alcançado peloem si. artista µ24 pentagrama 4/2009

aproximar-se do zenO zen é uma das correntes do budismo. Ele teria nascido no dia emque Buda, na Montanha da Águia, mostrou a um grupo de discípulos umramo de flores de cor maravilhosa. Na lenda aqui contada, acontecemfatos inexplicáveis que ultrapassam toda lógica formal. Por isso, essesutra é tido como o início do zen.No sutra intitulado “Sobre as perguntas durante quarenta anos, tornou-se patriarca do de Mahapitaka Brahmaraja”, é dito: “O movimento dhyana. Viajou durante dez anos e Brahmaraja dirigiu-se a um grupo de chegou, em 520, ao sul da China, onde recebeubudistas na montanha da águia e, inclinando-se a hospitalidade do imperador Wu (da Dinastiaprofundamente, ofereceu ao Buda flores de Liang). Ele foi para o que é hoje a cidade delótus cor de ouro (utpala). Pediu ao mestre que Nanquim, onde o imperador fez-lhe muitas per-pregasse o dharma para o bem dos seres pere- guntas que provinham de suas próprias reflexões.cíveis. Buda levantou-se e apresentou as flores Dizendo-lhe que não sabia responder às suasaos deuses e aos homens. Ninguém compreen- perguntas, o bodhidharma viajou até um estadodeu o significado desse gesto, salvo o reverendo no norte onde entrou num claustro. Morreu emMahakashyapa, que sorriu e fez um sinal com 528, aos 150 anos. Foi o primeiro patriarca quea cabeça. Então Buda disse: “Sou proprietá- transmitiu “o selo do coração do Buda” ao seurio do olho maravilhoso (a contemplação) dodharma, que é o nirvana, o Espírito, o mistérioda realidade e da não-realidade, e a porta daVerdade transcendental. Agora eu o ofereço aMahakashyapa”.Este último transmitiu esse olho (a contempla-ção) que vê nas profundidades do dharma a seudiscípulo Ananda. Isso aconteceu assim: Anandaperguntou a Kashyapa: “O que recebeste deBuda além da tua roupa e da tua taça?” Kashyapaexclamou: “Oh, Ananda!” Ananda respondeu:“Sim!” Ao que Kashyapa disse: “Queres devol-ver a bandeira que está perto da porta?” Comolhe pedia para fazer isso, o espírito de Anandailuminou-se e Mahakashyapa transmitiu “o selo”do Espírito a seu jovem aluno. Depois de Buda,houve vinte e oito patriarcas cujos nomes sãoconhecidos no zen. Ananda foi o segundo quetransmitiu o selo de bodhidharma; o vigésimofoi para a China no ano 520 da nossa era. Estebodhidharma era o terceiro filho de um reido sul da Índia. Após ter estudado o budismo aproximar-se do zen 25

discípulo; este último transmitiu-o por sua vez ou seja, é seu espírito iluminado que lhe permiteaos seus discípulos. A partir do oitavo século transmitir o conteúdo dos livros mais sagrados.da nossa era, o movimento zen tornou-se cada Os mestres do zen praticam sua religião semvez mais importante na China. Quase todos os nenhum escrito nem dogma. Desde sua origem egrandes templos e claustros pertenciam a esse até hoje, não obstruem os ensinamentos tradicio-movimento, embora o zen como fé viva tenha nais budistas. O próprio Buda conseguira isso dequase desaparecido. seus discípulos há muito tempo, conforme esta citação de Rinzai revela: “Ó tu, que segues oDUAS ESCOLAS Há no Japão atualmente duas caminho, não consideres Buda como um ser queescolas que conservam o ensino zen: o Soto, que alcançou o cimo. Da mesma maneira que eu, eletem sua origem na escola Ch’ing yueh, intro- está cheio de pecados. Os bodhisatvas e os arhatsduzida no Japão em 1233, e a escola Rinzai, seguem uns aos outros, formando uma cor-oficialmente instituída em 1191 por Yesai. Essas rente indigna. É por isso que, com a sua espada,duas escolas provêm da China. O zen não possui Manjusri matou Gautama enquanto Anglimalanenhum livro considerado por seus discípulos feriu-o com sua faca. Ó vós, que seguis o cami-como autoridade, e não há prescrição alguma nho, não há um estado de Buda a atingir. Ojulgada essencial a ser seguida para o bem espiri- ensino completo, o dos tríplices veículos e dostual. É dito que o espírito do Buda transmite-se, cinco tipos de estado de ser, representa apenas26 pentagrama 4/2009

