REVISTA JURÍDICA que destinem sua coleta para associações e/ou coope- tucionais e tributários para utilização extrafiscal do tri- rativas de catadores de lixo” (FORTALEZA, 2009). buto, vimos que é possível sua aplicação como meio de Pelo exposto, pode-se notar iniciativas para a imple- preservação do meio ambiente. De modo que a melhor mentação da extrafiscalidade, estimulando o cres- maneira é a concessão de incentivos fiscais para ativi- cimento da consciência sustentável. Para tanto, o le- dades que respeitem o meio ambiente e possam cau- gislativo, em primeira mão precisa posicionar-se e sar benefícios ou até mesmo não lhe cause prejuízos. mobilizar-se para o bom andamento e aprovação dos Tendo em vista a possibilidade de aplicação do tribu- projetos citados e tantos outros que poderiam ser ela- to como auxilio da preservação, foi analisada a aplica- borados com intuito de promover o desenvolvimento ção de incentivos fiscais na reciclagem e dos projetos econômico sob a ótica da sustentabilidade. atualmente em andamento em nível federal e já imple- mentado em nível municipal. 5 CONCLUSÃO Porém, para que esses projetos possam ser efetivados, precisa haver interesse político para que sejam institu- A pesquisa analisou como a busca pelo crescimento ídos benefícios fiscais que irão impulsionar o mercado econômico comprometeu o meio ambiente. de produtos reciclados, estabelecendo o hábito de uti- Enfrentar o problema do meio ambiente não é simples, lização pela sociedade desses produtos. requer comprometimento de todos os países e criação Dessa forma, é possível perceber como simples ações de políticas internacionais que vinculem a todos na bus- do poder público, como conceder isenção fiscal ou até ca da preservação. Surgiu, com isso, o desenvolvimento mesmo diminuir impostos das atividades em prol do sustentável na busca de garantir condições de vida dig- meio ambiente, podem contribuir satisfatoriamente na às futuras gerações. Assim, todas as nações devem para o desenvolvimento sustentável. Principalmente se envolver na efetivação de políticas sustentáveis. se tais incentivos forem concedidos com caráter edu- O Brasil vem tentando criar mecanismos que estimu- cativo, construindo na sociedade a visão de que ati- lem a preservação, prova disto é o capítulo na Cons- vidades que trazem benefícios ambientais devem ser tituição Federal destinado ao meio ambiente no qual praticadas por todos. O incentivo fiscal impulsiona es- assegura à população direito ao meio ambiente sau- sas atividades, ajudando-as a se firmar no mercado. dável. Mas, para tanto, todos os setores devem estar Sobretudo, buscou-se com a pesquisa demonstrar que engajados em práticas sustentáveis. o Direito Tributário é um instrumento eficaz na busca Nestes termos, foi analisado como o Direito Tributário do desenvolvimento sustentável, através dos tributos pode ser utilizado para incentivar ações em benefício extrafiscais que podem estimular determinadas ativi- do meio ambiente. Não resta dúvida do poder que o dades. No caso da pesquisa apresentada, trata-se de Estado exerce sobre a economia. Sua capacidade de incentivar a reciclagem, atividade que beneficia o meio intervir no domínio econômico pode determinar com- ambiente de várias formas, reduzindo a quantidade de portamentos, por meio de mecanismos indutores. As- lixo que irá para os aterros sanitários, com a diminui- sim funcionam os tributos extrafiscais, que são insti- ção da extração de matéria-prima virgem da nature- tuídos para estimular e desestimular determinadas za, além de ser um vetor na inclusão social e atividade atividades. economicamente lucrativa. Portanto é viável o estudo Os tributos extrafiscais se afastam da função principal de criação de tributos extrafiscais que encorajem as do tributo que é arrecadar dinheiro aos cofres públi- empresas ao uso de matérias-primas recicladas, bem cos e buscam direcionar os contribuintes, conforme o como estimulem toda a população a consumir produ- interesse público. Assim respeitados os limites consti- tos reciclados. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 51ISSN: 2177 - 1472
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HOLDING NO BRASIL: análise no campo comercial - processual HOLDING IN BRAZIL: analysis in the commercial– procedural field Eumar Evangelista de Menezes Júnior Carolina Oliveira Hajjar Thays França Rezende RESUMO the holdings operationalized in Brazil, used as means O presente estudo científico promove análise e dis- of shielding to the patrimonial protection. The func- cussão no campo comercial e processual das holdings tional explanatory research modeled by the inductive operacionalizadas no Brasil, usadas como meio de blin- approach methods, with bibliographical and expe- dagem à proteção patrimonial. A pesquisa explicativa rimental procedure, is linked to the current scenario funcional moldada pelos métodos de abordagem indu- (2017) showing how the use of the secondary function tiva, com procedimento bibliográfico e experimental, é of the holdings is made and how they are designed to ligada ao atual cenário (2017) mostrando como é feito be a means of protecting a certain patrimony, be it in- o uso da função secundária das holdings e como são dividual / individual or family. In this universe of socio- elas planejadas para serem meio de proteção de de- -juridical knowledge, the study achieves safe answers terminado patrimônio, seja ele particular/individual ou regarding the use of holdings, served the greater pur- familiar. Nesse universo de conhecimento sociojurídi- pose of fomenting the discourse regarding the econo- co, o estudo atinge respostas seguras quanto à forma mic and administrative functions tried and conquered de utilização das holdings, servido do propósito maior with its constitution. de fomento ao discurso quanto às funções econômi- cas e administrativas tentadas e conquistadas com sua KEYWORDS: Holding. Economic activity. Commercial - constituição. procedural field. PALAVRAS-CHAVE: Holding. Atividade econômica. Campo comercial - processual. 1 INTRODUÇÃO ABSTRACT O presente artigo científico promove análise e discus- The present scientific study promotes analysis and são no campo comercial e processual das holdings discussion in the commercial and procedural field of operacionalizadas à promoção da blindagem - prote- ção patrimonial. *Conselheiro da Cátedra Cristovam Buarque. Professor do curso de Direito do Centro Universitário de Anápolis – UniEVANGÉLICA. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direito - NPDU. Membro da ULA. Doutorando Ciências da Religião PUCGO – Bolsista FAPEG, Mestre em Sociedade, Tecnologia e Meio Ambiente, Especialista em Direito Notarial e Registral. Advogado. E-mail: [email protected] *Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Direito – NPDU. Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário de Anápolis – UniEVANGÉLICA. E-mail: [email protected] *Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Direito – NPDU. Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário de Anápolis – UniEVANGÉLICA. E-mail: [email protected] REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 54ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA O instituto da holding, historicamente, foi introduzido mercial e processual quando da sua aplicabilidade no no Brasil com a vigência da Lei 6404 aprovada no ano meio sociojurídico brasileiro. de 1976, denominada Lei das Sociedades Por Ações. Conforme regulação, a holding encontra tratamento 3 BREVE HISTORICIDADE DO DIREITO COMERCIAL jurídico específico no artigo 243, § 2°, esse que a co- loca controladora em meio a um número significativo As normas jurídicas dos negócios surgiram de acor- de controladas. do com as necessidades das primeiras civilizações Seguindo o que é pontuado no Brasil por inúmeros no século XXV a.C.. Pelos estudos da arqueologia, foi doutrinadores como Modesto Carvalhosa, Gladston constatado que na Suméria, no século XXl a.C., onde Mamede, Eduardo Costa Mamede, holding, enquanto atualmente é chamado de Iraque, já existiam normas arranjo empresarial, é sociedade anônima não opera- chamadas de Leis de Ur-Namme, que proibiam o cul- cional que tem seu patrimônio composto de ações de tivo na terra alheia e limitavam juros e as tabelas de outras companhias. preços. Essas normas jurídicas primitivas foram refor- Dessa forma, são características dessa sociedade ter madas em Lagash, no século XXV a.C., as quais limita- seu patrimônio formado de ações emitidas por outras vam a usura e os monopólios comerciais (MAMEDE, G.; companhias e exercer controle sobre elas ou delas MAMEDE, E. 2016). participar em caráter permanente, investindo nesta Já na Idade Média a atenção voltou-se para o campo, valor relevante de seu capital. Logo, seu objeto social pela existência do sistema feudal, porém, mesmo com é participar do capital de outras sociedades como con- a maior produção econômica existente no campo, ha- troladora ou investidora. via igualmente comércio nas cidades. Por esse motivo, Nesse universo pontuado de estudo epistemológico para se proteger, os artesãos e comerciantes se orga- jurídico, sendo-o em tempo e espaço declarado ho- nizaram e criaram corporações de ofícios, baseadas dierno, buscar-se-á enfatizar discussão e análise da em seus costumes consuetudos, que regulamentavam holding, utilizada pelos indivíduos a fim de blindar pa- a atividade mercantil, assim dando início ao Direito trimônio, protegendo-o de encargos avantajados de- Mercantil (MAMEDE, G.; MAMEDE, E., 2016). correntes do custo elevado de se ter um patrimônio Com o início do Direito Mercantil, surgiram as primei- considerável em nome de pessoas físicas, ou seja, uti- ras normas do comércio as quais o Estado Nacional lizando-o como blindagem patrimonial. utilizou como referência para a criação do chamado Código Comercial. O mais influente desses foi o Código 2 METODOLOGIA Comercial Francês, da era Napoleônica, pois com ele se instaurou um sistema jurídico estatal, visando disci- Na condição de estarmos diante de tema de suprarre- plinar as relações mercantis no lugar do antigo direito levância e importância no meio empresarial e na ne- de classe. Deixando de ser norteado pela ótica dos co- cessidade de implementarmos uma virtude epistêmi- merciantes, passando a seguir o espírito da burguesia ca, presente estando a característica multidisciplinar comercial e industrial, valorizando a riqueza imobiliá- que o envolve, a execução do presente artigo partirá ria, assim se fez o Código Comercial fundado na teoria de método de abordagem indutiva e procedimento bi- dos atos do comércio – teoria criada em 1807. bliográfico e experimental, com o objetivo de atingir Com a criação do Código Comercial Francês foi neces- uma explicação funcional das holdings operacionaliza- sário limitar sua área de influência. Para isso, criou-se das, usadas como blindagem à proteção patrimonial. a descrita teoria dos atos do comércio, a qual teve seu A abordagem indutiva será o caminho para se atingir início na fase de apogeu do liberalismo econômico, se- estado da arte, tudo a serviço da descrição e explica- gundo o qual todos os cidadãos poderiam realizar a ção do arranjo comercial designado holding, servindo atividade econômica, desde que seus atos estivessem de arcabouço jurídico ao entendimento de funções, previstos em lei. objetos, formas, espécies, procedimentos que preen- Sob a influência da época e no Império de Dom Pedro chem o arranjo tão bem utilizado à blindagem patri- II, foi constituído o Código Comercial Brasileiro, apro- monial. vado após a declaração da independência em 1822, A metodologia alimentada e instrumentalizada pro- fato confirmado no ano de 1850, estabelecendo quais porcionará plano otimizado à conquista do objetivo eram os atos comerciais. geral do estudo, sendo ponte a ampla discussão da O Código Comercial Brasileiro em espaço e tempo per- blindagem econômica, essa ligada as interfaces co- maneceu sem alterações ou revogações de grande re- REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 55ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA percussão até janeiro de 2002. Após essa data, toda sobre demais sociedades que a constituem. (MAMEDE, sua parte geral foi revogada, passando à regulação por G.; MAMEDE, E., 2016). meio de 229 artigos do Código Civil, esse aprovado no Quanto a sua evolução, no Brasil ela se deu por um pro- referido ano, 2002. Foi quando ocorreu a unificação cesso dividido em fases, cada uma com suas caracte- do Código Comercial e do Código Civil -Lei 10.406 de rísticas próprias e sua inovação em relação à anterior. 2002, juntamente com a substituição da Teoria dos O Quadro 01 a seguir apresenta as fases: Atos do Comércio pela Teoria da Empresa, a qual de- fende o enquadramento da atividade econômica or- QUADRO 01 – Fases do desenvolvimento das holdings ganizada independente da qualificação comercial ou no Brasil. civil. Fase I: caracterizada pelo florescimento da 4 PRINCÍPIOS QUE REGEM A ORDEM ECONÔMICA Empresa-mãe e das afiliadas. Empresa mãe é aquela na qual surgiu o grupo e onde foram ge- A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 170, de- rados os resultados aplicados na constituição termina que a Ordem Econômica Brasileira tenha suas das filiadas; bases em dois fundamentos, valorização do trabalho Fase II: decide-se transferir para a Empresa- humano e a livre iniciativa, com o objetivo de garantir -mãe o controle das afiliadas, constituindo nela a todos os indivíduos uma existência digna. A ordem um patrimônio muito maior. Facilita-se, assim, econômica, em seu sentido constitucional está reves- a transferência de recurso entre essas sem inci- tida da livre inciativa. Ela enquanto empresa mercantil, dência de imposto de renda, sendo que o acio- explorada pelo empresário, deve cumprir uma função nista continua operando a partir da Empresa- social. -mãe; Abordando a função social, atinge-se a defesa do con- Fase III: acionistas decidem construir uma hol- sumidor, direito fundamental descrito no artigo 5° da ding para controle das afiliadas, uma vez que Constituição Federal, o qual estabelece que o consu- essas agora de grande porte geram muitos re- midor é a parte mais fraca da relação, devendo assim cursos que devem ser distribuídos entre elas. ser protegida; a defesa do meio ambiente, prevista no Assim, acionistas decidem nomear um executi- artigo 225 da Constituição Federal, o qual protege o vo para coordenar as coligadas e reportar seus ideal do desenvolvimento sustentável, pregando que rendimentos à Diretoria da Empresa-Mãe; ocorra a produção de riquezas orientada pela prote- Fase IV: decide-se construir uma holding admi- ção ambiental. nistrativa acima da Empresa-Mãe e da holding No cenário, a livre concorrência, conforme o artigo 174, das coligadas, transferindo, assim, o lucro de § 4° da Carta Magna, reprime o abuso do poder econô- pessoa jurídica para pessoa jurídica, gerando mico visando à dominação dos mercados, à eliminação uma vantagem legal. Essa holding administrati- da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. va é constituída pelas ações que os controlado- Já quanto ao tratamento favorecido destinado às em- res têm da Empresa-mãe e pela transferência presas de pequeno porte, o artigo 179 da Constituição das ações que a Empresa-mãe tem da holding Federal tem como objetivo a proteção das entidades das coligadas; que não possuam condições de competir diretamente Fase V: nessa fase, os acionistas decidem trans- com as grandes empresas e, assim, tenta-se pôr em ferir-se para a sede da Holding Administrativa, prática a liberdade de concorrência e de iniciativa. constituindo-a como sociedade de comando do conglomerado e criando nela uma diretoria 5 SURGIMENTO DAS HOLDINGS NO BRASIL para orientar e controlar todo o grupo. Geral- mente cria-se também entre a Holding Admi- Historicamente, o instituto da holding surgiu no Brasil nistrativa e as pessoas físicas holdings pessoais no século XX, tendo nascido na década de 70 com o puras para facilitar administração do patrimô- advento da Lei 6404 de 1976, mais conhecida como Lei nio e investimentos de cada pessoa física ou das Sociedades Anônimas. A sua nomenclatura é pro- ramo familiar. veniente da língua inglesa, surgida a partir do termo to hold, o qual transmite a ideia de controlar, segurar. O Fonte: (MAMEDE, G.; MAMEDE, E., 2016). termo tabula uma ideia de sociedade que exerce poder REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 56ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA 5.1 Holdings e suas interfaces 5.2 Espécies variadas e maximizadas das holdings O instituto da holding, na forma que é apresentada, A constituição do instituto da holding não será feita adentrou no cenário nacional a partir da vigência da Lei sempre para alcançar os mesmos objetivos. Por esses 6.404 de 1976. Essa lei, amplamente conhecida como motivos foram designadas formas distintas de holdin- Lei das Sociedades por Ações, trouxe em seu artigo gs pelo mundo, e especialmente no Brasil, que buscam 243 a definição do que seria esse tipo especifico de alcançar objetivos diferentes. Dessa forma, pode-se sociedade, logo o abordando no tópico que trata das referir a tipos diversos de holdings, e é assim que o sociedades coligadas, controladoras e controladas. presente estudo a apresenta, sob a forma de espécies No caso das sociedades – holdings, segundo Carva- variadas. lhosa (2009), elas podem ser conceituadas como so- Nesse plano, na presença de variadas formas, em um ciedades não operacionais que têm seu patrimônio primeiro momento destaca-se a existência da chama- composto de ações de outras companhias. São cons- da holding pura. Essa é constituída, segundo Mamede, tituídas para o exercício do poder de controle ou para G. e Mamede, E. (2016), com objetivo exclusivo de ser participação relevante em outras companhias, visando titular de quotas ou ações de outra ou