Important Announcement
PubHTML5 Scheduled Server Maintenance on (GMT) Sunday, June 26th, 2:00 am - 8:00 am.
PubHTML5 site will be inoperative during the times indicated!

Home Explore Revista Pentagrama 2014-2

Revista Pentagrama 2014-2

Published by Pentagrama Publicações, 2016-06-13 20:38:54

Description: revista-ano-36-numero-2

Search

Read the Text Version

pentagrama Lectorium RosicrucianumDia da Fraternidade 2013O Ney YeAlcançar o essencialO fogo de Ba'al Shem TovConstruir e demolirO pensador não conformistaUm jardim de luz 2014 2número

Edição Revista Bimestral da EscolaRozekruis Pers Internacional da Rosacruz Áurea Lectorium RosicrucianumRedação FinalPeter Huijs A revista pentagrama dirige a atenção de seus lei- tores para o desenvolvimento da humanidade nestaRedação nova era que se inicia.Kees Bode, Wendelijn van den Brul, Arwen Gerrits,Hugo van Hooreweeghe, Peter Huijs, Hans Peter O pentagrama tem sido, através dos tempos, o sím-Knevel, Frans Spakman, Anneke Stokman-Griever, bolo do homem renascido, do novo homem. Ele éGerreke Uljée, Lex van den Brul também o símbolo do Universo e de seu eterno de- vir, por meio do qual o plano de Deus se manifesta.Diagramação Entretanto, um símbolo somente tem valor quandoStudio Ivar Hamelink se torna realidade. O homem que realiza o penta- grama em seu microcosmo, em seu próprio pequenoSecretaria mundo, está no caminho da transfiguração. A revistaKees Bode, Gerreke Uljée pentagrama convida o leitor a operar essa revolu- ção espiritual em seu próprio interior.RedaçãoPentagramMaartensdijkseweg 1NL-3723 MC Bilthoven, Países Baixose-mail: [email protected]ção brasileiraPentagrama Publicaçõeswww.pentagrama.org.brAdministração, assinaturas e vendasPentagrama PublicaçõesC.Postal 39 13.240-000 Jarinu, [email protected]@pentagrama.org.brAssinatura anual: R$ 80,00Número avulso: R$ 16,00Números de anos anteriores R$ 8,00Responsável pela Edição BrasileiraAdriana PonteCoordenação, tradução e revisãoAdriana Ponte, Emanuel Saraiva, Leonel Oliveira, RossanaCilento, Denison de Sá, José de Jesus, Marcia Moraes,Mercês Rocha, Nazaré Pedroza, Saskya Cachemaille,Sérgio Oliveira, Simone Oliveira, Fernando Leite,Francisca Luz, João Batista Ponte, Josefina de Lima, LinoMeyer, Luis Alfredo Pinheiro, Maria Dulce de Oliveira,Marcílio Mendonça, Marcus Mesquita, Roquefelix LuzDiagramação, capa e interiorDimitri SantosLectorium RosicrucianumSede no BrasilRua Sebastião Carneiro, 215, São Paulo - SPTel. & fax: (11) [email protected] em PortugalTravessa das Pedras Negras, 1, 1º, [email protected]© Stichting Rozekruis PersProibida qualquer reprodução semautorização prévia por escritoISSN 1677-2253 tijd voor leven 3

pentagrama ano 36 2014 número 2“Transformem-se em passageiros!”. Este é o conselho Parem de lamentações e utilizem odado por um dos aforismas do Evangelho de Tomé. poder de sua imaginação © J.B. Wood,A alternância colorida das coisas exteriores se manifesta Cidade de Nova Iorquecomo nas gotículas de água que deslizam sobre o vidro:todas as cores se confundem e assim dissolvem, nesse dia da fraternidade 2013 2triste escoamento, o encanto e a atração iniciais. 光のトンネル – túneis de luzNo plano das coisas interiores, precisamos de homens 10,19, 30, 49atentos ao que se passa e que saibam como abrir o tao como fonte do trabalho interiorquando alguém bate à porta da consciência do coração. o nei yeMas, muitas vezes, o “passageiro” não ouve e se afasta dianne sommers 11dos que lhe solicitam um pouco de força de alma, um um espelho dos príncipes para os diaspouco de coragem. Ele prefere entregar-se à diversão de hojemulticolorida a realizar a tarefa, a oferecer uma palavra alcançar o essencial 20de apoio ou uma ação que poderia ajudar o próximo. um jardim de luz 24As batidas não são aquelas, sublimes, de um poder divi- o fogo de ba’al shem tov 26no desconhecido pelo ser humano: é apenas o pedido o pensador não conformistade um vizinho, ou de um amigo a quem não consegui- søren kierkegaard 35mos oferecer a ajuda adequada. É a tristeza de nosso construir e demolir 42próximo, para quem olhamos, sem sermos capazes de iluminação, fonte de engajamentosuavizar seu sofrimento, mesmo quando compartilha- a noite escura de um diplomatamos a dor que o oprime. Como é verdadeira a questãode Dag Hammarskjöld, o famoso Secretário-Geral das jeroen van der zeeuw 45Nações Unidas: “Já lhe aconteceu ter compaixão poralgo ou por um ser diferente de si mesmo?”Este número da revista pentagrama traz inúmerassugestões para abrir nosso interior e reencontrar ooutro – raciocinando com Kierkegaard, inspirando-nos com Hammarskjöld, ou nos surpreendendo coma maravilhosa imagem de milhões de lâmpadas LED,que são a versão japonesa hipermoderna da secularsabedoria chinesa. 11

dia da fraternidade2013Nossa reflexão, por ocasião de um Dia daFraternidade, não nos leva a evocar os tempospassados, mas, na verdade, nos coloca diantede nossa missão na época em que estamosvivendo atualmente. Nossos grão-mestres nãosomente nos deixaram uma herança na qualnos baseamos, mas também um testamentoque nos posiciona continuamente diante deuma exigência concreta.S omente podemos honrar esse testamen- to quando reconhecemos, hoje, a mis- são que ele encerra e se a aceitamos decoração, a compreendemos e, em seguida, acumprimos em nossa vida. Sob a inf luênciada Era de Aquário, e, principalmente, desdeo início do novo milênio, as condições devida mudaram consideravelmente.O indivíduo egocêntrico, “duro como pe-dra”, sempre é atacado mais intensamente.Ele perde sua integridade e sua identidade.Aos poucos, vê seu destino ser determinadopelas transformações rápidas das “estruturas”globais e de suas dinâmicas próprias (porexemplo, os sistemas financeiros ou a mí-dia, os sistemas de valores e as estruturas depoder), nas quais o indivíduo se sente comouma minúscula roda dentada no interior deuma máquina que ele não pode controlar.Chamamos essas estruturas de “éons”, e sa-bemos que elas definem uma forma sutil desubjugação.Além disso, a f lexibilidade é uma das exi-gências que se ressaltam em nossa época:somente uma minoria de jovens sabe ondeestarão vivendo daqui a cinco anos! Aomesmo tempo, o desejo e a busca daqui-lo que tem sentido para eles, de uma novaidentidade através de uma “religião íntimae particular”, individual, vão se af irmando2 pentagrama 2/2014

dia da fraternidade 2013 3

Em muitas pessoas, os arquétipos que vão despertando fazemsurgir uma aspiração à realização. Mas essas pessoas, que foramtão profundamente tocadas, precisam de um clima favorável a fimde poderem descobrir seu verdadeiro Sercada vez mais. Essa crescente aspiração da será a oportunidade de fazer a ponte entrealma, que pode ser percebida objetivamente, o impulso de 400 anos atrás e nossa missãoarticula-se, nos dias de hoje, à volta de ob- atual, por meio de diversas manifestações.jetivos éticos e de organizações que não são Desde a virada do milênio, e principalmen-exclusivamente voltadas para o lucro. Cada te a partir de 2012, o desenvolvimento davez mais as pessoas estão buscando um “lar” Escola Espiritual foi se ampliando em duasespiritual, um sentido e um f lorescimento direções. Primeiro, trata-se do aprofunda-espiritual. mento interior de nosso trabalho espiritual, que sempre nos abre às radiações diretas doCOMO A ESCOLA ESPIRITUAL REAGE A ESSE Espírito, e que pode irradiar-se no mundo,NOVO PERÍODO? sobre nossa comunidade e sobre cada um deA missão de uma Escola Espiritual é traba- seus participantes. Um grupo crescente delhar no tempo. É por isso que ela segue a alunos pertencentes à Escola Interna e aoshumanidade no curso do tempo e através graus interiores assegura, com grande res-das diversas transformações, sempre conso- ponsabilidade, sua tarefa: preservar a purezalidando a ligação com o Espírito. Ela tenta do campo de força e sustentar a intensa ati-fazer eclodir o núcleo espiritual no interior vidade gerada pelas forças do campo frater-dos seres humanos e, com essa finalidade, nal, no corpo vivo da Escola e no mundo.ela vai se adaptando às mudanças, utili- Esse trabalho vai prosseguir e intensificar-sezando-se de novos dados. Ela se dirige aos com todos os meios de que dispomos.homens com os meios que estão acessíveis Em segundo lugar, trata-se de abrir pode-atualmente, que são diferentes dos meios de rosamente a Escola em direção ao exterior,antigamente. a fim de ligar o corpo vivo aos inúmerosO impulso dado por nossos grão-mestres, seres que se mostram receptivos e podemJ. van Rijckenborgh e Catharose de Petri ser tocados, cada um a seu modo. Hoje, elestrouxe um rico desenvolvimento que temos estão buscando de uma maneira diferentede aprofundar e difundir nos dias de hoje, daquela que esperávamos: talvez não tenhamdepois de 80 anos. a mesma perseverança de seus predecessores.Nos últimos tempos, tivemos a oportunidade Mas estão buscando com inquietude e ardorde expressar essas mudanças, por diversas oca- o sentido de suas vidas em um mundo nosiões, em conferências e serviços templários. qual a base dos valores tradicionais escapouEm 2014, a Fama Fraternitatis, testamento debaixo de seus pés.da fraternidade dos rosa-cruzes clássicos, Hoje, precisamos abrir as portas para eles ecompleta 400 anos. Para a Escola Espiritual, recebê-los com alegria!4 pentagrama 2/2014

Mas também nos abriremos a outros grupos E isso, de acordo com a sentença: “Estar noque reconhecemos ter uma missão específica mundo, sem ser do mundo”.e espiritual neste mundo. Nossos grão-mestres predisseram esse de-Com certeza, esses movimentos falam outra senvolvimento e nos impulsionaram a ofe-linguagem e se utilizam de outros méto- recer nossos tesouros ao mundo, quando odos, mas isso não excluiu o reconhecimento momento chegasse. Estamos seguindo essarecíproco. profecia porque ela é um testamento, umaE, com relação a esse assunto, a era do missão para nós. Seguimos essa missão semencontro começou, sem que cada um dos apagar as diferenças, nem abandonar nossamovimentos precise renunciar à sua própria própria identidade.identidade: muito ao contrário! Depois de 80 anos de preparação e de desen-Nesse meio tempo, em vários países, inúme- volvimento, o tempo da realização chegou!ras manifestações foram organizadas pelas Podemos expressar essa verdade por meiofundações rosa-cruzes já criadas, revelando destas palavras dos sufis: “Certamente de-essa tendência e permitindo esses encontros. vemos proteger uma árvore jovem com umaMesmo que essas manifestações ainda sejam cerca, a fim de que ela não seja devoradaeventuais, já estão plantando uma semente pelas cabras. Mas, quando ela crescer, seráde compreensão mútua que, em seu justo preciso retirar a cerca, a fim de que todostempo, haverá de germinar. Elas estão ali- possam vir repousar e trabalhar debaixo dementando um campo de encontro e de com- sua sombra”.partilhamento para o futuro da humanidade. Gostaríamos de ressaltar que os dois rumosAlém disso, há a internacionalização do de desenvolvimento – o que se volta para otrabalho, por meio do IDG – sigla em inglês interior e o que se volta para o exterior –para o Grupo de Desenvolvimento Interna- estão condicionados um ao outro.cional – e a abertura de nossas conferências Se não formos ativos no mundo e para ode renovação e de todas as atividades dos mundo, vivemos em uma projeção devota decentros e núcleos para os membros. tudo o que aprendemos. E assim construí-Inúmeras atividades estão sendo igualmente mos uma prisão a partir de nossas própriaspropostas às pessoas interessadas. projeções. Por outro lado, se não desenvol-Podemos dizer que as fronteiras da Escola vermos o aprofundamento interior, nossoEspiritual tornaram-se permeáveis e é mais trabalho permanecerá superficial e não con-fácil encontrá-la. Estamos nos tornando cada seguirá atingir nem sequer uma centelha dovez mais conscientes, pelo fato de que, ago- Espírito. Portanto, esses dois aspectos cami-ra, precisamos agir no interior deste mundo. nham lado a lado. dia da fraternidade 2013 5

