REVISTA JURÍDICA investigações presididas por Delegados de Polícia. Em igual sentido, Nucci afirma (2014, p. 1578): Um relevantíssimo aspecto não vislumbrado por esta resolução são os controles interno e externo que de- O Ministério Público e a investigação criminal: veriam margear este procedimento para evitar possí- embora seja tema polêmico, comportando várias veis excessos por parte dos responsáveis por tais in- visões a respeito, cremos inviável que o promotor vestigações. Segundo Cabral e Souza (2013), a priori, a de justiça (ou procurador da República), titular Constituição de 1988 inaugura um novo momento de da ação penal, assuma, sozinho, sem prestar nosso Estado, qual seja, o Estado Democrático de Di- contas a ninguém e sem qualquer fiscalização, reito. Neste cenário, exige-se um sistema de controle a postura de órgão investigatório, substituindo entre os poderes, chamado pela doutrina de Freios e a polícia judiciária e produzindo inquéritos ou Contrapesos, o qual não se restringe à fiscalização de procedimentos próprios, visando à apuração de um poder face o outro, pois ocorre também em outras infrações penais e de sua autoria. A Constituição searas e de forma mais ampla. Baseado nesse instituto, Federal foi clara ao estabelecer as funções o MP é órgão fiscalizador externo da atividade policial, da polícia – federal e civil – para investigar e conforme art. 129, VII da CRF/88. Nesse sentido, traze- servir de órgão auxiliar do Poder Judiciário – mos à colação a lição de Jardim (1999, p. 337): daí o nome polícia judiciária–, na atribuição de apurar a ocorrência e a autoria de crimes e contravenções penais (art. 144). Temos asseverado, em outras oportunidades, Dessa forma, o controle externo de uma atividade ins- que o verdadeiro Estado de Direito não pode titucional é um instrumento necessário de realização prescindir de mecanismos de controle de do poder punitivo do Estado. Seu objetivo, nesse caso seus órgãos públicos. Este controle deve ser concreto, é dar maior credibilidade e comprometimen- efetivado seja pelas instituições da sociedade to com a investigação criminal e, consequentemen- civil, de forma difusa, seja pelos próprios órgãos te, um amplo domínio e lisura na produção da prova, estatais. a qual lhe servirá de respaldo na eventual propositura QuandooMPassumeparasiinvestigação,agesem da ação penal pública ou na propositura da ação penal controle, fugindo dos ditames constitucionais, provada pelo ofendido (BRASILEIRO, 2014). investiga com discricionariedade, que em Em resumo, segundo Nicolitt (2015), a investigação excesso torna-se arbitrariedade, afastando o pelo Ministério Público só terá validade quando houver equilíbrio entre as partes, ferindo, por sua vez, o lei, em sentido formal, que autorize expressamente a sistema acusatório previsto na Lei Fundamental investigação. Ademais, a lei só teria validade constitu- Brasileira. cional se estabelecesse também uma forma de contro- le sobre a investigação realizada pelo Parquet, controle Esse também é o entendimento de Lopes Jr (2003, p. este que não arranhasse o sistema acusatório, ou seja, 97), in verbis: controle não judicial. Cumpre dizer que a Resolução 13/2006 do CNMP não Na prática, o promotor atua de forma parcial e atende aos referidos dispositivos, apresentando fla- não vê mais que uma direção. Ao se transformar grante inconstitucionalidade. a investigação preliminar numa via de mão Nem se pode imaginar que a rejeição da PEC 37, por única, está-se acentuando a desigualdade das via oblíqua, teria dado ao MP o poder de investigar. Na futuras partes com graves prejuízos para o verdade, o texto pretendia tão somente incluir um pa- sujeito passivo. É convertê-la em uma simples rágrafo (§10) no art. 144, deixando expressa a exclusi- e unilateral preparação para a acusação, vidade investigativa pelas polícias. Desta forma, a re- uma atividade minimista e reprovável, com jeição daquele projeto não preenche o vazio normativo inequívocos prejuízos para a defesa. para atribuir ao Parquet poder que não tem e nunca Não há que se discutir o peso de uma teve a partir da Constituição de 1988. persecução penal. Diante disso, apesar do Para Nicolitt, renomado Juiz de Direito, toda investiga- Inquérito Policial ser inquisitivo, a defesa pode ção direta, pautada na Resolução 13/2006 do CNMP, é atuar evitando maiores prejuízos futuros em inconstitucional, ilegal e nula. certos casos. Ganha maior contorno a posição Já no plano jurisprudencial a questão ainda está con- da impossibilidade de condução da investigação troversa. Mas a segunda turma do STF, em um acórdão direta pelo MP fundamentada no desequilíbrio de 2003, decidiu que: processual, em especial, com a dificuldade gerada no acesso, pela defesa, aos Autos da Investigação e nas diligências que poderiam ser solicitadas à autoridade que investiga. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 101ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA A Constituição Federal dotou o Ministério Público ao órgão próprio a implementá-la, ou seja, a do poder de requisitar diligências investigatórias polícia. Tarda o crivo final do Supremo sobre o e a instauração de inquérito policial (CF, art. 129, tema. (BRASIL, 2009). VIII). A norma constitucional não contemplou a possibilidade do parquet realizar e presidir 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS inquérito policial. Não cabe, portanto, aos seus membros inquirir diretamente pessoas Por consequência das exposições teóricas supramen- suspeitas de autoria de crime. Mas requisitar cionadas, conclui-se que apesar da indiscutível credi- diligência nesse sentido à autoridade policial. bilidade pactuada à instituição Ministério Público e seu Precedentes. O recorrente é delegado de polícia papel constitucional extremamente relevante no pilar e, portanto, autoridade administrativa. Seus atos da acusação, não