Se um homem procura um Buda, não o encontrará; se procura o caminho, se procura um patriarca, também nada encontraráo ensino dos meios empregados para a cura de entregue cegamente a uma autoridade externadiversas doenças; elas não são de forma alguma ou se sujeite docilmente a convenções. Elesrealidades. De qual realidade são igualmente querem que o aluno viva de maneira individualos ensinamentos? São apenas representações e inspirada. Dão ao seu espírito toda a liberdadesimbólicas, nada além de composições de letras de progredir sem se submeter nem à idéia dearbitrárias. Eu vos afirmo. Oh, tu que segues o um Buda que o salvaria, nem a uma fé cega emcaminho, ouve: pessoas sem coração esforçam-se livros santos, nem a uma proposta incondicionalpor encontrar algo com o que trabalhar e que de qualquer autoridade externa.os libertaria da servidão terrestre. Eles compre- Eles aconselham seus discípulos a não aceitarenderam tudo incorretamente. Se um homem nada que não reconheçam como verdadeiro.procura um Buda, não o encontrará; se procura Devem rejeitar tudo que não se harmoniza como caminho, se procura um patriarca, também o seu espírito, seja sagrado, seja profano. Elesnada encontrará.” É evidente que os instrutores dizem: Não vos prendais as percepções senso-zen esforçam-se por tornar seus alunos o mais riais, não vos prendais a vosso intelecto, nãoautênticos e independentes possível, não somente confieis no dualismo nem em seu contrário; nãonas suas interpretações do budismo tradicio- vos deixeis fascinar pelo absoluto ou por umnal mas ainda nos seus hábitos de pensamento. deus, mas sede vós mesmos e sereis vastos comoO que abominam fortemente é que o aluno se os espaços, livres como um pássaro no ar ou um peixe na água, e vossa mente será transparente como um espelho. Buda ou não Buda, Deus ou não Deus, isso são somente discussões e jogos de palavras sem significado; somente a verdade, que está no ser humano, tem valor µ Fonte: De geschiedenis van zen (História do zen), D.T. Suzuki (1870-1966); e extratos de Estudos do zen, Rider, 1955 CB. aproximar-se do zen 27

