A defesa de Eckhart pois Ele os torna transparentes. A esse respeito, inespera-No final do interrogatório, foi o irmão Como reconhecemos que Ele começa a damente, um de seus con-Durandus, dominicano também, que, antes trabalhar em nós? Quando nossas prisões frades, Raimondus Bequini, de pedra se racham pela força do anseio tomou a palavra e dirigiu-seda sentença final, deu a palavra ao acusado. pela libertação. Anseio que se intensifica a ele: “Caro irmão Eckhart,Mestre Eckhart começa conforme segue: quando Ele nos faz romper a realidade e permiti-me replicar algo. Eu“Eminências, irmãos, amigos! Esta noite, estabelece relação conosco mediante sua interpreto vosso sonho detive um sonho. Eu vi o Senhor. Ele estava só, ressurreição. O que é antigo e conhecido outra maneira.Vós vistes a vóssob o céu claro, mas estava cercado por se desprende de nós como um muro que mesmo, só, apartado de nós. Ora,muros espessos em uma grande cidade. Esse desmorona. O que é novo deixa-se ver e não é assim!Vós sois dos nossos!sonho pode ser explicado de diversas manei- nos entusiasma. Descobrimos o milagre Mesmo em vosso extravioras. É preciso, no entanto, compreender algo da alma; suas lacunas e sua pobreza dão permaneceis um dos nossos –da vida de cada homem.A única coisa livre lugar a imensa plenitude. Ela está inteira- sim, mesmo no fogo que vosem nós é o Senhor em nós. Hoje ele está mente presente em cada uma das partes anima a defender esse extravio.sempre cercado por muros. Quando nos que preenche com vida sem que, no en- Mas um extravio é um extraviofalava dos muros que queria destruir para tanto, deva se dividir. Assim, vemos como, e deve ser reconhecido. Oreconstruí-los em três dias, ele pensava nos na alma, o único e o múltiplo coincidem. extravio é o destino domuros da fé antiga e suas firmes convicções. Descobrimos, assim, o espaço do uni- homem. Infelizmente, ele éMediante sua morte ele os destruiu, e medi- verso onde o tempo não existe. O tempo frequentemente seu filhoante sua ressurreição ele trouxe uma reno- se manifesta no interior do intemporal. querido. Refletindo sobrevação. A morte que sofreu foi tão completa A seguir, descobrimos que o passado e o isso, considero lamentávelque ele se acreditou abandonado por seu futuro coincidem com o agora. Nada há que, por amor à verdade,pai, e, assim, abandonou o último suporte da senão o eterno presente. Essas visões só possamos chegar ao maiorvelha fortaleza. O que sempre pedi aos que podem ser transmitidas pelo coração e de extravio. Permiti-me atenuarme ouviram era que desconstruíssem os coração a coração. As palavras são inope- o caso.Vós falais dos murosmuros.Agora, a vós também peço que rantes, razão pela qual não presto muita que quereis demolir. Com-derrubeis vossos muros.Talvez não estejais atenção às palavras que pronuncio. A preendei ainda assim queconscientes deles, mas eu, eu os vejo muito única coisa que me importa é tornar os temos necessidade dessesbem. De fato, vossos muros eram os meus. muros transparentes. Somente assim muros. Sem esses muros,Em vão eu os tomei de assalto até o dia em poderemos nos envolver mutuamente no estamos completamenteque vi que atravessar os muros só é possível que é indizível. Compreendo que isso extraviados. Caro amigo, paraapós a morte e a ressurreição. Foi assim que parece contraditório.Tornar transpa- nós, eles não são muros. Sãoo Senhor nos precedeu.Através de muros e rente... como vou explicar isso? É como os pilares de nossa fé! Eles nosportas fechadas ele se aproximou dos seus. se Deus interpelasse os outros por meu protegem do adversário queDepois de sua morte, eles estavam de fato intermédio. O que aqui peço não pode tenta nos extraviar. Somenteabertos a Ele e um belo dia eles o viram, ser exigido, arrancado. O que aqui peço esses muros nos protegem doressuscitado, no meio deles. De que muros somente Deus pode pedir a vós. Dou- extravio. Sem eles, estaríamosfalo? De fato, na vida, cada palavra já é um -me conta disso e, no entanto, vos perdidos.”muro! De toda forma, toda palavra escrita, peço. Neste momento, reflito: tereitodo teorema, toda doutrina. Para a palavra derrubado suficientemente meus Há uma ponte para trans-que corre livremente do coração, da fonte, próprios muros? Não peço a vós que por o abismo?elas são muros. Cada dogma assassina a vida. me reconheçais, do mesmo modo queOs muros atrás dos quais Paulo vivia não peço a Deus que me reconheçais. Há uma ponte entre apareciam impenetráveis; no entanto, no Peço a Ele que vos deixe ver com ocaminho de Damasco, a luz os atravessou. coração Dele. Então, vosso julgamento a igreja exterior e a igrejaPaulo surgiu como um ressuscitado. meu respeito será o Dele, pronunciadoQuando a Luz do Senhor começa a operar por vós e aceito por mim.” interior invisível, aquelaem nós, nossos muros tornam-se Luz, que não tem muros? Entre o pensamento estabelecido e a abertura 49
do coração? O verdadeiro e o aparente minho de liberdade interior encerra um autoridade, mas exclusiva-podem se apresentar lado a lado. Os que grande perigo. Pois, de que liberdade se mente fundamentados nadizem conhecer não conhecem, segundo trata? A liberdade de seguir seu próprio consciência que desperta doLao Tsé. Os rosa-cruzes dizem que “o mais caminho, visando obter mais rapida- coração, o Senhor que resideelevado saber consiste em saber que não mente a iluminação espiritual, liberto das em nosso interior e que quersabemos”. Quanto aos Amigos de Deus, regras e das obrigações? NaTheologia demolir o velho templo doeles falam da “pobreza da alma”. O Deutsch (teologia alemã), que é uma das pensamento e da vontadecoração não é uma biblioteca cheia de obras místicas dos Amigos de Deus mais pessoais para edificar umlivros de sabedoria ou escrituras sagradas. conhecidas, os Irmãos do Livre Espírito novo.O coração mais parece um estábulo ou são fortemente criticados. De muitasestrebaria, em que a Luz que não é deste formas eles se parecem com os Amigos Rupturamundo material e temporal pode nascer a de Deus, apesar de estes