O QUE ACONTECERÁ COM A ESTRUTURA DA os que já avançaram nesse trabalho prepara- tório e purificador da rendição do eu ego-ESCOLA ESPIRITUAL? cêntrico. É um campo muito especial, queA estrutura sétupla da Escola Espiritual não nos foi confiado por nossos grão-mestres, emuda em absolutamente nada. Consideramos somos responsáveis por sua pureza e vita-essa estrutura como a manifestação dos sete lidade. Esse campo nos confere nossa iden-raios universais que, em sua forma, sempre tidade e culmina com o mandato de trazerse adapta às exigências e às circunstâncias para o mundo o Graal com sua força e poderdo mundo atual. de cura. Para todos os alunos, chegou oAs atividades dos sete raios são divididas em tempo de realizar essa missão com todas astrês partes ou setores, seguindo o modelo es- forças que estão à sua disposição.trutural próprio a todas as escolas espirituais. E, em terceiro lugar, há o campo da Fra-Essa tri-unidade é o fundamento e a ra- ternidade Universal, do qual fazemos partediação específica da organização da Escola e de cujas radiações participamos. Nele éEspiritual em todos os planos de sua hierar- construída a “ideação” de sua atividade, quequia sétupla. está se realizando no mundo.Primeiro, há a Escola Externa, que represen- Essas radiações são vivificadas em todos osta a porta aberta para o mundo e a huma- planos de manifestação e retrabalhadas aténidade. Ela precisa estar visível, acessível einteligível para os inúmeros buscadores nointerior dos quais vive e vibra uma centelhado Espírito.Precisamos ir ao encontro deles! A EscolaExterna e os órgãos com os quais trabalha-mos no mundo são os locais de reunião comos buscadores e também com outros grupos.Esse encontro acontece sem qualquer julga-mento, sem avaliação de qualquer das partese sem nenhuma reserva.Em segundo lugar, há a Escola Espiritualpropriamente dita: a Escola de Mistérios. Elaé um verdadeiro laboratório alquímico noqual se estabelece a ligação com o Espírito ea transfiguração pode ser iniciada em todos6 pentagrama 2/2014

A escola Espiritual alcançou sua maturidade.Como as cegonhas, ela abre suas asas para além das fronteirasdas nações e de outras esferas para liberar a mensagem da Luzno coração de todos os que aspiram a elaque sejam finalmente transpostas em reali- POR QUE PRECISAMOS DE MUDANÇAS NAdades concretas. Nesse campo, todas as dife-renças se fundem em uma unidade: unidade ESCOLA EXTERNA?a partir da qual jorraram, há muito tempo, Precisamos de mudanças a fim de comple-todos os diversos impulsos no mundo do tar o mandato da Escola Espiritual na épo-tempo e do espaço, e da qual ainda jorrarão ca atual. Hoje, é importante dar à Escolaoutros mais. Externa uma forma visível, mais acessível eEm nosso Serviço da Fraternidade do ano mais “permeável”.passado, comparamos a estrutura da Escola A partir dessa perspectiva, é necessário re-Espiritual a uma casa que, a fim de ser utili- considerar as fronteiras e as barreiras pro-zada em nossos dias, precisa ser transforma- tetoras que impedem as pessoas tocadas deda, adaptada à nossa época. se ligarem à Escola Espiritual. Esse pontoAs paredes principais, que foram estabele- necessita de uma nova orientação do Traba-cidas sobre alicerces eternos, continuam. lho Público, que precisa traduzir a verdadeAs paredes divisórias são demolidas e novas atemporal em uma linguagem moderna, emportas são criadas: a escada é transferida imagens e metáforas adaptada à nossa cultu-para o centro da casa. ra contemporânea. O Trabalho Público nãoTudo isso é uma imagem da transformação proporá, em primeiro lugar, uma matéria deincessante e necessária da estrutura existente ensinamento, mas irá se construindo a partirno interior do plano de construção universal. da experiência e da situação de vida dosO mais importante, sempre, é que a nova seres humanos.escada seja utilizada, que as forças e as Na nova estrutura, precisamos também levarenergias circulem no andar superior e che- em conta a hesitação que os seres humanosguem até no andar de baixo, sobre a Terra de hoje apresentam quanto a ligações e obri-e debaixo dela. E que isso aconteça de cima gações de longa duração. Não deveríamospara baixo e de baixo para cima! considerar essas modificações de compor-As mudanças sobre as quais falávamos são as- tamento um problema, mas compreendê-laspectos dessa transformação. Novas portas es- como uma grande necessidade de abandonartão se abrindo para o exterior, e os cômodos os caminhos já batidos. Assim, percebemosnos quais as pessoas são recebidas em nossa essa f lexibilidade das pessoas como a con-casa – e não seria somente para uma visita dição e a possibilidade de darem uma novarápida – agora têm um significado especial. orientação às suas vidas.É por essa razão que gostaríamos de ainda O estado de Membro, o primeiro dos seteabordar as mudanças da Escola Externa. aspectos da pirâmide, é a esfera na qual os buscadores podem permanecer o tempo que dia da fraternidade 2013 7

desejarem para se orientar e direcionar toda nós mesmos e, assim fazendo, atestamos quea sua vida. ele existe e que é verdadeiramente possívelNessa condição, aprendemos a nos conhe- percorrê-lo.cer mutuamente. É assim que eles adquirem Se em primeiro lugar nos sentirmos huma-conhecimento básico necessário e são co- nos e somente em segundo lugar nos sentir-locados em contato com o campo de força mos como um “eu”, então receberemos aspara provar se a ressonância interior está mais profundas inspirações! Afinal, a Fra-presente dentro deles. Em dado momento – ternidade sempre está se dirigindo à huma-que não é pré-determinado – decidem, em nidade no nível em que somos “Um”, ondecomum com os alunos que os acompanham, somos irmãos e irmãs. Assim, a Fraternidadese é justo e necessário ultrapassar a soleira poderá operar no mundo através de nós.da aprendizagem e entrar no corpo vivo da Nos próximos anos, após os acontecimentosEscola Espiritual. Na Escola Externa, haverá cósmicos mundiais que estão acontecendo,somente membros e alunos. inúmeros seres se abrirão.Todas essas mudanças atuais e outras que vi- Seus arquétipos despertarão e aspirarão àrão seguem o princípio hermético da evolu- realização. Então, deverá estar presente umção, da abertura e do desenvolvimento para campo de encontro espiritual, aberto parao exterior. Esse princípio sucede à fase de acolher todos os que estão profundamenteinvolução que vivenciamos até a entrada do tocados, a fim de que possam ir ao encontronovo século. de seu verdadeiro Ser. Nossa Escola espiri-Esse princípio hermético exige novos mo- tual amadureceu. A plena oferenda de amordelos transparentes de comportamento e para o mundo é o que a Fraternidade dade comunicação com relação aos outros e à Vida espera de nós agora. Somos chamadoshumanidade. Não estamos isolados da hu- a fazer do espírito aprisionado um Espíri-manidade, pois fazemos parte dela. E é com to atuante, a fim de que ele transforme oela que seguiremos nosso caminho até a mundo. µtransf iguração.Todos esses desenvolvimentos espirituais sãoimportantes – não somente para nós e paraa Escola Espiritual, mas igualmente para omundo. E isso deve ser percebido e reali-zado não somente pelos colaboradores, maspor todos os alunos, pois estamos abrindoum caminho de liberdade no interior de8 pentagrama 2/2014

光 のトンネ ル – T Ú N E I S DE LUZO caminho, tu o seguirás. A felicidade, tu a esquecerás. O cálice, tu o esvaziarás. A aflição, tu a ocultarás. A resposta, tu a aprenderás. O fim, tu o trarás. Não encontrando saída, o calor ardente transformará os carvões em diamantes. Dag HammerskjöldFoto: “Túneis de luz” envolvem os visitantes dos jardins botânicos de Nabana noSato, situados na ilha de Nagashima, não muito longe da cidade de Kuwana (Japão).O visitante tem a sensação de atravessar portais mágicos de luzes e cores. Esseefeito se deve aos milhões de LEDs que enfeitam os jardins e flutuam sobre tanquescolocados em um vasto terreno. túneis de luz 9

o tao como fontedo trabalho interiorNo Centro de Conferências de Renova, na O Ney Ye, ou trabalho interior, é umcidade holandesa de Bilthoven, durante o sim- texto chinês nascido na mesmapósio “A sabedoria do Tao insondável”, Dianne época do Tao Te King, que data deSommers apresentou um texto pouco conhe- três séculos antes de nossa era. Ao estudar ocido oriundo da China antiga. Estamos felizes Ney Ye, que é um texto um pouco anterior,em poder publicar integralmente sua alocução notei muitas semelhanças de pensamentosnesta edição da revista pentagrama. com o Tao Te King. Na época em que descobri o Ney Ye, eu trabalhava comoDianne Sommers fisioterapeuta e acupunturista, e estava,10 pentagrama 2/2014

Ney Ye, UM TEXTO CHINÊS DE 300 a.C.Numa pedreira das montanhas, taoístas conversam sobre os segredos dos imortais. O contraste entre apequenez do homem e a grandeza da natureza – um dos temas preferidos pelos chineses – é muito bemrepresentado por essa imagem. Zhang Feng, 1658portanto, acostumada com o pensamento específicos chineses. Munida dessa bagagem,chinês nessa área. Porém, permanecia muito aprofundei-me no Ney Ye, e vários aspectosatenta às entrelinhas, ao aprofundamento e fundamentos se tornaram mais clarosdessa abordagem no que diz respeito às para mim. O Ney Ye nasceu numa épocaraízes das dificuldades e problemas hu- conturbada, numa China instável. Muitosmanos – razões que me levaram a iniciar pensadores e filósofos tentavam analisar oestudos de filosofia para encontrar algumas que acontecia e encontrar soluções diante darespostas. Entretanto, consegui respostas miséria provocada pelas incessantes guerras.mais amplas na filosofia e nos pensamentos Foi o período dos “Estados combatentes”; o tao como fonte do trabalho interior 11

muitos estavam em guerra, e era ao mesmo um xamã, por meio de um sacrifício, umatempo uma época fundamental na qual o prece diante de um altar, com a esperançapensamento chinês tomava forma em torno de que, assim, os espíritos do vento, dada questão: Como viver este caos e construir água, das nuvens… fossem favoráveis. Erauma ponte rumo às novas perspectivas? No preciso inf luenciar o aspecto divino do es-barulho das armas e das batalhas sempre pírito mediante magia, sacrifícios ou prece,mais numerosas, manifestava-se o desejo de mas essa dimensão divina situava-se fora doencontrar um caminho interior para uma homem.nova compreensão dos acontecimentos da É nisso que o Ney Ye muda a relação devida. Esse é o tema essencial do Ney Ye, de forças! Segundo esse texto, não podemos350 a.C. Ele trata da senda interior que nos inf luenciar o espírito mediante um atoconfronta com certos obstáculos. Esse texto exterior, não! É preciso convidá-lo paraé pouco conhecido, pois estava escondido o interior. É nosso comportamento, nossaem obra muito maior, o Guanzi, atribuída orientação, que fazem o espírito penetrar emao estadista Guanzi (que na realidade não foi nós. Pelo trabalho interior, criamos condi-seu autor). É um tipo de coletânea escrita ções apropriadas à presença do espírito.para o governador, rica em conselhos rela- As primeiras frases do Ney Ye já dão teste-tivos a agricultura, gestão dos negócios de munho das forças presentes no universo. AsEstado, saúde pública etc. forças do espírito responsáveis pela criaçãoApenas um pequeno capítulo do Guanzi do todo – a força fundamental – constitui otrata do trabalho interior. Se estudarmos assunto do início do Ney Ye:esse texto veremos que o Nei Ye é umtexto‑chave para compreender como en- Pela força original, todas as coisas são criadas:frentar os acontecimentos: nele, o espírito na terra, as cinco sementes;é abordado sob novo ângulo, para permitir no céu, o firmamento de estrelas.o melhor emprego de suas forças pelo ser Aquele que se move entre céu e terrahumano. nós o chamamos “fantasma” ou “espírito”; mas, quem o acolhe em seu peito,Na época do Ney Ye, o espírito era consi- nós o chamamos “santo”.derado exterior ao ser humano e não dire-tamente associado a ele. Ou seja: o espírito Quem consegue fazer penetrar em si essemanifestava-se na natureza, como, por aspecto espiritual é chamado “santo”.exemplo, o espírito da água, do vento… O Essa pessoa (sua energia vital ou essência)contato com o espírito realizava-se mediante apresenta certas características que, como12 pentagrama 2/2014

Com tua voz, não podes chamá-la,mas tua consciência consegue acolhê-la.Com respeito, cuida para não perdê-la.Isso se chama aperfeiçoar a Forçano Tao, não podem ser sempre def inidas No entanto, podemos acalmá-la por meioe nomeadas, mas que revelam grande da Força. Jamais se pode sujeitar a Força,diversidade. porém é possível acalmá-la.Por isso essa energia vital é: Evidentemente, as palavras “Força” e “per-Clara! – como se ela se encontrasse lá no alto do céu; cepção” têm importância capital. Todavia,Sombria! – como se estivesse mergulhada numa poça; em nenhuma língua ocidental parece haverVasta! – como se preenchesse um oceano; uma tradução inequívoca para esse termoIntocável! – como se estivesse no alto de uma Te. A Força (Te) é uma faculdade intrínseca,montanha. uma força interior, uma energia centrada noEssa energia exprime-se, portanto, bem. Nas línguas grega e latina, nós a en-na oposição, na grandeza, na imensidão, contramos nas palavras arêthéet virtus, forçasmas também na claridade e na escuridão. ligadas ao bem, com o significado de “estar apto, capaz, disponível”… É uma faculdadeO texto continua: interior, mas, ao mesmo tempo, não exclusi- vamente pessoal. Em inglês, an endowment éPor isso, essa energia vital algo que nos é dado, uma dádiva do céu comnão pode ser retida pela violência, a qual se pode trabalhar, eventualmente pormas, mediante a Força, meio de objetos sagrados; um potencial oupodes acalmá-la. força, intrinsicamente ligado ao que é celeste. Algumas dessas substâncias carregam em siA palavra “Força” é importante, pois estará essa força criadora, que pertence a diversaspresente ao longo de nossa leitura. Ela manifestações e também aos seres humanos.traduz o caráter Te, termo que encontramos O Te, ou a Força, transmite o poder detambém no título do livro Tao Te King. realizar, mas quem o exerce deve consagrarAssim, a Força pode domar a energia vital. esse poder à realização fiel do plano ligado à sua essência e aos desígnios originais.Com tua voz, não podes chamá-la, O trabalho interior apoia-se essencialmentemas tua consciência consegue acolhê-la. nessa Força. Vista sob esse ângulo, ela éCom respeito, cuida para não perdê-la. a manifestação do Tao, encarnando-se naIsso se chama aperfeiçoar a Força. natureza que, por sua vez, se exprime nela.É impossível forçar essa energia. Não po- O verso 51 de Lao Tsé nos dá um exemplodemos obrigá-la a agir ou deixar de agir. disto: o tao como fonte do trabalho interior 13