zen na arteToda arte é um espelho que reflete as projeções mentais do artista. Mas nemtoda arte é concebida como sustentação e manifestação de uma realidade espiri-tual. A arte zen preconiza bem isso. Ela quer que a beleza e a essência da filosofiaconfluam para uma compreensão imediata que leve diretamente à experiênciada realidade fundamental: a verdade transcendental à qual aspiram interiormentetodos os seres humanos.Nos tempos em que o pensamento lógico momento em que somos conscientes de que a ainda estava no começo e o intelecto ciência difere da religião e da arte, como pode- humano ainda não desenvolvera sua mos verificar que essas três orientações formampaixão por classificar e dividir, a religião, a ciên- uma unidade? É possível haver uma reintegraçãocia e a arte formavam uma unidade de percepção das três? E se é possível, de que maneira?e experiência. Poderíamos dizer que seria possível por meioA religião como processo de união – de recon- da arte, e também pela religião, mas a ciência éciliação – e fusão com o divino, a ciência como um caminho intransponível. A ciência atual secompreensão do divino na natureza, e a arte desenvolve mediante o característico pensamentocomo um processo de expressão do divino lógico, e afasta-se de uma abordagem completa.que os seres humanos carregam em si, mas de E assim fazendo, segue um caminho absoluta-maneira não-manifestada, formavam um único mente contrário à unidade intuitiva da cabeça ealento naqueles que desejavam se esforçar pela do coração.transcendência. O antigo pensamento científico residia na esferaMas à medida que o mundo objetivo e a obje- da religião ou da arte, porque não pertencia aotificação tomavam o lugar da subjetividade domínio do pensamento objetivo. Hoje, o cami-unificadora, essas três orientações primeiro se nho para a consciência religiosa cósmica seguediferenciaram, depois se separaram e finalmente adiante, embora as igrejas se esvaziem. Mas, notornaram-se um tipo de hostilidade mútua. Ocidente, o caminho da arte tomou uma direçãoAtualmente muitas vozes elevam-se visando uma que se afasta cada vez mais dessa possibilidade. Éunidade abrangente e uma globalidade que reúna por isso que os pesquisadores, ou os que buscame restaure os valores de suas raízes comuns. a dimensão espiritual, sentem-se fortementePorque, se quisermos ter alguma possibilidade atraídos pela arte oriental e em especial pela artede êxito, é absolutamente necessário encarar zen. Muitos percebem nessa arte uma aberturacorajosamente as três perguntas clássicas sobre o consciente, ou uma experiência que palavras ehomem e seu destino. linguagem lógica não podem expressar.Mas é possível restabelecer essa unidade? O zen, uma importante corrente do budismo, apresenta à consciência o problema da ilusão“Se todos chamam de bonito o que é bonito, das nossas percepções, e o faz com uma certezapodemos reconhecer o que é feio.” radical. A lenda do encontro de bodhidharma com o imperador chinês Woe-ti, mecenas eNessas palavras do Tao Te King vemos o exem- defensor do budismo, fundador de numero-plo de como o intelecto, o pensamento, faz sos claustros e muito devotado à propagaçãoa diferença. A pergunta crucial então é: no desse ensino, é um exemplo dessa abordagem28 pentagrama 4/2009

Francisco Casanueva zen na arte 29

radical. Quando Woe-ti perguntou ao bodhi- interiores. O que o bodhidharma deixa claro édharma sobre o mérito de suas obras, ele que as experiências da consciência pessoal sub-simplesmente respondeu: “Mérito nenhum”. jetiva são insignificantes, e que não têm nada aEssa resposta é perfeitamente clara, pois é a ver com percepções e ações objetivas.comprovação de que o trabalho meramente O zen salienta o conflito entre a lógica inte-exterior não pode ser a medida dos méritos lectual do pensamento discriminatório e o30 pentagrama 4/2009

O zen afirma que há conflito essencial entre a lógicaintelectual das polaridades e o logos do pensamentoespirituallogos do pensamento espiritual. Esse logos tão categoricamente rejeitada pelo budismo.possui outras regras sintáticas, e encontra sua O budismo não tem objetivo e suprime umexpressão mais forte na linguagem profética dos dois elementos contrários. Para ele, nãoe na poesia. Há séculos, o intelecto obsti- há objetivo, há apenas um caminho.na-se em compreender essas expressões sem Essa é uma teoria, a base de tudo o que pre-jamais conseguir, como o exemplo clássico de cedeu, e que se inscreve no sentido cíclico doAquiles e da tartaruga. tempo, em comparação com o tempo linearA esse respeito, o koan e o haicai são modelos da cultura ocidental. Apenas no centro estãode como o subjetivo, impossível de se tradu- o movimento e o tempo. Fora do centro tudozir com palavras por toda sua intensidade, vai é cíclico e, portanto, infinito. E como nãoalém mediante algumas poucas palavras que existe nem início nem fim, não há objetivo aservem como sugestões ou catalisadores da alcançar.ligação sutil com o assunto subentendido. O Sob esse ponto de vista, somos capazes dekoan é uma palavra, um sentido, um diálogo viver cada momento como um todo e chegarou história, dos quais se servem os alunos do à consciência universal do que deve ser reali-budismo zen para chegar à iluminação. Um zado. E percebemos muito claramente isso nahaicai é um curto poema, a experiência de pintura zen. É a intensidade do momento, aum único momento, composto livremente de paixão ardente e extraordinária do artista, quetrês linhas de 5, 7 e 5 sílabas. não podem ser explicadas nem pelo tema nemO último obstáculo a vencer reside na dico- pelo motivo da pintura. É como ver o inteirotomia entre o caminho e o objetivo, tão universo numa xícara de chá fumegante µfamiliar ao pensamento racional ocidental e zen na arte 31