últimos os teremcada instante. Os gnósticos deram a essa considerado imitadores. Os Amigos Para o pronunciamento daLuz o nome de Gnosis – pura percepção, de Deus os viam mais voltados para a sentença final, em 1328,radicalmente diferente do conhecimento manutenção da pessoa e consideravam Eckhart deveria ir a Avignon,racional comum. Por meio de um Amigo sua filosofia uma forma de materialismo onde estaria presente o papade Deus como Eckhart, a palavra vivente se espiritual. O autêntico processo espi- em pessoa. No entanto, emexprimiu muitas vezes e pode ser ritual – voltaremos a ele mais adiante, Avignon mesmo (ou talvezreconhecida pela Luz interior. Isso foi num importante sermão de Tauler – era a caminho) Eckhart morreusentido como uma ameaça pela autoridade considerado pelos Amigos de Deus um de maneira completamenteda Igreja institucionalizada, do mesmo processo de transformação radical, objeto inesperada.modo que a atividade de Jesus de vivas reações nos círculos espirituais Assim, ele foi poupado derepresentava uma ameaça para os dou- existentes. O verdadeiro Amigo de Deus sofrer uma tortura infame etores da lei. A característica da atividade devia “manejar sua barca com precaução sua Ordem, de ser injuriada.gnóstica é demolir o velho e construir entre Caríbdis e Cila”. Uma das Apesar de tudo, alguns meseso novo. Em realidade, essa atividade não condições para alcançar a verdadeira mais tarde, a notícia de suapode ser organizada em um sistema, me- liberda-de espiritual interior era o condenação chegou a Colô-diante regras e segundo um ensinamento abandono da vontade própria, em total nia, para grande satisfaçãofixo. O caminho gnóstico – uma vez que conformidade com a palavra bem de seus detratores e tambémse trata de um caminho – é o caminho conhecida de Jesus: “Pai, não a minha para grande consternação dedireto que vai do coração humano ao vontade, mas a tua se cumpra”. seu amigo e aluno Johannescoração divino, e inversamente. Sem Os Amigos de Deus e, mais tarde, os rosa- Tauler. Este, com apenas trintamediador entre os dois, e sobretudo sem cruzes, estavam totalmente voltados para anos, via Eckhart como seuautoridade nem sanções. Há somente um a rendição ao processo de renascimento grande exemplo e sua fonteensinamento ou uma instituição que nos interior, ao crescimento de uma de inspiração. Para os Ami-presta auxílio apenas por certo tempo e consciência diferente, nova. Em sua gos de Deus, era uma pílulaque, desde o princípio, insiste no fato de tentativa de estabelecer uma ligação com a amarga, difícil de engolir. Noque se trata de um caminho interior que Igreja existente, eles utilizaram, sobre essa interior da Igreja começava asó pode ser percorrido em autoridade via espiritual libertadora, imagens e se esboçar um cisma. Exata-própria. Os Amigos de Deus sabiam disso linguagem muito familiares do caminho mente cinquenta anos maismelhor que ninguém. Por isso, o fato de de sofrimento que Jesus teve de atravessar. tarde (ou seja, em 1377),ainda pertencerem à Igreja exterior não Não fizeram isso por estarem apegados aos o Grande Amigo de Deusos impedia de percorrer interiormente eventos da História Sagrada, mas para recebeu a inspiração de ir aoum caminho de liberdade. Essa foi a conclamar as pessoas a trilharem esse encontro do papa Gregório XIcausa de grande resistência da parte das caminho para o interior delas mesmas. em Roma, admoestá-lo ener-autoridades eclesiásticas. Contudo, o ca- Não fizeram isso tomando a Igreja como gicamente e convocá-lo a pro- ceder a uma grande reforma 50 A ilusão
da Igreja. O papa hesitou; finalmente ele No entanto, a nova Jerusalém não senão ousou dar o passo, e quando, um anomais tarde, ele morreu, iniciou-se uma constrói no mundo material: a sequêncialuta obstinada por sua sucessão, o quelevou a um novo e importante cisma. A da História colocaria isso em evidência. Porruptura no interior da Igreja foi profun-da. Ela resultaria na divisão definitiva com volta de 1350, as calamidades oprimiam aa Reforma intentada por Lutero. Não seriamero acaso se essa Reforma tivesse sido Europa. Entre o papa e o rei da Baviera, afortemente influenciada pelos Amigosde Deus, pela obra de Tauler e até pelos tensão era viva; as cidades deviam escolhernovos impulsos dados pelas universida-des de Tübingen e Wittenberg, onde já se de que lado estavam. Um tremor de terraesboçava uma nova época para a Europa.No século XlV, a Igreja ainda era todo- devastou a Basileia e Estrasburgo. Umapoderosa. Os hereges condenados eramquase que imediatamente levados à morte Para ospeste fatal aniquilou quase a me-tade dapública na fogueira. Poucos anos antesda condenação de Eckhart, um de seus população das grandes cidades. A culpamelhores amigos espirituais, a mística Amigos deera imputada aos judeus, mas, paraMarguerite Porretre, foi publicamentesupliciada pelo fogo. A mesma sorte o Grande Amigo de Deus, tudo isso estavacoube a Jacques de Molay, o comandante relacionado com a imensa desordem Deus, oespiritual dos templários. O rei da França, na vida espiritual da Europa. Ele era demuito interessado em seu poder e emsuas riquezas, chegou a convencer o papa importanteopinião que a cultura europeia, tombadae seus cardeais a condenar os templários.Isso ocorreu durante o Concílio de Viena, em grande obscurantismo, estava em seulocalidade próxima a Avignon. No decor- era aponto mais baixo. Em parte alguma restavarer desse Concílio, Eckhart testemunharaos jogos de poder encarniçados entre o Luz no coração dos homens.Todos viviampapa e o rei. O papa perdeu a partida e o submissãona angústia do cataclismo seguinte ou dasoberano pôde confiscar à vontade todasas posses dos templários, que, para seu condenação ao inferno subsequente a estagosto, eram muito ricos e muito po- total àvida. Os homens de poder, tanto osderosos. Isso permitiu ao rei de Françafinanciar suas guerras. Na época, muitos espiritualistas quanto os laicos, deixavam-seeram de opinião que os tempos anunci- consciênciaconduzir por seus próprios interesses eados