são prudentes e muito menos admis- estão sujeitos aos órgãos hierárquicos próprios síveis investigações criminais ministeriais, justamente da Corporação, Chefia de Polícia, Corregedoria. porque o que está em discussão é o bem maior do ser Recurso conhecido e provido (RHC 81.326-DF, humano, qual seja: sua liberdade. rel. Min. Nélson Jobim). (NICOLITT, 2015). Por óbvio, a imparcialidade investigativa na busca da verdade real seria indiscutivelmente manchada, ferin- Por partilhar destas mesmas considerações é que o do assim o sistema processual acusatório, trazendo Judiciário já se manifestou por diversas vezes, reco- prejuízos incalculáveis à defesa do suspeito. É opor- nhecendo a inconstitucionalidade da atuação do Par- tuno perguntarmos: e se o pilar defensor possuísse quet na investigação direta de crimes, especialmente também o poder investigativo? O resultado seria uma diante da confusão de funções no mesmo órgão, con- verdadeira aberração jurisdicional. forme as palavras do ilustre Desembargador do Tribu- Nos dias atuais, a Polícia Judiciária (Civil e Federal) nal de Justiça do Rio de Janeiro, Dr. Eduardo Mayr, que possui constitucionalmente atribuições investigativas asseverou em seu voto condutor que: criminais na busca da autoria e materialidade crimi- nal. Investigações essas presididas por Autoridades O que se questiona é a ingerência completa Policiais e que de forma discricionária exercem suas e exclusiva do MP em diligências de polícia funções, promovendo o levantamento de eventuais judiciária. Parece evidente que se o MP age provas que irão servir de balizadoras para uma futura como autoridade policial, inclusive como agente ação penal. Processualmente, após o término dessa in- provocador, e ato contínuo oferece denúncia vestigação, ela será validada pelo Promotor de Justiça e pretende atuar como titular da ação penal, que, se entender necessário, irá solicitar novas diligên- estará ele comprometendo irremissivelmente a cias ou oferecerá a denúncia caso entenda que o corpo estrutura e o equilíbrio do processo penal e os probatório esteja completo. demais postulados básicos do Estado de Direito. Acertadamente o legislador previu o controle ex- Agindo como policial, o Promotor de Justiça terno da atividade policial, através de membros do quebra o contraditório, e faz pender em seu Ministério Público, justamente para evitar possíveis favor a prova, em detrimento da defesa” (HC excessos e abusos de poderes por parte das Auto- 1916/2000 – 6ª Câmara Criminal do TJRJ). ridades Policiais. Doutrinariamente, esse controle exercido por um órgão alheio à atividade fim é cha- O ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Fede- mado de Sistema de Freios e Contrapesos. Por outro ral, em sua manifestação sobre a existência de reper- lado, imagine o exemplo prático de uma investiga- cussão geral na matéria objeto do RE 593.727-5, assim ção tendenciosa e mal conduzida por um membro aduziu: do Parquet que, após conclusão investigativa, ofere- cesse uma denúncia e acompanhasse o processo até Conforme ressaltado pelo relator, Ministro o fim. Quem irá fiscalizar e conter seus excessos em Cézar Peluso, a matéria está pendente de suas atividades? exame no Habeas Corpus 84.548-7/SP, da Por todo o exposto, o Conselho Nacional do Ministério minha relatoria. Nele me pronunciei no sentido Público, com objetivo claro de regimentar as investi- da descentralização de atos tal como retratada gações criminais presididas por seus membros, criou a na Constituição de 1988. O Ministério Público Resolução nº 13/2006, que regulamenta o PIC (Proce- só tem poderes investigatórios quanto à ação dimento Investigativo Criminal). Este documento, além civil pública, devendo, para lograr elementos próprios à propositura de ação penal, provocar a polícia judiciária – a polícia civil ou a federal, de acordo com a área pertinente. Fiscaliza ele, isso sim, como está na Carta da República, a atividade policial, não podendo substituir-se REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 102ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA de ter por objetivo orientar seus pares nas investiga- pando funções legislativas), ferindo, assim, os princí- ções criminais (usurpando funções das Autoridades pios constitucionais fundamentais da pessoa humana. Policiais), legisla sobre matéria processual penal (usur- Em resumo: está em flagrante inconstitucionalidade. REFERÊNCIAS BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidên- cia da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 dez. 2017 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral em Recurso Extraordinário n. 593.727-5/MG. Recorrente: Jairo de Souza Coelho. Recorrido: Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Julgado em 27.08.2009. Relator: Min. Cezar Peluso. Disponível em http://www.stf.jus.br/por- tal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(593727.NUME.%20 OU%20593727.PRCR.)&base=baseRepercussao. Acesso em: 19 maio 2017. CABRAL, Bruno Fontenele. SOUZA, Rafael Pinto Marques dos. Manual prático de Polícia Judiciária. 2. ed. Sal- vador: JusPodivm, 2013. CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Resolução nº 13, de 02 de outubro de 2006. Brasília-DF, 2 de outubro de 2006. Disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resolu%C3%A7%- C3%A3o-0131.pdf. Acesso em: 20 abr. 2017. JARDIM, Afrânio Silva. O Ministério Público e o controle da atividade policial. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1999. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 14. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 2. ed., 3ª tiragem. Salvador: JusPodivm, 2014. LOPES JR, Aury. Direito de defesa e acesso do advogado aos autos do inquérito policial: desconstituindo o discurso autoritário. In BONATO, Gílson (org). Processo Penal: leituras constitucionais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. NICOLITT, André Luiz. Ministério Público não pode investigar e Juiz André Nicollit (TJRJ) rejeita denúncia. In: Empório do Direito. São Gonçalo, 30 abr. 2015. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/ministerio-pu- blico-nao-pode-investigar-e-juiz-andre-nicollit-tjrj-rejeita-denuncia/. Acesso em: 20 abr. 2017. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. Rio de Janeiro: Ed. Forense. 13. ed. Versão digital, 2014. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 103ISSN: 2177 - 1472