Na alquimia chinesa, o homem transfigurado é frequen-temente comparado a um grou. Por vezes, podemoscontemplar grous reunidos que, em seu voo grupal, fen-dem o espaço em unidade de grupo e elevam-se rumo àimensidão do céuPor isso todos os dez mil seres honram (consciência, acolhimento, Força) é umo caminho e estimam sua Força Te, aspecto fundamental do Ney Ye.sem que uma ordem seja dada,tal como é por natureza. No verso 8 do Ling Shu, um texto que trata de medicina e acupuntura, lemos que é o“Por natureza” signif ica algo evidente: o nosso coração que nos torna capazes de agir.Zi Ran, que, em chinês, signif ica “espon- O coração é o imperador! É aquele que tomataneamente, naturalmente, à sua própria as decisões. O que o coração recorda, o quemaneira, do seu jeito”. Sem adversário ex- o coração retém, o que capta sua atenção,terior, nada nem ninguém a impõe. Não se a isso chamamos também de Yi. O Ney Yetrata de um dever moral: é uma virtude que explica que nosso coração é a morada quefaz emergir o melhor dentro de nós, com podemos ofertar ao espírito, à fonte de forçadeterminação. Esse é, portanto, o primeiro do universo, ao Espírito onipresente. É aí queconceito importante: a Força. o espírito encontra refúgio. Por natureza, há espírito em nós! Ele vai, ele vem. Em outrasO segundo conceito que se destaca é o Yi palavras: não partimos da ideia de que, por(a testemunha, o velador, a consciência…). definição, o espírito seja permanente em nós.Recordemos a frase: “Com tua voz, nãopodes chamá-la...” Ninguém está em condição de compreendê-loNossa vontade não pode se apropriar dessa totalmente.Força. Mas, com nossa consciência, podemos Perde-o, e o caos virá.acolhê-la. Velar é o signif icado contido no Liga-te a ele, e a ordem nascerá.Yi, termo que pode ser traduzido de diversasmaneiras. A ordem e o espírito mantêm uma relaçãoComo é bem característico do pensamento muito particular no ser humano.chinês, assim cria-se uma imagem, pois Yipode signif icar “consciência”, mas também Conserva tua morada com respeito:“aquilo que nos torna conscientes”, “aquilo Então, a essência (presente em nosso universo)que determina a forma de pensar”, “o emergirá espontaneamente.que cria a intenção, o desejo, a ideia que Medita sobre isso com devoção,mantemos em relação a” ou “aquilo que criando a ordem pela atenção silenciosa.nos impulsiona a permanecermos voltadospara determinada direção”. Essa consciência (O que signif ica: cuide de seu coração parapermite acolher a Força, e esse movimento que ele se torne um refúgio que abriga o14 pentagrama 2/2014

espírito; proporcione-lhe a paz e ele será o Aqui o pensamento dá um salto adiante: umanf itrião do espírito.) ser bem organizado – portanto, um Zi Ran – coloca o mundo inteiro em ordem! Isso éQuem cria o equilíbrio em seu coração evidente. Quer melhorar o mundo? Comeceaguça o ouvido e o olhar, em você mesmo!fortalece seus membros.Nele, a essência pode permanecer. A relação entre micro e macrocosmo é muito importante no pensamento chinês.Esse trabalho interior também dá maior Enquanto os filósofos tentavam resolveracuidade aos sentidos, melhora a forma os problemas dos Estados combatentes efísica. A essência que sustenta esse processo erradicar a miséria, a resposta do Ney Ye foi:é vivificada no homem que purifica seu comece pondo em ordem seu ser interior;coração. isso gerará uma radiação que colocará o mundo em ordem. O microcosmo é, por-Um coração ordenado permite à boca tanto, responsável pela evolução do ma-pronunciar palavras ordenadas. crocosmo. O homem não é uma montagemSe teu trabalho e o trabalho que pedes aos outros mecânica e autônoma de órgãos, mas umaé organizado, encruzilhada: é aí que o céu e a terra seentão o Reino inteiro será organizado. unem. o tao como fonte do trabalho interior 15

Na vida do homem, O macrocosmo, com suas estrelas e planetas,o céu procura a essência; determina a vida do ser humano assim comoa terra dá a forma; os movimentos na superfície da terra, osua interação cria o homem. vento e a água: Feng Shui; todos têm a sua importância como forças da própria terra. E,O céu nos liga ao espírito: ele nos dá a inversamente, o ser humano e seu microcos-essência, a energia vital, a vida. A terra nos mo inf luenciam o grande Todo.dá a forma. Depois, os dois se fundem no Uma representação chinesa dá uma boa ideiahomem, que é o produto da terra e do céu: do lugar do ser humano nesse Todo: umao homem microcosmo, espelho do macro- natureza imensa tendo no interior… umcosmo, do universo cósmico. pequeno, pequenino homenzinho!A entidade que abrange o céu e a terra é Mas temos ainda algumas perguntas emnormalmente considerada a fonte essencial relação a essa interação entre micro e ma-do pensamento chinês. A característica crocosmo. De todas essas inf luências, quaisprimordial desse grande todo é o Zi Ran. são as que o ser humano pode permitir queOs chineses clássicos não têm de fato uma ajam dentro dele, e quais ele deve evitar?expressão para designar o que entendemos Onde estão os limites entre os dois e comopor “natureza”. A tradução mais próxima gerenciar o que se comprova ser conf lituo-dessa noção seria “natural”, “o que é so? Como manter em equilíbrio micro eevidente”. O macrocosmo, a manifestação macrocosmo? O Ney Ye ensina ao ser huma-natural, é o que é evidente. O Zi Ran é ao no a maneira de inf luenciar o macrocosmo,mesmo tempo uma manifestação dotada de mas como se produz essa interação?movimento perpétuo, circular, onde tudo O macrocosmo, a natureza, o todo, éretorna e eternamente se repete segundo Zi Ran, e é evidente.um ritmo cíclico. Por isso, o Estado e Já em relação ao microcosmo, tudo é dife-os ritos exprimem as características do rente: o Su Wen af irma que o ser humanomacrocosmo ref letindo-o, para que seus (o microcosmo) é degenerado. Seu potencialfundamentos (ritmo e eternidade) possam original enfraqueceu em razão de seuse encarnar no microcosmo. A interação comportamento.entre macrocosmo e microcosmo constituium sistema dinâmico no qual eles se in- Na época atual, os homens mudaram seu modof luenciam mutuamente. Como definir essa de vida.interação? Eles bebem vinho como se fosse água,16 pentagrama 2/2014

Tao ke tao fei chang tao…O caminho que pode ser nomeado não é o caminho daeternidadeeles se afogam em atividades destrutivas em que se afirma “Encontrei exatamente oe diminuem, assim, sua atividade vital. caminho, meu caminho, essa é a def inição”, então não estamos no Caminho!Nada de novo debaixo do sol! E vejam que O Ney Ye propõe a mesma coisa:antigamente ainda era melhor que hoje.(Lembre-se de que o Su Wen foi escrito por O que a boca não pode exprimir,volta do ano 100 a.C.!) o que os olhos não podem ver, o que os ouvidos não podem ouvir,E qual seria a solução apresentada pelo Ney Ye? isso nós o chamamos o Caminho.Alcançar um nível superior de consciência, Sempre estreito, denso,uma ordem chamada Céu, descobrir o sempre amplo, f lexível,Único, o Tao. Seguindo o justo Caminho, sempre firme, sempre sólido,podemos encontrar a iluminação, uma vez reafirma essa escolha: não a abandones.que, percorrido como deve sê-lo, o Tao é o elimina o excesso e abandona a falta,espelho da ordem superior. No entanto, em e, graças à compreensão dos quatro extremos,sua época, Lao Tsé foi muito criticado: “Você retorna novamente ao Caminho do Taoafirma que Tao (o Caminho) é indefinível, e à sua Força Te.mas então por que escreveu um livro inteiroa respeito dele?” Aqui, estamos fazendo apenas algumas aproximações, sem descrições exatas, numaQuanta semelhança entre o Ney Ye e Lao Tsé! tentativa de identificar apenas o essencial. A última estrofe do Ney Ye mostra que aO caminho não tem raiz nem tronco, energia vital espiritual, o motor que a man-nem folha, nem f lor. tém, tem uma ligação muito especial com oNo entanto, o que dá vida às dez mil coisas, coração humano:carregando-as rumo à plenitude,nós o chamamos o Caminho. Essa energia espiritual que se encontra no coração ora vem, ora desaparece,Os primeiros versos do Tao Te King dizem: é tão pequena que nada pode nela entrar,O caminho que pode ser exprimido. Eles tão grande que nada pode dela sair.são seguidos pelo verso “fei chang tao”: estenão é o caminho permanente, o eterno, o A inquietude que prejudicaexato… O que signif ica que, no momento afasta essa Força. o tao como fonte do trabalho interior 17

Mas, na quietude do coração,o caminho se afirmará por si só.Naquele que compreendeu o Caminho,essa força escorre pelos poros e cabelos,e, no seu foro íntimo, nada de perecível subsistirá.Aqui o Caminho associa-se ao imortal, aoimperecível. Seguir o Caminho é um desafiopessoal: reconhecer seu destino e preenchercom ele sua vida, permanecendo fiel a esseCaminho.O Ney Ye explica como encontrar nossa es-sência, mostra a importância dessa escolha,e ensina a discernir as coisas, para navegarem meio aos extremos com um coraçãoordenado e nele acolher o Espírito. Assim, aForça crescerá! O Ney Ye pode ser resumidoassim: “O céu inteiro escuta um coraçãoordenado!” µDianne Sommers, autora deste artigo, estudou filosofiaem Amsterdã e chinês clássico em Leiden. Interessa-separticularmente pela medicina chinesa da China antiga.Em 2007, publicou uma tradução e uma interpretaçãofilosófica do Ney Ye, texto que data de 350 a.C. Éacupunturista e fisioterapeuta desde 1983.18 pentagrama 2/2014

光 のトンネ ル – T Ú N E I S DE LUZQuando chegares ao ponto em que já não esperas resposta, conquistarás a capacidade de dar de maneira que o outro possa receber com reconhecimento. Porque, uma vez que teu amor amadureceu em suaascensão para a luz e se transformou em força de radiação, a Bem-Amada se liberta de sua dependência em relação ao amante, e o amante se torna perfeito como a Bem-Amada. Dag Hammerskjöld túneis de luz 19

um espelho dos príncipespara os dias de hojeO Tao Te King, livro escrito por Lao Tsé e conhecido no mundo inteiro, também é chamado naChina de “O espelho dos príncipes”. Na época de Lao Tsé, a China era dividida em vários esta-dos, e cada governante, segundo a crença, teria recebido seu mandato diretamente do céu. Todosos soberanos governavam e viviam em harmonia com Tao, em total desapego. Dessa forma, eleseram um exemplo para seu povo e a força de Tao (o Te) exercia sua influência também sobre eles,para que todos pudessem viver em harmonia com o próprio Tao.Nessa época, os homens ainda não ti- finalmente desaguar no mar infinito, é neces- nham desenvolvido uma grande indivi- sário que o mar esteja em um nível mais bai- dualidade. Por isso, era necessário ape- xo – como de fato está. Assim também um reinas que o príncipe vivesse em harmonia com só pode ser poderoso se for humilde, se não seTao para que todos o imitassem. Lao Tsé dava colocar acima de seu povo e sempre ficar atentoimportantes conselhos aos príncipes – como o às necessidades da população.de não se colocarem acima do povo, mas, ao A corrente de Tao deságua no grande oceanocontrário, abaixo dele. porque Tao está abaixo!Um rio só pode se alargar, quando se situa em É por isso que todos os riachinhos desembocamum nível mais baixo que muitos pequenos ria- no Tao.chos. A época da seca esvazia regularmente seu Muitos e muitos séculos se passaram depoisleito; a época de chuvas permite ao rio encher-se de Lao Tsé. E desde o século 18, o “Séculode novo. Quando ele transborda, fertiliza a terra das Luzes”, o desenvolvimento espiritual doao seu redor. Para que os grandes rios possam homem ocidental já não depende de um sobe-Diz Lao Tsé, no versículo 39: A simplicidade é o fundamento da honra.O nobre tem suas raízes na modéstia. O baixo, o fundamento do alto.O alto tem o baixo como sua base. John WillemsensBartho KriekLao Tsé explica, no versículo 66: É porque sabem colocar-se mais abaixo que elasPor que os grandes rios e oceanos podem ser reis de que os grandes rios e oceanos governam todas as corren-tudo o que escoa? tes de água.Porque eles sabem se conter, são mestres de todas as Eis porque eles são seus reis!correntes. Que o sábio se encontre em primeiro lugar,Assim, ao falar, o sábio deve se colocar abaixo do povo, pelo fato de se colocar atrás do povo.se quiser ser superior a ele. Ele está acima do povo porque, durante seus discursos,Se quer ser exigente em relação a seu povo, deve colo- coloca-se abaixo dele.car-se em último plano. Assim, pode encabeçar o povo sem que ele se sintaColoca-se abaixo de todos sem ser um peso para seu pressionado,povo. e dirigir seu povo sem que ele se exponha a prejuízos.É exigente sem magoar o povo. O mundo está feliz com ele e não se cansa dele.Assim, o reino o obedece na alegria e não se cansa dele. Isso acontece porque ele jamais se coloca como rival.E, como ele evita todos os conflitos, ninguém no reino Assim, ninguém no mundo pode rivalizá-lo.pode se comparar a ele. Kristofer SchipperHenri Borel20 pentagrama 2/2014