para o Armagedon haviam chegado.Quem era o anticristo? O papa ou o rei, oprimiam as populações que dependiamou ambos? Nessa época, quando as pes- deles. A situação era desesperadora; nascente,soas suplicavam pela chegada de um novo impunha-se uma mudança urgente.salvador, todos procuravam identificá-loe se indagavam como a nova Jerusalém Reversão radical totalmentepoderia ser construída. Durante essa época,Tauler vivia retirado e cuidava de não fazer das autoridades suas diferente inimigas. No entanto, na Renânia, ele era considerado um dos melhores pregadores. De Colônia à Basileia, ele gozava de grande notoriedade. Em Estrasburgo, no ano de 1350, ele recebeu a visita de um jovem de quinze anos que lhe pediu que se tornasse seu confessor e seu conselheiro. Era um laico que, comoTauler, vinha de uma família de comerciantes burgueses bem abastados, o que lhe possibilitava viajar frequentemente.Tauler não viu nada de mais nele; por outro lado, os olhos do rapaz irradiavam sinceridade e fé profundas. Ele pediu que Tauler fizesse uma prédica sobre a perfeição.Tauler hesitou um momento, depois consentiu, 51
se bem que tivesse alguma dúvida de que seguir, que ele era insensato. Nada restava dor célebre que sabia tão bemesse jovem laico poderia compreender o de seu orgulhoso ego espiritual e, ao final e tão elegantemente formularconteúdo, visto que se tratava de elevada de um sofrido processo e de uma noite suas ideias já não existia.filosofia em Latim: apenas os instruídos terrível, no final do mês de janeiro dedeveriam ser capazes de compreender, 1352, sobreveio-lhe algo como o que Como ireis encontrar onão um jovem sem bagagem intelectual. Paulo vivenciou no caminho de Damasco. Noivo?No entanto, Tauler fez o sermão expli- Desde esse momento, seu mentor lhecando os vinte e quatro pontos do ensina- permitiu pregar novamente. Mas foi um No entanto, uma vez aindamento de Dionísio, o Areopagita (ou fiasco, pois ficou provado que ele já não ele teve a oportunidade dePseudo-Dionísio), uma mística do mais era nem a sombra do grande pregador fazer um sermão. Dessaelevado nível, fruto da filosofia grega e que um dia havia sido tão apreciado. Em- vez, não era para o povo,da doutrina cristã da salvação. Durante bora a igreja estivesse repleta de pessoas mas para suas irmãs leigas.a visita seguinte, Tauler ficou espantado cheias de expectativa para ouvi-lo, ele Dessa prédica de abril dede verificar que o jovem havia sido capaz não conseguiu articular a menor palavra a 1352, seguem algumasnão apenas de compreender, mas tam- partir do púlpito. A única coisa que con- passagens situadas em seubém de resumir ponto por ponto toda a seguiu fazer foi chorar, chorar e chorar. contexto, mas cujaprédica. Em nome dos céus, como isso As lágrimas engolidas ataram sua garganta. essência viva ainda hojeera possível? A estupefação atingiu o ápice Para seus confrades, para as pessoas do diz muito:quando, perguntando ao seu interlocutor povo, ele era um homem acabado: o prega-o que ele pensava, Tauler o ouviu dizer “Caras amigas, há dois anosque tudo que ele pregara deveria serverdade, mas que a intuição do jovemlaico lhe dava a sensação de que isso nãofora realmente vivenciado pelo pregador,que era apenas sabedoria livresca e nãoum conhecimento vivo proveniente dointerior. Influenciado por esse parecer tãoperturbador, a vida de Tauler deu umareviravolta. Algo na opinião do jovemo comoveu tanto e tão profundamente,que os papéis se inverteram.Tauler teve ahumildade de lhe perguntar se, ao invésde ser seu aluno, ele gostaria de ser seumestre. Seguiu-se um processo deconversão interior radical que tomariadois anos. Isso o conduziria finalmente aum irrompimento espiritual. Aconselhadopor seu jovem mestre, o pregador se retiroupara sua cela no monastério e parou de seapresentar em público. Ele gostaria de deixartambém a Igreja, mas seu mestre anônimo oaconselhou a ali permanecer e se libertar,unicamente em seu foro interior, dainstituição de poder que era a Igreja.Todos que o rodeavam pensaram aprincípio que Tauler estivesse doente e, a 52 A ilusão
Em 1366, a cidade de Estrasburgo concedeu a Rulman Merswin e seus amigos, quequeriam fundar uma casa espiritual e lugar de repouso, a Ilha Verde, local em quedois séculos antes um monastério já havia sido estabelecido53
fiz, pela última vez, um sermão aqui. mente me encontrar como noivo, peçoEm virtude dos hábitos, havia falado que percorras uma parte do mesmo ca-em Latim para tratar dos vinte e quatro minho que eu já percorri. Durante trintapontos sobre a via perfeita, de acordo e três anos tive fome e sede, sofri frio,com os escritos de Dionísio, o Areopagita. ultraje e golpes e, certamente, sofri umaTomei a decisão de já não agir assim e de morte atroz por causa de minha noiva –já não falar em Latim senão na presença por grande amor a ela.Também estás dis-de eruditos desejosos de aprofundar posta a tudo abandonar e mesmo a mor-a filosofia. Convosco, falarei em nossa rer por causa do Amado? De todo coraçãolíngua materna e como entre amigos. e por amor? Eu te digo, se tua constânciaVoltemo-nos agora ao nosso interior para e teu amor por mim são suficientementeimplorar a graça de poder ouvir da justa profundos, todo medo desaparecerá.maneira. Escolhi como texto um versículo Ouvindo estas palavras talvez possas com-do evangelho de Mateus: ‘Eis o noivo! Saí preender quantas reservas ainda há emao seu encontro!’ O noivo representa a ti. Estás verdadeiramente pronta a tudoLuz irradiante do Senhor, a Luz em nós; a deixar, pronta a um sim incondicional aonoiva somos nós, é nossa alma. que a vida te traz e te pede, seja doençaCaras amigas, somos chamados a ir total- ou saúde, alegria ou tristeza, doce oumente abertos ao encontro do noivo. Mas ácido, calor ou frio, seco ou úmido? Estástalvez nos falte a visão do justo caminho pronta a abandonar tua vontade própriae talvez todos os caminhos pareçam ser e a obedecer ao teu coração, à profundatão decadentes que perdemos o bom. Luz em ti, ao Amado?’Sim, para muitos dentre nós o caminho O que acontece quando o noivo expe-se tornou tão estranho que simplesmente rimenta a autenticidade do abandonojá não nos sentimos em condição de ir da noiva? Porque ela lhe suplica, ele lheao encontro do noivo, apesar do ardor dá uma bebida particularmente suave ede nosso desejo. É sobre isso que pre- doce. Que efeito tem nela essa bebida?tendo falar. Não é verdade que cada um Ela ainda sofre as tentações e presunçõespode viver como uma noiva? Como ireis que já carregava. E como a noiva começaencontrar vosso noivo, vosso bem-amado a experimentar que o Amado lhe dá issoque deseja estabelecer uma relação con- seriamente e por inclinação benévola,vosco? ela sofre com docilidade por causa dele,Caras amigas, parece-me evidente que, por causa de seu amor. Ela se dirige a elecomo noivas fiéis evitareis tudo o que dizendo: ‘Ah, querido noivo, é bom querepugna o bem-amado – como estar mais tua vontade não seja como a minha. Eu avoltadas a prazeres superficiais, ao modo aceito como tu queres. Tomo esta bebidade agir, às vossas próprias satisfações e que me ofereces por amor. O que issoocupações materiais, do que deveríeis causa à minha pessoa em alegria ou sofri-estar às necessidades razoáveis. Não deveis mento, a isso me rendo por amor a ti.’ostentar vosso sucesso, vossa beleza, vossa Quanto mais a noiva desvela a seriedade eboa conduta e vosso saber. É vantajoso o abandono de seu noivo, mais ele a ama;ser quem sois, modesta e naturalmente. é por amor a ela que ele a deixa sofrerSe, por causa de vosso bem-amado, estais segundo sua natureza para que, com oprontas a deixar o exterior ao qual estais tempo, ela se torne bela e liberta de todosapegadas, então começareis a agradá-lo. E os seus entraves, impurezas e imper-o bem-amado vos dirá: ‘Se queres real- feições. Finalmente, uma vez que tudo 54 A ilusão
isso tenha passado, ele se dirige a ela: ‘Tu lhar com seus ouvintes. Pela força de suaés agora bela, imaculada, minha querida vivência, suas palavras tinham um efeitonoiva, e me és agradável’. Próxima a ele, totalmente diferente do anterior. Alémela sente sua amizade e seu amor inco- disso, coisas surpreendentes se produ-mensuráveis. ziram entre os que o escutavam. Alguns,Para a alegria festiva das núpcias, o Pai tão profundamente tocados pelo que eleeterno do noivo vem e fala à noiva: ‘Bem, expunha, perderam a consciência; umminha doce amiga, minha eleita, é tempo homem caiu – foi dado como morto.de ir ao templo’. O Pai toma pela mão o Outros queriam fazer o pregador se calarnoivo e a noiva, conduz os dois ao tem- – era demais para eles. Devido a todos os Johannes Taulerplo e os une em divino amor. Eles se tor- dramas que marcaram a época, a morte partilhou com seusnam tão íntimos e tão decididos em sua era familiar a todos. As pessoas viviam ouvintes ounião que nem no tempo nem na eter- constantemente angustiadas; a vida co- que elenidade poderão ser separados. Uma vez tidiana era feita de incertezas. Tudo isso mesmo havia vividoassim unidos por esse casamento divino, causava em muitos uma grande aberturao noivo diz: ‘Pai eterno muito querido, para trilhar de modo saudável caminhosagora quem será, para este casamento, que pudessem tocar sua essência pro-nosso padrinho?’ E o Pai responde: ‘É funda.preciso que seja o Espírito Santo. Ele vem e Durante os nove anos em que ainda pre-verte na noiva o amor divino gou,Tauler confrontou seus ouvintes comtransbordante, de modo que ela é esse caminho de interiorização absoluta.transportada e se torna ébria de amor no Seu discurso parecia concordar exatamen-mais profundo de si mesma, de uma te com as linhas diretrizes da Igreja; suasebriedade que a faz esquecer, na asas, no entanto, se estendiam muito maistemporalidade e na intem-poralidade, longe. Johannes Tauler elevou-se muitotanto a si mesma quanto as outras além de tudo o que era objeto de sua fécriaturas’. anterior.Caras amigas, quem é convidado a talcasamento nobre e espiritual e a ele com- Servos ou amigos?parece realmente, experimenta e prova a Duzentos e cinquenta anos mais tarde,autêntica doçura plena de graça do Espírito os rosa-cruzes exprimiram a mesmaSanto.” concepção em uma fórmula tríplice: “DeEsse foi, portanto, o primeiro sermão do Deus nascemos – em Jesus (o Amado)Tauler “renascido”, após um processo que morremos – pelo Espírito Santo revive-havia durado dois anos. Para uma época mos”. Renascemos em homens novos,diferente, uma linguagem diferente. Por diferentes. Essencialmente, havia umaum lado, ele se harmonizava com a ligação entre os Amigos de Deus e ostradição existente, por outro, era a ruptura rosa-cruzes. A forma, a expressão, eramrenovadora. Mas a essência era a fé adaptadas ao lugar e ao tempo, mas aprofunda na necessidade e na possibili- essência que aí se manifestava era atem-dade de uma total transformação interior. poral e ilimitada. Os que eram sensíveisO Tauler anterior já conhecia intelectual- podiam reconhecê-la nas diversas formasmente a perfeição, mas então, pela traves- de expressão. A Luz em nós reconhece asia de um processo radical, ele estava todo Luz, seja qual for a maneira ela se expresse.impregnado do que havia aprendido em Ela é transcendental e ultrapassa todos osteoria. Assim, ele pôde realmente parti- nomes, todas as formas. As palavras 55