REFLEXÃO FILOSÓFICA SOBRE DIREITO, JUSTIÇA E SOCIEDADE PHILOSOPHICAL REFLECTION ON LAW, JUSTICE AND SOCIETY Salustiano Ferreira da Luz RESUMO rity that philosophy exerts to the science of law. The research approaches law as a historical phenomenon; No presente trabalho, apresentam-se conceitos do natural law and positive law; law as a coercive nor- direito, fazendo-se, em seguida, abordagens sobre o mative order; the concept of fundamental norm and fenômeno jurídico à luz da reflexão filosófica. Entre the distinction between validity and effectiveness, os temas aqui abordados, os principais são: a compre- among other subjects. Another topic of this study, of ensão do fenômeno jurídico e a complementariedade equal relevance, is the theory of interpretation, based que exerce a filosofia à ciência do direito. A pesquisa on several thinkers in the area of law and philosophy, faz abordagem ao direito como fenômeno histórico; especially the relation that must be necessarily esta- direito natural e direito positivo; direito como ordem blished between law and philosophy, a relationship normativa coercitiva; conceito de norma fundamental very well delineated by Miguel Reale, as demonstrated e a distinção entre validade e eficácia, entre outros as- in this paper. Finally, we deal with the problem of the suntos.Outro ponto aqui visto, de igual relevância, é a efficacy of Justice according to the positivist view, its teoria da interpretação, embasada por vários pensado- application, its functionality, in favor of the citizen, in res da área do direito e da filosofia, especialmente a re- daily life. lação que necessariamente se deve estabelecer entre o direito e a filosofia, relação essa muito bem delineada KEYWORDS: Natural law. Positive law. Philosophical por Miguel Reale, como demonstrado neste trabalho. attitude. Philosophical reflection. Legal phenomenon. Por último, tratamos do problema da eficácia da Jus- tiça sob a ótica positivista, sua aplicação, sua funcio- 1 INTRODUÇÃO nalidade, em prol do atendimento ao cidadão, em seu cotidiano. Este trabalho tem o propósito de apresentar reflexão e análise acerca da defesa dos direitos dos cidadãos PALAVRAS-CHAVE: Direito natural. Direito positivo. e aplicação da justiça na práxis dos profissionais que Atitude filosófica. Reflexão filosófica. Fenômeno jurí- estão investidos de tal encargo, seja no exercício da dico. advocacia, defensoria pública, promotoria, magistra- tura, corregedoria, enfim, todos aqueles que um dia ABSTRACT juraram respeitar os princípios inerentes àqueles que patrocinam o direito, realizando a justiça e preservan- In the present study, concepts of law are presented, do os bons costumes, afiançando nunca faltar com as followed by approaches on the juridical phenomenon causas em prol do cidadão. in the light of philosophical reflection. Among the topi- Todavia, falar de direito e de justiça não é tarefa fácil, cs discussed here, the main ones are: the understan- quando o objetivo é fazer uma reflexão um tanto séria ding of the legal phenomenon and the complementa- no tocante a sua aplicabilidade, quando o estudo se * Advogado, Professor de Filosofia em várias faculdades da UniRV, Especialista em Língua Portuguesa pela Universidade de Rio Verde/ Goiás. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 104ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA propõe a fazer uma análise comparativa em suas inter- nada dos valores de convivência social. Segundo ele, -relações, somando esforços com a finalidade de eluci- “Direito é o conjunto de princípios, de regras e de ins- dar cada vez mais seus significados. tituições destinado a regular a vida humana em socie- Para cumprir o objetivo do presente estudo, convém dade” (REALE, 1972, p. 617). fazer uma alternância analítico-reflexiva entre a defesa Logo, o homem, em toda a sua trajetória, sempre en- do direito e a aplicação da justiça, por todos os agentes tendeu e deverá compreender que a defesa de direitos, diretos em um determinado processo. no sentido natural da palavra, é a mais plena forma de O conceito de cidadania, assim como ocorre também se praticar a justiça, condição sine qua non para que se com o direito, passa, constantemente, por uma reno- cumpra com o compromisso solenemente assumido, vação, o que é previsível em qualquer sociedade que com a vocação natural inerente à existência humana está vivenciando um processo de evolução transfor- e, o mais importante: fazendo-se justiça, a satisfação madora, em todos os setores, especialmente transfor- das necessidades das partes contribuirá para sua fe- mações sociais. São os efeitos que se podem esperar licidade. diante da mudança de paradigmas. Sendo assim, é possível afirmar que cidadania pode 2 DIREITO, JUSTIÇA E SOCIEDADE ser concebida como uma ideia tão dinâmica quanto a própria sociedade, e não uma ideia estática, como foi 2.1 Direito como fenômeno histórico na Antiguidade. Hoje, ser cidadão tem implicações de enfretamento de problemas sociais, aqueles que afe- Desde a Antiguidade, o direito está associado à simbo- tam a comunidade, analisar tal problema e procurar a logia. Os gregos utilizaram uma balança e a colocaram solução mais adequada para o caso, de forma que tal na mão esquerda de Diké, deusa da justiça, a qual foi solução satisfaça o problema social que se