zen, intuição e arteUma análise das obras dos mais eminentes pintores da arte zen nos revela que essaarte distingue-se por um estilo próprio, constituindo, em si mesma, uma escola.Talvez seja mais apropriado dizer que alguns artistas, entre eles os monges zen,procuram, por meio de suas obras, transmitir sua própria visão e sua filosofia de vida.Se compararmos as várias manifestações de arte zen, veremos que de fato existepouca uniformidade nas várias fases de um mesmo artista.por Mar López, instrutora zenAs paisagens de Sesshu (1420-1506), de pêlo de lobo ou similares, tinta preta ou por exemplo, em sua primeira fase, colorida sobre seda ou papel de arroz, ao qual são cheias de movimento, a pressão acrescenta inscrições, estampas e outros ele-do pincel é tensa, o traço, intenso, elegante. mentos. As combinações de cores, os matizes,Apesar da idade (quando tinha setenta e seis o peso do pincel, sua pressão sobre o papel, aanos), seu trabalho caracteriza-se por uma forma do traço, constituem a base da técnicaestética espontânea, refinada e poderosa As da pintura tradicional oriental.pinturas de Sesshu (ligadas à estética japo- Em minhas obras, emprego outros meios enesa do período Muromachi), comparadas ao outros suportes, como, por exemplo, máquinatrabalho de outro grande representante da arte fotográfica e computador. Nesse momento, azen, o monge Sengai (1750-1837), do ponto de questão em meus pensamentos é simples: sevista estético não mostram grande contraste; um monge zen do período Muromachi tivesseas de Sesshu sugerem um espaço, uma atmos- esses recursos à sua disposição, tê-los-ia usadofera, e as de Sengai uma abstração conceitual para criar suas obras? Pergunta puramenterefinada. retórica, à qual respondo com um honestoEntão, não se poderia dizer que a arte zen sim. O zen não possui dogmas, não impõe, arepresenta uma tendência formal específica. priori, nenhuma concepção, nenhuma ver-Desse ponto de vista, o estilo sumiê, como dade, mas conduz à experimentação pessoal.praticado no Ocidente, não é uma autêntica Assim, por que impor a mim mesmo restriçõespintura zen, mas sim seu oposto. técnicas, já que a técnica nada mais é que umDessa forma, uma segunda questão surgiu meio que conduz a um fim?quando iniciei uma série de fotos inspiradas na Quando essas questões surgem e são bem ouarte zen para descobrir uma estética atual que mal resolvidas no nível conceitual, resta aindaexprimisse minha própria visão da natureza. o ponto central a responder: qual é a essênciaSem duvida eu não queria me limitar a seguir do zen e como pode ele contribuir para a arte?os modelos antigos, e menos ainda os estereó- Encontrei uma indicação muito esclarecedoratipos da pseudo-arte zen. Não sou nem monge em uma pintura zen, “O jardim da sementenem ermitão, e minha condição sócio-cultural de mostarda”, do mestre Lu Ch’ai, que dizdifere consideravelmente da desses artistas que o seguinte: “Quem aprender a pintar devenos legaram obras tão extraordinárias. primeiro acalmar o coração, pois assim terá oA terceira questão é a técnica. A tradição espírito claro e a consciência ampliada”.exige que um pintor zen trabalhe com pincéis Esse preceito está em total concordância com32 pentagrama 4/2009