outras socieda- nesse caso constituir a coligação. des. Nesse caso, a receita desse tipo será composta ex- Nessa esteira literal, ainda Carvalhosa (2014) enfatiza clusivamente pela distribuição de lucros e juros sobre o fato de que, em geral, essas sociedades de participa- o capital próprio. ção acionário não praticam operações comerciais, mas Dentro do tipo societário das holdings puras há dife- apenas a administração de seu patrimônio. Quando renciação entre: holding de controle, holding de parti- exerce controle, a holding tem uma relação de domi- cipação, holding de administração e holding de orga- nação com as suas controladas, que serão suas sub- nização. A primeira delas, a holding de controle, seria sidiárias. Enfatiza o fato de ela possuir seu patrimônio aquela que tem por finalidade específica deter quotas formado de ações emitidas por outras companhias, ou ações de outra ou outras sociedades em montante no tocante que, ao exercer a atividade econômica, ela suficiente para exercer o seu controle (MAMEDE, G.; exerce o controle sobre elas ou delas participa em ca- MAMEDE, E., 2016). ráter permanente, com investimento relevante em seu Logo em oposição a essa primeira especificação, tem- capital. -se a holding de participação. Igualmente à anterior, Nesse cenário, um ponto que cabe ser ressaltado é o ela é titular de quotas e/ou ações de outra(s) socie- fato de que, apesar do instituto da holding estar in- dade(s), porém sem deter o controle de qualquer uma serido na Lei das Sociedades por Ações, nada obsta delas. Em seguida, temos a holding de administração, a que ela seja constituída de outro tipo societário. Por qual, segundo Mamede, G. e Mamede, E. (2016, p. 12), sua vez, a terminologia holding não remete a um tipo é “sociedade de participação constituída para centra- societário determinado e, sim, à administração e con- lizar a administração de outras sociedades, definindo trole de uma sociedade sobre algumas controladas. planos, orientações, metas”. No que validado é a possibilidade de outros tipos, logo Já em sentido oposto ao que é definido como holding nada impede que a holding se organize em forma de pura, apresenta-se a holding mista. Neste caso, tem- sociedade anônima ou em sociedade por cotas, sem -se, segundo Carvalhosa (2016), uma sociedade que perder suas características centrais. Acrescentando, não se dedica exclusivamente a titularidade de partici- afirmam Mamede, G. e Mamede, E. (2016) que holding pação ou participações societárias, mas que se dedica é uma sociedade que detém participação societária simultaneamente a atividades empresariais no sentido em outras sociedades, tenha sido constituída exclu- estrito, ou seja, à produção e/ou circulação de bens, sivamente para isso ou não, não importando seu tipo, prestação de serviços etc. seja ele sobre cotas ou por ações. Além disso, uma sociedade que tem por fim circulação Ao nomear esse tipo societário holding, faz-se menção e/ou produção de bens ou serviços pode titularizar ao verbo em inglês to hold, o qual se refere não ape- quotas ou ações. Surge, assim, a chamada holding pa- nas ao ato de segurar ou deter, mas quer enfatizar o trimonial, a qual é constituída com a finalidade de ser ato de domínio. Logo, ela é criada com o fim de admi- proprietária de certo patrimônio e a holding imobiliá- nistrar sua participação em outras sociedades, mesmo ria, um tipo específico da patrimonial criado para ser que esse não seja seu único objetivo como veremos a titular de bens imóveis. seguir. Em síntese, as holdings podem ser apresentadas nas REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 57ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA seguintes formas: holding pura, a qual possui como pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômi- espécies: holding de controle, holding de participação, ca (CADE), o qual teve sua constituição pela Lei 4137, holding de administração e holding de organização; de 1962. Ele exerce em todo o território nacional suas holding mista, a qual tem como espécies: holding pa- atribuições, e regula a repressão ao Abuso do Poder trimonial, criada para ser proprietária de certo patri- Econômico. Com a Lei 8.884, de 1994, foi considerado mônio e por fim a holding imobiliária, para bens imó- Autarquia Federal vinculada ao Ministério da Justiça veis. e ainda a Lei 12.529, de 2011. O CADE garante a livre concorrência no mercado, sendo responsável, no âm- 5.3 Cenário de controle, supervisão e fiscalização bito do Poder Executivo, não só por investigar e deci- dir, em última instância, sobre a matéria concorrencial, A constituição das holdings no Brasil, como já dito, se como também fomentar e disseminar a cultura da livre deu graças ao texto legal criptografado na Lei 6.404 concorrência. de 1976, em seu artigo 2º, § 3º. O trecho normativo deixa cristalino que a companhia pode ter por objeto 5.4 Holding revestida de blindagem patrimonial e participar de outras sociedades, acrescentando ainda efeitos de seu uso que não prevista no estatuto, a participação é faculta- da como meio de realizar o objeto social ou para bene- O instituto da holding é comumente procurado por ficiar-se de incentivos fiscais. certas pessoas e/ou grupos visando à proteção de seus As holdings devem seguir padrões da estrutura socie- bens. Essa procura de certa forma advém da busca por tária regulamentados pela Lei 6.404 de 1976, que se- uma proteção patrimonial, uma vez que, com sua cria- rão realizados por meio de seu Estatuto Social. Além ção, transfere-se para essa sociedade a propriedade do Estatuto Social, os sócios deverão realizar um acor- dos bens dos partícipes, resguardando-os assim de do de acionistas, o qual irá regular questões importan- possíveis prejuízos futuros. tes, como o direito de voto, a administração, a entrada Quando há o interesse nessa proteção patrimonial, e saída de sócios e outras questões primordiais para procura-se criar o tipo chamado holding familiar, uma a manutenção da empresa. Este acordo de acionistas vez que a propriedade de bens em nome de uma pes- será importante em caso de desentendimentos, sen- soa física oferece uma série de riscos e custos elevados do assim a votação decidirá sobre as diretrizes a se- quando comparados à sua incorporação a uma pessoa rem seguidas na empresa operacional, descartando a jurídica. A opção pela constituição de uma pessoa jurí- emoção das pessoas naturais e agindo como unidade dica que controle o patrimônio da pessoa física – Hol- jurídica. ding Patrimonial – implica em vantagens concretas, O controle, a supervisão e a fiscalização delas são re- posto que os bens da pessoa física, que é apenas titular alizados pelo Conselho Administrativo de Defesa Eco- de quotas, passam para a pessoa jurídica, havendo, as- nômica (CADE) e pela Comissão de Valores Mobiliários sim, vantagens para seus titulares, principalmente no (CVM), o qual é o órgão oficial cuja função primordial é que concerne a impostos. a de fiscalização das atividades do mercado de valores Para a criação da holding familiar, o primeiro passo é mobiliários. a escolha do tipo societário que melhor se adapta às A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) foi criada a necessidades da pessoa física, pois como já foi expli- partir da Lei 6.385 de 1976 e está vinculada ao Minis- cado no bojo do artigo, a holding não remete a um tipo tério da Fazenda. Abrange as companhias de capital societário único. Juntamente a essa escolha deve-se aberto, os fundos de investimento, ofertas públicas optar por quem irá constituir essa sociedade. Assim, de valores mobiliários, as instituições participantes do após isso, será possível examinar o capital social da so- sistema de distribuição, assim como os clientes e in- ciedade, o qual será constituído pelos bens da pessoa vestidores que operam no mercado de valores mobili- física criadora da holding representado por quotas ou ários. Além de fiscalizar, entre as suas finalidades prin- ações. cipais está promover a expansão e o funcionamento Nessa corrente, a holding visa blindar o patrimônio de regular do mercado de ações, estimular as aplicações forma legal, possuindo os seus benefícios respaldados em ações do capital social de companhias abertas sob em lei específica. Assim, ela não pode ser criada com a controle de capitais privados nacionais e garantir a efi- finalidade de se obter vantagem de forma ilícita e sim, ciência e a regularidade do mercado de capitais. para através da utilização de meios de planejamentos Em reforço legal as holdings também são fiscalizadas legais, beneficiar financeiramente seu criador. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 58ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA Assim, uma vez criada a holding, ela gerará benefícios dendo por dívidas trabalhistas, fiscais, bancárias ou até tributários e facilitará o planejamento sucessório, evi- mesmo civis, como penhora, alienações judiciais, entre tando brigas futuras entre os herdeiros. O ponto forte outras. Sendo assim, com a constituição da empresa, da montagem da holding é a blindagem patrimonial, os bens são protegidos pela pessoa jurídica e não são uma vez que, segundo João Alberto Borges Teixeira atingidos diretamente a não ser em casos extremos (2007), “a criação de uma holding pode ser interessan- como o de fraudes, insolvência contra credores ou fa- te, principalmente, para aspecto fiscal e/ou societá- lência e resulte em desconsideração da personalidade rio”, gerando redução da carga tributária, planejamen- jurídica. to sucessório, retorno do capital sob forma de lucros e A holding, no entanto, pode apresentar desvantagens dividendos sem tributação. que devem ser analisadas antes da sua constituição, Logo, desde que criada da forma correta e visando desvantagens que, em regra, estarão presentes mui- atingir interesses lícitos e válidos, a holding familiar to mais em função da existência da holding em si do faz-se vantajosa em diversos aspectos, pois além de que em função da sucessão em vida. Diante disso, Oli- gerar melhoria da gestão patrimonial de forma organi- veira (2003) ressalta que as desvantagens podem ser zada, promove benefícios tributários e facilitará o pla- administrativas e financeiras, as quais se caracterizam nejamento sucessório. por: não se poder usar prejuízos fiscais, o que basica- mente ocorre em caso de holding pura; ter maior car- 6 DISCUSSÃO QUANDO DA UTILIZAÇÃO DAS SOCIE- ga tributária caso não exista adequado planejamento DADES NÃO OPERACIONAIS, VISANDO À BLINDAGEM fiscal; ter tributação de ganho de capital na venda de PATRIMONIAL NO CAMPO COMERCIAL E PROCESSUAL participação das empresas afiliadas; ter maior volume de despesas com funções centralizadas na holding; ter Quando pensamos nos núcleos familiares e empresa- imediata compensação de lucros e perdas das inves- riais, percebemos que eles buscam uma forma de pro- tidas pela ocorrência da equivalência patrimonial; ter teção ao patrimônio diante de problemas que possam diminuição da distribuição de lucros por um processo ameaçar o futuro de seus bens, sendo assim tomam de sinergia negativa em que o todo pode ser menor decisões que possam garantir a preservação do patri- do que a soma das partes. Já administrativamente as mônio aludido. Por este motivo, existe uma busca pela desvantagens se caracterizam por: elevada quantida- formação da chamada holding familiar, a qual assegura de de níveis hierárquicos; falta de adequado nível de a redução na carga tributária e, principalmente, facili- motivação nos diversos níveis hierárquicos; perda de ta o processo de inventário, garantindo o controle do responsabilidade e autoridade provocada pela maior patrimônio. centralização do processo decisório na empresa. Por conseguinte, quando o empresário, pessoa jurí- Em geral, quando se institui uma holding, é garantida e dica ou física de direito, decide instituir uma holding facilitada a administração dos herdeiros, uma vez que familiar tendo como objetivo a blindagem patrimonial, o objeto social de uma holding pura é participar de ou- este terá que concentrar em seu capital social parte ou tras sociedades como sócia ou acionista, ao invés de a totalidade de bens dos participantes de uma mes- exercer uma atividade produtiva ou comercial. Pois são ma família, os quais passarão a ser sócios da mesma constituídas para o exercício do poder de controle ou empresa, garantindo ao fundador o direito de esco- para a participação relevante em outras companhias, lher quem e como será gerida a empresa e os bens na visando constituir uma coligação. sua ausência através do Estatuto Social, que regulariza questões referentes à holding. 7 EFEITOS E REPERCUSSÕES NO ORDENAMENTO JU- Destarte, os benefícios trazidos pela holding familiar RÍDICO BRASILEIRO são diversos, incidindo principalmente na diminuição de custos tributários, trazendo agilidade e rapidez à A narrativa do artigo firma que o instituto da holding questão de partilha de bens, fazendo com que os bens garante diversos benefícios no meio empresarial, des- permaneçam na família durante muitas gerações e de que lícita e constituída de boa-fé. Sendo assim, na proteção do patrimônio, a qual faz-se referência à existem também benefícios em outros ramos jurídicos, “blindagem” patrimonial. Os bens de um empresário como no Direito Societário, Direito de Família e Direito estão sempre sujeitos a ações judiciais dentro da lei, na Tributário. maioria das vezes derivadas de responsabilidade civil, A sociedade brasileira vive um cenário em estado de e, por estar exposto, o patrimônio pode acabar respon- calamidade no meio jurídico, no qual existe uma super- REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 59ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA lotação no judiciário, e por consequência os processos a diversidade doutrinária, tendo por base renomados que tratam do patrimônio têm demorado anos para se- autores que investigam e exploram as múltiplas faces rem resolvidos. Em virtude deste fato, é apresentado o do Direito Empresarial. planejamento sucessório com a formação de holdings, Frente ao tema escolhido, acredita ter-se alcançado os que evita esses conflitos e consequentemente a incer- pontos essenciais que tratam da blindagem patrimo- teza da administração do patrimônio. nial. Assim, após longa análise do instituto da holding, A holding tem como objetivo conduzir o controle socie- figurado na Lei 6404, de 1976, visando à proteção pa- tário de outras empresas e suas subsidiárias e, ao mes- trimonial, espera-se ter sido capaz de responder ques- mo tempo, propiciar uma maior proteção patrimonial. tões quanto a sua empregabilidade e validade no ter- Com sua utilização não há comunicação entre o patri- ritório nacional, abrangendo desde sua criação, forma mônio desta com o de seus sócios, ficando os bens da de atuação, fiscalização até sua repercussão no cená- holding protegidos contra possíveis demandas judiciais, rio nacional. não ficando expostos a ações fiscais ou trabalhistas. Assim, explanou-se a forma como a holding é constitu- Sendo a holding familiar formada, podem-se evitar ída, a partir do cumprimento dos requisitos obrigató- inúmeros problemas, já que questões como a sucessão rios; as formas sob as quais pode ser criada; como ela estarão pré-designadas pelo fundador. Esses proble- é regulada por seus administradores; as vantagens que mas podem ser gastos de tributação com o Judiciário ela pode trazer para a proteção de certos tipos patri- e ações desnecessárias que comprometem a empresa, moniais, além da forma como é fiscalizada pelo Estado, como também os anos gastos em causas de conflitos a fim de que seja cumprido seu fim licitamente. judiciais familiares e desgastes propiciados por eles. De forma mais intensa, foi tratado o uso da holding do tipo familiar para proteção de patrimônios e planeja- 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS mento sucessório como meio de evitar futuros encar- gos abusivos, desentendimentos familiares e trânsitos Todos os dados apresentados foram frutos de um lon- legais demasiadamente longos. Buscou-se explanar go processo de leitura acerca do instituto da holding como esse fim secundário da holding é rotulado pelos e sua aplicação, sendo utilizado o texto normativo e doutrinadores mais influentes do país nessa matéria. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. (Constituição [1988]) Constituição da República Federativa do Brasil 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2017]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em: 10 jun. 2017. BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em: 20 jun. 2017. BRASIL. Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Brasília, DF: Presidên- cia da República, [2016]. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6404consol.htm. BRASIL. Lei 8.884, de 11 de junho de 1994. Transforma o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) em Autarquia, dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/L8884.htm#art92. Acesso em: 20 jun. 2017. BRASIL. Lei 12.529, de 30 de novembro de 2011. Estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica; altera a Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, e a Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985; revoga dispositivos da Lei no 8.884, de 11 de junho de 1994, e a Lei no 9.781, de 19 de janeiro de 1999; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República [2016]. Disponível em: REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 60ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12529.htm. Acesso em: 20 jun. 2017. MAMEDE, Gladston; MAMEDE, Eduardo Costa. Holding familiar e suas vantagens: planejamento jurídico e econômico do patrimônio e da sucessão familiar. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2016. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. 5. ed., vol.4. São Paulo: Saraiva, 2014. CARVALHOSA, Modesto. Comentário à lei de Sociedades Anônimas. 3. ed., vol.4. São Paulo: Saraiva, 2009. OLIVEIRA, Djalma de Pinho Rebouças de. Holding: Administração corporativa e unidade estratégica de negó- cios uma abordagem pratica. 3º ed. São Paulo: Atlas, 2003 TEIXEIRA, João Alberto Borges. Holding Familiar: Tipo Societário e seu Regime de Tributação. Tupã/SP, 10 de maio de 2007. Disponível em: https://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=661. Acesso em: 20 jun. 2017. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 61ISSN: 2177 - 1472