apresentou. retratada de olhos bem abertos, ouvidos atentos e po- Quanto ao direito, este foi entendido, inicialmente, sicionada de pé; com a mão esquerda segura a balan- como um conjunto de normas que visam garantir a ça e com a direita empunha uma espada, declarando manutenção da paz social, que luta pela convivência haver justiça quando os pratos se encontrassem em harmônica e pelo bem-estar coletivo, visando à justiça equilíbrio. social. Os romanos, por sua vez, também utilizaram a figura Para Aristóteles (2002), o homem é um animal político, da deusa Isutitia, deusa da justiça, posicionada, igual- destinado a viver em sociedade. Assim, havia necessi- mente, de pé, porém de olhos vendados e ouvidos dade de regras para que pudesse viver em harmonia, atentos, segurando a balança com as duas mãos e sem evitando a desordem. espada, já que esta representa a força; para eles, ha- Diferentemente de Platão, de índole idealista, Aristóte- veria o direito, Jus, quando o fiel estivesse completa- les possuía inclinação mais conservadora, dando maior mente vertical. Direito significa, pois, rectum, de cima ênfase às condições reais e práticas do homem e de para baixo. suas instituições; discordava, inclusive, da filosofia ina- O direito natural em Aristóteles é o conjunto de prin- tista de seu mestre, por julgá-la desnecessária, quando cípios que possuem a mesma autoridade em todas as se trata de questões voltadas à ciência política e/ou ju- partes, não importando a situação. Como direito legal, rídica nas relações sociais existentes. provinha do acordo de partes ou um pronunciamento A finalidade do direito é a aplicação da justiça. Direito legislativo. Mas como vinha de uma convenção, o mes- e justiça devem, pois, entrelaçar-se, a tal ponto de se mo nem sempre correspondia ao conceito do que é, de tornarem uma só realidade, em prol das benesses so- fato, justo, nos ditames da lex naturalis. ciais. O indivíduo, em seu estado natural, dotado de uma li- Na prática, porém, nem sempre caminham de mãos berdade necessária e total, na medida do que lhe era dadas. Todo estudioso do direito sabe que nem tudo circunstancialmente possível, procurou estabelecer que é direito é justo, assim como nem tudo que é justo seus valores e, a partir destes, criou uma tábua de va- é direito, haja vista que a ideia de justiça alcança va- lores a todos de um mesmo grupo, cujo esteio reside lores inerentes ao ser humano; são lições aprendidas no consenso da aprovação de seus dirigentes. A este com base no direito natural, assim denominado desde conjunto de valores, que compõe o regramento, visan- os tempos antigos. do garantir as condições de conservação, organização Miguel Reale aduz que o direito é a vinculação bilate- e desenvolvimento do grupo, é que denominamos de ral, próprio da conduta humana para a realização orde- direito. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 105ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA Sabe-se que o direito é um fenômeno histórico e cultu- que se reconhece que o advogado deve servir ao direi- ral criado pelo homem e concebido como técnica para to e à justiça, defendendo a vida, a honra, a liberdade e a pacificação social e a realização da justiça; é um con- os interesses do cidadão, assumindo a independência junto de princípios e regras destinado a realizar a jus- de sua função, cumprindo, dessa forma, seu dever éti- tiça. A justiça, por sua vez, é a disposição da alma que co-social. Pode-se assim asseverar que seu ofício não leva o indivíduo que é dela dotado a fazer o que é justo. é apenas uma profissão, senão uma missão: zelar pela Diz respeito à organização política, compreendedo-se, justiça. aqui, para o que é justiça natural e o que é justiça legal. Fazendo uma reflexão acerca do direito e da justiça, é Nesse sentido, atente-se para o que afiança Aristóte- importante reconhecer que as fontes do direito con- les: cernem ao conhecimento do justo; por isso, o papel dos agentes, investidos como profissionais do direito, Naturais são as regras que em todos os lugares não deve ser apenas o de aplicar ou estudar as leis já têm a mesma força e não dependem de serem existentes, mas extrapola essas funções. aceitas ou não, enquanto legal é aquilo que Esse é o entendimento; um ponto de vista que é fruto pode ser determinado indiferentemente de da sua rejeição em relação à definição do positivismo uma maneira ou de outra, mas depois que se jurídico, cujas regras positivas são estabelecidas pelo determina, já não é mais indiferente, deve ser Estado. A tarefa do direito passa a ser a busca do bem, respeitada (BITTAR, 2005, p. 106). que aqui está em harmonia com a interpretação de justiça. É claro que Aristóteles, tendo vivido quatro séculos an- É nesse sentido que Groppali (2008, p. 248) expõe: tes de Cristo, seguramente não imaginava que o direi- to estaria em descompasso frente às transformações Este sistema de fazer justiça expresso na sociais e aos avanços tecnológicos galopantes, assim fórmula olho por olho, dente por dente, cedeu, também como era imprevisível que os governantes do no decorrer do tempo, com o desenvolvimento século XXI demonstrassem tamanha incapacidade go- da propriedade individual e com a troca de vernamental. mercadorias, o lugar a composição, segundo a Todos esses fatores devem figurar como componentes qual se reparavam os danos cometidos, mediante procedentes para a compreensão do presente estudo. compensações materiais, primeiramente Não vale aqui, pois, analisar a eficácia da justiça apenas estabelecidas, cada uma por sua vez, e depois no plano positivo, à espreita de fatos valorativos viven- rigorosamente fixadas em tarifas adequadas, ciados, mas principalmente no plano filosófico, toman- em que a importância do preço de composição do o direito e, principalmente a justiça, sobre o valor era proporcional relativamente à idade, ao