Escultura mural zen, Um sol (metal, Ryan Beard, 2006)a mudança de vida aconselhada pela Escola está no coração? Como alcançar o silêncio?Espiritual da Rosacruz Áurea, segundo a qual Sem dúvida, existe uma quantidade imensao coração é não somente a sede dos senti- de exercícios e práticas voltados para essementos mais puros, mas também o ponto de objetivo, mas a crua realidade é que isso écontato com o ser interior. O problema é que completamente impossível para nós enquantogeralmente nosso coração encontra-se repleto o divino em nós, esse estrangeiro alheio aosde desejos materiais egocêntricos e nossas desejos e à agitação deste mundo, não houveraspirações resvalam para os prazeres físicos despertado.ou para a satisfação imediata de nossos dese- Não estou dizendo que a meditação, porjos materiais. Nossas emoções e sentimentos exemplo, não possa contribuir para a obtençãoalternam-se entre gratidão e indiferença, entre de um estado de consciência, mas que os exer-amor e ódio. cícios e práticas, sejam quais forem, inclusiveMas o zen propõe “trazer calma ao coração” a meditação, são procedimentos sem grandescomo base para o aprendizado da pintura. E efeitos enquanto o ser interior não estiver des-trazer calma implica libertar-se da dualidade, perto em nós, enquanto o coração continuarda lei dos opostos, do bem e do mal deste a desejar aquilo que lhe é inerente: as coisasmundo. Em minha opinião, isso só pode ser deste mundo.alcançado primeiro mediante nosso despertar Na obra do mestre Lu Ch’ai, encontrei outrase em seguida pela união com o que, como chaves transmitidas no passado aos aprendizesseres humanos, possuímos de divino, com ser da pintura zen e pude utilizá-las no desenvol-interior latente que vive em nós. vimento de meu trabalho. Esse mestre japonêsComo alcançar essa paz interior que ainda não insiste na importância da repetição, para que as zen, intuição e arte 33

Trata-se de uma experiência intuitiva em que cadatoque do pincel é dado segundo um ritmo harmoniosoreligado ao batimento do coração do universopinceladas surjam espontaneamente, sem que É verdade que o ser humano só é capaz dehaja necessidade de refletir sobre elas. observar aquela parte da realidade que ele jáNão se trata, é claro, de estabelecer normas vivenciou interiormente. Do mesmo modobaseado em cópias repetidas milhares de vezes, que não é possível chegarmos à iluminaçãomas de libertar o espírito de preocupações vãs se ela já não estiver presente nas profunde-a fim de interromper o fluxo incontrolado dos zas de nosso ser, também o artista não podepensamentos que nos afligem sem cessar. Se ele pintar a natureza em suas várias formas edomina a técnica, surge uma expressão suave manifestações se ele mesmo não fizer partee natural. Esse princípio não é base apenas na dela.arte zen, mas em todas as formas de arte, para É da maior importância que o artista zenuma criação livre e sem condicionamentos. perceba que seu olhar, sua percepção, é cria-Nesse sentido, o artista deve estar acima da dor, no sentido de que cria a realidade quetécnica, controlá-la antes que sua pintura possa ele é capaz de observar.ser uma extensão natural de sua consciência. O problema é que nossa percepção, nossaEle deve não apenas – pela repetição e pela visão, não se encontra firmemente alicer-prática – dominar a técnica de tal forma que çada na unidade, mas no que é fragmentário,possa ficar à parte durante o ato criador, mas na dualidade. Assim, antes que possamostambém ser capaz de ter uma idéia global do pintá-lo, é preciso que o bambu cresça emconjunto, tão precisa quanto possível, daquilo nosso interior, que haja uma fusão entreque deseja pintar, para que dúvidas e angústias o que é observado e o observador, entrenão impeçam a harmonia perfeita entre mão, o homem e a natureza, portanto, apenasmente e alma. quando o que não é dual nem fragmentárioSob essa perspectiva, o artista zen observa se manifestar no ser humano, ou em outrasatentamente as profundas relações que existem palavras, quando formos capazes de criarentre o ser humano, a natureza e a realidade um veículo ou alma que possibilite a coesãosuperior. A esse respeito fala-se freqüente- entre a consciência natural e a consciênciamente de identificação com a natureza. divina. Concluímos que o artista zen não imita a“Antes de pintar um bambu, é preciso pri- natureza, mas revela a energia interior que émeiro senti-lo interiormente e fazê-lo una com o universo, e que, na falta de termocrescer”, diz outro grande mestre zen, Su melhor, chamamos de alma.Dongpo. O termo alma envolve muitos aspectos e34 pentagrama 4/2009