ALCANÇAR O ESSENCIAL um espelho dos príncipes para os dias de hoje 21

Para Lao Tsé, v. 8, o Tao é como a água: Não há nada de superior em ser parecido com a água.O bem supremo é parecido com a água. A água é um A água doa seus benefícios a todos, sem se opor.benefício para todas as criaturas e sem lutar por isso. Porque o povo despreza a humildade de sua posição,Faz morada em todos os lugares que os homens desde- a água está muito próxima do Tao.nham. Nela, o bem está próximo do Tao. Kristofer SchipperJ.A. BlokLao Tsé, versículo 32: A Senda (Tao) é para o mundo o que o rio e o mar sãoNo Todo sub-celeste, o papel da Senda (o Tao) para os ribeirões e riachos.compara-se ao papel dos riachos das montanhas e dos Bartho Kriekvales em relação ao rio que corre para o mar.J.J. Duyvendakrano, mesmo que exista um: as pessoas seguem o Tao do rei sem coroa.seu próprio “soberano”, dispostas a encontrar o (Zhuang Zi 13/1)caminho para viver em harmonia com o Tao.Notemos que alguns comentaristas modernos O não fazer significa: nada fazer por interessedo Tao Te King interpretam o significado de “o pessoal.povo” como o símbolo do corpo com seus ór- Zhuang Zi continua:gãos, seus tecidos, seu sangue e seus hormônios...Para que um homem se torne soberano, no Aquele que consegue sersentido figurado ou real, as condições são silencioso como um sábio,sempre as mesmas de antigamente. Zhuang Zi mover-se como um rei,(Choung Tse) expressa esse pensamento desta e, que graças ao não fazer,forma: consegue elevar-se e continuar sendo simples em relação ao mundo...Verdadeiramente! esse, ninguém poderá superar!Permanecer aberto e silencioso, (Zhuang Zi 13/1)clemente e pacífico,em completa calma e não fazer... Esse rei nunca se coloca na frente de todos: ele éé aí que está a base das dez mil coisas! simples e modesto, e sobretudo silencioso. GraçasEsses princípios, a esse silêncio, ele pode viver no não fazer: o wuque nos fazem tomar a posição subalterna, wei, como o denomina Lao Tsé. É o caminho querepresentam o Tao oculto do sábio: leva toda uma vida, porque o homem tradicional22 pentagrama 2/2014

Assim diz Lao Tsé no versículo 22: É por isso que o sábio compreende, abraça o Único e seÉ por isso que o santo se liga a ela e dela faz uma norma torna um exemplo para o mundo.para tudo que está abaixo do céu. Ele não deseja parecer uma luz:Ele não mostra nada de si mesmo: é por isso que ele é iluminado.é por isso que ele aparece. Ele não procura ser o homem desejado:Ele não se afirma: é por isso que ele supera os outros.é por isso que ele é “semelhante”. Ele não se vangloria de seu trabalho:Ele não se vangloria da sua capacidade: é por isso que ele tem mérito.é por isso que ele tem êxito. Ele não se acha elevado:Ele não se glorifica dos próprios méritos: é por isso que ele é superior.é por isso que ele governa. Ele não luta: é justamente por isso que ninguém no mun-Em verdade, precisamente por ele não ser rival de do pode medir-se com ele.ninguém, Henri Borelninguém no mundo pode se rivalizar com ele.J.J. Duyvendaksempre vai abrir cada vez mais espaço dentro de si seco. Então, esse vazio se preenche instantanea-mesmo para o homem voltado para o Tao. mente com a força do Tao: o Te.A esse respeito, J. van Rijckenborgh diz:“Mesmo que nessa fase o homem disponha e E o que diz a esse respeito J. van Rijckenborg?ainda precise se servir de seu corpo físico (‘o “O transfigurismo fala da perda do eu, de umaancião’), ele reinará com amor sobre o reino, completa perda de si mesmo. E por essa perdaque está longe de ser perfeito, no wu wei; quer se ganha Isto. Isto é o Tao. É o que dá valordizer, de maneira não egocêntrica, ele pisará o ao transfigurismo. É o homem-deus ainda nãocaminho da renovação”. nascido, ainda indeterminado. Isto não tem mais nada do “eu mesmo” – e, no entanto,O caminho do wu wei coloca uma condição: nasce para o sacrifício do “eu mesmo”. É umser silencioso. Não um silêncio ostensivo, pois mistério essencial”.este procede da vontade, e o ruído o seguirá, O “Rei” de hoje só pode ser rei porque ele éinevitavelmente. servo, e se coloca abaixo como um riacho noO silêncio ao qual ele se refere é um silêncio vale. Ele tem os meios porque ele leva Tao eminterior, que vem de uma orientação do centro seu coração. µinalterável, no coração: uma orientação ligada aonão fazer. Então, a pessoa se esvazia de sua própria Coração para Tao, escrito por Elly Nooyen é considerado como umimportância, como quando, no vale, o riacho fica guia para a leitura do Tao Te King. um espelho dos príncipes para os dias de hoje 23

um jardim de luz“Você não é nem óleo nem ar”, disse um dia Dag Hammarskjöld*. “É apenasa mecha, o ponto onde a chama produz a luz: não passa de uma lente debaixodo feixe de luz. Por isso, somente poderá receber, dar e possuir a luz comouma lente. Se estiver em busca de si mesmo, roubará a transparência da lente.A vida lhe é revelada de acordo com a medida da transparência que você tiver– que é a capacidade de entregar-se e de deixar de se ver como objetivo.E é em função do seu progresso como instrumento para servir que vocêmesmo será conhecido”.Àprimeira vista, quando se trata de viver só corda. A harmonia que se instaura entre o e trabalhar, podemos aprender mui- grupo e o indivíduo depende em grande par- to com os animais e as plantas. Logo te de que eles estejam de acordo quanto a es-de início, a variedade das combinações já se paço, liberdade de visão e de ação, e tambémapresenta de forma surpreendente. Sabemos da atenção com que se dedicam. Uma tarefaque não há nada de extraordinário em ver um coletiva é gerada tanto do exterior, a partirelefante andando alegremente na companhia de uma direção reconhecida por todos, comode um rato – em um conto de fadas. Mas do interior, movida pela solidariedade e oessa cena é altamente improvável na realidade entusiasmo. Alguém poderá dizer: “Eu traçocotidiana! o projeto”. Outro dirá: “Pode deixar que euQuanto a nós, seres humanos, somos marcados faço a decoração”. Mas aquela senhora umpor uma deficiência bem persistente: é que tanto séria que faz a limpeza poderá ter umanossa consciência original, tão excepcional e visão mais ampla do canteiro de obras e pen-repleta de perspectivas que abraçavam o cos- sar orgulhosamente: “Vamos construir umamos, foi obumbrada e, com o passar do tempo, catedral!” Aqui se revela uma consciência desubstituída por uma autoconsciência. Foi assim identidade que vai além da soma dos indiví-que nos tornamos “indivíduos”. “Indivíduo” duos do grupo.significa, originalmente: “não divisível”. Ou No entanto, o desenrolar das coisas não é assimseja: temos de aceitá-lo como ele é ou deixá tão fácil. Todos nós temos alguns traços que se-lo de lado, sem realmente permitir qualquer tornam defeitos quando exageramos, ou quan-possibilidade de compromisso. Portanto, é do somos pegos de surpresa. Uma colina viraprevisível que um “umbigo do mundo” como uma montanha difícil de transpor. Quantos so-esse, quando cruzar nosso caminho, entre em nhos, pequenos e grandes, tornam-se pesadeloscolisão com o nosso “umbigo do mundo”, ao pé dessa montanha? Quantos ficam atoladosque acalentamos dentro de nós mesmos. E as em aborrecimentos e conflitos? Mas exatamentechances de esses dois conseguirem conviver essa colina, esse pequeno desnível no caminho,lado a lado são mínimas. Quanto a colaborar pode ser o lugar onde acontecerá o impulsocom outros ou em grupo, isso se revela muito para um processo de desenvolvimento humanomais difícil. único e inesperado. No livro Do castigo da alma,Seria possível uma ação coletiva? Porque, Hermes dá este conselho surpreendente: “Dei-definitivamente, um projeto coletivo é rea- xa atuar a essência, mas nega as propriedades”.lizado por vários indivíduos, como se fos- Aí está um ensinamento que nos faz meditar -se aquela brincadeira de “cabo de guerra”, e que só ganhará vida no momento em que sequando todos os jogadores puxam juntos uma libertar do papel.24 pentagrama 2/2014

Quando batemos de frente com as pessoas Quando cabeças, corações e mãos se fun-que estimamos, vemos nelas essa colina, como dem em um só corpo, cada um dos membrosuma propriedade intolerável. Mas ela não pode cumprir sua tarefa com toda liberdadepassa de uma mancha escura em nossa própria e autonomia – mas, nesse momento, dire-alma: um ponto que não reflete a luz. cionados pelo centro, pelo espírito. Nós jáMais do que nunca é necessário trocar uma sabemos: lá onde a luz pode atuar no indi-parte do “eu” por uma parte do “Outro”: víduo, ela opera no grupo inteiro! Nova-é preciso mudar do nosso suposto “centro” mente o princípio de base é “receber e dar”:para o Outro, que é o núcleo universal, que tomem seus lugares e entreguem-se à tarefavive e opera em cada um de nós. Esse Outro que está à espera de vocês.é nossa identidade especial: ele marca nosso Dessa maneira, construiremos juntos (cada umverdadeiro lugar e função no Todo. Assim, à em seu próprio coração, e, ao mesmo tempo,medida que formos liberando espaço para esse em conjunto com o grupo de pessoas afins,Outro em nosso coração, sua glória e poder conhecidas ou desconhecidas) uma luz bri-crescerão. Com esse processo, todo e qualquer lhante: uma casa Sancti Spiritus, que é tambémdesequilíbrio interior poderá desaparecer se chamada de “Templo do meio”. Num lugarconsiderarmos como tudo é relativo e trouxer- privilegiado como esse, a luz ilumina a tudo emos para nossa vida um leve toque de humor. a todos, sem distinção: porque, no grande or-Assim, depois de ter sido confrontado com a denamento da Luz, tudo e todos têm seu lugardureza da montanha, nos encontraremos em e sua tarefa. µum jardim de luz. * Sobre Dag Hammarskjöld, consulte o artigo na página 45 um jardim de luz 25

26 pentagrama 2/2014

o fogo deba’al shem tovO século 18 é por vezes descrito como o apogeu da cultura europeia. Esse período játem início com um ponto culminante: o aparecimento do gênio conhecido como JohannSebastian Bach, e termina com grandes personagens, tais como Voltaire, WolfgangAmadeus Mozart e George Washington. No leste europeu, nessa mesma época, viveuum homem especial, originário da comunidade judaico-hassídica implantada nas pequenascidades da Silésia: Miedzyborz, Szargrod e Ropczyce.Esse homem era o lendário Israel Ben Eliezer, nascido em 1698 e morto em 1760,conhecido com o nome de Ba’al Shem Tov, ou Besht. Como místico judeu, ele deu aohassidismo – corrente mística da religião judaica – uma visão e uma orientação to-talmente diferentes. Trata-se de um conteúdo cujo significado teve grande influênciasobre a corrente do pensamento judeu e que abriu novas e fascinantes perspectivaspara a alma de seu povo, magnificamente ilustradas por Martin Buber em seu livroA lenda do Ba’al Shem.Um Ba’al Shem é um Mestre do Nome. temer”. E Israel, por sua vez, mais tarde, acres- Ba’al Shem Tov trouxe um momento de centou: “Deus vê, Deus observa. Ele está em alegria e de elevação em um período de toda vida, em cada coisa e tudo dá testemunhoinexprimíveis aflições. Em todas as comunida- de sua vontade. Ele decide o número de vezesdes judaicas, ele foi a centelha que preservou que uma folha rola na poeira, antes que o ventonumerosas famílias diante das trevas e do vazio. a carregue”. A fim de se distinguir dos MestresSua centelha transformou-se em uma chama que do Nome que o haviam precedido, acrescentouiluminou a escuridão: graças a ele, o hassidismo a palavra Tov, o Bom: o Ba’al Shem Tov.adquiriu novo desenvolvimento. Sempre em viagem, aparecia vez por outra em vilarejos, florestas ou em algum mercado.É notável o fato de que ele desapareceu, por Quando se interessava particularmente por al-assim dizer, como por encanto, sem deixar guém, esforçava-se para integrá-lo a seu círculoo menor vestígio autobiográfico. Não existe de amigos, sem jamais fazer a menor distinçãonenhum retrato nem documento que prove sua entre homens e mulheres. Os únicos que nãoexistência. Ao aluno que confiou seu ensina- tinham graça diante de seus olhos eram os rabi-mento ao papel, ele disse: “Não há nada de mim nos oficiais. Reclamava deles dizendo: “Um dia,em suas páginas: você pensa ter ouvido o que eu tanto farão que impedirão a vinda do Messias”.não disse. Eu disse uma coisa, você ouviu outra Do mesmo modo, tinha pouca estima pelose escreveu uma terceira”. Pleno de eternidade médicos, como o testemunham suas palavras:interior, ele somente pode ser lembrado como “Eles acham que podem explicar tudo, porém sóuma lenda, mas uma lenda com consequências enxergam o lado exterior dos males”.profundas e duradouras. Era sobretudo conhecido por sua benevolência,O pai de Israel reconheceu os talentos excep- atenção e afabilidade. “Enquanto o ramo nãocionais do filho em idade precoce. Pouco antes estiver separado da árvore, há esperança”, tinhade morrer, disse-lhe: “Lembra-te disto, meu o hábito de dizer. E também: “Para tirar teufilho: Deus está contigo, e somente a Ele deves amigo do lodo, não temas sujar-te”, ou “Um o fogo de ba'al shem tov 27