sexo, que possui em si mesma, que é de sua essência. à importância da vítima e à qualidade da ofensa Nessa mesma linha de pensamento, Reale (2009, p.17) causada. A unidade da medida desse preço afirma que a teoria da justiça se situa no âmbito da era determinada sucessivamente pelo valor do axiologia que, segundo ele, gado, dos escravos e dos metais preciosos e era pago, primeiramente, por todos os parentes do Desenvolve-se em dois planos: um filosófico, ofensor e depois por este exclusivamente. sobre os valores em si mesmos ou em sua objetividade, sendo esta concebida de Essa maneira de se fazer justiça foi suplantada pelo diversos modos; e um outro positivo, relativo tempo; se para sua eficácia era necessário utilizar-se às “experiências valorativas”, à sua estrutura, de uma metodologia, que a própria evolução se encar- condicionamento social, inter-relações. regou de, igualmente, demolir, hoje a validade e a efi- cácia da justiça requerem um alijamento de quaisquer Como ele mesmo afirma, os valores que alicerçam as resquícios de metodologias socialmente desprezíveis normas jurídicas positivas “pressupõem outros valo- res”, tais como liberdade, igualdade, ordem e seguran- 2.2 Direito natural e direito positivo ça. A justiça não coincide com nenhum deles, mas está à frente, e é condição primeira de todos esses valores. Toma-se por direito natural a face abstrata do Direito; Eis que, se a justiça é a mais fundamental de todas as trata-se de um sistema normatizador que independe finalidades humanas e é inerente à natureza do próprio do direito positivo e, portanto, das variações decorren- homem, requer a harmonia entre as experiências axio- tes da vida em sociedade. Tem sua origem na natureza lógicas, distintas e complementares. É nesse sentido ou essência de algo e pode ter como fonte a própria REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 106ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA natureza, a racionalidade do homem ou a vontade de e, de um modo mais geral, por uma concepção Deus. racionalista da filosofia.) O direito positivo, Sendo assim, tem como pressuposto aquilo que é cor- ao contrário, é conhecido através de uma reto e justo, tendo como princípio a existência de um declaração de vontade alheia (promulgação); direito universal, comum, pois, a todos os homens. e) o quinto critério concerne ao objeto dos dois No começo era, de fato, assim, um direito natural, com direitos, isto é, os comportamentos regulados papel regulador do convívio social entre os homens, pelo direito natural são bons ou maus por si uma visão objetiva do direito, sem a necessidade de mesmos, enquanto aqueles regulados pelo leis escritas. direito positivo são por si mesmos indiferentes e Todavia, essa visão sofreu uma mudança, a partir do assumem uma certa qualificação apenas porque momento em que surgiu, através do Estado, o direito (e depois que) foram disciplinados de um certo positivo, com uma função do tipo contrapeso às ati- modo pelo direito positivo (é justo aquilo que é vidades legitimadas pelo próprio Estado. É o direito ordenado, injusto o que é vedado) (Aristóteles, positivo vigendo como um conjunto de estruturas e Grócio); normas jurídicas escritas, em um determinado Estado, f) a última distinção refere-se ao critério de apresentando formulação e natureza, com regras e valoração das ações e é anunciado por Paulo: o princípios instituídos ordenadores do mundo jurídico. direito natural estabelece aquilo que é bom, o Direito natural e direito positivo juntam-se para esta- direito positivo estabelece aquilo que é útil. belecer a ordem, complementando-se e tendo este vigência e base territorial por tempo determinado, im- Gusmão (1998, p. 35-36), palestrando sobre direito na- postas pelo Estado; aquele, validade universal e imu- tural e direito positivo, afirma o seguinte: tável, em todos os territórios e em todos os tempos. O direito positivo se fundamenta na estabilidade e na Ao direito natural o Imperador deveria se curvar. ordem social; o natural liga-se a princípios fundamen- A maioria dos padres medievais defenderam tais de ordem abstrata e traz consigo a ideia de justiça. essa ideia do direito natural e conciliadora do Em sua lavra jurídica, evidenciando os critérios de dis- jusnaturalismo estóico com o cristianismo, do tinção entre direito natural e direito positivo, Bobbio Papado com o Imperador. Mas a escolástica (2006, p. 22) assevera o seguinte: deu-lhe nova interpretação, sem desvinculá- lo da lex aeterna. E o fez substituindo o Podemos destacar seis critérios de distinção: platonismo agostiniano pelo aristotelismo, a) o primeiro se baseia na antítese conhecido graças aos árabes. O direito natural, universalidade/particularidade e contrapõe expressão da vontade divina, dá lugar então ao o direito natural, que vale em toda parte, ao direito natural, expressão da vontade divina, positivo, que vale apenas em alguns lugares dá lugar então ao direito natural deduzido (Aristóteles, Inst. - 1ª definição); da razão eterna e imutável. Sintetizando a b) o segundo se baseia na antítese imutabilidade/ fé com a razão, reconhece a validade de três mutabilidade: o direito natural é imutável no legislações: lex aeterna, que governa o Universo tempo, o positivo muda. (Inst. - 1ª definição segundo a razão suprema, ou melhor, segundo -, Paulo); esta característica nem sempre foi a sabedoria divina (ratio divinae sapientiae); lex reconhecida: Aristóteles, por exemplo, sublinha naturalis, ditada de acordo com a reta razão, a universalidade no espaço, mas não acolhe que, participante da razão suprema, indica ao a imutabilidade no tempo, sustentando que homem o bom caminho – lex naturalis nihil aliud também o direito natural pode mudar no tempo; quam participatio legis aeternae, e lex humana, c) o terceiro critério de distinção, um dos mais isto é, direito positivo, que, completando