O DIREITO AUTORAL MUSICAL E OS PROBLEMAS ENFRENTADOS NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO DE MASSA NA ATUALIDADE MUSICAL AUTHORITY LAW AND THE PROBLEMS COVERED IN THE MASS MEDIA IN THE PRESENT Richard Carvalho Miranda Oduvaldo Santana Júnior RESUMO derstand the best way to deal with such situations wi- O presente trabalho abordou o direito autoral musical thout denying the author’s rights guaranteed by law. e os problemas enfrentados nos meios de comunica- The main problem observed is the lack of physical li- ção de massa na atualidade, mediante os avanços tec- mits of the World Wide Web. This research had the ge- nológicos presentes na vida cotidiana do ser humano. neral objective to approach the musical copyright in Buscou-se proporcionar conhecimentos quanto ao di- face of the expanding access through various means reito autoral musical, bem como quanto aos problemas of communication, pointing out what can be done to enfrentados nos meios de comunicação de massa da ensure that these rights are preserved. atualidade, numa tentativa de compreender a melhor maneira de lidar com tais situações sem tirar do au- KEYWORDS: Copyright. Musical works. Protection of tor seus direitos garantidos pelas legislações vigentes. rights. Internet. Exhibition. Tem-se como principal problema a falta de limites físi- cos da rede mundial de computadores. Esta pesquisa 1 INTRODUÇÃO teve por objetivo geral abordar o direito autoral musi- cal mediante a expansão do acesso por meios de co- A internet é um marco da atualidade. As pessoas de- municação de massa diversos, apontando o que pode pendem cada vez mais deste artifício para realizar suas ser feito para garantir que esses direitos sejam preser- atividades profissionais, para o lazer, para se comu- vados. nicar, enfim, para grande parte de suas atividades. A internet, enquanto difusora de informações, tem sido PALAVRAS-CHAVE: Direito autoral. Obras musicais. utilizada na atualidade para a divulgação de músicas, Proteção dos direitos. Internet. Exposição. paródias e diversos tipos de vídeos e áudios que aca- bam “viralizando” ao receber milhares de acessos, pro- ABSTRACT porcionando a seus autores lucros. This study addressed the topic of musical copyright Diante disso, o presente trabalho visa abordar o direito and the problems faced by mass media nowadays autoral musical e os problemas enfrentados nos meios due to the technological advances present in every- de comunicação de massa, compreendendo de que day life as the internet. We aimed to provide knowle- forma é possível lidar com tais situações garantindo os dge about musical copyright, as well as the problems direitos do cidadão. faced by mass media nowadays, in an attempt to un- A problemática desta pesquisa é compreender de que *Bacharel em Direito pela UniRV (Universidade de Rio Verde) *Professor Mestre em Desenvolvimento Regional, ocupante da cadeira de Direito Civil da Universidade de Rio Verde, nas disciplinas de Direito de Família e Sucessões. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 62ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA modo é possível combater a falta de limites físicos da O presente trabalho foi elaborado com base em análise internet para garantir os direitos autorais musicais, documental, em que se buscou coletar informações de mesmo que hoje se depare com um Direito conser- livros, documentos eletrônicos, textos, artigos científi- vador e burocrático que não permite ao legislador o cos, documentos publicados e revistas, caracterizan- acompanhamento dos meios de comunicação de mas- do-o como pesquisa bibliográfica científica. sa e das novas tecnologias utilizadas. A internet possibilita diariamente uma verdadeira re- 2 DIREITO AUTORAL volução de novos artistas e músicas que são desco- bertos por meio dela, sendo um meio de comunicação O direito autoral pode ser visto como um tema de gran- de larga escala, além de possibilitar o contato de pes- de complexidade, envolvendo interesses particulares, soas do mundo inteiro de forma instantânea a longas econômicos, sociais e políticos. Observa-se que, desde distâncias, promovendo também o acesso a diversas o seu surgimento, há muitas disputas relacionadas às formas de entretenimento, notícias e informações di- relações autorais, sobressaindo sempre os interesses versas. Embora possa parecer algo perfeito, observa- econômicos e políticos em detrimento do detentor da -se a falta de controle de conteúdos, de privacidade e autoria. Por meio de manobras obscuras, são tecidas de direitos. as legislações favorecendo tais interesses. Por sua vez, A lei brasileira garante ao criador de toda obra de cunho o autor é sempre prejudicado, especialmente quan- intelectual todos os rendimentos e recompensas pelo do há gestão coletiva e transferências de titularidade uso de terceiros sobre essa produção. Não há meios de (MELO, 2013). A seguir, serão apresentados os concei- controle ou leis para os meios de comunicação atuais, tos relativos ao tema, sua evolução histórica em nível e seus usuários podem divulgar informações diversas, nacional e mundial. o que se torna um desafio para a garantia jurídica da O direito autoral é um dos principais direitos relaciona- proteção dos direitos e possibilita o cometimento de dos à propriedade Intelectual e está legalmente regu- vários crimes e violações, impossibilitando que haja lamentado pela Lei 9.610/98 no Brasil, recentemente controle de infrações aos direitos autorais. atualizada por meio da Lei 12853/13. O interesse pelo tema em questão surgiu pela obser- Embora não haja definição expressa na lei quanto ao vação da falta de segurança imposta a todos aqueles conceito de direito autoral, Afonso (2009, p. 10) con- que acessam e divulgam, por meio da rede mundial ceitua este como: de computadores, algum material de autoria própria como as músicas, visando à importância de garantir os O direito que o criador de obra intelectual tem de direitos autorais a todos na atualidade. gozar dos produtos resultantes da reprodução, O objetivo geral desta pesquisa é abordar o direito ou da representação de suas criações e outros autoral musical mediante a expansão do acesso por como o conjunto de normas que estabelecem meios de comunicação de massa diversos, apontando os direitos e deveres sobre as obras do espírito o que pode ser feito para garantir que esses direitos correspondentes a quem tenha criado, ou seja, sejam preservados. seus titulares, independentemente dos direitos Os objetivos específicos desta pesquisa são: e deveres de outras pessoas ou entidades. • Conceituar o direito autoral, apresentar sua evolução histórica no âmbito mundial e no Brasil; Chaves (1987, p. 12) enfatiza que: • Apresentar os direitos moral e patrimonial, bem como apontar os principais critérios para a proteção desses As diretrizes doutrinárias podem ser direitos; desdobradas nos seguintes tópicos: o direito • Analisar os aspectos que envolvem o registro, a pro- de autor é um direito de coletividade; é um teção do direito autoral como está garantido na Cons- direito real de propriedade; é uma emanação do tituição, quanto às obras musicais, o plágio e a gestão direito de personalidade; é um direito especial coletiva destes direitos. de propriedade, tendo por objeto um valor As facilidades da internet e a possibilidade de extrair imaterial; é um direito sui generis, que sob obras intelectuais assustam os autores, causando nes- essa perspectiva, abarca diversos elementos tes insegurança. Nesse sentido, é importante analisar do direito público e privado; é um direito de os aspectos jurídicos ligados aos direitos autorais da clientela; é um direito dúplice de caráter real música na internet. pessoal-patrimonial. Essa teoria está atrelada ao fato de o direito do autor ser composto por direito moral e direito patrimonial. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 63ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA Deste modo, o direito autoral constitui um conjunto de que se cumprem de maneira espontânea, prerrogativas e aspectos que visam, ao autor de algum como, por exemplo, ser bom e honesto. tipo de obra musical ou intelectual, a proteção de seus Tais comportamentos são cumpridos sem direitos quanto aos benefícios e rendimentos relativos a necessidade de ninguém nos forçar para a esta, garantindo assim total resguardo quanto aos agir dessa maneira, é o mundo de conduta seus direitos patrimoniais e morais. espontânea, onde estas regras sociais são cumpridas, muitas das vezes, sem nem 3 DIREITO MORAL E PATRIMONIAL percebermos, este é o campo de atribuição da moral. Já por outro lado existem regras sociais O direito moral e o direito material/patrimonial do au- que o homem em sociedade só cumpre de tor são os responsáveis por diversas dúvidas e questio- forma obrigatória ou forçada, este é o campo de namentos quanto a suas reais concepções. Por isso, é atribuição do Direito, regra social que tem como importante esclarecer os conceitos quanto a cada um sua essência a coercibilidade, visando regular o deles. homem em sociedade de forma jurídica tendo a O direito moral e o patrimonial são duas vertentes per- figura do Estado como regulador dessas regras tencentes aos direitos autorais, como forma de pro- de organização, onde não sendo cumpridas tais teção daqueles ligados à obra autoral, conforme traz regras, o homem será forçado a cumpri-las e se Menezes (2007). Direito autoral é, por assim dizer, um enquadrar nesses ditames. (SÁ, 2014). conjunto de prerrogativas que visa à proteção dos di- reitos do autor, daqueles ligados a ele, de forma a res- Os direitos morais, também na contramão dos patri- guardar seus direitos patrimoniais e morais. A duração moniais, não podem ser renunciados, independente dos direitos morais e patrimoniais autorais perdura por da natureza da renúncia, mesmo que os direitos patri- toda a vida, contudo se houver morte do autor, passam moniais tenham sido extintos. O referido autor da obra então os direitos ao sucessor, podendo gozar desses poderá, ainda, reivindicar os direitos morais ao longo direitos por 70 anos. de toda a sua vida; nos casos em que este faleça sem a A seguir, serão apresentados os principais conceitos obra estar em domínio público, há direito aos herdeiros acerca de tais direitos, bem como os critérios que os de reivindicar os direitos morais da obra. garantem conforme a legislação brasileira vigente. Os direitos morais abrangem a reivindicação da autoria da obra a qualquer tempo, bem como de ter seu nome 3.1 Direito Moral ou pseudônimo identificados como autor, quando hou- ver reprodução ou uso da obra. Há a garantia da con- Denominado como Direito Moral ou Direitos Morais, tal servação da obra inédita e de sua integridade contra ramo trata das garantias e direitos que são consagra- qualquer forma de modificação, sendo esta possibili- dos pela legislação brasileira aos autores e suas obras dade cabida somente ao próprio autor, que pode fazer que são devidamente protegidas por direitos de autor, modificações tanto antes quanto após sua publicação. sendo direitos de natureza pessoal, inversos aos direi- Ainda cabe a ele a retirada de circulação da obra, bem tos de natureza patrimonial, que também abrangem os como a suspensão do uso já autorizado, se isso impli- direitos de autor. Contam em sua composição com os car afronta à sua reputação e imagem (SENADO FEDE- direitos à autoria e à integridade, permitindo a reivin- RAL, 2015). dicação da autoria da obra, bem como sua integridade Para Menezes (2013) o direito moral de autor pode ser e genuinidade. conceituado como: Para melhor compreender o conceito de Direito Moral, é necessário inicialmente compreender seus conceitos A proteção que está ligada à paternidade da individuais, conforme se observa a seguir: obra, ou seja, ao vínculo entre criador e criatura. No artigo 24 da Lei de Direitos Autorais, estão O Direito e a Moral são regras sociais que definidos quais exatamente são os direitos regulam o comportamento do Homem morais do autor. O mais conhecido é o direito em sociedade, definindo um conceito de que o autor tem de ver seu nome publicado comportamento que é certo e o que não se juntamente com a obra. É o que, na fotografia, enquadra neste comportamento é tido como chamamos de crédito. Portanto, é direito moral errado. Se observarmos os fatos que acontecem do fotógrafo a publicação de seus créditos. na sociedade, desde os primórdios, é possível O direito à integridade da obra e o direito a enxergarmos que existem regras sociais modificá-la também são exemplos de direitos morais de autor. Ainda de acordo com Menezes (2013), os direitos mo- REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 64ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA rais do autor têm caráter inalienável e intransferível, adverso do direito moral de autor, este pode ser trans- permanentes, não podendo, jamais, ao utilizar-se de ferido, negociado tanto em partes como integralmen- uma obra, deixar de citar o crédito autoral, não poden- te a terceiros, conforme a vontade do autor, sendo os do aquele que a utilizar realizar quaisquer alterações, beneficiados detentores do direito de exploração, pas- independentemente de sua natureza, mesmo que o sando a ter o domínio sobre a obra, que lhes dá autori- autor já tenha falecido. dade para a permissão ou proibição quanto ao seu uso, Ainda afirma que em caso de violação do direito moral reprodução, etc., podendo tal negociação dos direi- de autor, este terá direito a indenização, ou ainda seus tos patrimoniais ter ou não fins lucrativos (MENEZES, sucessores, por danos morais, cabendo ainda direito 2013). de reparação de danos. Deve-se publicar os créditos, O direito patrimonial, assim como o direito moral, está além de retornar a obra ao original conforme está pre- expresso na Lei 9.610/98, que em seu artigo 28 dispõe visto pela Lei de Direitos Autorais, que ainda indica as que o autor, dono da obra musical, pode usufruir como maneiras como isso deverá ser feito, especialmente achar necessário de sua obra: “Cabe ao autor o direito conforme o que consta no artigo 108. exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, ar- O direito moral busca a satisfação pessoal do autor ad- tística ou científica” (BRASIL, 1998). vinda de sua “criação única de espírito e da cultura” Menezes (2013) afirma ainda quanto aos direitos patri- (BITTAR, 2013, p.69), unindo a obra ao seu autor, crian- moniais que eles têm prazo de duração determinado, do a possibilidade de defesa de sua personalidade. conforme consta no o artigo 44 da Lei de Direitos Au- Fiuza (2014, p.1145) ainda reafirma, quanto aos direi- torais, sendo que ultrapassado este período: tos morais do autor, que este conta com o direito de “reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra; o de A obra “cai em domínio público”, o que significa ter seu nome figurado como autor da obra; o de con- que haverá liberação da utilização da obra, ou servar a obra inédita; o de assegurar a integralidade da seja, não haverá mais proteção sob o aspecto obra, impedindo modificações; o de modificar a obra e patrimonial. Porém, mesmo após os 70 anos, o de retirá-la de circulação” . os créditos, a integridade da obra e todos os demais direitos morais de autor permanecerão 3.2 Direito Patrimonial vigentes e deverão ser respeitados. O direito patrimonial, diferentemente do direito moral, Os direitos patrimoniais do autor após sua morte pas- visa à proteção advinda das vantagens econômicas sam aos herdeiros e contando a partir do 1° de janei- decorrentes da obra autoral, “e dizem respeito à frui- ro do ano seguinte do falecimento, perduram por 70 ção e à disposição da obra, bem como a autorização a anos, podendo ser transferidos ou ainda podendo ser terceiros do uso, da fruição e da disposição” (FIUZA, vendidos a outro que passa a ser o titular de direitos, 2014, p.1146). porém não pode ser citado como autor tendo em vista Para Menezes (2013), o direito patrimonial de autor di- que a autoria é um direito moral intransferível (SENA- reciona-se para a capacidade de se usufruir e utilizar, DO FEDERAL, 2014). da disposição da obra, de acordo com o que prevê o No caso da autoria de obras, é possível citar como di- artigo 28 e artigos seguintes da Lei de Direitos Auto- reitos patrimoniais: rais. O direito patrimonial é conceituado no Código Civil -Usufruir e dispor da obra, autorizando ou não a Brasileiro como o conjunto de regras previstas com o sua utilização; intuito de garantir a regulamentação das diversas for- -Colocar à disposição do público a obra, na mas possíveis de união econômica entre cônjuges no forma, local e pelo tempo que desejar, cobrando Brasil, determinando o destino dos bens com a ocor- ou não por isso; rência do matrimônio, havendo um título inteiro dire- -Receber, no mínimo, 5% sobre o aumento cionado a Direito Patrimonial no Código Civil conforme do preço em cada revenda de obra de arte ou o que está descrito no título II, entre os artigos 1639 ao manuscrito original (SENADO FEDERAL, 2014). 