muitas qualidades, mas pode-se dizer que, seu trabalho em seu estúdio é mais umaem essência, uma alma só se consolida no ser recriação após a observação do modelo.humano quando consegue atrair e trabalhar Portanto, o artista zen não se prende aocom a substância primordial que dá forma momento único e transitório que transmiteao universo, a “mãe”. O artista zen sente-se características atmosféricas e ambientaiscomo um órgão do gigantesco corpo que é a manifestadas na natureza. Ele não busca omãe terra, e, nessa unidade, funde-se com a transitório e volátil, porém tenta penetrar anatureza superior, com a parte de seu ser que própria essência da natureza e demonstrar ostranscende a matéria. valores que transcendem o que é temporal.Trata-se de uma experiência intuitiva em Naturalmente, essa busca pelo não-temporalque, com a mente tranqüila, cada gesto, cada não implica que o artista zen não possatoque do pincel, é dado segundo um ritmo reproduzir “o momento” ou “o agora”, poisharmonioso religado ao batimento do cora- sem dúvida o “agora” é a única realidadeção do universo. em que ele dá forma a seu trabalho, comoPor outro lado, está claro que o crescimento ocorre no haicai (os poemas zen). Em suado bambu na pintura tem vários estágios e experiência de união com a natureza é evi-níveis. Do primeiro nível, contudo, o artista dente que ele reage às várias transformaçõeszen é inserido em um corpo cósmico que o da natureza.alimenta, no qual se desenvolve e que, no Sim, o artista zen ruge com a tempestade,devido tempo, ele ajuda a desenvolver. voa com o vento, gorjeia com os pássaros,Sem dúvida o nível mais elevado é alcançado zune com as libélulas, sente-se renascido emquando a consciência do artista funde-se cada botão de f lor da amendoeira e morrecom o ser divino interior e ele já não é ele com cada folha seca que cai da árvore. Elemesmo, mas o “Outro nele”. vivencia todas essas experiências e o misté-A compreensão dessa experiência implica rio que as cerca porque, no mais profundoem uma condição especial, pois não se trata de si mesmo, encontrou o centro silencioso,apenas de sensibilidade, mas de f lexibilidade o vazio sagrado onde pode sentir tudo, masmental e intuição. não é tocado por nada.Intuição e inspiração estão profundamente Imerso nessa calma e nesse silêncio interior,ligadas entre si. Como o artista zen rara- o artista zen vive a experiência da arte comomente faz esboços ou estudos, e como ele pura irradiação estética, como fonte de novasnão está habituado a pintar a natureza real, percepções e verdadeiro conhecimento µ zen, intuição e arte 35