as importantes, refere-se à fonte do direito e anteriores, delas não deve se afastar. Dentro funda-se na antítese natura-potestas populus dessa linha de pensamento, a lei humana só é lei (Inst. - 1ª definição -, Grócio); quando compatível com o direito natural e a lei d) o quarto critério se refere ao modo pelo qual eterna. o direito é conhecido, o modo pelo qual chega a nós (isto é, os destinatários), e lastreia-se na O direito natural consiste de um sistema de normas de antítese ratio-voluntas (Glück): o direito natural conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído é aquele que conhecemos através de nossa pelas normas do direito positivo. Ele tem validade em razão. (Este critério liga-se a uma concepção si, é anterior e superior ao direito positivo; e é o que racionalista da ética, segundo a qual os deveres deve sempre prevalecer, em caso de litígio. O direito é morais podem ser conhecidos racionalmente, composto, pois, por normas que, ao longo da história, buscaram explicação em três origens diferentes: a de uma lei estabelecida por vontade divina e por esta re- REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 107ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA velada aos homens; a de uma lei emanada da natureza, É notório, pois, que o direito e a justiça, sob a ótica po- comum a todos os seres animados, através do instinto; sitivista, deverão ser aplicados de maneira funcional, a de uma lei ditada pela razão, exclusiva do homem, que atendam o cidadão em seu cotidiano, como asse- que a encontra autonomamente dentro de si. vera Bobbio (2006, p. 142): A razão acima mencionada é a mesma de que fala Immanuel Kant; segundo ele, o direito é o que regula O direito, observa essa escola, é uma realidade as relações entre indivíduos e moral; é o conjunto de social, uma realidade de fato, e sua função é preceitos internos de cada indivíduo, ao afirmar que “o ser aplicado: logo, uma norma que não seja direito é o conjunto de condições por meio das quais aplicada, isto é, que não seja eficaz, não é, o arbítrio de um pode estar em acordo com o arbítrio consequentemente, direito. A doutrina desta de um outro, segundo uma lei universal da liberdade” corrente, que é conhecida com o nome de (KANT, 2003, p. 407). escola realista do direito, pode ser resumida O direito é positivo porque é colocado por alguma au- da seguinte maneira: é direito o conjunto de toridade jurídica; isso significa que as normas jurídicas regras que são efetivamente seguidas numa surgem através de um ato de vontade da autoridade determinada sociedade. jurídica. Vale dizer que é um ato de criação normativa, ou de política jurídica. O fenômeno jurídico, como asseveram grandes dou- O conhecedor e estudioso do direito não valida nor- trinadores, requer, pois, esse comprometimento para mas, pois, como jurista ou pensador, não possui cre- resultar em eficácia, que deve fluir na prática do dia a dencial ou competência para isso. O jurista pretende dia. apenas conhecer o seu objeto, descobrir ou revelar o Pela filosofia analisam-se os fatos, questiona-se a ra- seu significado. Portanto, nessa atividade ele pratica zão do direito e se auxilia o fenômeno jurídico na per- uma função distinta da autoridade jurídica, uma ativi- secução do ideal da justiça. dade fundamentalmente de cognição, de pesquisar e Se no passado já houve uma espécie de divórcio en- divulgar os resultados de sua pesquisa científica. Kel- tre filósofos e juristas, como Reale (1994, p.3) chega sen percebeu muito bem essa distinção entre a função a afirmar ao dizer que “estabeleceu-se, em certo mo- da autoridade jurídica e a função do conhecimento ju- mento, um verdadeiro dualismo ou uma justaposição rídico. de perspectivas, como se houvesse um direito para o Todas essas explicações partilham da ideia de que o di- jurista e outro para o filósofo”, afirmando mesmo que reito natural é um sistema de normas anteriores e su- os mesmos atuavam isoladamente, em seus domí- periores às do Estado, a cujo poder fixam um limite in- nios, nossa época requer uma reaproximação cada vez transponível. As normas jurídicas e ações políticas dos maior entre esses estudiosos que têm, seguramente, Estados, sociedades ou indivíduos que se oponham ao seus ofícios empenhados na resolução de problemas direito natural, independente de como ele é concebido, afins, como se pode inferir nas palavras do autor: são consideradas ilegítimas, embora possam ser con- testadas pelos cidadãos, se for o caso. A verificação de que nossa época assiste a uma profunda renovação nos estudos filosófico- 2.3 Direito e filosofia jurídicos e, o que é bem mais significativo, a um crescente interesse por parte dos próprios Todo estudioso do direito, aos poucos, vai perceben- juristas pela Filosofia do Direito, demonstra que do que não se pode compreender o fenômeno jurídi- o problema da razão de ser desta disciplina co sem obter primeiro uma compreensão da origem e não pode ser apreciado in abstracto, mas em fundamentação da filosofia, já que esta assim como o suas necessárias correlações com o complexo fenômeno jurídico caminham de mãos dadas. de fatores históricos e sociológicos dos quais Na militância do direito é preciso saber para que ser- decorre a nova atitude observada (REALE, 1994, ve tal fenômeno e como utilizá-lo. Essa compreensão p.1). ocorre graças à reflexão filosófica, pois como já se dis- se, a filosofia serve para buscar as causas do direito Nesse caso, a reflexão filosófica nos leva a tecer algu- e, então, interpretá-lo, à luz da realidade, da vida, dos mas considerações que se julga serem importantes e acontecimentos do cotidiano, pois é nele (cotidiano) necessárias ao esclarecimento daquilo que se objeti- que os fatos se revelam. vou analisar neste trabalho, já que o questionamento filosófico constitui-se, não raras vezes, num esforço crítico e sistemático