1722 (BRASIL, 2002). É ainda possível considerar que o direito patrimonial De acordo com o Senado Federal (2014), após o prazo está intimamente associado ao valor econômico da de 70 anos da morte do autor, observa-se que a obra obra, sendo tal direito pertencente ao autor. Porém, ao torna-se de domínio público, passando a ser função do Estado defender e garantir sua total integridade e autoria. O mesmo ocorre no caso de obras cujos auto- REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 65ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA res já tenham falecido e que não haja herdeiros, assim marcas, moldes, patentes, desenhos de caráter indus- também quando o autor for desconhecido. trial, indicações geográficas e proteção de cultivares. Quando a obra tiver sido revisada e concluída, contan- Quanto à proteção dos direitos, observa-se que: do com versão definitiva, não poderão ser reproduzi- das outras versões por seus herdeiros mesmo sendo Conforme se percebe da leitura dos artigos, anteriores. Não tem direito sobre as obras o cônjuge a proteção às obras intelectuais (Direitos do autor, somente quanto a sua exploração, exceto em Autorais), ao contrário do que ocorre com as casos de acordo antenupcial em contrário. Quando a invenções (Propriedade Industrial), dá-se pelo obra for anônima, quem a publicar passará a ter os di- simples fato da sua criação, exteriorização, sem reitos patrimoniais de autor. Ainda quanto a obras de a necessidade de cumprimento de nenhuma domínio público, não deverão ser reproduzidas sem formalidade. Em outras palavras, enquanto que permissão do autor, nem mesmo quando houver o o Registro dos Direitos de Propriedade Industrial intuito de comentá-la ou aprimorá-la (SENADO FEDE- é constitutivo de direitos (se perfectibilizam RAL, 2014). com o registro), para os Direitos Autorais possui caráter meramente declaratório. Portanto, o 4 DO REGISTRO criador de uma obra intelectual, a exemplo da lista prevista no artigo 7º, da Lei 9.610/98, já é O Registro de Obras pode ser conceituado como um considerado titular de direitos autorais – morais serviço prestado pelo Escritório de Direitos Autorais e patrimoniais – a partir do momento em que (EDA) da Biblioteca Nacional (2016), seguindo o que publica sua obra - no sentido de tornar público estipula a Lei nº 9.610 de 19/02/1998, possibilitando –, de forma absolutamente independente de o reconhecimento de autoria sobre uma obra intelec- qualquer registro (ESTEVES, 2015, p. 1). tual, além de especificar os direitos morais e patrimo- niais, e constituindo os devidos prazos de proteção Poderão ser protegidos pelo registro de direito auto- para o titular da autoria e seus respectivos sucessores. ral: textos de obras literárias; artísticas ou científicas; Ainda de acordo com a Biblioteca Nacional (2016), sermões, conferências e alocuções; obras dramáticas cabe ao Escritório de Direitos Autorais (EDA): musicais ou não; coreografias e pantomímicas com execução cênica fixada por escrito ou ainda por outra Receber o “depósito legal” das obras registradas forma; composições musicais ainda que não possuam e prestar os seguintes serviços: Busca de letra; obras de caráter audiovisual, sonoras ou não, que Anterioridade, Certidão de Inteiro Teor, via incluem a cinematografia; obras fotográficas diversas; avulsa de Certificado de Registro, Carta de desenhos, pinturas, esculturas, arte cinética e litogra- Indeferimento e Carta de Dependência, fias; obras geográficas de engenharia, topográficas e Retificação de Dados do Registro, Averbações afins (projetos, esboços e obras plásticas); softwares de Contrato de Cessão de Direitos Patrimoniais, (BIBLIOTECA NACIONAL, 2016). Edição e Licença, Reprodução (cópia Diante disso, o presente capítulo abordará o direito reprográfica) de Obras depositadas para autoral na Constituição Federal, quanto às obras mu- registro, Resposta de Dependência e Análise de sicais e quanto ao plágio, conforme será possível ob- Recurso de Indeferimento. Os serviços, acima servar a seguir. discriminados, serão executados mediante o pagamento de taxa. 4.1 Direito autoral na Constituição A Lei 9.610/98, em seu art. 18, elucida que não há a ne- Para Nascimento a inviolabilidade do direito de pro- cessidade de registro da obra autoral, mas faculta ao au- priedade está afirmada e garantida pela Constituição tor o seu registro. É uma forma de garantir os chamados Federal, entretanto, esta só admite tal determinação Direitos da Propriedade Intelectual, que se dividem em: quanto a propriedade que seja correspondente com I. Direitos oriundos das criações do espírito, clas- sua função social, regulando conforme sua competên- sificados como Direitos Autorais, no qual se encaixam cia todo o conteúdo do direito de propriedade. obras intelectuais, softwares, obras literárias e artísti- Ainda de acordo com esta autora, “o direito autoral é cas, entre outras; uma espécie de propriedade intelectual que garante II. Direitos oriundos da atividade inventiva, deno- proteção da invenção, do gozo e fruição de obras inte- minados Direitos de Propriedade em que estão inclusas lectuais” (NASCIMENTO, 2010). Na Constituição da República Federativa do Brasil (1988), quanto aos Direitos e Garantias Fundamentais, REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 66ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA presentes no Capítulo I, em relação aos Direitos e De- Para o autor a originalidade pode ser dividida em ab- veres Individuais e Coletivos, consta que: soluta ou relativa, sendo a primeira genuína e autên- tica, não havendo derivação de outra obra intelectual, Art. 5º Todos são iguais perante a lei sem enquanto a relativa consiste nesta derivação, como, distinção de qualquer natureza, garantindo-se por exemplo, nos casos musicais, quando a obra origi- aos brasileiros e aos estrangeiros residentes nar-se de tradução, adaptação, ou ainda por meio de no país a inviolabilidade do direito à vida, transformações diversas, entretanto, ambas garantem à liberdade, à igualdade, à segurança e à aos seus autores seus devidos direitos autorais respec- propriedade, nos termos seguintes: tivos. XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo Conclui-se que a obra musical enquanto propriedade de utilização, publicação ou reprodução de suas do domínio das artes, sendo original, não estando sob obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo domínio público, trata-se de uma obra intelectual, sen- que a lei fixar; do produção do espírito humano, devendo, assim, ser XXVIII - são assegurados nos termos da lei: prontamente protegida conforme os tratados interna- a) a proteção às participações individuais em cionais relacionados ao direito autoral e sua lei especí- obras coletivas e à reprodução de imagens e voz fica. humanas, inclusive nas atividades desportivas; Deve-se enfatizar quanto às obras musicais que se b) o direito de fiscalização do aproveitamento aplicam integralmente os conceitos citados no artigo econômico das obras que criarem ou de que da Lei n.º 9.610/98 apresentado a seguir: participarem aos criadores, aos intérpretes, e às respectivas representações sindicais e associativas. (BRASIL, 1988). De acordo com a Lei 9.610/98, são os principais direi- Art. 5.º Para efeitos desta Lei, considera-se: tos do autor quanto a sua obra: Direitos patrimoniais VII – obra: (produção e reprodução, criação de obras derivadas, a) em co-autoria – quando é criada em comum, retransmissão) e Direitos morais (à autoria, à integri- por 2 (dois) ou mais autores; dade) (BRASIL, 1998). b) anônima – quando não se indica o nome do Todos os direitos citados estão resguardados pela le- autor, por sua vontade ou por ser desconhecido; gislação do país e devem ser respeitados. (a Lei nova trocou a palavra determinação pela palavra vontade). 4.2 Das obras musicais c) pseudônima – quando o autor se oculta sob nome suposto; Podem ser conceituadas como obras intelectuais: d) inédita – a que não haja sido objeto de criações protegidas, advindas do espírito, sendo es- publicação; tas expressas por qualquer meio, podendo ainda es- e) póstuma – a que se publique após a morte do tar fixadas a qualquer suporte, sendo este tangível ou autor; intangível, de conhecimento público ou investidas no f) originária – a criação primígena; futuro conforme consta no artigo 7º da Lei 9.610/98 g) derivada – a que, constituindo criação (RODRIGUES, 2003). intelectual nova, resulta da transformação de Ainda de acordo com este autor, obra originária; h) coletiva – a criada por iniciativa, organização Para que uma obra seja protegida pela lei e responsabilidade de uma pessoa física ou autoral, necessário se faz que a mesma pertença jurídica, que a publica sob seu nome ou marca e ao domínio das artes, das letras ou das ciências, que é constituída pela participação de diferentes que tenha originalidade e que não esteja no autores, cujas contribuições se fundem numa domínio público. O principal destes requisitos criação autônoma. (BRASIL,1998). é a originalidade, que não podemos confundir com novidade, pois a primeira é entendida como Quanto ao conceito da obra musical, pode-se afirmar forma de exteriorização da idéia, tendo em vista que esta trata-se da síntese da melodia, da harmonia as características próprias à modalidade da obra e do ritmo, sendo a primeira a emissão de sons em um intelectual em questão e não a idéia em si, já a número indeterminado de forma sucessiva; a harmo- novidade, é requisito principal para a obtenção nia, por sua vez, é a fornecedora da roupagem da me- de privilégios no campo da propriedade lodia, que juntas resultam em vários sons que geram industrial (RODRIGUES, 2003). o ritmo, que pode ser entendido como uma sensação determinada por sons que marcam o andamento da melodia. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 67ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA 4.3 Plágio tual, em que o leitor é trapaceado, já que acredita que o trabalho pertence a um autor e na realidade pertence O uso do termo plágio é comum para designar alguém a outro. que se utiliza de uma obra de caráter diferente com O autoplágio ocorre quando o autor usa sua própria o intuito de passar-se por seu autor, podendo ela ser obra para a criação outra, porém sem fazer referência musical, literária, ou em outras formas. à obra anterior (LEITE, 2009). De acordo com Leite (2009), quanto à origem da pa- O plágio está tipificado como crime conforme cons- lavra plágio, que esta data da antiguidade, sendo que ta no art. 184 do Código Penal, em que é constituído no século II a.C aLex de Plarigriis do Direito Romano já como ato de: tinha em seu vocabulário o uso dessa expressão latina, com o intuito de se referir a crime que incidia em se- Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são questrar um homem livre e fazê-lo escravo. Anos mais conexos: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 tarde, o poeta romano Marcus Valerius Marcialis asso- (um) ano, ou multa. ciou pela primeira vez o delito citado ao uso ou apre- § 1º Se a violação consistir em reprodução sentação de obras de outros como de autoria própria, total ou parcial, com intuito de lucro direto ou sendo este denominado como plagiário. indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou A simples reprodução do texto integral ou fonograma, sem autorização expressa do autor, de parte de uma propriedade intelectual e do artista intérprete ou executante, do produtor, ou artística tem a denominação de plágio. O conforme o caso, ou de quem os represente: efeito que o plágio ocasiona é o cerceamento Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e do exercício pleno da autoria, usurpando o multa. direito do reconhecimento público da autoria § 2º Na mesma pena do § 1º incorre quem, com do trabalho. Para que haja plágio é preciso que o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, haja intertextualidade de forma e de conteúdo, é vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, preciso que os sentidos sejam semelhantes. No adquire, oculta, tem em depósito, original plágio, a intertextualidade é sempre implícita e ou cópia de obra intelectual ou fonograma ocorre sobre textos alheios. Convencionalmente reproduzido com violação do direito de autor, o plágio envolve dois sujeitos: o autor da obra do direito de artista intérprete ou executante plagiada e pessoa que copiou essa obra, o ou do direito do produtor de fonograma, ou, redator. Porém, quando a obra plagiada chega ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ao conhecimento do público, surge um terceiro ou fonograma, sem a expressa autorização dos sujeito dessa relação: o leitor (LEITE, 2009). titulares dos direitos ou de quem os represente. (BRASIL, 1940). Ainda de acordo com este autor, o plágio divide-se em O plágio fere os direitos autorais que garantem ao au- diferentes tipos, sendo eles: direto, indireto, de fontes, tor a natureza jurídica de bens móveis, conforme está consentido e o autoplágio. O plágio direto consiste em preceituado no artigo 3° da Lei 9610/98. O plágio tira uma cópia integral da obra e seu conteúdo, sem refe- dos autores seus direitos morais e patrimoniais relati- renciar o seu verdadeiro autor. vos à obra criada, de seu direito exclusivo de usufruto No caso do indireto, o redator pode utilizar-se de suas e disposição. próprias palavras, porém, cita a ideia de outro como se sua fosse, e não referência devidamente o autor da 5 INTERNET: ORIGEM E CONCEITO obra original. Isto pode ocorrer por meio de paráfrase sem atribuição de crédito, por meio da elaboração de A internet tornou-se um marco na revolução digital e mosaico em que são utilizados “cacos” de fontes dife- desencadeou a globalização, derrubando as fronteiras rentes, com a organização das ideias e pequenas con- da comunicação. Sua criação foi direcionada ao bene- tribuições do plagiador, e por fim o uso inadequado de ficiamento da indústria bélica, utilizada para a investi- chavões para se referir a algum assunto. gação espiã, com acesso limitado (SILVEIRA, 2015). No caso do plágio de fontes, o redator reproduz cita- Quanto aos fatores que marcaram cronologicamente o ções utilizadas por outro autor sem ter acessado o do- acesso à internet, este mesmo autor cita: cumento original, por meio de um conteúdo secundá- rio, sendo utilizado por um terceiro. 1 Após a década de 1980, a humanidade O plágio consentido consiste na anuência do autor ori- está passando da Era Industrial para a Era da ginal quanto à obra que resulta em uma fraude intelec- Informação, também conhecida como Era REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 68ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA Digital; cilitador para que o direito autoral sobre as obras seja 2 Em 1998 é criado o Google, o principal site infringido, gerando conflitos. de pesquisa da atualidade e umas das maiores Romancini (2015) trata em seu texto da reforma do companhias da internet nos dias atuais. O direito autoral no Brasil e faz uma análise quanto aos Google ajudou a ordenar as páginas da internet antecedentes e o estado atual do tema, abordando o e facilitou o serviço de pesquisa por informação; anteprojeto de lei em trâmite na Casa Civil. 3 E em 2004, Mark Zuckerberg cria o Facebook, Ainda de acordo com esse autor, os principais proble- uma importante rede social que se espalha pelo mas relacionados à forma de uso da tecnologia digi- mundo como um novo modo de interação social tal, especialmente por jovens com idade abaixo de 18 entre as pessoas através da internet (SILVEIRA, anos, está no uso de imagens, sons e vídeo de forma 2015). indiscriminada com o intuito de expressar “ideias” ou até mesmo no uso indevido, causando danos morais A internet pode ainda ser conceituada como: “uma a outros e ao autor da obra. Vale ressaltar que foram rede de redes baseada no protocolo TCP/IP, sendo surgindo restrições de uso a grande parte do material: ainda uma comunidade de pessoas que usam e de- sonoro, imagético e audiovisual dos dias de hoje, mes- senvolvem essas redes, além de oferecer uma coleção mo com intuito educativo, com o objetivo de proteger de recursos que podem ser alcançados através destas os direitos autorais. redes” (UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO, Por não haver controle, a internet acaba por facilitar 2016). os crimes contra os direitos autorais e há muito o que Cunha (2010) afirma quanto ao acesso à internet que: ser feito para garantir o mínimo de controle por parte das autoridades quanto aos conteúdos disponíveis e Mais que um modismo, a Internet tornou-se um aos crimes relacionados a estes. A falta de uma cultura fenômeno. Conectando cerca de 150 milhões ética, especialmente quanto ao uso de conteúdos inte- de usuários, espalhados em 140 países dos 5 lectuais, gera inúmeros conflitos na sociedade atual e continentes, a Internet cresce mais rapidamente devem ser estudados (SLEIMAN, 2009). que qualquer outro meio de comunicação já Quanto aos problemas relacionados à exposição de inventado e estes valores mudam a cada dia. obras na internet, este autor ainda enfatiza que: Enfim, a Internet é uma gigantesca rede mundial que interliga computadores de todos os tipos e O download de músicas e filmes indiscriminados capacidades através de linhas de comunicação e sem autorização, ao pé da lei, é infração ao (telefone, canais de satélite, cabo submarino), direito de autor. É certo que seria humanamente utilizando um conjunto de regras específicas impossível processar todos que fazem para computadores (protocolos). downloads, e não estou dizendo que deveria ser feito, mas trata-se de uma questão cultural. Em O Centro de Informática da Universidade Federal de relação às empresas, os casos mais comuns são Pernambuco (2016) define a internet como: “uma rede de utilização de imagens retiradas da internet global de computadores. Porém, tecnicamente pode- para banners e outras ações de marketing que -se afirmar que a Internet é a união de um enorme nú- ocorrem desde mídias digitais até impressões mero de redes ao redor do mundo que se comunicam distribuídas nas ruas (SLEIMAN, 2009). através do protocolo TCP/IP”. É possível afirmar que embora os profissionais de 5.1 Reflexões quanto aos direitos autorais e os confli- marketing tenham conhecimento superficial acerca tos na internet dos