valor pessoalO valor do homem é relativo.Às vezes ele é considerado como um deusnão desenvolvido, às vezes como um tipo de inseto, feliz, desde que nãoseja pisoteado. Entre esses dois extremos encontra-se a plenitude dasqualidades humanas: coragem, valor próprio, consciência de seu valor oumodéstia, submissão, humildade...Somos atirados de uma margem a outra desse recebemos nosso corpo para realizar algo com rio que chamamos vida. Nunca vemos ou ele. Sob o rótulo “conhecimento” classificam-se experimentamos essa corrente de vida que todas as ciências e experiências reunidas pelapermanece um conceito abstrato, presos entre humanidade até os dias de hoje, transmitidas pordesdenhosamente “indignos” e promissora- nossos predecessores, o assim chamado savoir vivre.mente “eleitos”. E entre os dois estão o medo e a De uma coletânea retiramos esta breve citação:esperança. “Experiência é o nome que damos ao somatórioDesde nosso nascimento, somos embarcados em de nossas tolices”. Esse “somatório” nos é genero-um trem com uma passagem nos enviando em samente atribuído como bagagem de viagem, nalinha reta até a estação chamada “Previdência esperança de que aprendamos com ele.Social”, munidos da bagagem necessária a um Mas isso acontece? A grande constante da Históriacidadão decente para chegar ao “bom fim”. A é: guerra. E geralmente conclui-se de tantasinterpretação de “bom fim” depende do alvo batalhas que a guerra é inútil e em nada resulta.que atingimos. Seja como for, a esperança reside E o que fazemos? Num cemitério de guerra nanos três dons com os quais a terra nos dá as Bélgica encontramos num epitáfio a frase deboas-vindas: 1. um corpo, conhecido como veí- Albert Einstein: “Não sei com que armas seráculo; 2. conhecimento e; 3. ânimo, motivação. feita a terceira guerra mundial, mas sei as queEspera-se de cada recém-chegado nesta terra que empregaremos na quarta guerra: paus e pedras”.ele melhore o mundo, mas isso ninguém ainda Isso simplesmente está ali, e quem sabe quantasconseguiu. palavras semelhantes estarão escritas em outrosSob esse aspecto seria interessante revermos o lugares no mundo. Mas parece que toda sabedoriatríplice capital inicial de vida. e todo conhecimento fracassem diante de umaO corpo é, em verdade, um instrumento mara- barreira estrutural na nossa consciência.vilhoso, embora tenha, como sabemos, suas Mas o que nos move, então? O que nos impul-singularidades. siona...? Isso nos remete à terceira parte deQuantas vezes ele segue seu próprio caminho, nossa bagagem: o ânimo. O que nos anima?e nos momentos menos esperados se cansa, cai Superficialmente, depois do exposto acima, nãodoente e por fim falha completamente. precisamos buscar muito longe. O que fazemosNossa forma material aparente é tão imprevisível e o que deixamos de fazer na maioria das vezes équanto controversa. Shankara, um mestre hindu determinado pelas necessidades, ambições e possi-do século 7, descreve o homem como “saco de bilidades de nossa personalidade.matéria fraudulenta e suja”, mas continua: “des- Os aspectos sócio-cultural e econômico des-perto para a vida [...] ele serve como instrumento tinam a cada recém-chegado o seu papel nade experiência para Atman”. É evidente que coletividade, e espera-se que ele use os talentos36 pentagrama 4/2009