O fervor de um coração puro supera o pensamento complexoe insondável; o orgulho do conhecimento é pior do que aignorância. Pesquisar é mais valioso do que encontrarpequeno tsadik ama os pequenos pecadores; um pois a perfeição não é alcançada por herança ougrande tsadik ama os grandes pecadores” (Um hereditariedade.tsadik é um servidor de Deus). Com efeito, nu- Em razão de suas palavras e de seu compor-merosas estórias circulam sobre a conversão de tamento, Israel Ben Eliezer encontrou muitarabinos e outras personagens que se desviaram incompreensão em sua comunidade. Certa vez,do caminho reto, graças ao Ba’al Shem. ele explicou isso da seguinte maneira: “En-Por questão de princípio, ele não julgava; tre as galinhas, havia uma que tinha chocadoestava ali para auxiliar, e não para julgar. A um ganso, e, quando este entrou na água, asseu cocheiro, disse certa vez: “Joga fora teu galinhas, desesperadas, tentaram ajudar o pobrechicote, eu te peço, porque, mesmo que um animal, porque ignoravam que a água era ocavalo deva sofrer algum tipo de punição, elemento do ganso”.quem disse que és tu quem deve aplicá-la?” O ensinamento hassídico desse sábio é o que aEle não tinha a menor vergonha de frequentar diáspora, o judaísmo disperso por todo o mun-os círculos mais ou menos suspeitos: julgava do, trouxe de mais poderoso e excepcional;sua presença ali mais necessária do que entre trata-se de nada menos que o anúncio do renas-aqueles considerados justos. Certo dia, foi tes- cimento. Imaginemos um palácio com inúmerastemunha de uma altercação entre sua mulher portas e, por trás de cada uma, um tesouro quee a criada. Quando viu que as duas mulheres espera pelo visitante, que não sente mais ne-se preparavam para ir ao tribunal dos rabinos, nhuma necessidade de ir adiante, porque podelevantou-se, vestiu suas roupas de sabbat e as ali mesmo servir-se a seu modo. Contudo, noacompanhou. “Por que estás fazendo isso?”, final do corredor encontra-se o rei, pronto paraperguntou-lhe a mulher, “Não preciso de tua receber aqueles que vêm até ele por sua causa, eajuda”. Ba’al Shem respondeu: “Tu não pre- não por causa de seus tesouros.cisas, mas a jovem, sim. A ti, eles conhecem, Certo dia, o Ba’al Shem permaneceu em oraçãomas a essa pobre órfã ninguém ajudará nem por mais tempo do que de costume e, cansados,defenderá”. muitos de seus alunos foram embora. Na vez seguinte, ele conta-lhes, a esse respeito, o queNo hassidismo de Ba’al Shem Tov, os aspectos se segue: “Imaginem um pássaro raro no cimomais velados do ensinamento judaico prevalece- de uma árvore. A fim de apanhá-lo, os homensram por algum tempo sobre os aspectos oficiais. fazem uma escada vivente ao longo da qual umO hassidismo parte da premissa de que o Uno deles pode se alçar. Mas os homens em baixo,tudo concedeu, mas que tudo deve também ser que não conseguem ver o pássaro, perdem a pa-feito. Se as forças são dadas por Deus, a tarefa ciência e vão para casa. A escada humana desabados homens é aceitá-las e trabalhar com elas, e o pássaro raro sai voando”.28 pentagrama 2/2014

Outra vez, explica-lhes o significado do hassi- ao ver as coisas exteriores, não vê senão adismo e pergunta: “Vocês conhecem a estória força e o poder do Criador primordial, quedo ferreiro que queria se tornar independente? vive por trás de tudo. A isso, os rosa-cruzesComprou uma bigorna, um martelo, um fole e chamam de “anseio de salvação”. Assim épôs-se a trabalhar. Porém o esforço foi em vão, a vida terrestre do hitlahavut, que se eleva epois a forja permanecia sem vida. Então, um transcende todo limite e se torna uno comvelho ferreiro, a quem ele foi pedir conselho, Deus. Hitlahavut é igualmente a taça da graçadisse-lhe: ‘Tens tudo de que precisas, menos a e a chave eterna: revela igualmente o sentidocentelha’.” E isso – segundo o Ba’al Shem – é da vida, a elevação progressiva até o infinito.precisamente o hassidismo: a centelha! O ensi- Os anjos repousam em Deus, mas os espíritosnamento hassídico e a vida dos hassidim estão santificados progridem em Deus. O anjo éfundamentados em quatro pilares: Hitlahavut, aquele que não muda de lugar; o santo éAvodá, Kavaná e Schiflut. aquele que avança. Eis por que o santo está acima do anjo.Hitlahavut – o ardor de nossa Hitlahavut significa, ao mesmo tempo, o fimaspiração Eis uma comparação: aquele que da sujeição, o rompimento da última cadeia, adeseja uma mulher ardentemente e observa dissolução que liberta de tudo o que é terreno.suas vestes multicoloridas, não deseja asvestes nem as cores, mas a magnificência da Avodá – buscar, abraçar a Deus: essa é amulher, desejando que esteja vestida com elas. tarefa O mistério da graça é inexplicável. En-Assim também, enquanto algumas pessoas tre buscar e encontrar, situa-se todo o campo denão veem nada além das vestes deste mundo, tensão da vida humana – sim, o retorno milha-aquele que verdadeiramente aspira a Deus, res de vezes repetido pela alma inquieta em suas o fogo de ba'al shem tov 29

光 のトンネ ル – T Ú N E I S DE LUZNo ponto de repouso no centro de nosso ser, ingressamos em um mundo onde todas as coisas se encontram igualmente em repouso. A árvore torna-se então um mistério, a nuvem uma revelação, cada ser humano um cosmo do qual captamos apenas um simples vislumbre de sua beleza. A vida simples é cheia de simplicidade, porém ela nos abre um livro em que não conseguimos ler mais que uma simples sílaba. Dag Hammerskjöld30 pentagrama 2/2014

erranças. E, todavia, Deus quer ser procurado. E Conta-se que, certa vez, o Ba’al Shem permane-como poderia ele desejar não ser encontrado? ceu à soleira da casa de orações e não quis en-Sobre isso, existe uma anedota interessante: o trar, dizendo com repulsa: “Não posso entrar aí,filhinho do rabi Baruch, da família de Ba’al pois a casa está cheia, de alto a baixo: sim, estáShem, brincava um dia de esconde-esconde sobrecarregada de orações”. Os que o acompa-com um coleguinha. Depois de se esconder, nhavam ficaram atônitos, pois achavam que nãoele permanece por longo tempo em seu escon- poderia haver maior mérito que aquele. Então,derijo: pensa que o colega o está procuran- ele lhes explicou: “Quando o impulso das pala-do, mas que não consegue encontrá-lo. Após vras não é dirigido para as coisas do alto, entãoesperar bastante tempo, enfim ele se mostra e elas não podem se elevar e amontoam-se atévê que seu colega já não está ali. De repente, abarrotar a casa de oração, de baixo para cima,ele compreende que, desde o início, o amigo numa enorme confusão”. E continuou, dizendo:não o tinha procurado. Corre até seu avô e, aos “Nenhuma prece é mais fervorosa e se elevaprantos, se queixa do maroto. Então, lágrimas diretamente aos céus do que a prece de um ho-correram dos olhos do rabi Baruch, que disse: mem simples que não sabe o que dizer, mas que,“Assim também fala Deus.” incansavelmente, volta a Deus a aspiração de seuO homem deve compreender que seu sofrimen- coração. Deus o acolhe assim como o rei acolheto provém do sofrimento da Shekiná (a centelha o canto do rouxinol no seu jardim durante ado espírito aprisionada). Ele deve compene- noite: para ele, esse canto é mais doce do que atrar‑se de que sua falta é a falta da Shekiná, e homenagem dos soberanos na sala do trono”.que, portanto, não deve buscar uma solução Também é importante, segundo o Ba’al Shem,para suas próprias necessidades, sejam elas de que qualquer um que aspire à santificação rea-ordem inferior ou elevadas, mas sim colocar-se vive incessantemente o fogo, para que o ardora serviço dessa perda da glória divina. Assim, jamais se extinga no altar de sua alma: então,espontaneamente, tudo se resolverá – até mesmo Deus mesmo pronuncia as palavras de oferenda.seu próprio sofrimento. Por isso, ele deve cuidarde não destruir a semente do eterno. A Kavaná é o mistério da alma que viveNo tocante à oração, a Shekiná diz: “Eu sou a orientada para a meta Não há senão umprece”. Essa frase evoca o texto de uma cantata objetivo, somente o objetivo existe – objeti-de J.S. Bach: “Não sabemos como formular nos- vo no qual todos os caminhos desembocam esa prece, porém o espírito em nós ora lançando ante o qual nenhum descaminho poderá ex-suspiros inexprimíveis”. Ou ainda: “Senhor, Tu traviar a alma eternamente. A Kavaná é umconheces meus pensamentos, antes mesmo que raio da glória de Deus, que habita em cadaqualquer palavra venha a meus lábios”. coração humano que se volta para a redenção. o fogo de ba'al shem tov 31

Nisto consiste a senda da libertação: que todas as almas ecentelhas do Espírito procedentes da Alma original paremde vagar sem rumo e, purificadas, retornem ao larE a redenção é o retorno da Shekiná (centelha Os hassidim falam sobre isso na parábola do reidivina) de seu exílio, o retirar de todos os véus que somente dá início ao banquete quando che-que ocultam a glória divina, a purificação e a gam os últimos convidados. Todos os homensunião com seu verdadeiro mestre, em perfeita são moradas das almas errantes. Este é o sentidounidade. Para o buscador realmente sério, toda e o objetivo da Kavaná: é dado aos homens er-a sua vida deve acontecer aqui e agora. Ele ou guer os caídos e libertar os aprisionados. Não seela ouve a voz da subida das águas, sua eferves- trata, portanto, de apenas esperar, de ficar à es-cência nas ravinas, e ele ou ela vê a eternidade preita, mas de atuar para a redenção do mundo.germinar nos campos do tempo, como se isso A Kavaná é igualmente o mistério da alma queacontecesse em seu próprio sangue. Assim, esse toma seu rumo no sentido de auxiliar em prolhomem, ou essa mulher, não pode pensar em da redenção do mundo. Os hassidim dizem:outra coisa senão no momento presente – este é “Aquele ou aquela que ora e canta em estado deo momento propício. E isso acontece cada vez santidade, que come e fala em santidade e con-mais intensamente, pois as vozes ficam cada duz seus afazeres em santidade, graças a ela, ouvez mais imperiosas, e a semente cresce com a ele, as centelhas decaídas serão elevadas e osuma urgência cada vez maior. mundos decaídos serão libertos e renovados.”Em tudo eles notam a incompletude e as imper-feições. A voz de todos os seres lhes fala, e o so- Schiflut Humilhar-se mais ou menos não épro do vento traz sua amargura até eles. A seus prova de submissão. O maior mal é esquecerolhos, o mundo se assemelha a um fruto verde. que somos filhos de rei. Em verdade, humildeEm si mesmos, eles participam da glória, mas à é aquele que vê o outro como a si mesmo e a sisua volta tudo é conflito. Contudo, a senda da mesmo no outro.libertação deseja que todas as almas e centelhas Um tsadik disse certa vez: “Se o Messias che-do Espírito procedentes da Alma original – que gasse hoje e dissesse que sou melhor do quenaufragaram na perturbação do mundo ou na os outros, eu lhe responderia então: ‘Não és ofalta de rumo no decorrer do tempo, e que estão Messias’.” O homem humilde mora em cada serdispersas em todo tipo de criaturas – parem de e conhece os hábitos e virtudes de cada um,vagar sem rumo e, purificadas, retornem ao lar. pois ninguém é para ele o próximo. Ele sabe, inti-32 pentagrama 2/2014

mamente, que ninguém é desprovido de algumvalor oculto. Ele sabe que aqui neste mundo nãohá homem que não tenha seu momento.Aquele que vive nos seres segundo o mistério da na unidade. Certa vez um tsadik disse: “Comohumildade não pode condenar ninguém: aque- podem dizer que eu sou um guia deste século,le que condena o outro, condena a si próprio. se o amor que dedico a meu próximo e à minhaQuem se separa do pecador, participa da culpa. família é maior do que o amor que sinto porO santo sofre tanto pelos pecados de alguém toda a família humana?”quanto pelos seus próprios pecados.O homem busca a Deus no fogo solitário de Sobre a importância da comunidade, o Ba’alsua inspiração. No entanto, há um serviço Shem diz o seguinte. “Se um homem percebeelevado que só pode ser realizado em comu- que seu companheiro o odeia, ele deve amá-lonidade. O homem manifesta assim seu “ser ainda mais, pois a comunidade dos vivos é aúnico” em sua relação com os demais, e quanto carruagem do esplendor de Deus. Ora, quandomais singular ele for, na verdade, tanto mais há uma fissura na carruagem, é preciso repa-poderá e quererá dar ao próximo. Mas seu doar rá-la; e onde o amor for tão pouco que até osé limitado por aquele que o recebe. E assim é. engates se soltam, devemos amar ainda mais, aQuando alguém despeja água de um grande fim de vencer a imperfeição.recipiente para um cálice, este último estabele- Em certo sentido, o verdadeiro obreiro não in-ce o limite da doação. terfere nos afazeres dos outros, porém faz a suaO homem que vive em seu “ser único” pode, parte com o intuito de ajudar. Quando um ho-em sua mais pura perfeição, redimir os mundos mem quer cantar e não consegue alçar sua voz,caídos, e, quanto mais puro e perfeito ele for, e outro vem para ajudá-lo e começa a cantar,mais intimamente ele saberá que é apenas uma então o primeiro já consegue alçar sua voz. Aíparte, e mais claramente despertará nele a noção está o segredo do auxílio! E não se deve consi-de comunidade entre todos os seres. Aí se en- derar o auxílio uma virtude: na verdade, ele é acontra o mistério da humildade. artéria da existência”.O hassidismo de Ba’al Shem nega todo tipo deabstração, e todo aquele que ama exclusivamen-te a Deus e exclui o homem reduz seu amor eseu deus a uma abstração. O mistério do Amor,assim como o mistério de Deus, encontra-se o fogo de ba'al shem tov 33