direitos autorais, é necessário que em sua forma- ção abordem o assunto, sendo interessante a inserção A internet tem sido a causa de conflitos diversos de- da disciplina de Direito nas universidades para o curso vido aos direitos autorais, uma vez que as obras são de Marketing. publicadas sem o consentimento de seus autores e Com base nos conceitos apresentados e nos conteú- acabam fugindo do controle. Diversos usuários se dos abordados neste trabalho, é possível enfatizar a aproveitam do espaço virtual para a disseminação de necessidade de atualizar os direitos autorais conforme conteúdos diversos como músicas, vídeos, entre ou- as atualizações do mundo tecnológico, obedecendo às tros, por meio de redes sociais e sites direcionados ao necessidades referentes à fácil exposição de obras na compartilhamento de conteúdos, como, por exemplo, internet sem o controle de acesso e utilização. o Facebook, Youtube etc. Desse modo, observa-se que a comunicação em massa acaba por ser um meio fa- REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 69ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA 6 CONCLUSÃO direitos moral e patrimonial, além de ter apontado os principais critérios para a proteção desses direitos, e Este trabalho abordou o direito autoral musical e os analisou os aspectos que envolvem o registro, a pro- problemas enfrentados nos meios de comunicação em teção do direito autoral como está garantido na cons- massa na atualidade, mediante os avanços tecnológi- tituição, quanto às obras musicais, o plágio e a gestão cos presentes na vida cotidiana do ser humano como a coletiva desses direitos. internet. Foi possível observar que o acesso a diversos Conforme observou-se, o direito autoral carece de conteúdos é livre e conta com a facilidade de publica- atualizações, mediante as facilidades da internet e a ção por estar cada vez mais acessível, promovendo a possibilidade de extrair obras intelectuais, prejudican- disseminação de conteúdos autorais que ferem os di- do os autores, tendo em vista a falta de conhecimentos reitos do autor. dos aspectos jurídicos associados aos direitos autorais Esta pesquisa cumpriu com seu objetivo geral de abor- da música na internet. dar o direito autoral musical mediante a expansão do Acredita-se que o combate à falta de limites físicos da acesso por meio de vias de comunicação diversas em internet na busca da garantia dos direitos autorais musi- massa, apontando o que pode ser feito para garantir cais seja a criação de uma lei ou norma que torne o aces- que esses direitos sejam preservados. so mais burocrático, possibilitando o acompanhamento Alcançou os objetivos específicos apresentados: con- do usuário e conteúdo dos meios de comunicação em ceituou o direito autoral, apresentou sua evolução his- massa e das novas tecnologias utilizadas, promovendo tórica no âmbito mundial e no Brasil; apresentou os punições específicas e mais severas para tais casos. REFERÊNCIAS AFONSO, Otávio. Direito autoral: conceitos essenciais. Barueri: Manole. 2009. BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). Registro de obras. Disponível em: https://www.bn.br/servicos/registro-obras. Acesso em: 25 set. 2016. BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor. 5 ed. rev., atual e impl. por Eduardo C. B. Bittar. Rio de Janeiro: Foren- se, set. 2013. 212p. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidên- cia da República, [2015]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 25 set. 2015. BRASIL. Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF: Presidência da República [1941]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em: 25 set. 2016. BRASIL. Lei n° 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. In: VADE Mecum. Saraiva. 18.ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014. BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2002]. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em: 4 set. 2016. CHAVES, Antônio. Direito de autor: Princípios fundamentais. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1987, vol. I. CUNHA, Jean Carlos. O que é internet, conceitos de internet, internet e suas funcionalidades, como usar internet, introdução à internet, funções para internet. Disponível em: https://jeancarloscunha.wordpress. com/2010/02/15/o-que-e-internet-conceitos-de-internet-internet-e-suas-funcionalidades-como-usar-inter- net-introducao-a-internet-funcoes-para-internet/. Acesso em: 1 nov. 2016. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 70ISSN: 2177 - 1472
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O DIREITO HUMANO À ÁGUA THE HUMAN RIGTH TO THE WATER Gildo Manuel Espada RESUMO a human right does not mean that it must be provided immediately and at no cost. On the other hand, being A água é um recurso fundamental para a subsistência water a human right, questions such as who must sa- humana. Todavia, apesar da sua reconhecida impor- tisfy such right and how it must be satisfied arise. Mo- tância, durante muitos anos houve uma tendência de reover, being water an economic good, which is sold tratá-la simplesmente como um bem econômico. Atu- and bought, it may seem a paradox that it is conside- almente, o cenário é outro e diga-se, melhor: a água red a human right. Therefore, a clarification on the na- é vista como um bem econômico, sim, mas também ture and dynamics of such right is convenient, in times como um direito humano. Entretanto, a qualificação da in which discourses on water wars are common. água como direito humano não significa que ela deve ser garantida imediata e gratuitamente. Por outro lado, KEYWORDS: Human Right. Water. State. sendo ela um direito humano, surge a questão de saber quem deve garantir a satisfação de tal direito e como 1 INTRODUÇÃO isso deve ser feito. Mais ainda, sendo a água um bem econômico, que compra-se e vende-se, pode parecer Muita atenção é dada ao direito à saúde como um di- paradoxal que seja considerada um direito humano. reito humano e, como complemento àquele, atenção é Por isso, um esclarecimento da natureza e dinâmica também dada ao direito à alimentação. Faz muito sen- deste direito é curial, numa altura em que fala-se da tido que assim seja e, aliás, este não é um fato novo possibilidade de ocorrência de guerras pela água. (McCAFFREY, 1992-1993), uma vez que a Declaração Universal dos Direitos do Homem já regulava nesse PALAVRAS-CHAVE: Direito Humano. Água. Estado. sentido . Por isso mesmo, durante muito tempo o di- reito à água era visto como parte integrante do direito ABSTRACT à alimentação, do direito à saúde e, principalmente, do direito à vida. Water is a fundamental resource for human subsisten- Presentemente, o cenário é diferente. A autonomiza- ce. However, despite its importance, for many years it ção do direito humano à água, já uma realidade, de- was treated simply as an economic good. Nowadays veu-se à necessidade do reconhecimento explícito the approach is different, and, let us say, better: wa- deste direito, pelo papel fundamental que a água exer- ter is still regarded as an economic good, but also as a ce na vida das pessoas. Por outro lado, integrar o direi- human right. Meanwhile, the qualification of water as to à água noutros direitos como outrora acontecia não permitia responder a questões sobre se havia (se há) *Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. É Mestre em Direito Internacional pela Universidade de Macau. É investigador do CEDIS, da Universidade Nova de Lisboa. É Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane, na qual exerce as funções de Chefe do Gabinete da Qualidade Acadêmica. É Professor Auxiliar do Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique, no qual exerce as funções de Coordenador-Adjunto do Curso de Direito. É formador convidado de Magistrados Judiciais e do Ministério Público no Centro de Formação Jurídica e Judiciária de Moçambique. É Advogado inscrito na Ordem dos Advogados de Moçambique. ([email protected]) REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 72ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA o direito de um país ribeirinho receber água de outro seu próprio. A conclusão a que chegaremos é que esta país em quantidade e qualidade suficiente de modo a última situação não pode acontecer, uma vez que os satisfazer as suas necessidades mínimas, assumindo direitos humanos aplicam-se entre os cidadãos e o seu que o acesso à água fica dependente do país de mon- próprio Estado, não havendo possibilidade de extrava- tante. De igual modo, olhar para o direito humano à sar-se tal limite. Para justificarmos tal posição, teremos água como corolário de outros direitos não permitia que recorrer à teoria e história dos direitos humanos e aos Estados implementar políticas relacionadas com a comparar esta situação com o direito humanitário. exploração sustentável de recursos naturais às quais O problema da escassez de água e a emergência de se tinham vinculado. conflitos internos nos Estados ou ainda entre os Es- De fato, com o crescimento populacional, o desenvol- tados não é um problema que afecta somente regiões vimento das cidades e o desenvolvimento industrial, áridas, ou ainda países caracterizados pela escassez a tendência para uma maior competição em relação de água, mas é um problema que afeta países que tra- ao acesso à água a nível interno e a competição pelos dicionalmente eram vistos como sendo ricos em água, recursos hídricos internacionais, entre outros motivos, diferentemente do que alega certa doutrina (McCAF- levaram a que uma maior competição entre os países FREY, 1992-1993). Fenômenos como aumento da po- surgisse, com a consequente discussão da problemá- pulação, da indústria, poluição e mudanças climáticas tica da água. estão por detrás desta situação. Entre as questões discutidas, para além da já referida, Na verdade, a discussão sobre direitos humanos e dis- entre Estados que partilham o mesmo curso de água, ponibilidade de água está entre as questões que mais as preocupações foram também colocadas a nível in- têm chamado atenção em quase todo o mundo, nos terno entre os Estados, no sentido de discutir-se até últimos anos. O nexo entre desenvolvimento, a exis- que ponto um determinado Estado tem o dever de tência de água e direitos humanos, reconhecido desde prover água às suas populações, em quantidade e os tempos mais remotos, explica o porquê de este ser qualidade suficiente que garantisse níveis de saúde e um problema global. O fato é que a água é um elemen- sanitários, e a satisfação das necessidades básicas. to indispensável para a vida. De igual modo, o desen- Na primeira questão, teríamos um problema facil- volvimento social e econômico dependem, em grande mente identificável, como sendo de direitos humanos, medida, da existência de água. como conjunto de direitos que assistem aos cidadãos e É um fato, por exemplo, que os maiores índices de po- que são oponíveis ao Estado. Já no segundo caso, não breza e doenças estão ligados a regiões com escassez haveria tanta clareza. No caso de competição entre de água. Por isso, quanto maior o desenvolvimento, Estado, seria necessário esclarecer se os direitos hu- maior a necessidade de disponibilidade de água. Estes manos têm algum papel a desempenhar na resolução fatos fazem com que mesmo nos locais onde a água das disputas interestatais, no sentido de saber se de foi sempre vista como reconhecidamente abundante, alguma forma ele pode ser invocado para estabelecer se começasse a assistir a uma pressão cada vez maior existência de direitos e de deveres. sobre os recursos disponíveis e, eventualmente, a es- A resposta a esta questão é uma das principais discus- cassez. sões deste capítulo e representa uma das teses que Por estes motivos, o crescente reconhecimento da defendemos. É nossa convicção que o direito humano água como questão central e fulcral para a materializa- à água pode ser invocado entre os Estados que parti- ção dos direitos contidos na Declaração Universal dos lham cursos de água internacionais, no sentido de os Direitos do Homem, assim como na Convenção Inter- Estados invocarem o direito ao acesso à água de forma nacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Políticos, equitativa e razoável, sob pena de comprometer-se a emergiu. satisfação das necessidades básicas das suas popula- Neste capítulo, pretendemos discutir e analisar o con- ções, o que melhor discutiremos, sem deixar de lado ceito de direito humano à água. Procuraremos analisar a discussão da possibilidade de os cidadãos lesados direitos humanos e a questão da água, e estabelecer que, pertencendo a certo Estado, queiram fazer valer a ligação entre ambos. Para tal, faremos uma análise seus direitos em relação a outro Estado, que não seja o de resoluções e declarações das várias conferências e O artigo 25.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948, prevê que “ Todos têm o direito a um nível de vida adequado para a sua própria saúde e a sua vida, e a dos seus familiares, incluindo alimentação.” (GENERAL ASSEMBLY, 1948). REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 73ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA fóruns sobre a noção de água como um elemento bá- são propósitos da instituição, inter alia, “[...] Promover sico, até a conceptualização da água como direito hu- e encorajar o respeito pelos direitos humanos e liber- mano. Analisaremos, por isso, a evolução dos direitos dades fundamentais para todos sem distinção de raça, humanos, com enfoque para a questão da água. Para sexo, língua, religião[…].” tal, para além da análise da evolução do regime geral De forma a garantir uma plena proteção dos direitos dos direitos humanos, analisaremos igualmente o co- humanos, os membros das Nações Unidas estabelece- mentário geral n.° 15 da Assembleia Geral das Nações ram, entre outros mecanismos, a Comissão de Direitos Unidas, sobre o direito humano à água, que foi um dos Humanos, em 1946, sob égide do Conselho Econômico principais marcos e na verdade a base para o reconhe- e Social das Nações Unidas . cimento da água como um direito humano fundamen- Foi sob a égide da Comissão de Direitos Humanos que tal. vários instrumentos foram sendo produzidos. Entre eles encontra-se a Declaração Universal dos Direitos 2 A EVOLUÇÃO DO DIREITO HUMANO À ÁGUA Humanos, adotada a 10 de dezembro de 1948, tendo este instrumento introduzido conceitos novos e revo- A água é um bem econômico. Ela compra-se e vende- lucionários, tais como dignidade, igualdade e inaliena- -se. A sua disponibilização acarreta custos elevadíssi- bilidade de direitos, bem como os da universalidade mos, pelo que ela não deve ser vista como um mero dos direitos humanos. bem social. Todavia, há quem vê a comoditização da Tendo sido aprovada como mera declaração, e sem in- água como sendo inapropriada, considerando-a como tenção de vinculá-la aos Estados quando da sua apro- um bem público ou patrimônio comum da humanida- vação, defende-se, hoje em dia, que muitas das normas de, por duas ordens de razões: pelo papel essencial nela contidas fazem agora parte do Direito Costumeiro da água nos ecossistemas e pelo fato de constituir um Internacional, e por isso vinculativo aos Estados. direito humano fundamental, como parte do conjun- Depois da adoção da Declaração Universal dos Direitos to de direitos, liberdades e autonomias que assiste a Humanos, de forma a garantir a sua implementação, todos os seres humanos, que devem ser satisfeitas e a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas respeitadas sem limitações, pelo simples fato de se ser começou a elaborar tratados e convenções com nor- Humano. mas substantivas. O primeiro destes tratados e con- Infelizmente, há um desfasamento muito grande entre venções, que foi considerado o moderno Direito dos a definição e a materialização dos direitos humanos. direitos humanos, foi a Convenção sobre a Prevenção Todavia, há um reconhecimento cada vez maior dos di- e Punição do Crime de Genocídio, adotada pelas Na- reitos humanos e do seu relevante papel na sociedade, ções Unidas a 9 de dezembro de 1948, um dia antes da que se caracteriza não só pela celebração de um nú- Declaração Universal dos Direitos Humanos (PEREIRA mero cada vez maior de instrumentos internacionais, DE MELO, 2009, p. 56-57). regionais e locais de direitos humanos, mas também Por razões políticas e ideológicas ligadas à Guerra fria, de uma maior aderência por parte dos Estados aos pa- que dividiu o mundo em dois polos (HILDERING, 2004) drões promovidos por tais direitos, assim como a um , e de forma a garantir uma melhor aplicação das Con- cada vez maior reconhecimento e cumprimento deles. venções, decidiu-se aprovar duas outras convenções A história dos direitos humanos tem precursores mui- ligadas a aspectos diferentes dos direitos humanos: a to importantes (NEWMAN et al, 2001) , mas o novo Convenção Internacional Sobre Direitos Civis e Políti- Direito dos direitos humanos (SALMAN e MCINERNEY- cos , que contém direitos “negativos” e orientados à -LANKFORD, 2004) é relacionado com o surgimento liberdade, com os quais os Estados não devem inter- da Carta das Nações Unidas, aprovada pela Assem- ferir , e a Convenção Internacional sobre os Direitos bleia Geral daquele organismo a 26 de junho de 1945. Econômicos, Sociais e Culturais , que contém direitos Nos termos do artigo 1.° da Carta das Nações Unidas, “positivos” que devem ser garantidos pelo Estado . Entre os quais se encontram a Magna Carta (1215), a Bill of Rights (1689), a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e a Constituição dos Estados Unidos da América (1791). Esta é, por sinal, a única comissão referida na carta da ONU, no seu artigo 68.