recebidos para alcançar um desenvolvimento tornar uma pesquisa consciente do mundo, commais elevado. Há indicações de que esse é real- suas intenções e possibilidades.mente o caso? As aquisições da raça humana Este é um axioma conhecido: o homem é dual enão devem ser subestimadas. Mas como saber há duas ordens de natureza: a natureza comumque os atletas de hoje são verdadeiramente mais terrestre e o que chamamos de reino dos céusfortes e rápidos que os de ontem? Sabemos de ou mundo imutável. Dessa maneira, duas almasfato mais que nossos antepassados ou só estamos habitam em nós. Uma é a alma animal ou alma-reinventando a roda? Temos certeza de que con- sangue, o sistema diretor fundamental com otribuímos com algo novo sob o sol? qual nascemos. Ela permite que abramos cami-Desse complexo confronto com a questão de nho através do mundo material, da sociedade,saber em que medida contribuímos para o bem dos relacionamentos com nossos amigos e com asocial nasce um sentimento quanto a nosso natureza e, na maturidade, orientar nosso cami-próprio valor pessoal, quanto à estima que temos nho para a elevação.por nós mesmos, interior e exteriormente. Daí Esse sistema diretor não é, portanto estático,resulta uma imagem de nós mesmos, uma cons- mas comporta um processo de aprendizado queciência, um “eu”. E esse “eu” está relacionado objetiva certo ensinamento, um processo quecom a consciência coletiva, o fornecedor do pode conduzir à descoberta da segunda ordemcapital inicial, e coloca, por sua vez, suas exigên- de natureza, com um sistema operante total-cias. Infelizmente, o assim chamado valor pessoal mente diferente. Poderíamos chamá-lo de novaque experimentamos não passa, com freqüência, “consciência”, mas baseada numa mentalidadede um capital fictício; e como nem o corpo, nem e num código de comportamento que não sãoa personalidade, nem o saber, nem o valor pes- explicados por educação, tradição e estudos,soal, nem a aspiração conseguiram “melhorar o embora haja pontos comuns. Por exemplo, asmundo”, a medida de nosso valor cai, com toda duas vozes dizem-nos: “Não matarás”, mas avelocidade, para o ponto zero. voz da nova consciência estará várias oitavasE disfarçamos esse ponto zero com complexos, acima da que ouvimos até agora, como algo deansiedade e depressões – ou álcool, drogas, inter- que sempre tivemos consciência e independe denet, ou em outras palavras, com a fuga da dura normas éticas. Talvez essa nova luz ainda sejarealidade. muitas vezes encoberta pelas trevas, mas a eter-Entretanto, podemos de fato encontrar algo novo nidade espera pacientemente. Então descobrimossob o sol. Nada se perde neste mundo, e todo a voz de outro programa do qual não estávamosdesenvolvimento pode nos levar a um ponto conscientes e que de muitas formas completa eonde é possível descobrir uma abertura para um transcende o antigo programa.novo horizonte. Aí a fuga do mundo pode se Isso inicia pelo auto-conhecimento, por saber valor pessoal 37

Arco-íris da criatividade.Thalia38 pentagrama 4/2009

Uma nova percepção, não sensorial, um novosaber não intelectual, uma nova motivação, livrede pressão social e interesse pessoal quem somos. Por exemplo, a idéia de que somos mais que uma cópia de nossos predecessores, que nos transmitiram uma bagagem tão grande. Descobrimos dentro de nós algo original, um valor próprio especial, maior que o eu consegue abarcar. No inicio não ultrapassa um vislumbre, mas isso nos coloca diante de uma bifurcação. O reconhecimento da impotência de todo o nosso saber e de nossa fé pode levar à modéstia e à humildade. Entramos numa fase de vida medita- tiva, uma “fase de deserto”, que leva ao silêncio. Nela encontramos a possibilidade de enterrar nossos talentos, a bagagem que nos foi entre- gue, junto com nossas frustrações, e no mesmo momento temos a chance de, nesse silêncio, sentir os outros valores como uma realidade. Então entramos numa fase vivente, renovadora. Nasce uma nova percepção, não distorcida pelos órgãos sensoriais, um novo saber, não deformado pelo intelecto, uma nova motivação, livre de pressão social e interesse pessoal. Nas profundezas, sob as areias do deserto, jorra uma fonte desejosa de nos despertar para a realidade vivente. Ele faz a renúncia passiva – a humildade, o caminho da resistência mínima – tornar-se humildade ativa, uma motivação para servir ainda desconhecida. No caminhar interior, os limites das habilidades naturais são reconhecidos, aceitos e reduzidos às devidas proporções. A aparência exterior coloca suas faculdades a serviço da realidade redescoberta. Esse é o novo capital que foi construído com o novo ânimo da antiga personalidade, que parecia tão pequena e frágil µ valor pessoal 39





R$ 12,00O Espírito fala conosco no coração. Porisso, cada um que anseia pela Gnose deveaspirar a uma verdadeira purificaçãosétupla do coração.No ser humano que faz isso reta epersistentemente a luz pode “morar”.Nele mudam a vida sensual e também avida mental.Desse momento em diante, tudo que eleempreende está de acordo com a sétuplapurificação do coração. Então, ele é puroem tudo que faz ou deixa de fazer.Só então ele entra na “esfera do bem”como Pimandro a denomina: no estadodo verdadeiro crescimento da alma. J. van Rijckenborgh


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