que deve resultar em resultados proveitosos, que venham somar-se à leva de conhe- REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 108ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA cimentos e servir, quiçá, de auxílio e fonte para novos Os operadores do direito devem ter como principal estudos a quem possa interessar. A filosofia, desejosa fundamento e requisito a interiorização das regras de- de compreender sempre mais a realidade sociojurídi- ontológicas fundamentais e uma elevada consciência ca, cumpre, dessa forma, seu papel: refletir e buscar moral e profissional. Trata-se de uma ação movida pela respostas para as inquietações humanas, visando ao autocobrança, que os profissionais do direito passam a seu melhoramento, não como ser individual, mas como ter consigo mesmos; isto é, agem, ou devem agir ten- ser que faz parte do meio onde está inserido. do como premissa o conjunto de regras ético-jurídicas Essa mesma linha de raciocínio encontra sustentação e estas têm como finalidade pautar o comportamen- em filósofos contemporâneos, Gabriel (2012), segundo to social e profissional do advogado, normas esssas o qual: que estão expressas nos estatutos que normatizam o modo de agir de tais profissionais. Problematizar é o ato de transformar em Dessa forma e por analogia, é correto afirmar que, en- questionamento algo tido como seguro e tre os profissionais do direito, os advogados devem ser, resolvido. É a capacidade de intuir uma certa por excelência, aqueles que combatem, incansavel- situação problemática que se esconde por mente, as desigualdades, buscando o meio-termo da traz das aparências calmas do cotidiano. É a “balança”, vislumbrando a justiça, exercendo, assim, habilidade de transformar em uma pergunta sua nobre função, que é buscar a satisfação dos an- bem elaborada as indagações que perturbam seios sociais. O advogado é, pois, aquele que intervém as pessoas. É perguntar sobre as razões que nos fatos em prol da justiça. fundamentam uma determinada prática e Sendo assim, sua atuação é condição imprescindível transcendê-la. É, enfim, colocar um ponto de para o funcionamento da sociedade; é o Guardião do interrogação inesperado onde já descansa Estado de Direito, sem o qual não pode haver justi- tranquilo e satisfeito um ponto final. ça, nem liberdade, como patenteado no artigo 133 da Constituição Federal de 1988, que assim prescreve: “o A qualquer momento, de forma repentina, o advoga- advogado é indispensável à administração da Justiça, do é confrontado com choques de interesse, de fatos sendo inviolável por seus atos e manifestações no exer- sociais e é nesse momento que o mesmo deve inter- cício da profissão, nos limites da lei” (BRASIL, 1988). ceder com seus conhecimentos técnicos, respeitando, O filósofo e grande jurista Migel Reale afirma ainda que sempre de acordo com sua consciência moral, imóvel, filósofos e juristas, mesmo tendo que tomar posições inflexível e inabalável. diferentes, possuem o caráter e necessidade de com- O advogado ao defender o direito de seu patrocinado, plementariedade, como se pode ler: assim como todos os demais profissionais do direito, envolvidos no processo, estão unidos no mesmo pro- A tomada de posição do filósofo não é a do pósito: aplicar com esmero seus conhecimentos, vi- jurista, mas ambas se exigem e se completam. sando ao desfecho que seja previsível, coerente com a Se uma visa a atingir a realidade jurídica em sua lógica processual costumaz, pura e simplesmente. To- integral concreção – o que implica remontar davia, há uma missão edificante que a justiça, frequen- até os pressupostos essenciais do direito -, a temente, olvida, via daqueles operadores que atuam segunda propõe-se a compreender a experiência em determinado processo. jurídica tal como se concretiza mediante Nesse sentido, eis o que assegura Gusmão (1998, p. modelos jurídicos prescritos e hermenêuticos 41-42): que atualizam, no plano da condicionalidade histórica, os valores transcendentais da Justiça. Seja qual for a ideia que dele se tenha, como (REALE, 1994, p.12). “direito” ou como “moral”, como justiça ou como ideologia, não se pode negar haver um Tal interdependência não significa, porém, que filóso- princípio moral que se sobrepõe ao legislador, fos e juristas têm ou devam ter os mesmos pensamen- orientando-o, julgando-o, criticando-o, tos e mesmo semelhantes, haja vista que o papel do ju- fundamentando as suas leis. Princípio pelo rista perante a sociedade é muito diferente do trabalho qual, em Nüremberg, foram condenados os dos filósofos, e vice-versa, como também reconhece: que os violaram, servindo-se do “direito” para praticarem desumanidades. Dê-se-lhe outro Mas se há correlação entre Filosofia e Ciência nome, mas não se pode negar a validade, do Direito, não é dito que o filósofo possa e vigência e valor. Tudo porque acima das leis e do deva pensar como jurista e vice-versa, pois poder está a dignidade humana. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 109ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA cada um deles tem o seu próprio papel a e recursos comuns, devendo ser de acordo com a con- representar, cabendo ao jurista, interpretar e tribuição de cada ser, em uma escala geométrica de aplicar com rigor técnico os modelos jurídicos acordo com o respectivo mérito individual, diferen- postos pelo legislador, pelos costumes ou pela temente dos filósofos que o antecederam; mas foi a jurisdição, assim como conceber e sistematizar partir dos filósofos modernos e contemporâneos que os modelos teóricos ou dogmáticos que aqueles pudemos vislumbrar o direito e a justiça com visível fi- modelos normativos implicam, no processo nalidade de transformação social, como instrumentos de sua vigência e de sua eficácia. Ao filósofo modeladores e indispensáveis na construção de uma do direito, ao contrário, essa tarefa é