pertencem ao domínio do mental, do ser um ideal a perseguir ou um programa Nascemosconhecido; elas não podem conter a es- organizado a executar. de Deus emsência.Tauler falava do “Sem fundo” de Antes de prosseguir, vejamos um pouco um presenteonde surgiam e onde desapareciam todas o que aconteceu com o mestre de Tauler, vivente – oas experiências do ego e do mundo, mas que, segundo Steiner, foi o amigo que é umque, em si, já não faz parte do domínio e precursor de Cristão Rosa-Cruz, que, mistérioda experiência, já não é um ego, nem o como este, reencarnava regularmente para absolutomundo, mas Deus apenas. religar a sorte da Europa e dos mistériosNascemos de Deus, mas não no mundo ocidentais aos novos impulsos fortementedo espaço-tempo; nascemos num presen- impressos na profunda obscuridade doste vivo onde tudo que é exprime o Único. tempos de então.Vejamos se a inspiraçãoO Espírito vivente nos faz provar esse que emanava dos Amigos de Deus e dosmistério mesmo que nosso pensamento rosa-cruzes conduziu a uma épocanão o possa conter, não o possa reter. verdadeiramente nova ou somente a umaComo diziam os rosa-cruzes: “O pensa- imitação, a uma demonstração espiritualmento mais elevado é não pensar; o mais ilusória.elevado saber é nada saber”.Tauler deviaainda se justificar, pois ele já não consi- Conta-se que, no ano de 1361, Tauler sederava os crentes servos ou escravos de preparava para sua morte e que, assimDeus, mas amigos. Um de seus confrades, fazendo, foi cuidado em uma cabanafurioso, perguntou-lhe: “Como ousais próxima ao monastério em Colônia, ci-colocar-vos no mesmo patamar que o dade onde morava também sua irmã. ParaSenhor, o Pai, nosso criador?! Isso não é ali ele convidou o Amigo de Deus para apura heresia, orgulho?” última despedida. Durante esse encontro, ele verificou uma vez mais como a vidaRumo a uma nova era de Tauler havia se transformado radi- calmente a ponto de este não querer deO novo homem que despertou – morto modo algum reivindicar a paternidade deem Jesus segundo a velha natureza, renas- todos os sermões que havia pronunciado.cido na força do Espírito Santo – sabe Deus mesmo falara através dele; isso eleinteriormente que ele já não é o servo, sentia muito claramente; era o mesmomas o amigo de Deus, que se tornou um que acontecia com o Amigo de Deus.servidor do mundo e da humanidade. Toda a sua vida havia sido inspirada, eraEssa compreensão fez a Igreja tradicional obra de Deus e não sua. Sua contribuiçãoperder definitivamente seu poder sobre a limitava-se ao serviço em auto-esqueci-pessoa, sobre o amigo de Deus. Assim, há mento.sete séculos, começou um novo períodode liberdade, igualdade e fraternidade. No Sem utopiainício, na consciência de alguns, mas aseguir, quatro séculos mais tarde, também A intervenção secreta do Amigo de Deusna sociedade. No entanto, ainda havia mostra que, quando é dito de maneiramuito a ser feito antes que essa cristã que Deus ama a humanidade de talinspiração penetrasse concretamente modo que faz seu Espírito se tornar Filhoem todos os domínios da vida social e em nós, não se trata de um fato únicocotidiana. Além do mais, trata-se de um que data de dois mil ou de setecentosdesenvolvimento que deve se produzir anos. Isso pode se realizar nesta vida, paracomo por si mesmo; não deve cada um de nós. A prova viva é que isso 56 A ilusão
acontece com alguns, como esse Amigo cristã, pois vivia no início do cristianismo.de Deus. Ele escrevia porque julgava necessárioO que esse Amigo de Deus fala a respeito diante da situação. O amor de Deus ode si mesmo? Aprendemos um pouco impelia a escrever, mas de modo algum elenum livreto oferecido aos irmãos joani- pensava em si mesmo; apenas a glória dotas do monastério que ele fundou com Único lhe importava. Estou convencido dea ajuda de seu amigo Rulman Merswin. que, se em seu tempo ele tivesse sidoEsse livrinho descreve a vida de cinco questionado sobre suas intenções – como oAmigos de Deus que se retiraram da vida foi João Batista –, teria respondido comocotidiana, acompanhados de um este último: ‘Não sou digno de desatar acozinheiro. Eram eles: seu amigo de correia de suas sandálias’. Caros amigos,juventude, que havia sido um cavaleiro neste momento, tenho confiança nacasado; um juiz que ele, após uma humanidade. Por mais terrível que seja ainspiração, fez sair de Praga; um sobrinho, situação atual, ainda tenho confiança nela.cônego, versado nas leis e nas finanças; por Se soubésseis tudo de antemão e mefim, outro cavaleiro. Era uma companhia conhecêsseis, eu nada escreveria sobreheterogênea de homens que haviam mim. Sabei-o, também, que não é porconhecido bem a vida mundana, mas que minha iniciativa que vos escrevo.em certo momento se sentiram chamados Considerai estas palavras como vindas dea uma vida absolutamente diferente. Para Deus, de onde procede todo o bem. E umaterminar, ele diz algo a seu respeito, sem vez que deve ser assim, direi agora algose prender a dados concretos, como já sobre mim.fizera em outro livrinho no qual falava davida que levara com seu amigo de Não me é possível dizer maisjuventude até sua conversão. Tudo que contei sobre a vida de meus“Caríssimos irmãos, agora que falei irmãos e o que tiveram de sofrer também euabundantemente da vida de meus irmãos, vivi, com a ajuda de Deus.Além do mais,eu não vos culparia se quisésseis ouvir pela graça do Espírito Santo, tambémtudo sobre mim. Estou disposto a fazê-lo, conheci todas as alegrias supra-naturais quemas o mais brevemente possível, pois eles conheceram. No início do cristianismo,não me agrada pensar em mim. Espe- inspirado pelo amor de Deus, Paulo escreviacialmente porque conheço pessoas que para ajudar a jovem comunidade:‘Conheçoforam atingidas pelas cartas de Paulo um homem em Cristo que, há catorze anos,acreditando que ele disse muito sobre si foi arrebatado até ao terceiro céu (se noe sobre tudo que teve de sofrer. Meus corpo ou fora do corpo, não sei, Deus ocaros amigos, nesta época desastrosa, sabe)’. Caros irmãos, devo escrever devemos tantas pessoas que se extraviaram e maneira similar sobre a graça, o que talvezvivem em total desordem e que, no possa importunar-vos. No entanto, creioentanto, se apresentam como virtuosas, que, se Paulo ainda estivesse entre nós, eubem-sucedidas ou piedosas. Também eu não me creria digno de tocar suas sandálias.vos peço que vos protejais do mundo, O modo como isso ocorre eu vos descreverei,pois em muitos aspectos a situação é com a permissão de Deus e por amor a ele.perigosa. Vede, meus irmãos, somos ‘Conheço um homem em Cristo que, háatingidos pelas palavras de Paulo, trinta anos, foi arrebatado até ao terceiroque era uma Luz da Igreja e a própria céu (se no corpo ou fora do corpo, nãomodéstia, e esquecemos que ele sei, Deus o sabe)’. Se vos digo que eleescrevia a seus irmãos somente pela causa subiu ao terceiro céu sem saber como, mas com a permissão de Deus, confirmo 57