Desse modo, vemos como os quatro pilares do sóis e dos corpos celestes em uma infinidadehassidismo formam, por assim dizer, um quadra- de formas, e todos os corpos celestes gravitamdo de construção. ao seu encontro enquanto amadurecem. EmQuanto à lenda do Ba’al Shem, ela pode ser tudo ele é o guardião da alma em crescimento,resumida no mito do “eu e Tu”: do chamado e elevando dos abismos as centelhas decaídas. Eledaquele que chama, do limitado que adentra o morre no silêncio diariamente, e diariamenteinfinito e do infinito que necessita do finito. So- nasce no silêncio; diariamente ele se eleva emente aquele que ingressa no não ser do abso- desce novamente”.luto encontra a mão auxiliadora do Espírito. Da Ao ouvir essas palavras do Ba’al Shem, o co-mesma forma que a semente não brota antes de ração e a alma do rabi Davi encheram-se deabrir-se na terra e por ela ser assimilada, tam- humildade e todo o seu ser transformou-sebém o homem que deseja que uma nova criação em um vale de lágrimas. À vista disso, o Ba’alnasça dentro dele deve esforçar-se para adentrar Shem concluiu: “É assim que podes ajudar aso Nada. Então, Deus desperta nele uma nova centelhas divinas decaídas a se elevarem, rabi.criação. Nesse momento, ele passa a ser uma É assim que estás no Messias e que o Messiasfonte que jamais seca e uma corrente que nunca está em ti”.cessa de fluir. Terminamos este artigo citando o filho de Ba’alDisso tudo se evidencia que o conceito de “Mes- Shem, rabi Hirsch. Como sucessor de seu pai,sias” de Ba’al Shem era diferente do conceito do faltava-lhe autoridade, e assim recolheu-se total-judaísmo ortodoxo, que aguarda ainda a vinda mente em si mesmo. Mas, durante a noite, emdesse Messias, enquanto o Cristo é onipresente e um sonho, perguntou a seu pai: “Como devose encontra em cada homem, como uma cente- servir a Deus?” Diante disso, Ba’al Shem escaloulha em potencial que pode a qualquer momento uma alta montanha e atirou-se no precipício:ressuscitar. “Assim!”, respondeu ele.Ao rabi Davi que, em seu orgulho, acreditava E na vez seguinte, apareceu como uma monta-poder evocar o Messias mediante seu fervor, nha de fogo explodindo em milhares de brasasBa’al Shem Tov disse: “Davi, acreditas que com ardentes, exclamando: “E assim!”tua violência podes apreender o inapreensível?Mesmo que ela penetrasse o céu mais interior Eis como viveu na época do grande Johanne que teu braço vigoroso subjugasse o trono do Wolfgang Goethe, um pouco mais para leste,Messias, acreditas que seria possível segurá-lo outro grande homem, espiritualmente bastan-com firmeza, assim como minha mão agora te inspirado: Israel Ben Eliezer, chamado desegura teu ombro? O Messias flutua acima dos Ba’al Shem Tov. µ34 pentagrama 2/2014

o pensador não conformista Mesmo que já se tenham passado duzentos anos desde o nascimento do pensador Søren Kierkegaard (1813-1855), a cada ano parece crescer o interesse por sua obra. Hoje em dia, seus títulos menos conhecidos já estão disponíveis para um público mais amplo – fato que ele mesmo havia previsto, não por falsa modéstia, mas sim porque sabia que somente seria compreendido bem mais tarde e tinha consciência de que não estava escrevendo para seus contemporâneos.K ierkegaard tinha o hábito de descrever seus a seus livros? Ele não se contenta em trabalhar concidadãos como “exemplares da massa”, febrilmente em diversas obras ao mesmo tempo: pessoas que não podem ser elas mesmas diariamente reúne notas a serem publicadas emporque jamais estão satisfeitas. Ele ataca violen- um jornal. Escreve para o leitor individual - eu etamente as ideias que estão na moda e rompe vocês - mas não facilita a vida desse leitor. Jamaisradicalmente com os usos e costumes de sua se pode identificar quem é que está falando, nemépoca. E, por fim, ele se volta também contra as qual seria seu objetivo - isso porque para ele atradições religiosas da igreja, da qual essas pessoas verdade só pode ser compartilhada indiretamente.fazem parte. Não é por acaso que ele é considerado o precur-São satisfações burguesas sem qualquer espiri- sor do pós-modernismo, que desmonta uma atualidade que já não trazem nenhum traço do uma as grandes interpretações e argumentações.verdadeiro cristianismo espiritual! Mas, por detrás de todas essas digressões detalha-Assim, ao invés de seguir essa massa, Kierkegaard das, ditadas pela boca de seus inúmeros alter egos,decide abandonar as veredas já batidas e seguir oculta-se um imenso chamado: um chamadoseu próprio caminho para se consagrar com todo dirigido aos indivíduos para quem ele escreve. Eleo coração e com toda a alma à prática do cristia- lhes pede que tenham coragem para levar umanismo original. E, esforçando-se para fazer que vida sincera, como ele, e, assim fazendo, usaremessa prática coincida com sua própria vida, ele somente sua bússola interior. Mesmo nos inquie-optou pela solidão da vida de escritor. tando permanentemente e nos confrontando dire-Com essa finalidade, ele chega até a romper a tamente com nós mesmos, jamais nos repreende,promessa de casamento que fizera a sua noiva e nem questiona. Ele nunca nos desvia do que é es-recusa-se a exercer sua função de pastor em uma sencial nos oferecendo generalidades banais – essecidade de interior. essencial que será sempre nosso verdadeiro Self.E, como se tivesse percebido que tinha pouco Ao contrário: ele nos impulsiona muito claramen-tempo de vida (ele morreu aos 42 anos) produz te a sermos autônomos, a existirmos de verdade,em um tempo realmente muito curto uma obra concretamente, sem ficarmos imaginando todobastante volumosa. tipo de coisas sobre nós mesmos – enfim, sem nosMas isso não lhe trouxe o reconhecimento que enganarmos com condições que não fazem parteessa empreitada merecia. Ao contrário: ele se da vida e com raciocínios lógicos; e também semtorna alvo de artigos satíricos da imprensa local e inspirar nos outros e em seus comportamentos,as crianças zombam dele na rua. ideais e decepções, de modo superficial. TudoA quem se dirige este pensador singular e con- isso, para tentar escapar ao peso de nossa própriatroverso, que prefere se esconder por detrás de existência, para não nos sentirmos verdadeira-inúmeros pseudônimos e dá títulos estranhos mente obrigados a viver. o pensador não conformista 35

Mas esse não foi o exemplo que ele deu. primeiro lugar, da vida dos sentidos do “ho-Segundo ele, viver plenamente não pode jamais mem estético”, como o chama Kierkegaard — oacontecer entre quatro paredes seguras, sistemas homem que fica preso aos momentos passageirosfechados de crenças e de fé. A vida verdadeira de felicidade e infelicidade, aos prazeres e aosprecisa de uma atmosfera de liberdade, onde a tormentos que o mundo das experiências lhepessoa possa ousar ir contra a corrente. oferece. Kierkegaard é de opinião que é precisoEle defende a vida da pessoa que aspira a ser o nos elevarmos, a partir de nosso livre arbítrio,que ela, no fundo, já é; da pessoa que pode real- para fora da imediatez deste mundo.mente ser o que quer se tornar. Por outro lado, ele também não acha que uma cul-Uma vida concreta, com todas as suas incer- tura coletiva possa permitir que o “homem ético”tezas, deve ser levada em um mundo feito se liberte, por menos que se prenda a prescriçõesde contradições e conflitos. Não se trata, em morais e religiosas. Essas prescrições não fazem36 pentagrama 2/2014

mais do que impulsioná-lo a se adaptar, sem qual- Com a palavra, Kierkegaardquer espírito crítico, à mediocridade de um mundoincapaz de tranquilizar sua autoconsciência. A maioria das pessoas, quando sofre de umKierkegaard considera, impiedosamente, todas as modo ou de outro desde a mais tenra infância,reflexões intelectuais que dividem tudo em con- terá que carregar uma espécie de cruz, umaceitos lógicos e em asserções contraditórias, com dessas tristes limitações para suas almas. Come-todos os julgamentos referentes a verdadeiro ou çam por ter esperança e acreditar que tudo vaifalso, bom ou mau. melhorar e que Deus vai, certamente, resolverSegundo ele, é impossível descobrirmos a verdade tudo etc. Depois, lenta mas certamente, quandoobjetiva a partir do conhecimento exterior dos fatos não há melhora alguma, eles recorrerão, poucohistóricos ou das ciências naturais. Isso jamais pode- a pouco, à ajuda do eterno, ou seja, aprenderãorá ser de grande ajuda para uma pessoa que deseja a resignar-se e a fortificar-se, ficando satisfeitosperceber a singularidade, impossível de ser repetida, com o eterno.de seu próprio destino e do fazer concreto. O homem que traz em si uma natureza maisE isso Kierkegaard sabia muito bem, pois ele profunda, alguém que, por predestinação divi-mesmo sentiu em sua própria carne. Não é de na alça-se para a eternidade, compreende desdeespantar que ele pudesse esboçar e analisar todas o início que precisa carregar esse sofrimentoessas possibilidades existenciais de modo tão de- durante toda a sua vida, que não pode se atertalhado. Em suas descrições, ele percorre todos os a receber de Deus uma espécie de ajuda tãocaminhos sem saída de onde ele mesmo voltou, e extraordinária quanto paradoxal.que considera definitivamente fechados. Por causade nossos fracassos e de nossa impotência de viver Mas o fato é que, para ele, Deus é sempreplenamente a vida como ela deveria ser vivida, o amor perfeito: ele não pode duvidar disso.somos atingidos inexoravelmente pela dúvida e Então, ele se resigna, e, como o infinito estápor um profundo desespero, nesse ponto no qual próximo dele, encontra a tranquilidade nessatodos os caminhos da vida chegam ao fim. certeza constante e feliz de que Deus é amor.Assim, ele nos coloca diante de nossa única missão: Mas o sofrimento, este, ele precisa aceitar. Fousar viver como indivíduos. Ele nos abandona nosbraços de nosso medo existencial, em um estadoque ele chama de “incerteza objetiva”, em umaposição muito precária, na qual não encontramosproteção em nenhuma parte neste mundo.Ao mesmo tempo, em todos os seus textos, elenos anima a não fugir diante do medo e da incer- o pensador não conformista 37

Em razão do relevo que ele dá à vida concreta, à unidade o Ser. Segundo ele, a Verdade escapava a todas as formasda condição humana e ao livre-arbítrio, Kierkegaard é de pensamento, mas surgia à luz, desde que ela pudesseconsiderado o pai do existencialismo. Esse fato foi reco- se revelar e deixasse de ser mistério no próprio interior danhecido em grandes círculos por figuras como Jean-Paul vida concreta.Sartre (1905-1980) e Albert Camus (1913-1960). Por isso Como na palavra grega a-letheia (que significa literalmente:o existencialismo foi considerado ateu. De acordo com os não estar mais oculto; já não permanecer no esqueci-existencialistas, o homem apenas se torna verdadeiramen- mento de Lete – uma das filhas de Eris, a Discórdia nate livre quando se desfaz de fato de toda e qualquer tutela mitologia grega, que simboliza a personificação do esque-exercida por um Deus que faz o papel de autoridade. O cimento). Entre seus alunos que alcançaram notoriedade,filósofo alemão Martin Heidegger, no entanto, sempre co- podemos nomear, entre outros, Hannah Arendt, delocava a existência em estreita ligação com a essência, com origem judia (1906-1975), célebre por seu relatório que fezteza, mas sim a experimentá-los profundamente. Somente uma profunda tomada de consciência des-E ele mesmo assinala que há riscos de a pessoa se sa situação perigosa poderá nos trazer a interioriza-fechar mais ainda em si mesma e de ceder à ten- ção necessária para agir, e, como ele diz, para vivertação de querer recair nos hábitos do passado, ou seguindo em frente, do desespero à esperança, doperder-se em sonhos e projetos de futuro. Nada medo à confiança, do fechamento à abertura.disso poderá nos ajudar se não conseguirmos O mundo do já conhecido, do lado exterior dasexpressar a nós mesmos, no presente, e à nossa coisas, jamais gerará uma realização desse tipo.própria vida. É aí que reside a única maneira de A ciência não consegue. Nem o mérito social.adquirir o justo conhecimento, que é a sabedoria Nem o engajamento na fé, por mais humanitá-viva e verdadeira e não uma sabedoria fornecida rio que seja. É por essa razão que Kierkegaardpor slogans ou aprendida em livros. A condição nos convida a fazer uma escolha resoluta por nóspara essa sabedoria é o autoconhecimento, a mesmos em sentido absoluto e não pelas coisaspartir do qual conseguiremos analisar tudo o que provisórias. É que, se não formos nós mesmos,é temporal e que coincide conosco, mas também seremos um ser sem espírito — e ele afirma issoo conhecimento do “Outro” que constitui o sem nenhuma ambiguidade.fundamento de nosso Self. Esse “Outro” não faz Por isso, é necessário ousar dar, por si mesmo,parte da temporalidade: ele é transcendente. Ele um salto que não é nada fácil: dar um passo radi-é o Absoluto insondável, que gera o ser concre- cal à frente, para fora do que é conhecido, rumoto. Assim, Kierkegaard nos coloca, finalmente, ao desconhecido absoluto, até o Outro, que édiante do paradoxo de nossa própria vida, que ele completamente diferente de nós, rumo ao abismoconsidera a síntese do tempo e da eternidade, do da existência, ao que não pode ser nem pensadofinito e do infinito. nem compreendido. É ao mesmo tempo a com-38 pentagrama 2/2014