estranha, sociedade justa, como expressamente previsto no arti- por competir-lhe indagar das razões universais go 3º da Constituição Federal de 1988. fundantes de todos os modelos atuais e De qualquer forma, seja espelhando-se no direito na- possíveis e, também, do significado da ação tural, tido como ordenamento ideal, correspondente do jurista no ato de interpretar e de dar efetiva a uma justiça anterior, superior, norma jurídica hipo- aplicação às estruturas normativas que brotam tética e fundamental, seja como regras que regem a da experiência (REALE,1994, p. 13). vida social de determinado povo, denominado direito positivo, qualquer que seja a corrente defendida, resta Dessa feita, fica claro que o trabalho do filósofo e dos claro o estrito compromisso dos que se compromete- profissionais do direito, por sua necessária comple- ram exercer o direito e a justiça no processo evolutivo mentariedade, requer parceria marcante; o fazer filo- dos cidadãos, individualmente e da sociedade em sua sófico auxiliando o direito na compreensão das causas totalidade. dos fatos jurídicos, problemática dos métodos e até O sentido geral de justiça, que corresponda à condição mesmo na resolução das decisões, sob a luz da refle- que os gregos chamavam de “homem justo”, que é a xão, para uma compreensão de conjunto. pessoa que possui uma superioridade moral em rela- ção à maioria das outras pessoas. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse sentido, justiça é, pois, disposição da alma, gra- ças à qual o homem se dispõe a agir retamente, de Nossa pretensão, com o presente trabalho, foi mos- acordo com a justiça, sendo esta a forma mais elevada trar o caminho na leitura dos textos jurídicos, à luz da de excelência moral. reflexão filosófica. O resultado obtido é bastante mo- No desfecho do presente trabalho, mesmo consideran- desto em face da proposta grafada no título, embora do, por vezes, que a justiça que se busca em um país é preciso reconhecer que ao longo do estudo é possí- de grande desigualdade social é utópica, considera-se vel vislumbrar valiosas citações que endossam nossa que ela não é inatingível, sendo que o alcance dessa propositura, o que garante a certeza de que tanto as justiça é concebido, às vezes, não pelo poder compe- ideias defendidas quanto as fundamentações garan- tente na edição de leis, mas no coração do próprio ho- tem o valioso e indispensável entrelace entre o direito mem, quando percebe que o bem que deseja para si e e a filosofia. para o outro não refuta o bem que a sociedade tam- Após várias análises e reflexões, a partir das fontes ju- bém necessita. rídicas e filosóficas, é possível reafirmar que não deve É conclusa também a ideia de que o direito, divorciado existir direito natural como regra, tirada da natureza, da filosofia, torna-se incompleto, no tocante à análise assim como o direito positivo não é válido, em última dos fatos jurídicos, considerando-se os diferentes con- instância, em si mesmo, ou nas decisões dos legisla- textos e circunstâncias como ocorrem; é aí que entra a dores, mas na “razão”, como dizia Kant, que afirmava filosofia, com sua atitude de pensar, crítica e metodi- ser a liberdade, o único direito natural; o que legitima camente, o Direito. O Ser aqui é o Direito. a atividade do legislador é a obediência à liberdade, da E se assim é, então isso importa dizer que, como ope- qual derivam outros direitos. radores do direito, jamais se pode aplicar o direito de É através do direito que os homens têm sua coexistên- forma a contrariar esta finalidade, ainda que a lei não cia social garantida, pautada pela liberdade, pela pro- seja a melhor. priedade, pela justiça, pela fraternidade. Sendo assim, considera-se que é possível compreen- Neste trabalho, foi possível fazer uma releitura das der qual o verdadeiro papel da Filosofia em relação ao fontes originais filosófico-jurídicas, desde Aristóteles, fenômeno jurídico, mediante esse trabalho em conjun- a partir do qual se percebeu uma melhor separação to e de conjunto, lançando mão da atitude filosófica, dos conceitos de justiça, direito e moral, segundo o qual a justiça distributiva se dá pela divisão dos bens REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 110ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA aplicada aos fenômenos jurídicos. do que o direito possui uma determinada finalida- Tanto do ponto de vista da filosofia, quanto do di- de, permitindo definir o direito em função da justiça, reito, as definições valorativas caracterizam-se pelo considerada, assim como a liberdade, o bem maior fato de possuírem uma estrutura teleológica, achan- da humanidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. A política. Tradução: Torrieri Guimarães. São Paulo, Martin Claret, 2002. BITTAR, Eduardo C.B. A justiça em Aristóteles. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. BOBBIO. Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidên- cia da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 11 dez. 2017. GABRIEL, José Luciano. Finalidades da filosofia do direito. Âmbito Jurídico. Rio Grande, XV, n. 100, maio 2012. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11700. Acesso em: 20 set. 2017. GROPPALI, Alexandre. Filosofia do direito. Tradução: Servanda Editora. Campinas, SP: Servanda Editora, 2008. 352p. GUSMÃO, Paulo Dourado de. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1998. KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2003. REALE, Miguel. Curso de Filosofia do Direito, 6.ed. São Paulo: Saraiva, 1972.v. 2, 617p. REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5. ed. rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 1994. REALE, Miguel. Lições preliminares do direito. São Paulo: Saraiva, 2009. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 111ISSN: 2177 - 1472
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