que é a verdade. Durante essa elevação descobrirá onde minha vida está descrita.assisti a prodígios supranaturais e fui Se isso acontecer, ele tem minha permis-preenchido de uma alegria que ultrapassa são para desvelar minha existência e a detodo entendimento, à qual as palavras não meus confrades. Caberá a ele decidir sefazem justiça. Essa é a razão pela qual pude quer ou não revelar meu nome. Se acon-dizer com Paulo: escutai, é bom estar aqui. tecesse de sermos dispersos pelos cincoNão me é possível dizer mais. Se há grandes cantos da cristandade, penso que eu iriaalegrias no reino de Deus, nao sei, somente em vossa direção”.Deus o sabe. No entanto penso que se eudevesse possuir todo o conhecimento e as O monastério da Ilha Verde em Estras-experiências dos homens que já viveram,isso não equivaleria no mundo à menor burgodas alegrias que provei durante esseêxtase. A duração da imensa alegria Rulman Merswin, o amigo mais íntimoexperimentada foi ao mesmo tempo do Amigo de Deus, morreu em 1382 emmuito longa e muito curta. seu monastério da Ilha Verde1 em Estras-Irmãos bem-amados, durante esse burgo. Quando todas as suas coisas foramarrebatamento maravilhoso foi-me dado arrumadas, foram descobertas aindacompreeender que eu teria ainda muitas cartas do Grande Amigo de Deus.imensos sofrimentos a vivenciar durante Em nenhuma delas eram mencionadosminha vida, em minha natureza humana. nem seu nome, nem o lugar de seu nas-Isso não me entristeceu de modo algum cimento, nem o local onde se encontravae não me custou nada. Ao contrário, eu o eremitério na floresta. Como em umme rejubilei, pois meu arrebatamento quebra-cabeças cuidadosamente com-me fez ainda compreender que Deus não posto, encontravam-se ali algumas indi-dá ao homem provações além de sua cações sumárias. Por exemplo: dois dosforça se ele está disposto a suportá-las. irmãos chamavam-se João, como o juizDeus impõe essa pena sobretudo aos seus de Praga, que primeiro tivera o nome demelhores amigos, dos quais conhece a Abraão, mas que, quando se converteu aomaturidade que permite suportar o sofri- cristianismo, adotou o nome de João.mento por amor. Dois outros irmãos se chamavam Pedro eDe sua parte, Ele se dispõe a ajudar seus o quinto, o cavaleiro Lutold. O cozinhei-amigos a suportar a pesada carga do lado ro era Konrad, e o intendente, que tinhaque ela é mais pesada. também o ofício de mensageiro,Caríssimos amigos, temo, no entanto, Ruprecht. Portanto, somente osha-ver dito muito sobre mim mesmo. prenomes eram revelados. O eremitérioComo não pensei que teria de revelar devia se situar a cerca de vinte quilômetrostanto a meu respeito, prefiro que tudo de uma cidade de certa importânciaisso não seja levado a conhecimento localizada às margens de um rio. Ossenão após minha morte”. irmãos haviam sido guiados por um cãoO epílogo desse livrinho dá ainda a que os precedia e que, em determinadoseguinte indicação: “Sabei, caros irmãos, momento, parou e arranhou o solo.que se for a vontade de Deus que meu Durante os anos que seguiram à morteamigo secreto (Rulman Merswin) fique do fundador da Fraternidade Joanita, osmais tempo que eu neste mundo, então irmãos buscaram em vão o local ondesabereis tudo sobre minha vida, pois ele esperavam encontrar o corpo do Grande Amigo de Deus. Eles procuraram sobre- tudo na Suíça. Dirigindo-se a um círculo 58 A ilusão
restrito, Rudolf Steiner, absolutamenteconvencido de sua existência histórica,disse que quem pudesse sentir quem eleera, qual era seu papel e seu significado,compreenderia por que é importanteque muitas coisas concernentes à suavida permaneçam secretas até que venhao tempo em que isso possa ser reveladoabertamente.Estamos no século XXI: será que isso jápode ser desvelado? E com que objetivo?Será preferível considerar que issopertence ao passado e considerar que, nomelhor dos casos, trata-se apenas de umabela metáfora?Haveria, ao contrário, um valor agregadoem saber mais sobre esse Grande Amigode Deus e sua história? Esse é o ponto devista que partilhamos. Pensamos que fazsentido descobrir o lado histórico daexistência do Grosse Gottesfreund vonOberland. Mesmo que a verdade nãodependa do mundo, pode fazer grandediferença saber se o que não é destemundo se manifestou de fato aqui comodemonstração concreta, comotestemunho da manifestação doAltíssimo. Porque assim se mostra apossibilidade de realizar na matéria seuverdadeiro ser. De fato, o novo homemque se aproxima não é uma utopia, nemuma ideologia, nem pura imaginação – elepode se tornar uma realidade vivente. 59
O tango dos opostos É difícil imaginar que o campo ao qual nós, humanos, pertencemos seja muito maior doque a cidade, o país, o continente ou a Terra. É um campo que se estende por milhões de anos-luz e inclui tanto esferas visíveis como invisíveis, que se move continuamente pormeio de forças perceptíveis e imperceptíveis. É um campo de vida irradiado pelo divino, no qual podem se desenvolver seres humanos como nós, que estamos mais ou menos inconscientes dessa ligação. DDe vez em quando, como em um salão de ou até leves como uma pluma. Por um E, lentamente, sobrevém otango argentino, vivificamos o campo ne- momento, tudo é magnífico; em seguida, cansaço. Nossos movimentosbuloso e quente.Timbres vertiginosos de tudo é penoso; mas esse contraste é algo tornam-se menos vibrantes,bandoneons, violinos e pianos instigam os que reprimimos. E, nessa nossa entrega a dança mais lânguida. Epares a um tango arrebatador, mobiliza- total ao tango, de repente salta à vista quando, relutantes e desani-dos pela energia que ondula pelo espaço a parede do salão. A música altera-se e, mados, começamos deter-apertado. Do alto do palco, acima da pista para nosso espanto, nosso partner toma a minado tango, surge em nósde tango, os músicos tocam suas peças iniciativa. uma pergunta:com todo fervor. Ora com exaltação, ora Impotentes, somos rechaçados. Nossacom moderação, com ternura ou com alegria parece incompleta, mas “Para que serve tudo isso?”