grande alarde no processo de Eichmann (considerado “o Conforme o tempo passa e ele fica cada vez maiscarrasco nazista”), que aconteceu em Israel nos anos 60. absorvido concretamente pela realidade da exis-Lembremos também Hans Jonas (1903-1993) que, em sua tência, quando ele volta-se para si mesmo comobusca espiritual a respeito dos gnósticos de Alexandria, ser finito, quando o tempo e a marcha do tempovivencia grandes semelhanças com o existencialismo, exercem seu poder sobre ele, e quando, apesarem suas leituras sobre “o estado de queda” do homem. de todos os seus esforços, ano após ano, torna-seQuando lemos atentamente a obra de Kierkegaard, ve- cada vez mais difícil continuar a viver unicamen-mos que ele faz distinção entre o homem estético, ético e te com ajuda do eterno, quando, com modéstia,religioso – de forma análoga aos gnósticos, quando falam ele se torna um pouco mais humano, ou percebedo hilíaco (material), do psíquico (homem-alma natural) e o que significa ser humano (pois em sua resigna-do homem pneumático (o homem alma-espírito). ção ele ainda é muito ideal, muito abstrato, esse modo de resignar-se oculta sempre um desespero)preensão mais íntima e intransferível que alguém então, a eventualidade da fé significa, para ele,possa alcançar – e é por isso que essa compreen- que, nesse momento, ele poderá acreditar, emsão não pode ser a soma de todas as experiências virtude do absurdo, que Deus virá em sua ajudafinitas e temporais. na finitude. (Fragmento de seu diário)Nada pode tirar a força desse chamado. Ele nãopode ser abafado por argumentações. Kierke- Tudo isso significa que a maioria das pessoasgaard nos pede claramente para não nos agar- não atinge o estado de fé. Elas vivem duranterarmos ao que é finito, pois o finito sempre muito tempo na imediatez, antes de chegar anos leva a um embotamento demoníaco, como uma reflexão. Depois, elas morrem. As queacontece com todas as cegueiras ideológicas dos são exceção têm um ponto de partida diferente:sistemas totalitários que aprisionam o absoluto elas são dialéticas desde sua juventude; semno circunstancial. imediatismo, elas começam pela dialética, pelaO que nosso filósofo espera é que, a partir do reflexão, e continuam a viver assim duranteviés de todas as nossas limitações temporárias, anos (quase tanto tempo quanto os outros otornemo-nos conscientes da eternidade dentro de fazem na imediatez). Em seguida, tendo ama-nós, do que é espiritual dentro de nós mesmos: durecido, a eventualidade da fé apresenta-se ano pensar e no fazer, no fazer e no não fazer. elas. É que a fé é a imediatez que vem depoisKierkegaard chama a isso de ‘‘resignação’’ — des- da reflexão. Ffazer-se da vida, renunciar a si mesmo. Parado-xalmente, ser autêntico com relação a si mesmoexige o abandono de si mesmo! Mas isso não étudo, pois sempre existirá um movimento duplo, o pensador não conformista 39

Depois que Søren rompeu seunoivado com Regina Olsen,ele transformou sua aliança denoivado em um anel em forma decruz, símbolo da transformaçãode seu amor humano em um amorsuperior, espiritual, e sinal de umcasamento eterno. Ele pôs fim àsua própria felicidade considerandoque não poderia ser um bommarido e que não queria fazer ainfelicidade de Regina, o que lhecausou um sofrimento ainda maior.um retorno daquilo que acabamos de abando- Permanecendo nessa mudança, o ser humanonar. A partir desse processo de desligamento pode entregar-se, confiantemente, àquilo que ul-abrem-se, ao mesmo tempo, as portas que le- trapassa toda transformação. Viver em plenitude evam à plenitude da vida espiritual. Como em tornar-se verdadeiramente si mesmo é ser trans-um renascimento — mas não um nascimento no parente, aberto à vida transcendental.mundo temporal, como o do antigo self, e sim Uma vida desse tipo exige que a pessoa não secomo um novo nascimento no mundo espiritual. deixe atrasar, nem se fechar no momento pas-Porque só poderemos voltar a ser nós mesmos sageiro: ela precisa estar verdadeiramente “noquando abandonarmos a ilusão de sermos indiví- tempo”. Kierkegaard não busca a eternidadeduos autônomos e de que temos autocontrole. No muito longe, mas justamente muito perto, se-entanto, segundo Kierkegaard, isso não implica guindo a linha dos acontecimentos da vida, até oquerer escapar da finitude, em nosso desejo mís- ponto em que eternidade e tempo se encontram.tico ilimitado. Afinal, é precisamente no meio do É nesse ponto, na instantaneidade total, que nosfinito que o infinito precisa realizar-se. encontramos no lugar preciso no qual coincidem40 pentagrama 2/2014

a imobilidade e o movimento. Então, retornamos E, é claro, essas exceções tiveram uma infânciaao estado original de inocência. Isso acontece em e uma juventude muito infelizes.uma segunda imediatez, que não se dobra diante Afinal, de fato, ser reflexivo em uma idadedo pensamento crítico, como se dá com o homem que, por natureza, vive no imediatismo, é uma“estético” no qual espírito ainda está adormecido, forma de profunda melancolia. Mas eles con-mas em uma imediatez de um Self que já ultra- seguem algum retorno. A maioria das pessoaspassou o pensamento: que se tornou espírito – um jamais consegue chegar a ser espírito. É queespírito autônomo. O Self de alguém que ousou todos esses anos infelizes vividos no imediatis-entregar-se ao absoluto incondicionalmente. mo representam apenas, no plano espiritual,Essa é a finalidade do homem que, em completa uma regressão: é por isso que essas pessoase voluntária obediência, tomou para si a cruz de jamais se tornarão espírito. Mas a infância e asua vida concreta. juventude infelizes daqueles que são exceção seE, pelo fato de ter-se tornado ele mesmo, ele desenvolvem até fazê-los alçar-se ao espírito.conquista a tranquilidade no caminho. Não a (Fragmento de seu diário)tranquilidade de uma apatia burguesa, comoKierkegaard observou à sua volta, mas sim atranquilidade de alguém que demonstra sua realgrandeza e já não está tentando, absolutamente,tornar-se o que quer que seja. µBiografia de Søren Kierkegaard 1846 de Johannes de Silentio, A repetição, de Constantin1830/40 estudos filosóficos e teológicos. Constantius, Migalhas filosóficas, de Johannes Clima-1838 seu pai morre, vítima de uma doença contagiosa, e 1849 cus, O conceito de Angústia, de Virgilius Haufniensis, 1850 Prefácios e leituras edificantes, de Nicolaus Notabene. em seguida as crianças vão morrendo umas após as 1855 surge o Post-scriptum final não científico a Migalhas outras, menos ele e um de seus irmãos. filosóficas sob o pseudônimo de J. Climacus. Ele é1840 noivado com Regina Olsen. extremamente atacado em uma série de artigos do1841 defende sua tese O conceito de ironia constantemente jornal Korsaar. referido a Sócrates; ruptura do noivado por razões A doença que leva à morte (ou O desespero humano), inexplicadas; temporada de dois anos em Berlim, de Anti-Climacus. onde segue o curso de Friedrich von Schelling, Prática do cristianismo, de Anti-Climacus. filósofo fortemente influenciado por Jacob Boehme. Sofre um colapso por esgotamento na rua e morre,1843/44 anos nos quais são editados livros importantes, no dia 11 de setembro, após atendimento no hospi- escritos sob diversos pseudônimos, como Ou isso ou tal de Copenhague. aquilo: um fragmento de vida (incluindo O diário de um sedutor), de Victor Emerita, Temor e tremor, o pensador não conformista 41

construir e demolirDesde que o esoterismo ocidental tomou o seu lugar na cultura em busca da au-torrealização, é comum falar-se da necessidade de autotransformação, transmu-tação ou mudança interna. A isso convém ser adicionado o processo que conduzà transfiguração – isto é, à construção de um novo veículo ou de um novo corpopara a consciência. Essa alquimia interior envolve a purificação e limpeza nosistema microcósmico, o qual, no decorrer dos tempos, naufragou, aprisionan-do-se na densidade “física”.As imagens mais concretas de transfor- tação do antigo pelo novo e tudo o que esse mação são provavelmente demolição processo comporta. Essa atitude pode ser reco- e reconstrução: para que se construa nhecida não apenas na arte, mas também, e, so-um novo edifício, um novo templo, é necessá- bretudo, na economia, que vê na estagnação umrio que o antigo seja demolido. A alternativa sinônimo de declínio. O crescimento é sagra-ocidental radical consiste na demolição total, do, tanto na economia quanto na arte, onde oque aniquila todo e qualquer traço de natu- antigo é suplantado pelo moderno, pois o novoreza ou cultura. Nas culturas indiana e árabe, espírito precisa conseguir expressar-se. Tambémexiste igualmente o aspecto religioso do “des- no cristianismo, que é a religião ocidental domi-truidor”, um dos efeitos ardentes do espírito nante, trata-se, nesse caso, de uma vitória – nãodivino capaz de extirpar, erradicar, o que for da vitória do indivíduo, da personalidade ou donecessário. E isto, partindo da ideia de que um ego, mas sim da vitória da alma, no espírito donovo começo só pode ser lançado quando o Cristo. Segundo Paulo, a vitória tragará até mes-antigo for derrubado até os alicerces. É o que, mo a natureza da morte (1 Cor 15:54).hoje em dia, convencionou-se chamar de “des-truição criativa”. Isso significa que, já durante A fórmula “destruir para construir” parece estaro processo de destruição, erige-se uma cons- passando por uma expansão universal. Na ver-trução que corresponde a uma “recriação”. A dade, ela é aplicada a muitos setores no mundocriação da nova construção faz uso imediato da e substitui outras fórmulas no desenvolvimentoenergia liberada durante a destruição. “Come- que se tenta suscitar. Economia autossuficiente,çar do zero” constitui a base mais segura para desenvolvimento sustentável, produtos de cultu-a nova transformação. Note-se, todavia, que a ra orgânica e ecologia são exemplos que podemconstrução deve ser preparada, que ela requer ser citados. Alguns dizem que, se tudo issoplanejamento: caso contrário o espaço previa- fosse levado em conta, seria útil que se tentassemente criado haverá de se tornar uma área frear a perda da biodiversidade. Mas, no fim dasociosa, semelhante à água estagnada de uma contas, é preciso poder lucrar e obter ganhospoça. Nesse caso, começar do zero representa financeiros! A dinâmica da sociedade ocidentaluma porta aberta à adulteração. (e mesmo mundial) é muito intensa para que se estabeleça uma economia autossuficiente.O escopo de “demolir e construir” é renovar Assim, é compreensível que muitos se tornema vida mediante dedicação ativa e dinâmica. O “viciados” na ideia de que, para crescer, é ne-homem ocidental tem predisposição cultural cessário construir. Isto pode ser observado nospara esse tipo de trabalho. Na verdade, o obje- escritórios e edifícios comerciais, e em aindativo da vida, sob todos os aspectos, é a suplan- maior escala, em qualquer atividade econômica.42 pentagrama 2/2014

Outro exemplo são os processos psicológicos e é possível enquanto nos mantivermos apega-de desenvolvimento da consciência, áreas em dos à matéria – como J. Van Rijckenborghque a “indústria” da autoajuda, com seu mer- tão bem o descreveu – insistindo em estarcado de todo tipo de terapias, obtém ganhos colados, agarrados ao crescimento e à prospe-enormes. “Cresço, logo existo” poderia ser o ridade ilimitados. Será que poderemos, en-lema de uma escravidão ao dever de construir. tão, continuar a resolver tudo com a fórmulaNo entanto, uma vez que tudo deve se transfor- “demolir e construir”? A história mostra que,mar no seu oposto, será que o mesmo poderia muitas vezes, a manifestação cultural e espiri-ocorrer com a ideia dominante de crescimento tual que incita o indivíduo a uma construçãoa qualquer custo? Seria plausível imaginar uma interior ocorre com o crescimento econômicocultura onde a ideia do “cresço, logo existo” e a prosperidade. Grandes despertares “es-passasse por uma fase de recessão estrutural? pirituais” puderam ocorrer paralelamente àO momento atual parece sugerir isso! É de se es- prosperidade econômica. Todavia, o tempo daperar, pois o crescimento saudável torna-se cada prosperidade econômica ultrapassou a fase devez mais um crescimento que não tem nada de construção. Na Europa, em particular, atin-natural: é forçado, imposto. giu-se, do ponto de vista demográfico, uma fase de contração. O declínio atual daquelaCRESCIMENTO NOCIVO Quando uma civi- que foi outrora uma civilização pioneira mani-lização se torna incômoda para a natureza, festa-se, sobretudo, numa série ininterrupta defala-se de “crescimento nocivo”. Uma cultura desmascaramentos, revelações e informaçõescorrompida desse modo mostra sinais de deca- chocantes. Escândalos, corrupção e criminali-dência, ao invés de crescimento. E então surge dade – tudo o que antes podia permanecer es-a questão paradoxal para aqueles que perma- condido, vem à luz em praça pública. E aqueleneceram íntegros: podemos, em um momento que é mais observador toma consciência dade recessão e declínio cultural, “lucrar” para confusão e do drástico corte operado pelaa consciência? A alma pode crescer e manter a economia de pilhagem e de maximização doperspectiva de uma vitória? Ela deve primei- lucro no seio dos valores reais. E isso aconteceramente compreender que nenhum progresso em detrimento de tudo. construir e demolir 43