ímpeto, dirigem com maestria os dança- também nosso pesar não é absoluto e,rinos pelo salão. depois de alguns tímidos passos para Então, subitamente, alarga-se aNós também estamos dançando ali. trás, conseguimos inverter essa visão.Você ainda dança, mas,Giramos e rodopiamos, um ao redor do situação, com um impulso charmoso. E num relance, entende a peçaoutro, ora bem próximos, ora separados, o bandoneon rejubila-se. lastimosa que continua sendoexpressivos ou pensativos. Em nenhum E continuamos dançando. Temos de nos tocada até que se per-gunta omomento perdemos o parceiro de vista; movimentar! Não sabemos como chega- que, afinal, se passa noem nenhum momento largamos um ao mos a isso. A noite segue seu curso e cada exterior do salão de tango.outro, pois somos Um. tango já foi dançado um sem número de Será que existe um exterior?Dançamos o tango do bem e do mal, do vezes. E nós sentimos os ininterruptos Será que podemos escaparamor e do ódio, do dia e da noite: dança- contrastes em cada fibra, cada apoteose, dessa dança que nos prendeumos o tango dos opostos – muito sérios cada ponto mais baixo, cada alegria. por um tempo infinitamente longo? 60 A ilusão
O MUNDO COMO UM FESTIVAL DE DANÇA? 61
Uma nova dança que provoca em você uma mu-dança em cada átomo, que o conduz pelo caminhoda estrela que irradia, ali, perto da fonte de seu serE, de repente, você está fora. Olha emtorno e contempla milhões de estrelasna clara noite de verão. Você é tomadopor um sentimento de infinitude e,por um instante, vivencia o sensacionalfenômeno de contemplar o que não temlimites. E, então, você se coloca a clás-sica questão: existe uma fronteira nesseinfinito? Será que tudo o que é visível élimitado? O visível e o invisível, a maisdura rocha e a mais refinada emoção –todo esse Universo, o ser humano e osdeuses que o criaram?Se fosse assim, viveríamos todos em umespaço limitado como em nosso salãode tango, entre cujas paredes nascemos,somos guiados, chegamos à maturidadee morremos. Entre suas paredes, dança-mos nossos tangos dos opostos. E comisso, acreditamos estar despertos, mas éuma embriaguez. Deixamo-nos influen-ciar o tempo todo, dependurados comomarionetes em fios de forças que nãoconhecemos. Por estarmos continua-mente dançando, não vemos que existeum nível de alerta no qual estamos, defato, em condição de escolher. Quempercebe apenas uma centelhazinha dessedespertar já não consegue dançar comos outros e, aos olhos destes, sai doconvencional.Com a dança, da qual você mesmo tomaparte, o grupo inteiro deixa-se levar acomportamentos que, a uma pessoaconsciente, verdadeiramente desperta, nãoocorreria praticar.Você ainda quercontinuar dançando? O que a dança fazcom você quando não consegue conter-se? 62 O tango dos opostos
O mesmo que acontece com o dançarino, lá fora, com tudo isso lhe passando pela E, assim, com vocêque vai se abatendo e continua mesmo cabeça. Então, o raio de uma estrela protegendo a si mesmo,assim, que perde seu entusiasmo ardente incide em seus olhos, cintila e põe todo envolvido pela nova melodiae passa a se entregar à rotina? o Universo interior em movimento... E é e a estrela no centro,E o campo de vida, ah... esse campo no sua vez! Você está na fila, talvez como finalmente seu maisqual vivemos cuida de nós como uma o ser humano de número dez mil. A profundo anseio é realizado.mãe! Somos feitos com esses elementos e estrela põe o núcleo em movimento, ou Quando, familiarizado comnos alimentamos de frutos de regiões pode ser que o núcleo esteja atraindo o cenário de fora, vocêvisíveis e invisíveis, de matéria e de força a luz dessa estrela, quem sabe... Mas, olha atentamente em volta,de radiação. Assim nos parece. E, quando vindos do campo original, penetra um percebe que existem muitosnos entregamos ao repouso final, a maté- impulso atrás do outro, vem sugestão como você. Uns estão dandoria dissolve-se de novo em seus elemen- após sugestão. Unidade, liberdade, amor, seus primeiros giros aindatos constitutivos, reorganizando-se para valores eternos sem forças antagônicas, titubeantes; outros se movem afeição, benevolência, força, criatividade com desembaraço, no ritmo,uma nova manifestação. são impulsos como uma nova melodia. E em uma pista de dança cós-Por isso é digno de nota que seu anseio você aninha esses impulsos! Enquanto mica.de ampliar o alcance de seu campo de seus predecessores entravam intei-vida não diminui. Você anseia por uni- ramente na dança, você está aí parado, edade, em um mundo de dualidade; por seu sistema cansou-se dessa movimenta-liberdade, em um mundo de limites; e, ção contínua e sem sentido. A melodia dopor eternidade, em um mundo transitó- campo original vai penetrando cada vezrio. Você até vai ao encalço da imorta- mais em você. Primeiro era quase inaudí-lidade. Como acontece isso? Nós, que vel e, logo depois, regida pela orquestra,somos feitos inteiramente dos elementos se torna gradativamente mais nítida, maisde um campo de vida, como podemos expressiva, até que, chega uma hora emansiar por algo que não existe absoluta- que ela já não pode ser ignorada; e começamente nesse campo? É estranho que não uma nova dança que provoca em você umalevantemos essa questão com frequência. mudança, até em cada átomo, que oEnquanto conceitos como perfeição, conduz pelo caminho da estrela que irradiaamor incondicional, eternidade estão bem ali, perto da fonte de seu ser.presentes em nossa linguagem, esses Mesmo que você esteja esgotado defenômenos não ocorrem no mundo a cansaço, a única coisa a fazer é acompa-nosso redor. E o motivo é simplesmente nhar a música, aprendendo os passosque, no mais profundo de nosso ser, dessa melodia divina. Ao entrar na novaexiste algo que fala a partir de um espaço dança, você suspira pela mais purasem limites, fora de nosso imaginado nostalgia, pela luz da estrela que o guia.salão de tango, a partir do campo pri- Resolve já não lutar contra as forças destamordial: algo que é a vida original. natureza, já não se precipitar de formaAntes, ao entrar no espaço frenético do destrutiva sobre mais um pensamento emsalão de tango, você precisou deixar para pares opostos que, depois, inevita-trás toda e qualquer divindade. Nesse velmente, vai tornar-se seu parceirosalão, quem rege são as leis dos passos de de dança. Sejam quais forem asdança do tango. Tudo aí é parte do circunstâncias cambiantes em que sepassado, para que o não divino pereça encontre, você deixa que o núcleoum dia por si mesmo. determine o movimento.Precisamente neste momento você está 63
crônicaPara resistir, somos obrigadosa trabalhar em nós mesmosQue fenômeno incrível é a resistência! Quem não co- Rijckenborgh explica o conceito de wu-wei , o não agir,nhece seu peso, seus punhos e suas arestas? Quem não como uma tentativa de neutralizar tanto quanto possívelconhece a luta contra ela, a contra-resistência? A vida e as enormes diferenças entre as duas expressões da cons-o mundo estão sempre fazendo nascer a resistência. ciência para deixar prevalecer as forças de uma ordem superior, que possam provocar o desapego.Aresistência provoca fricção, atritos que nos fazem vivenciar experiências – afinal, não é por isso que O sismógrafo das minhas resistências me faz ver clara- estamos no mundo? Sem ela, não faríamos ne- mente onde eu devo trabalhar em mim mesmo. Estou exa-nhum esforço para agir e avançar. Às vezes dizemos: “Se tamente no lugar onde devo estar. “Onde está o caminho?meu fardo desaparecesse, a vida – ou a senda – haveria de Em que ponto estou? Não existe outro caminho?”se abrir para mim\". Um canal de entrada para esse trabalho de avaliação daPelo contrário! Essa resistência é justamente a vida e o resistência consiste em examinar o valor que atribuímoscaminho. Por isso, podemos vê-la como um fenômeno a um acontecimento, a uma situação ou, ainda, a umamuito especial. Para o aluno, a resistência ou a oposição pessoa.representa um instrumento extremamente útil. Logo que acabamos de analisar a situação e interpretamos seu significado, o que resta é somente a verdade, nua eA Internet nos mostra que há atualmente sessenta e cinco crua: as coisas do jeito que são, e mais nada. A vida é sim-conflitos armados e guerras em andamento no mundo. ples, nós é que a complicamos.Diante disso, a enorme oposição que enfrentamos – tantocomo rosa-cruzes quanto como cidadãos do mundo – é Nós não vemos as coisas do jeito que são: nós as colo-ao mesmo tempo uma motivação, que nos impulsiona apercorrer a senda. A oposição à violência, à grosseria e a Quem não aceita a realidade passatodos os excessos em livros ou à televisão, também é um por turbulências na cabeça e noconvite para fazermos uma escolha: para dizermos catego- coração e perde muita energia.ricamente “não!” a tudo isso em nossa vida.A oposição ao comportamento das pessoas ao meu redor rimos com nossas tintas, com base naquilo que somos. Ame oferece um espelho, onde vejo o reflexo das minhas resistência é, por excelência, uma força do ego, que querpróprias atitudes indecentes e deselegantes: se não fosse mudar as coisas para que sejam do nosso gosto.assim, certamente eu não acharia essa situação nem umpouco inconveniente. O próprio sentido da resistência, da A respeito disso, Buda diz: “Onde não há ego não há re-oposição, é o de me fazer perceber que há alguma coisa sistência; onde não há resistência não há sofrimento\".a ser trabalhada em mim. É aí que está uma lição bem Isso não quer dizer que não iremos sentir dificuldades naembalada, que levará o tempo que for necessário para vida – Buda afirma que, quando abrimos um caminhoser aprendida. Na verdade, a raiz da oposição é o fato de através do labirinto da vida, podemos, ao mesmo tempo,que não quero aceitar a realidade, não quero estar onde trilhar a senda, entregando a vitória à quietude do coração.estou nem ser quem sou. A não aceitação dessa realidadecusta muita energia e cria muitas turbulências no coraçãoe na cabeça. É uma luta que jamais vou conseguir ganhar.Quando tento lutar contra minha própria resistência, sóconsigo reforçá-la – colocar minha energia nisso só vaifazer que ela aumente. No livroA Gnosis Chinesa , J. van64 Crônica
Edição Redação Coordenação, tradução e revisão Sede em PortugalRozekruis Pers Pentagram Adriana Ponte, Emanuel Saraiva, Rossana Cilento, Praça Anónio Sardinha, 3A (Penha de Maartensdijkseweg 1 Amana da Matta, Carlos Gomes, José de Jesus, França)Redação Final NL-3723 MC Bilthoven, Países Baixos Marcia Moraes, Mariana Limoeiro, Marlene 1170-022 LisboaPeter Huijs e-mail: [email protected] Tuacek, Mercês Rocha, Rafael Albert, Ellika [email protected] Trindade, Fernando Leite, João Batista Ponte, [email protected]ção Edição brasileira Lino Meyer, Luis Alfredo Pinheiro, MarcílioKees Bode, Wendelijn van den Brul, Arwen Pentagrama Publicações Mendonça e Urs Schmid A revista Pentagrama é publicada quatroGerrits, Hugo van Hooreweeghe, Peter Huijs, www.pentagrama.org.br vezes por ano em alemão, inglês,Frans Spakman, Anneke Stokman-Griever, Lex Diagramação, capa e interior espanhol, francês, húngaro, holandês,van den Brul Publicação digital Bruna Andrade português, búlgaro, finlandês, grego, Acesso gratuito italiano, polonês, russo, eslovaco, sueco eDiagramação Lectorium Rosicrucianum tcheco.Studio Ivar Hamelink Responsável pela Edição Brasileira Sede no Brasil Adriana Ponte Rua Sebastião Carneiro, 215, São Paulo - SP © Stichting Rozekruis PersSecretaria Tel. & fax: (11) 3208-8682 Proibida qualquer reprodução semKees Bode, Anneke Stokman - Griever www.rosacruzaurea.org.br autorização prévia por escrito [email protected] ISSN 1677-2253
• A sede da alma• Saúde• O sacrifício das Palavras• Sobre o indizívelSimpósio ›A impostura: Como o ouro, a prata e a moeda distorcem os valoresessenciais e não trabalham pelo homem, mas contra ele A ilusão da humanidade Uma terra perene... será que ainda é possível?• Limites de um processo• A Senda Real• O Grande Amigo de Deus do País do Alto• O tango dos opostos
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