ENCARAR O ESPÍRITO DO MAL É assim que sutis liberados pelo amor. Romper é um desape-aprendemos a conhecer a doença que assedia o gar consciente daquilo que já não é necessário emundo e a humanidade: uma doença que nos que poderia até, segundo a nova visão, levar aconvida – sim, nos força a participar – sob pre- uma estagnação, criando por assim dizer, umatexto de que “um homem deve ganhar a vida barragem à corrente eterna que busca fluir parade uma maneira ou de outra, não é mesmo?” E o microcosmo. Um místico deu este testemu-surge a pergunta: qual é o ganho para a alma que nho: “Assim como a água flui, também flui a luzassim encarou a Medusa? Para a alma que pode vivente”. E, nessa corrente, a alma se conectaobservar o lado selvagem do espírito do mal essa não somente com as pessoas íntegras que podempossibilidade de ganho está certamente presente. ser chamadas de irmãos e irmãs, mas tambémMas ela é frágil, pois, enquanto seres humanos, com a fonte: a fonte que é o sol e a divindadesomos limitados no que se refere ao que podemos interiores. Essa conexão não pode ser rompida,carregar ou suportar. E esse equilíbrio da alma uma vez que a estrutura interior foi edificadaestá consideravelmente ameaçado! É, todavia, essa nesse meio tempo. Esse estado de “redimido”transparência, essa perda ou dissolução dos limites causa uma responsabilidade imediata, pois aem escala mundial, que dá à alma a possibilida- alma, sendo imortal, pode então distinguir entrede de se conectar a outras pessoas íntegras para o benéfico e o pernicioso. Desse modo, a estru-formar uma unidade – ou melhor, para alcançar tura interna permanece intacta. É dessa maneirauma unidade espiritual: precisamente porque as que os rosa-cruzes constroem suas casas, háfronteiras desapareceram. E não se trata aqui de séculos.uma unidade que existe em si, mas uma unidade Uma esfera espiritual é construída como umaassociada ao amor e à compaixão. casa. Nós, os habitantes dessa morada, consegui- mos mantê-la limpa quando não negligenciamosA partir daí já não é necessário realizar cortes o processo de purificação interna e externa.drásticos, nem demolição e construção força- Nada pode ser quebrado enquanto perseverar-das; isso tudo chega a ser prejudicial. Com esse mos na purificação. Então, a corrente de luz nãodiscernimento, a alma pode fazer o trabalho de cessa. A ligação com a unidade foi reestabelecidaconstrutora espiritual, utilizando valores etéricos para sempre. µ44 pentagrama 2/2014

Iluminação,fonte de engajamentoA morte do chefe da ONU, Dag Hammarskjöld, já há 52 anos, ainda está cercada de enigmas. Seudiário, publicado postumamente, é considerado por muitos uma fonte de inspiração espiritual.Na noite de 17 para 18 de setembro de 1961, um avião de pequeno porte caiu perto do aeropor-to Ndola, na Rodésia do Norte (atual Zâmbia).Normalmente, o incidente não teria nenhum impacto internacional, se um de seus passageirosnão fosse Dag Hammarskjöld, o então Secretário-Geral das Nações Unidas.Jeroen van der Zeeuw*A NOITE ESCURA DE UM DIPLOMATAS ua morte foi um choque para a comunida- O diário foi publicado em 1963. Em 1965, surgiu de internacional. O sueco Hammarskjöld a primeira versão holandesa. A Rainha Beatriz era admirado tanto por seus amigos como deu uma cópia de Milestones a Ruud Lubbers empor seus inimigos, em virtude de sua ação deci- 1982, quando ele assumiu o cargo de primeiro-siva como conciliador durante a Guerra Fria em ministro na Holanda. No extremo norte da Sué-diversos locais perigosos do planeta. Ainda não cia, desde 2004, pode-se percorrer “o caminho datotalmente recuperados do choque, alguns amigos peregrinação Dag Hammarskjöld” em seis etapas,e colegas de Hammarskjöld começaram a esvaziar em seis dias. A cada dia, o caminhante para emseu apartamento no Upper East Side de Manhat- uma área de descanso, onde descobre um textotan. Lá, fizeram uma descoberta surpreendente. extraído de Milestones, para meditar sobre ele.Em seu criado‑mudo, encontraram uma camisaembrulhada com várias folhas soltas, no entanto, IRRITAÇÃO A publicação do diário de Hammar-organizadas. Sobre a camisa estava colado um skjöld causou surpresa, mas também irritação. Porrecado endereçado a um amigo. Era como se mais reservado que ele fosse, seus amigos e colegasHammarskjöld previsse que os documentos seriam o conheciam como um homem afetuoso, deencontrados por alguém. Descobriu-se que eram grande profundidade de espírito. Hammarskjöldtextos muito pessoais: uma espécie de diário. Mas gostava de literatura, de poesia, arte, filosofia e danão era um diário de anotações sobre as muitas natureza – e adorava as montanhas da Lapônia.reuniões de Hammarskjöld com os grandes da No entanto, até mesmo seus colaboradores e ami-Terra, porém breves considerações, muitas vezes gos mais próximos ficaram surpresos por ele terprofundamente filosóficas e teológicas, que ofere- dado provas de uma espiritualidade tão profunda.ciam um vislumbre de sua alma. Ele os chamou Em outras pessoas, Milestones provocou irritação,de “Minhas negociações comigo mesmo – e com especialmente nos círculos leigos da Suécia: algunsDeus.” O título em inglês era Milestones (Marcos jornalistas chegaram até a ridicularizá-lo. Afi-miliários: pedras colocadas para marcar o cami- nal, eles não podiam admitir que alguém com anho em regiões inóspitas). carreira de Hammarskjöld fosse ao mesmo tempoPara Hammarskjöld, as notas de seu diário tão profundamente espiritualizado. Eles chegarammarcavam as fases do caminho interior, muitas a insinuar que seu sucesso e seu renome deviamvezes inóspito, que ele trilhou durante sua vida. ter-lhe subido à cabeça. Iluminação, fonte de engajamento 45

光 のトンネ ル – T Ú N E I S DE LUZ Para tudo o que já se foi: Obrigado! Para tudo o que ainda virá: Sim! Dag Hammerskjöld46 pentagrama 2/2014

O momento em que Dag Hammarskjöld disse “Sim!” foi crucial, pois logo em seguida ele se entregou com total convicçãoe abnegação à sua missão de chefe da ONU. Possuidor de profunda experiência espiritual, seu engajamento nos negóciosterrestres tornou-se cada vez mais importante e probatório. E sua iluminação fazia que ele se preocupasse cada vez maiscom o mundo material e rebelde. Eis o caminho: considerar o reino interior como um lugar elevado, uma fortaleza em nossocoração, mantendo a consciência orientada para a luz. É assim que o homem esclarecido se volta para o mundo e se misturaà sociedade – e o faz sem desviar-se de seu próprio caminho, que ele realiza em serviço ao próximo.Mas quem lê Milestones não descobre um ilumi- futuro!” Não é possível saber-se claramente denado fanático, alienado da realidade. Ao contrá- onde partiu a mudança. O próprio Hammarskjöldrio! Hammarskjöld sabe como ninguém associar não é preciso. Mas, nos anos que seguiram 1952,a mística mais elevada ao engajamento social. É muitas vezes ele destacou o momento no qualisso que, desde a primeira publicação até os dias disse: “Sim!”. Em 1961, alguns meses antes dede hoje, ele fascina tantas pessoas quanto à sua sua morte, ele escreveu: “Já não sei quem – ou oespiritualidade. Se em Milestones há uma passa- quê – me fez essa pergunta. Também já não seigem que possa resumir toda a espiritualidade de quando ela foi feita. Do mesmo modo, já não meHammarskjöld, com certeza é esta: “Em nossa lembro de ter dado uma resposta. Mas há poucoépoca, o caminho que conduz à santidade passa tempo eu disse ‘Sim!’ a uma pessoa – ou a umanecessariamente pelas ações”. A espiritualidade de coisa. Desde então, eu soube o que quer dizerHammarskjöld lembra um pouco a de Dietrich ‘não se voltar para o passado’, ‘não se inquietarBonhoeffer, pastor de origem alemã e membro com o futuro’.” O “Sim!” de Hammarskjöld éda Resistência, executado em 1945 pelos nazistas: uma aceitação completa da submissão a Deus, a siambos nasceram em 1905 e cresceram em um mesmo e a seu destino. De acordo com ele, nãomundo cada vez mais leigo e até antirreligioso. se trata de uma conversão repentina. Se o “Sim!”Os dois chegaram à convicção de que, em uma precisou de caminhos subterrâneos para crescer,sociedade como esta, ser espiritualizado não sig- no dia em que, em 1952, ele veio à superfície,nifica retirar-se do mundo. A espiritualidade deles constituiu para ele enorme libertação.é total e essencialmente voltada para “o aqui eagora”. Mas não é sempre que conseguimos asso- RENASCIMENTO Esse sentimento de libertaçãociar a espiritualidade às experiências e responsabi- coincide quase que exatamente com a nomeaçãolidades do cotidiano. No entanto, Hammarskjöld de Hammarskjöld para o posto de Secretário Ge-lutou durante a vida toda para harmonizar esses ral da ONU, no início de 1953. Ele surpreendeudois aspectos. Milestones demonstra claramente seus amigos e inimigos com suas intervençõesque Hammarskjöld sofreu durante décadas com a enérgicas, corajosas e visionárias. E tudo issoinutilidade de suas experiências e com depressão estava relacionado, sem dúvida, com o fato de– e isso apesar do fato de sua vida, aos olhos dos que Hammarskjöld sentia-se renascer espiritual-outros, ser coroada de sucesso! mente. No entanto, sua missão como SecretárioDesde muito jovem, ele já era alto funcionário doMinistério das Finanças e participava do Banco da Hammarskjöld durante um diálogo sobre a crise doSuécia. Por fim, chegou a se tornar ministro. Congo em 1960.Mas suas anotações em Milestones indicam o quan-to sofria e, muito frequentemente, sentia-se vazioe insignificante. Parece que em 1952 Hammar-skjöld estava se sentindo em seu ponto mais bai-xo, atravessando uma profunda crise existencial,uma “noite escura”. De acordo com Milestones,esse ano criou um furacão em seu espírito. Mas,mesmo nas horas em que estava no fundo dopoço, a luz sempre jorrava. Sua primeira anotaçãoem 1953 foi: “Obrigado ao passado e Sim para o Iluminação, fonte de engajamento 47

Abou Souweir (Egito - 1956): no final da crise de Suez, o Secretário Geral inspeciona as tropas do exércitopacífico das Nações Unidas, cuja criação foi ideia de Dag Hammarskjöld.Geral não foi fácil. Ele agia regularmente como único sobrevivente, que morreu pouco depois domediador em situações de crise. E, como ele ge- acidente, que dizia que o avião havia explodidoralmente tomava o partido dos países mais fracos antes de tocar o solo? Por que as autoridades nãoda ONU, bateu de frente muitas vezes com os apresentaram nenhum interesse pelas declaraçõespaíses mais poderosos. de testemunhas oculares, nem pelos boatos de queDag Hammarskjöld recebeu postumamente o Prê- havia um segundo avião que teria voado perto domio Nobel da Paz, em 1961. Ele parecia pressentir avião da ONU exatamente antes do acidente? Oque faleceria de modo não natural e prematuro. que podemos pensar sobre as afirmações de queQuanto a isso, reconhecia uma semelhança entre Hammarskjöld teria um ferimento a bala na cabe-sua vida e a de Jesus de Nazaré, como testemunha ça, sendo que as fotos não mostravam isso?este trecho: “Todos os que tomam seu próprio Nos anos 1960, várias entrevistas sobre a mortedestino nas mãos sabem que a senda da vocação de Hammarskjöld não resolveram o mistério.acaba na cruz – mesmo quando o caminho o leva Recentemente, inúmeras informações inéditasàs aclamações de Genesaré ou pela porta triunfal vieram à tona, e uma comissão examinou se ode Jerusalém”. Mas nem por isso ele sentia medo. processo deveria ser reaberto. Na última sema-O “Sim!” pronunciado o havia libertado de sua na, o relatório dessa comissão foi apresentado aonoite mais tenebrosa. A morte já não tinha ne- Palácio da Paz em Haia, na Holanda, concluindonhum poder sobre ele. Em entrega total a Deus e que deve ter sido feita uma gravação via rádio doà humanidade, a morte tornou-se, nem mais nem tráfego aéreo daquela noite. A comissão pediu àmenos, “a fronteira com o inaudito”. Agência de Segurança Nacional que tornasse pú- blica essa gravação. Até este momento, a agênciaPERGUNTAS SEM RESPOSTAS O avião que trans- não se manifestou. µportava Dag Hammarskjöld e quinze passageiroscaiu no dia 18 de setembro de 1961 pouco depois Esse autor fez, alguns anos atrás, a leitura desses marcos de pedra ede meia-noite. As circunstâncias de sua mortecontinuam nebulosas até hoje. Muitas perguntas essa leitura teve poderoso impacto sobre ele. Sentiu como eram pro-jamais tiveram respostas satisfatórias. Por que osdestroços somente foram encontrados oficialmente fundas as reflexões de Hammarskjöld a respeito de sua luta interior con-depois de quinze horas, sendo que o aeroporto es-tava próximo? Qual o significado da afirmação do sigo mesmo e com Deus, sua experiência sobre o inaudito. E destacou como seu mais elevado ponto inspirador o “Sim!” de D. Hammarskjöld. (Este artigo foi publicado no jornal diário holandês Trouw, no dia 17 de setembro de 2013)48 pentagrama 2/2014


Like this book? You can publish your book online for free in a few minutes!
Create your own flipbook