°. Esta comissão é apoiada por uma divisão tendo sido inicialmente desig- nada por divisão de direitos humanos, evoluiu para Centro de Direitos Humanos e atualmente é designada Gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Para detalhes sobre o funcionamento desta comissão, vide <http://www.unhchr.ch/html/menu2/2/chr.htm>. Geralmente referidos como o “Este” e o “ Oeste”, sendo que estes direitos tinham uma certa preferência na antiga União Soviética, e são atualmente bem vistos em países que priorizam o desenvolvimento econômico, tais como a China e países em vias de desenvolvimento. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 74ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA Para além da diferença já apontada, relativa ao objecto invocado para fazer valer as mais diversas situações de cada uma destas Convenções, outra distinção que jurídicas que se levantam em relação às necessidades se pode fazer destes dois instrumentos é que cada um de garantia de desenvolvimento e de respeito das mais deles dirige-se a uma certa “geração” de direitos. diversas categorias de direitos humanos dos povos. O Enquanto a Convenção Internacional Sobre Direitos direito humano à água não é explicitamente reconhe- Civis e Políticos é apodada como protegendo direitos cido na Declaração Universal dos Direitos do Homem da “primeira geração”, a Convenção Sobre Direitos de 1948 e nem em nenhuma das Convenções sobre Di- Econômicos, Sociais e Culturais protege os “direitos da reitos Humanos de 1966, que dela emanaram. segunda geração”, termos estes que têm a ver com a O direito humano à água tem uma história própria, que primazia de respeito e realização dos diversos direitos levou cerca de 30 anos numa evolução lenta. O reco- em causa. Outras gerações de direitos têm sido apon- nhecimento da seriedade dos problemas enfrentados tadas ultimamente, mormente uma “terceira geração” pelo setor de águas e as primeiras tentativas para en- que inclui direitos coletivos, tal como o direito ao de- frentar tal problema, incluindo a declaração e reconhe- senvolvimento, o direito a um ambiente saudável e o cimento do direito à água, começam no ano de 1972, direito à água (PEREIRA DE MELO, 2009, p. 57-60). quando da Conferência das Nações Unidas sobre o Para além desta distinção, aponta-se outra entre estas Meio Ambiente, decorrida em Estocolmo. duas convenções, no sentido de, para materializá-las, Naquela Conferência, a água foi identificada como um uma ser livre de custos e outra ser bastante onerosa recurso natural que devia ser protegido. A declaração em recursos. Deste modo, os direitos civis e políticos de Estocolmo prevê, no seu princípio 2, que “os recur- materializam-se sem custo nenhum, enquanto os di- sos naturais da terra, incluindo a água, a terra, a fauna reitos econômicos, sociais e políticos implicam esfor- e a flora e principalmente as amostras representativas ços econômicos por parte dos governos. Esta é a razão de ecossistemas naturais deveriam ser salvaguarda- pela qual os direitos econômicos, sociais e culturais dos para o benefício das gerações presentes e futuras, são de realização progressiva, e os direitos civis e polí- através de uma gestão e planeamentos apropriados” ticos de realização imediata. (ONU, 1972). Todavia, apesar de estes direitos estarem contidos em Cinco anos mais tarde, em 1977, as Nações Unidas re- instrumentos separados e pertencerem a categorias alizaram a Conferência Mundial sobre a água, em Mar diferentes, foram declarados universais, inter-relacio- del Plata, na Argentina. Nesta conferência, na qual só nados, interdependentes e indivisíveis por várias reso- foram discutidos problemas de água emergentes, foi luções da Assembleia Geral das Nações Unidas e pela aprovado o plano de ação de Mar del Plata, que conti- Convenção de Viena de 1993 . nha diretivas sobre as melhores formas de enfrentar os problemas existentes no domínio das águas. 2.1 Conferências e fóruns internacionais sobre o Di- O Plano de Ação incluía uma série de recomendações reito de Águas e resoluções sobre uma vasta gama de assuntos liga- dos à água. Entre as várias questões contidas no pla- Todas as questões sociojurídicas à água conexas tor- no incluem-se a avaliação dos recursos hídricos; o uso nam-na um bem jurídico não só indispensável para a eficiente da água; o meio ambiente, a saúde humana vida como também um elemento que, caso não dispo- e o controle da poluição; políticas, e métodos de pla- nibilizado na devida quantidade e qualidade, possa ser neamento e gestão; e a cooperação regional e inter- Adotada pela Resolução 2200 XX da Assembleia Geral das Nações Unidas a 16 de dezembro de 1966. Os direitos civis e políticos são dirigidos de forma positiva aos indivíduos, a quem se visa proteger, e devem ser garantidos por via do respeito a eles por parte dos Estados, que nestes casos têm um dever de non facere, devendo abster-se de interferir com tais direitos ou de violá-los. São vários os direitos civis e políticos previstos neste instrumento, e incluem o direito à vida; o direito contra a tortura e outros tratamentos cruéis, de- sumanos ou degradantes; o direito à liberdade e segurança; o direito de ser tratado com humanidade; o direito de ser reconhecido como pessoa perante a lei; o direito à privacidade; o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; o direito à liberdade de expressão; o direito à liberdade de reunião e de associação; o direito contra a discriminação e o direito de proteção pela lei. Adotada pela Resolução 2200A XXI da Assembleia Geral das Nações Unidas a 16 de dezembro de 1966. Os direitos econômicos, sociais e culturais são vistos como direitos positivos porque requerem uma ação positiva por parte dos Estados, que devem agir, produzindo programas e políticas que permitam a materialização de tais direitos. Mais do que isso, é preciso que o Estado reconheça que a materia- lização de tais direitos requer a sua intervenção ativa, e que eles não podem ser materializados sem a intervenção dos governos. São vários os direitos que podem aqui ser apontados, quais sejam, o direito ao trabalho; direito a um nível adequado de vida; direito à segurança social; direito à saúde; e o direito à educação. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 75ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA nacional. discriminação, pela Convenção Sobre a Eliminação de To- As resoluções saídas da Conferência são referentes à das as Formas de Discriminação Contra Mulheres (ONU, avaliação dos recursos hídricos; ao fornecimento de 1979). A Convenção estabelece um conjunto de objetivos água às comunidades; ao uso da água para a agricultu- com vista a acabar com a discriminação contra as mu- ra; à pesquisa e exploração de águas; às comissões de lheres e refere explicitamente a água e o saneamento no bacias hidrográficas; à cooperação internacional e às seu texto. políticas de água nos territórios ocupados. A alínea h) do n.°2 do artigo 14.° da Convenção prevê que: Na mesma Conferência, e como parte do Plano de Ação saído dela, e de forma a manter a chama acesa Os Estados signatários deverão tomar todas para as ações que deviam ser cumpridas, foi proclama- as medidas apropriadas para acabar com a do o período de 1981 a 1990 como “década do forne- discriminação contra as mulheres nas zonas cimento de água potável e do saneamento básico”, na rurais de forma a assegurar, numa base de qual os governos se comprometiam a melhorar o setor igualdade entre homens e mulheres, que elas de fornecimento de água e saneamento básico. participam e se beneficiam do desenvolvimento O debate sobre o direito à água está historicamente rural e, nomeadamente, deverão assegurar a ligado a esta conferência. A resolução II sobre “Forne- essas mulheres o direito: […] cimento de Água às Comunidades” declarou pela pri- (h) A usufruir de condições de vida adequadas, meira vez que “Todas as pessoas, de todos os estágios particularmente no que respeita à habitação, de desenvolvimento e condição social e econômica, saneamento, abastecimento de água e têm o direito de acesso à água potável em quantidade electricidade, transportes e comunicações. e qualidade equivalente às suas necessidades básicas” (ONU, 1979). (ONU, 1977, p. 66). A declaração repisou ainda o reco- nhecimento universal de que a disponibilidade de água A Convenção Sobre os Direitos da Criança, aprovada é essencial para a vida e para o desenvolvimento das em novembro de 1989, veio dar continuidade à dese- pessoas, como parte integrante da sociedade. jável proliferação positiva do direito à água nos instru- De forma a garantir o acesso à água, a Resolução pro- mentos internacionais. A Convenção menciona explici- pôs que houvesse uma maior cooperação internacio- tamente a água, o saneamento ambiental e a higiene, nal, que incluísse a mobilização de recursos físicos, no n.°2 do artigo 24.°, que contém a seguinte redação: econômicos e humanos “[…] so that water is attainable and is justly and equitably distributed among the peo- Os Estados signatários deverão assegurar ple within the respective countries.” (ONU, 1977, p.66). a implementação integral deste direito e, Não há dúvidas que esta resolução representou um nomeadamente, deverão tomar medidas verdadeiro marco, particularmente se considerarmos apropriadas: a época na qual foi produzida, um quarto de século […] antes da aprovação do GC n.º 15, sobre o direito hu- c) para combater a doença e a subnutrição, mano à água. Esta resolução, que referia-se ao “direito incluindo no âmbito dos cuidados de saúde à água” e não ao “direito humano à água”, pode por primários, através de, entre outras medidas, a isso, sem sombra de dúvidas, ser apresentada como o aplicação de tecnologias já disponíveis e através ponto de partida para o debate sobre o direito à água, da disponibilização de alimentos nutritivos que mais tarde levou ao reconhecimento do que hoje é adequados e água potável, tendo em conta os o direito humano à água. perigos e os riscos da poluição ambiental; […] Outro marco importante que contribuiu para a posi- […] tivação do direito humano à água foi a referência ex- e) para assegurar que todos os estratos da plícita à necessidade de reconhecimento do acesso à sociedade, nomeadamente os pais e as crianças, água pelas mulheres, como uma forma de combate à estejam informados, tenham acesso à educação e sejam apoiados no uso dos conhecimentos básicos sobre saúde e nutrição infantil, as vantagens da amamentação, da higiene e do saneamento ambiental e prevenção de acidentes (ONU, 1989). A Assembleia Geral das Nações Unidas adotou várias resoluções sobre ou referentes à indivisibilidade ou interdependência dos direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos, em várias resoluções, que incluem: (i) Resolução 32/130, saída da 105ª Sessão Plenária de 16 de dezembro de 1977; (ii) Resolução 40/114, saída da 116ª Sessão Plenária de 13 de dezembro de 1985; (iii) Resolução 41/117, saída da 97ª Sessão Plenária de 4 de dezembro de 1986; e (iv) Resolução A/Res/42/102, saída da 93ª Sessão Plenária de 7 de dezembro1987. Vide Vienna Declaration of the World Conference on Human Rights, UN Doc. A/CONF.157/23, adotada a 25 de junho de 1993. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 76ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA E a evolução política, legislativa e normativa à volta da Mais ainda, o Capítulo 18. ° refere com algum enfoque água continuou, na incessante tentativa a nível da co- a resolução saída da Conferência de Mar del Plata em munidade internacional de enfrentar os problemas de relação ao direito de acesso à água potável. Infelizmen- água. te, o capítulo 18. ° da Agenda 21 contém muito poucas Uma série de conferências mundiais que se seguiram a referências aos recursos hídricos transfronteiriços , e partir de então é prova deste fato. Em janeiro de 1992 quando o refere só coloca possibilidades ambíguas a teve lugar a Conferência Internacional sobre Água e implementar pelos Estados se assim eles determina- Meio Ambiente, em Dublin, na Irlanda, da qual saiu rem, não estabelecendo a agenda recomendações cla- uma importante declaração conhecida como Declara- ras aos Estados em relação à cooperação internacional ção de Dublin. e a políticas coordenadas de gestão. O Princípio 4. ° da Declaração de Dublin proclama que Em setembro de 1994, teve lugar a Conferência Inter- “a água tem um valor econômico em todos os seus nacional das Nações Unidas sobre População e Desen- usos competitivos e deve ser reconhecida como um volvimento, da qual saiu um Programa de Ação que bem econômico”. E em jeito de clarificação, o mesmo afirma que todos os indivíduos “têm direito a um nível princípio prevê que “é vital reconhecer primeiro o di- de vida adequado para si próprios e para as suas famí- reito básico de todos os seres humanos a terem aces- lias, incluindo alimentação, agasalhos, habitação, água so a água limpa e saneamento a um preço acessível”. e saneamento adequados.” (THE DUBLIN STATEMENT ON WATER AND SUSTAINA- A preocupação contínua da comunidade internacional BLE DEVELOPMENT, 1992). Uma interpretação holísti- em enfrentar os problemas relacionados com os recur- ca dos Princípios de Dublin leva-nos a concluir que o sos hídricos resultou no estabelecimento, em 1996, do direito humano à água deve ser garantido a um custo Conselho Mundial de Água e da Parceria Global para suportável. Desta forma, devemos necessariamente a Água . O Conselho Mundial de Água foi estabeleci- concluir que a proclamação do direito humano à água do para funcionar como uma antecâmara de discus- não significa necessariamente que a água deve ser pro- são dos problemas de água a nível global, enquanto a videnciada a título gratuito. Todavia, em nenhum mo- Parceria Global para a Água foi estabelecida como uma mento os princípios explicam o que seja “preço aces- parceria de trabalho entre todas as entidades envolvi- sível” nem sugerem a forma de chegar a tal conclusão. das no sector de águas para ajudarem os países a al- A Conferência de Dublin foi uma reunião preparatória cançarem uma gestão integrada dos recursos hídricos. da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Am- Estas duas instituições foram as protagonistas do biente e Desenvolvimento, que decorreu no Rio de trabalho que resultou no Primeiro Fórum Mundial da Janeiro, Brasil, em 1992. A Agenda 21, um dos princi- Água, que decorreu em Marrakech, Marrocos em 1997; pais documentos saídos da Cimeira do Rio, contém um o Segundo Fórum Mundial da Água, que decorreu em programa de ação para o desenvolvimento sustentável Haia, na Holanda em 2000 ; o Terceiro Fórum Mundial que inclui um capítulo inteiro (capítulo 18. °) dedicado da Água, decorrido no Japão em 2003 ; o Quarto Fó- aos recursos hídricos. rum Mundial da Água, decorrido no México em 2006 O objetivo geral relativo aos recursos hídricos traçado ; o Quinto Fórum Mundial da Água, decorrido em Is- pelo capítulo 18 é o de ‘satisfazer as necessidades de tambum em 2009 e o Sexto Fórum Mundial da Água água de todos os países com vista a alcançar o desen- decorrido em Marselha em 2012 . volvimento sustentável dos mesmos’. No que diz res- A Declaração de Marrakech, produzida no Primeiro Fó- peito às necessidades de água e ao direito à água, o rum Mundial da Água a 22 de março de 1997, não foi capítulo 18.°, ponto 18.8, estabelece que: tão eloquente como a declaração saída das conferên- cias de Mar del Plata, Dublin, ou Rio de Janeiro, no que [...] os recursos hídricos devem ser protegidos, diz respeito ao direito humano à água. A Declaração de tendo em conta o funcionamento dos Marrakech simplesmente recomenda ações que visam ecossistemas aquáticos e a perenidade dos reconhecer que as necessidades básicas humanas ne- recursos, com vista a satisfazer e reconciliar as cessitam de acesso à água limpa e saneamento básico. necessidades de água nas atividades humanas, Uma afirmação idêntica consta na Declaração Ministe- devendo ser dada prioridade à satisfação das rial de Haia, que chamou atenção para a necessidade necessidades (humanas) básicas e a proteção de reconhecimento do acesso à água potável e sufi- dos ecossistemas (ONU, 1992). Vide pontos 18.4, 18.10, 18.12 e 18.27 e 18.40 da Agenda 21. 77ISSN: 2177 - 1472 REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde
REVISTA JURÍDICA ciente e ao saneamento como necessidades humanas acordo ou costume contrário nenhum uso de um cur- básicas . Pior ainda foi a Declaração Ministerial de Kyo- so de água internacional goza de prioridade sobre os to, que somente referiu que “[...] comprometemo-nos demais usos. a melhorar o acesso à água potável e saneamento bá- o parágrafo 2 do mesmo artigo estabelece que “na sico aos pobres ” . eventualidade de um conflito sobre usos de um cur- A hesitação entre declarar a água como uma necessi- so de água internacional, o conflito deve ser resolvido dade humana básica ou então como um direito huma- nos termos dos artigos 5.° a 7.° da Convenção, devendo no básico foi um dos pontos fortes sublinhados pela ser dada atenção especial às necessidades vitais hu- Assembleia Geral das Nações Unidas (SALMAN e MCI- manas”. NERNEY-LANKFORD, 2004, p.11), que, em 1999, apro- O artigo 10.° da Convenção tem uma história longa, vou a resolução sobre o Direito ao Desenvolvimento . que vem desde os tempos da discussão da proposta A resolução afirmou que o direito ao desenvolvimen- a nível da ILC, antes mesmo da adoção dos parâme- to é um direito universal e inalienável, e enfatizou que tros finais da Convenção terem sido adotados (TANZI a promoção, proteção e realização de tal direito faz e ARCARI, 2001, p.38). Apesar de um dos fatores de- parte da promoção e proteção dos direitos humanos, terminantes do que seja um uso equitativo e razoável, como um todo. nos termos do artigo 6.°, ser relativo às “necessidades Ainda nos termos da resolução, a materialização do sociais e econômicas dos Estados de bacia”, havia a direito ao desenvolvimento, inter alia, “o direito à ali- preocupação entre os membros que elaboravam a mentação e à água potável são direitos fundamentais, proposta sobre a ausência de um princípio prioritário e a sua promoção constitui um imperativo moral”, sobre a lista dos fatores sociais e econômicos conside- sendo esta afirmação virtuosa por declarar o direito rados relevantes. humano à água de forma objetiva e igualmente por Para resolver esta questão, a ILC sugeriu que, entre os relacioná-lo de forma clara e direta com o direito ao fatores a levar em conta para resolver um conflito en- desenvolvimento. tre usos, atenção especial devia ser dada ao forneci- As resoluções, declarações e planos de ação analisa- mento de água necessária para garantir a subsistência dos acima não são juridicamente vinculativos (SAL- humana, incluindo água potável ou água necessária MAN, 2003, p.495), tanto mais que eles não carecem para a produção de alimentos. Esta explicação foi acei- de assinaturas e ratificações, sendo-lhes reconhecido, ta pelo grupo de trabalho, que acrescentou ao n.º 2 do todavia, o impulso que muitas vezes dão para futuras artigo 10.° a seguinte declaração de entendimento: na adopções de instrumentos vinculativos, assim como determinação de “necessidades humanas vitais, aten- na definição de políticas e princípios em áreas espe- ção especial deve ser dada à disponibilização de água cíficas, diferentemente do que acontece com os tra- suficiente para a subsistência humana, incluindo água tados e convenções devidamente ratificados e consi- potável e para a produção de alimento para o combate derados válidos nos ordenamentos jurídicos internos à fome” . dos Estados. Assim, a Convenção de Nova Iorque não alude, de for- O único tratado que alude ao direito humano à água, ma direta, ao direito humano à água. Todavia, confir- ainda que de forma indireta, é a Convenção das Na- mou o interesse e a preocupação existente em relação ções Unidas sobre o Uso dos Cursos de Água para Fins às “necessidades humanas vitais”, cujo significado Diversos da Navegação, adotado pela Assembleia Ge- e implicações práticas são ainda difíceis de articular. ral das Nações Unidas em 21 de maio de 1997. O pará- Entretanto, defende a melhor doutrina que as necessi- grafo 1 do artigo 10.° da Convenção, relativo à “relação dades humanas, mormente as individuais, são identifi- entre os diversos tipos de usos”, prevê que na falta de cadas “com a própria existência das pessoas e é inata Para mais detalhes sobre o World Water Council, vide http://www.worldwatercouncil.org. 78ISSN: 2177 - 1472 Para mais detalhes sobre a Water Partnership, vide http://www.gwpforum.org/servlet/PSP. Para mais detalhes, vide http://www.waterlink.net/gb/secWWF.htm. Para mais detalhes, vide http://www.world.water-forum3.com. Para mais detalhes, vide http://www.worldwaterforum4.org.mx/home. Para mais detalhes, vide http://www.worldwaterforum5.org/. Para mais detalhes, vide http://www.worldwaterforum6.org/en/. Para mais detalhes, vide http://www.waterlink.net/gb/secwwf12.htm. Para mais detalhes, vide http://www.world.water-forum3.com/jp/mc/md_info.html. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde
REVISTA JURÍDICA em cada indivíduo, isoladamente, podendo a sua satis- bre o Direito ao Desenvolvimento (SALMAN e MCINER- fação ser feita até mesmo (em alguns casos) pelo Esta- NEY-LANKFORD, 2004). do” (WATY, 2011, p.11). Entretanto, o debate sobre o direito humano à água Todas as Conferências e Fóruns realizados nos anos volta a ganhar nova dinâmica com a aprovação, em 1980 e 1990 produziram declarações, resoluções e novembro de 2002, pelo Comitê dos Direitos Econômi- planos de ação detalhados, dirigidos à procura de so- cos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, do Comen- luções para os problemas de água. A mais notável en- tário Geral número 15, referente ao direito humano à tre todas foi a Declaração do Milênio das Nações Uni- água. das, aprovada em setembro de 2000. A declaração foi adotada por unanimidade pela Assembleia Geral das 2.2 Os Comentários Gerais do ECOSOC Nações Unidas e foi assinada pelos 147 chefes de Esta- do e ou de Governo presentes no encontro. A implementação das duas convenções sobre direitos A declaração estabeleceu oito Objetivos de Desenvol- civis e políticos, assim como sobre direitos econômi- vimento do Milênio a serem alcançados até 2015. Es- cos sociais e culturais, teve sempre que enfrentar si- ses objetivos incluem reduzir para metade a percenta- tuações de clarificação de normas, uniformização de gem de pessoas que vivem sem um acesso sustentável jurisprudência e ajustamento das várias situações nor- à água potável. A Cimeira das Nações Unidas sobre o mativas dispersas num bloco de normas uniforme que Desenvolvimento Sustentável realizada em Joanes- permitisse uma melhor materialização dos direitos hu- burgo em setembro de 2002 acrescentou um objetivo manos. similar em relação ao saneamento básico . Em 1988, a convite da ECOSOC, o Comitê sobre os Di- Para além da resolução aprovada em 1999 e os Obje- reitos Econômicos, Sociais e Culturais chamou a si a tivos do Desenvolvimento do Milênio aprovados em tarefa de formalmente preparar “Comentários Gerais” 2000, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou sobre vários artigos e provisões da Convenção sobre duas outras resoluções sobre águas. Em dezembro de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais . 2000, a Assembleia Geral aprovou uma resolução na Os Comentários Gerais são a materialização de evidên- qual é proclamado o ano de 2003 como “Ano Interna- cias factuais ativas quase normativas e têm em vista cional da Água (doce) ” e mais tarde, em dezembro dar uma mais-valia às experiências que os diferentes de 2003, aprovou outra resolução, referente à “Déca- Estados e membros dos Comitês têm tido e que são da Internacional para Ação, ‘Água para a Vida’ 2005- apresentados em forma de relatórios às Comissões das 2015” . Nações Unidas, de forma a garantir uma melhor imple- Depois de referir-se à Declaração do Milênio e ao Pla- mentação da Convenção. no de Implementação de Joanesburgo, a resolução De igual modo, é através dos Comentários Gerais que que referimos proclamou o período 2005-2015 como muitas vezes se chama atenção aos Estados membros a Década Internacional para Ação, Água para Vida, e das insuficiências das Convenções, expressas nos re- estabeleceu que a contagem de tal período começaria latórios dos Estados e dos Comitês apresentados aos no Dia Mundial da Água, em 22 de março de 2005 . A Conselhos. Por outro lado, por via dos Comentários mesma resolução estabeleceu ainda que os objetivos Gerais são feitas sugestões de melhoria de regulamen- da década deviam incluir um maior enfoque nas ques- tação e de funcionamento, da mesma forma que ser- tões ligadas à água, e na implementação de programas vem para estimular a atividade dos Estados membros, e projetos ligados à água . as agências especializadas da ONU e outras Organiza- As resoluções saídas das várias conferências e fóruns ções Internacionais a melhorarem o trabalho especiali- vacilaram entre tratar a questão do acesso à água zado que estejam a fazer em determinadas áreas para como uma necessidade básica ou como um direito, a materialização dos direitos contidos nas Convenções mas nota-se claramente em quase todas as resoluções e que se espelha, muitas vezes, nas propostas de me- e declarações acima estudadas que andaram sempre lhorias que são feitas por via dos relatórios. longe do conceito de direito humano à água, excetu- Para a adoção de Comentários Gerais, qualquer dos ando, claro está, a Declaração das Nações Unidas so- membros do Comitê propõe um draft do assunto a dis- 24 ide Report of the Sixth Committee convening as the Working Group of the Whole, April 11, 1997, U.N. Doc.A/51/869, p. 5. 25 Vide http://www.johannesburgsummit.org. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 79ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA cutir à plenária, que em caso de aprovação é o assunto ção condigna ; sobre pessoas com deficiências ; sobre incluso no relatório anual (parágrafo 370) do ECOSOC os direitos econômicos, sociais e culturais das pessoas e dirigido à Assembleia Geral, que por sua vez distri- idosas ; sobre o direito a uma habitação condigna: de- bui cópias aos Estados membros da Convenção sobre salojamentos forçados ; sobre a relação entre as san- Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que discutem ções econômicas e o respeito dos direitos econômicos, a proposta, e se necessário, estando criadas as condi- sociais e culturais ; sobre a aplicação do Pacto a nível ções, procedem à votação na sessão seguinte do ECO- interno ; sobre o papel das instituições nacionais de SOC (ONU, 1988), devendo, entretanto, respeitar-se direitos humanos na proteção dos direitos econômi- procedimentos internos aprovados pelo próprio ECO- cos, sociais e culturais ; sobre os Planos de Ação para SOC. a educação primária ; sobre o direito a uma alimenta- Os Comentários Gerais não têm força jurídica própria, ção adequada ; sobre o direito à educação ; sobre o di- não sendo por isso vinculativos, uma vez que o Comitê reito ao melhor estado de saúde possível de atingir ; sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais não sobre o direito à água ; sobre a igualdade de direitos tem autoridade para criar novas obrigações que pos- dos homens e mulheres ao gozo de todos os direitos sam vincular as partes da ICESCR. econômicos, sociais e culturais ; sobre o direito de to- Todavia, considerando que eles resultam, em grande dos a beneficiar da proteção dos interesses morais e medida, da prática dos Estados que é facultada aos Co- materiais que decorrem de toda a produção científica, mitês por via de relatórios, que acabam reconhecendo literária ou artística de que cada um é autor ; sobre o precedentes em tal prática dos Estados, e permite a direito ao trabalho ; sobre o direito à segurança social materialização das normas contidas nas Convenções, ; sobre a não discriminação nos direitos econômicos, principalmente no que diz respeito à interpretação sociais e culturais e sobre o direito de todos a partici- dessas normas, torna os Comentários Gerais uma fon- par na vida cultural . te legítima e autoritária a levar sempre em conta, o que, a acrescer ao fato de serem os próprios órgãos 2.3 O Comentário Geral N.° 15 das Nações Unidas que aprovam os Comentários Ge- rais, tira qualquer dúvida sobre o seu peso e importân- O GC15 foi aprovado pelo Comitê dos Direitos Econô- cia jurídica. micos, Sociais e Culturais na sua vigésima nona sessão, Deste modo, por constituírem um reflexo da experiên- que teve lugar em Genebra, de 11 a 29 de novembro cia adquirida por via da análise dos vários relatórios do de 2002. Este Comentário Geral estabelece o qua- Comitê sobre os direitos e demais questões previstas dro normativo substantivo do direito humano à água, no ICESCR, apesar de não criarem, de fato, novas obri- numa perspectiva de obrigações exigíveis aos Estados. gações, os Comentários Gerais têm a virtude de clari- Sendo certo que o Comentário Geral foi aprovado de ficar as obrigações existentes, servindo, desta forma, forma a reconhecer o direito humano à água de for- como verdadeiras interpretações das normas e obri- ma geral (parágrafo 1), é necessário todavia fazer uma gações previstas no ICESCR, interpretações essas que análise holística dos temas nele tratados, para que se não só permitem uma melhor aplicação daquele ins- tenha uma percepção cabal dos objetivos que ele visa trumento como também a sua materialização. alcançar. Até ao momento, já foram aprovados pelo Comitê dos O GC15 estabelece nove obrigações principais, cuja in- Direitos Econômicos, Sociais e Culturais um total de 21 terpretação deve ser feita por remissão às demais nor- Comentários Gerais, sobre os mais diversos assuntos, mas nele contidas e que versam sobre os mais diversos nomeadamente: sobre a apresentação de relatórios aspectos relativos ao direito à água. pelos Estados Partes ; sobre medidas de assistência As nove obrigações principais são inderrogáveis e têm técnica internacional ; sobre a natureza das obriga- um efeito imediato . Pela interpretação do GC15 como ções dos Estados Partes ; sobre o direito a uma habita- um todo, conclui-se que são seis os elementos que po- 26 Vide resolução n. 55/196 de 20 de dezembro de 2000 ( da 87ª sessão plenária). 27 Vide resolução n. 58/217 de 23 de dezembro de 2000 (da 78ª sessão plenária). 28 A decisão foi tomada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, que decidiu por via da Resolução A/Res/47/193 de 22 de dezembro de 1992 declarar o dia 22 de março de cada ano como dia mundial da água, que começou a ser celebrado em 1993, em conformidade com as recomendações da Confe- rência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, previstas no capítulo 18 da Agenda 21. 29 Vide Resolução 58/217 de 23 de dezembro de 2003 (saída da 78ª sessão plenária). REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 80ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA dem ser considerados como vinculativos aos Estados apontar muitas outras virtudes ao GC15. Apesar de no que diz respeito à obrigação de satisfazer o direito não proibir a privatização, o GC15 exige que a água seja à água, nomeadamente: tratada como um bem social, e não necessariamente i. A satisfação de direitos que permitam viver com dig- como um bem econômico. De igual modo, prevê que a nidade (parágrafos 1 e 11); água não pode ser objeto de desconexões arbitrárias, ii. O direito de qualquer um “a água suficiente, limpa, aumentos de preços astronômicos e não suportáveis, aceitável, fisicamente e economicamente acessível e ainda contaminação do sistema de fornecimento de para fins pessoais e domésticos” (parágrafo 2); água que possa pôr em perigo vidas humanas. O GC15 iii. A “garantia de que o direito à água é usufruído sem obriga os Estados a garantirem uma distribuição equi- discriminação e de forma igual” (parágrafo 13); tativa da água para grupos desfavorecidos . De igual iv. “O direito de requerer e receber e informações rela- modo, o comentário estabelece que, de forma alguma, tivas às questões ligadas à água” (parágrafo 12 (c) (iv)); a água pode ser usada para exercer pressão política e v. Obrigações dos Estados a nível interno de respeitar, econômica às populações. proteger e cumprir com o direito à água (parágrafos 21 a 29); 2.4 O direito humano à água vi. Obrigações dos Estados a nível internacional de co- operar, de não interferir e prevenir violações feitas por O status do acesso à água como um direito humano organizações das quais o Estado em questão é mem- autônomo e separado só volta a ser discutido a nível bro ou administra (parágrafos 21 a 29). do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, Nos termos do parágrafo 2 do Comentário Geral n.° 15, que aprovou a Resolução n.º 7/22, de 28 de março de “todos têm o direito à água suficiente, potável, fisica- 2008, que aprova a indicação de um perito indepen- mente e economicamente acessível, para uso pessoal dente junto das Nações Unidas para analisar a questão e doméstico”. A inter-relação entre o direito à água e dos deveres e obrigações relativos ao direito humano outros direitos humanos é aqui claramente identifica- à água. A comissária apontada tinha como principais da, uma vez que o direito a um nível adequado de vida tarefas: (artigo 11.° do International Covenant on Economic, (a) Desenvolver diálogo com os governos, órgãos Social and Cultural Rights - ICESCR) e o direito ao mais relevantes da ONU, o setor privado, autoridades locais, alto nível de saúde possível de alcançar (artigo 12.° do instituições nacionais de direitos humanos, organiza- ICESCR) são especificamente enfatizados (WOODHOU- ções da sociedade civil e instituições acadêmicas, com SE, 2004-2005, p. 173), devendo ficar claro que a es- vista a identificar, promover e trocar pontos de vista tratégia para garantia do cumprimento estabelecida sobre as melhores práticas relativas ao acesso à água pelo ICESCR em 1989 requer que os Estados incluam potável e para fins sanitários, e, desse modo, elaborar dados sobre o “direito à água” nos relatórios que apre- um compêndio sobre as melhores práticas aplicáveis; sentem ao ICESCR. (b) Realizar estudos que reflitam os pontos de Na alocação da água, o GC15 estabelece que deve ser vista de governos, órgãos relevantes da ONU, o setor dada prioridade ao direito à água para usos pessoais e privado, autoridades locais, instituições nacionais de domésticos, assim como para prevenir a fome e doen- direitos humanos, organizações da sociedade civil e ças e ainda à água necessária para satisfazer as obri- instituições acadêmicas, para uma maior clarificação gações principais previstas em cada uma das Conven- sobre os conteúdos das obrigações sobre respeito pe- ções. O Comentário sublinha ainda que a água deve ser los direitos humanos, incluindo a não discriminação tratada como um bem social e econômico, e não pri- em relação ao acesso à água para consumo humano e mariamente como um bem econômico (parágrafo 11), para fins sanitários; referindo o mesmo parágrafo que a satisfação do direi- (c) Fazer recomendações que possam ajudar a to à água deve igualmente ser sustentável, de forma materializar os objetivos do desenvolvimento do milê- a garantir a satisfação das necessidades das gerações nio, em particular o objetivo número sete; presentes e futuras. (d) Aplicar uma perspectiva de gênero, incluindo O GC15 enfatiza ainda a necessidade de cooperação as vulnerabilidades específicas nessa mesma perspec- entre os Estados e os atores não estatais. Podem-se tiva; 30 Vide Committee on Economic, Social and Cultural Rights, Report of the Second Session, U.N. Doc. E/1988/14, parágrafos 366 e 367. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 81ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA (e) Trabalhar em coordenação, evitando duplica- zação ou privatização do setor de águas; (5) Facilita o ções desnecessárias, com outros programas e órgãos embaraço das autoridades públicas. subsidiários da ONU, levando sempre em conta a opi- Por outro lado, porque, como defende alguma doutri- nião dos diversos actores relevantes; na, há o receio por parte de alguns Estados de se criar (f) Submeter um relatório ao ECOSOC que inclua um demérito à figura dos direitos humanos, na medida as suas conclusões e recomendações sobre o assunto. em que a proliferação normativa nesta área pode pôr Pouco mais de dois anos depois, e com a apresentação em perigo a autoridade de direitos humanos já estabe- do relatório da perita independente sobre a situação lecidos (HILDERING, 2004). geral do cumprimento do direito humano à água, a As- Entretanto, parece-nos que tais justificações não são sembleia Geral das Nações Unidas, reunida na sua 108ª autossuficientes. Na verdade, tal como já analisado, sessão plenária em 28 de julho de 2010, reconheceu o tais interpretações são fruto de uma imperfeita per- direito humano à água como um direito humano es- cepção do preciso entendimento da natureza e obje- sencial para o cabal gozo da vida e dos direitos huma- tivo dos direitos econômicos e sociais, uma vez que se nos, por via da Resolução n.º A/RES/64/292. os receios levantados e atrás indicados fossem reais, Pelo fato de o mais desenvolvido instrumento que an- já estaríamos a assistir situações muito complicadas, tecedeu à declaração do direito humano à água ter uma vez que outros direitos humanos, não menos de- sido o GC15, a interpretação do conceito e conteúdo licados que o direito humano à água, foram aprovados do direito humano à água extrai-se, em grande medi- e reconhecidos sem que tal significasse uma ruptura da, daquele instrumento. Na verdade, o GC15 crista- das relações sociais ligadas a esses direitos, quais se- lizou as obrigações legais substantivas das Nações e jam o direito à alimentação, à habitação e à saúde, que da Comunidade Internacional, no que diz respeito ao mesmo tendo sido proclamados há vários anos, não direito humano à água (WOODHOUSE, 2004-2005). têm sido motivo de alteração do mercado nem de em- Esta demora em declarar o direito humano à água de- baraço de entidades públicas e nem privadas, apesar veu-se, por um lado, ao receio de os Estados não po- do elevado número de pessoas que continuam sem ter derem garantir o direito humano à água e com isto uma casa ou alimentação condigna (BROWN WEISS et violarem o Direito Internacional, isto porque sendo a al., 2005). água um bem precioso e pela qual todos disputam, in- Por outro lado, é preciso levar em conta o fato de o di- cluindo o próprio Estado, este seria um compromisso reito humano à água não ser um direito civil, tal como grande demais para ser assumido. o direito ao voto, que qualquer pessoa pode exigir o Deste modo, muitos Estados, assim como muitos cír- cumprimento imediato. Os direitos econômicos são culos de negócios, apresentaram várias justificações satisfeitos de forma progressiva, de acordo com um para que não se declarasse a água como um direito quadro programático, que neste caso pode implicar o humano básico fundamental, podendo-se indicar aqui estabelecimento de metas para a disponibilização de algumas dessas razões (SMETS, 2005): (1) Cria uma água canalizada para determinado número de pesso- responsabilização internacional; (2) Impede a como- as, ou determinadas regiões, de cada vez (MACCAF- ditização da água; (3) Receio de esse direito implicar FREY, 2005). o acesso gratuito à água; (4) Pode impedir a liberali- A aprovação do direito humano à água traz consigo 31 Vide General Comment No. 1, Re, U.N. ECOSOC Supp. No 4, Annex III, at 87–9, U.N. Doc. E4-1989/22. 32 Vide General Comment No. 2, International Technical Assistance Measures, E/1990/23 Annex III. 33 Vide General Comment No. 3, The Nature of States Parties’ Obligations, E/1991/23 Annex III. 34 Vide General Comment No. 4, The right to adequate housing, E/1992/23 Annex III. 35 Vide General Comment No. 5, Persons with disabilities, U.N. Doc E/C.12/1994/13. 36 Vide General Comment No. 6, The economic, social and cultural rights of older persons, U.N. Doc. E/C.12/1995/16/Rev.1 (1995). 37 Vide General Comment No. 7, The right to adequate housing: forced evictions, U.N. Doc. E/C.12/1997/4 (1997). 38 Vide General Comment No. 8, The relationship between economic sanctions and respect for economic, social and cultural rights, U.N. Doc. E/C.12/1997/8. 39 Vide General Comment No. 9, The domestic application of the Covenant, U.N. Doc. E/C.12/1998/24. 40 Vide General Comment No. 10, The role of national human rights institutions in the protection of economic, social and cultural rights, U.N. Doc. E/C.12/1998/24 (1998). 41 Vide General Comment No. 11, Plans of action for primary education, U.N. Doc. E/C.12/1999/4. 42 Vide General Comment No. 12, Right to adequate food, U.N. Doc. E/C.12/1999/5. 43 Vide General Comment No. 13, The right to education, U.N. Doc. E/C.12/1999/10. 44 Vide General Comment No. 14, The right to the highest attainable standard of health, U.N. Doc. E/C.12/2000/4. 45 Vide General Comment No. 15, The right to water, E/C.12/2002/11. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 82ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA inúmeras vantagens para a sociedade, uma vez que exemplo, dos princípios e regras concernentes aos permite alcançar certos objetivos que doutro modo di- direitos básicos das pessoas são, pela sua própria ficilmente se conseguiriam. A primeira tem a ver com o natureza, uma preocupação de todos os Estados , fato de a proclamação do direito humano à água criar tendo o mesmo tribunal referido ainda que “em vir- um maior sentido de responsabilidade junto dos Esta- tude da importância dos direitos envolvidos, a todos dos e governos, uma vez que sublinha a importância e os Estados pode-se incumbir a proteção dos mes- prioridade que deve ser dada à redução da escassez de mos, em virtude de elas constituírem obrigações água para a satisfação das necessidades básicas das erga omnes” . Refira-se, todavia, que um direito hu- populações, o que se reforçou grandemente em virtu- mano pode ser aferido como jus cogens, e em con- de de doravante, com a proclamação do direito, esta sequência ser considerado uma norma peremptória ser uma obrigação dos Estados. de Direito Internacional geral em relação à qual não Em segundo lugar, a declaração da água como um di- se permite derrogação . reito humano fundamental permite reafirmar a situ- Deste modo, com a declaração do direito humano à ação presente e futura, cuja perspectiva é drástica, o água, para além do natural cumprimento de que se que torna a questão da satisfação das necessidades espera por parte dos Estados, é necessário o urgente humanas básicas de água, por ser um dever jurídico monitoramento do cumprimento de tal dever, e o acio- dos Estados, uma questão prioritária das suas agendas namento de medidas que permitam garantir um com- internas e até da comunidade internacional. prometimento sério por parte dos Estados na satisfa- Em terceiro lugar, porque o direito humano à água é vi- ção do direito humano à água das populações. tal para a materialização de outros direitos fundamen- A definição e a aprovação do direito humano à água tais, tais como o direito à vida, à alimentação, à digni- não foram tarefa fácil. Mostrou-se difícil, pelo tempo dade, etc., e pelo papel primordial que tem na vida das e trabalho necessário para a sua proclamação. E como pessoas, é de esperar que se faça um esforço para a vimos, o crescimento da população, da urbanização e materialização do direito humano à água, como forma as mudanças hidrológicas, a degradação ambiental e de materializar vários outros. outros fatores que colocaram maior pressão sobre a Por último, com tanta atenção devotada à satisfação água levaram a que a disputa por ela fosse mais acir- do direito humano à água, é necessário que institui- rada, o que levou a um repensar sobre o acesso a este ções, instrumentos legais e políticas sejam desenha- recurso, que é, na verdade, um dos recursos naturais dos a curto e médio prazo com vista a garantir a ma- básicos para a subsistência do homem. terialização do direito humano à água, o que faz com Tais discussões, iniciadas na década de 1970, arras- que este direito ganhe uma nova dinâmica a nível da taram-se até muito recentemente, tendo sido objeto comunidade internacional (SCANLON et al., 2004). de várias conferências e fóruns que vacilaram entre A opinião por nós formulada tem muito a ver com a ne- declarar a água como um simples direito básico ou cessidade urgente de dar um salto em relação à forma um verdadeiro direito humano, sendo neste contex- pela qual são vistos os direitos humanos por parte dos to que foi aprovado o GC15, que reconheceu o direi- Estados, que, apesar de reconhecerem e aceitarem a to humano à água e dinamizou as discussões sobre sua importância, continuam a fugir à responsabilidade o assunto. de garantir a sua correta materialização, de tal sorte Porque é um fato, hoje em dia, a existência do direi- que cria-se inclusive alguma confusão em relação à to humano à água, proclamado pelas Nações Unidas, precisa natureza e respectivo papel dos direitos huma- procuramos explicar como é que tal direito evoluiu nos no Direito Internacional. para o contexto atual, e como é que, sendo uma nor- Todavia, vale a pena aqui lembrar que o Tribunal ma vinculativa, deve ser interpretado e aplicado a Internacional de Justiça declarou no “Barcelona nível dos ordenamentos jurídicos interno e interna- Traction case” que as obrigações decorrentes, por cionais, incluindo a questão da sua justiciabilidade. 46 Vide General Comment No. 16, The equal right of men and women to the enjoyment of all economic, social and cultural rights, E/C.12/2005/4. 47 Vide General Comment No. 17, The right of everyone to benefit from the protection of the moral and material interests resulting from any scientific, literary or artistic production of which he or she is the author, E/C.12/GC/17. 48 Vide General Comment No. 18, The right to work, E/C.12/GC/18. 49 Vide General Comment No. 19,The right to social security, E/C.12/GC/19. 50 Vide General Comment No. 20, Non-discrimination in economic, social and cultural rights, E/C.12/GC/20. 51 General Comment No. 21, Right of everyone to take part in cultural life, E/C.12/GC/21. 52 Vide parágrafos 17, 37 e 40 do GC15. 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REVISTA JURÍDICA 3 CONCLUSÃO direito à vida, à alimentação, à dignidade, etc.; impulsionará a criação de instrumentos legais e políticas com vista a ga- A autonomização do direito humano à água deveu-se à ne- rantir a materialização do direito humano à água, o que fará cessidade do reconhecimento explícito deste direito, pelo com que este direito ganhe uma nova dinâmica a nível da papel fundamental que a água exerce na vida das pessoas. comunidade internacional. Deveu-se também à necessidade de não integrar o direito O direito humano à água pode ser invocado entre Estados à água noutros direitos, como outrora acontecia. Por outro que partilham cursos de água internacionais, no sentido de lado, visa garantir que o direito humano à água não seja vis- os Estados invocarem o direito ao acesso à água de forma to como corolário de outros direitos, como o direito à vida, à equitativa e razoável, sob pena de comprometer-se a sa- saúde, à alimentação, entre outros. tisfação das necessidades básicas das suas populações. Os A demora em declarar o direito humano à água deveu-se, cidadãos lesados, que pertencem a certo Estado, só podem por um lado, ao receio que os Estados tinham de não pode- fazer valer o seu direito humano à água perante as autorida- rem garantir o direito humano à água e com isto violar com- des do seu próprio país, não o podendo fazer valer perante promissos internacionais que eventualmente tenham assu- outro Estado ribeirinho que partilhe cursos de água com o mido, porque do ponto de vista dos Estados, tal direito podia seu próprio Estado. criar uma responsabilização internacional; podia impedir a Com a aprovação do direito humano à água, para além do comoditização da água; podia implicar o acesso gratuito à natural cumprimento de que se espera por parte dos Esta- água; podia impedir a liberalização ou privatização do setor dos, é necessário o urgente monitoramento do cumprimen- de águas; facilita o embaraço das autoridades públicas. to de tal dever, e o acionamento de medidas que permitam A aprovação do direito humano à água traz consigo inú- garantir um comprometimento sério por parte dos Estados meras vantagens para a sociedade, pois permite alcançar na satisfação do direito humano à água das populações. objetivos que doutro modo dificilmente se conseguiriam, Com a existência do direito humano à água, proclamado nomeadamente criar um maior sentido de responsabilida- pelas Nações Unidas, sendo uma norma vinculativa, deve de junto dos Estados e governos, uma vez que sublinha a ele ser interpretado e aplicado a nível dos ordenamentos ju- importância e prioridade que deve ser dada à redução da rídicos interno e internacionais, incluindo a questão da sua escassez de água para a satisfação das necessidades bási- justiciabilidade. É justiciável o direito humano à água quan- cas das populações; permite reafirmar a situação presente do ele tenha sido violado como direito para a satisfação das e futura, cuja perspectiva é drástica, o que torna a questão necessidades básicas humanas. da satisfação das necessidades humanas básicas de água Não é justiciável como direito humano à água o direito à uma questão prioritária das suas agendas internas e até in- água para fins que não sejam a satisfação das necessidades ternacionais; porque o direito humano à água é vital para a básicas humanas, como, por exemplo, o acesso à água para materialização de outros direitos fundamentais, tais como o a agricultura ou para a indústria. BIBLIOGRAFIA GENERAL ASSEMBLY. Resolution 217 A (III) de 10 de Dezembro de 1948. Disponível em: http://www.un-docu- ments.net/a3r217a.htm. Acesso em: 17 dez. 2014. HILDERING, Antoinette. International law, sustainable development and water management. Eburon Publishers, 2004. MCCAFFREY, Stephen C., A human right to water: domestic and international implications. 5 Georgetown Inter- national Environmental Law Review, 1992-1993. 53 Vide parágrafos 22 e 23 do GC15. 54 A brasileira Catarina de Albuquerque. 55 Vide ICJ Judgement in the Case concerning the Barcelona Traction, Light and Power Company Limited (Belgium/Spain), ICJ Rep., 1970, p. 32. Vide igualmente ICJ, Reservations to the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide, 28 May 1951, ICJ Rep. 1951, p. 23: ‘the contracting States do not have any interest of their own; they merely have, one and all, a common interest’. Ibidem. 56 Vide ICJ Barcelona Traction case, p. 32., no qual foi referido que “human rights with an erga omnes character include those formulated in the 1948 Genocide Convention”. Vide também ICJ Judgement in the Case on Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide, Preliminary Objections (Bosnia and Herzegovina/Yugoslavia), ICJ Rep. 1996, p. 31. 57 Sobre o jus cogens, vide artigo 31.° da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 84ISSN: 2177 - 1472
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PERSPECTIVAS PARA O DIREITO PENAL NO ESTADO DO SÉCULO XXI PROSPECTS FOR THE CRIMINAL LAW IN THE STATE OF THE XXI CENTURY Fernanda Peres Soratto Janaína Jacinto de Oliveira RESUMO PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal. Intervenção Mínima A presente pesquisa propõe uma reflexão sobre o sis- Estatal. Novas Tendências de Combate à Criminalidade. tema penal estatal, bem como busca demonstrar algu- mas das atuais perspectivas que envolvem tal ciência. ABSTRACT Nessa linha, o trabalho de cunho essencialmente bi- bliográfico explana sobre alguns movimentos e teo- This research proposes a reflection on the state penal rias desenvolvidas ao longo do tempo como forma de system, as well as seeks to demonstrate some of the instrumentalização, adequação e solução ao comba- current perspectives that involve such science. In this te à violência e à criminalidade, dando, pois, especial line, essentially bibliographic work explores some mo- relevo àquelas que visaram acalmar a coletividade e vements and theories developed over time as a form of transmitir a incansável busca pela sensação de segu- instrumentalization, adequacy and solution to combat rança, mas que nem sempre solucionam as raízes do violence and crime, thus giving special emphasis to tho- real problema, qual seja, a criminalidade. Assim, após se aimed at calming the community and transmit the tal análise, foi verificado que, embora o Direito Penal, relentless search for a sense of security, but that do not principalmente o brasileiro, tenha em suas bases e ali- always solve the roots of the real problem, that is, crime. cerces a adoção do princípio da intervenção mínima do Thus, after this analysis, it was verified that, although Estado para solução dos conflitos, há um clamor pelo criminal law, mainly Brazilian law, has in its foundations endurecimento do sistema punitivo e uma crescente and bases the adoption of the principle of minimum supressão de direitos e garantias fundamentais do ci- State intervention to resolve conflicts, there is a cry for dadão, nesse sentido, considerados como inimigos do the hardening of the punitive system and a growing Estado e da coletividade, tendo em vista, especialmen- suppression of fundamental rights and guarantees of te, a crescente repercussão que os apelos midiáticos the citizen, in this sense, considered as enemies of the causam na opinião pública. Deste modo, a pesquisa State and of the collectivity, especially in view of the in- conclui-se pela manifestação de que, independente creasing repercussions that the media appeals cause das medidas adotadas pelo Estado para conter as in- in public opinion. Thus, the research concludes by the frações de natureza criminal, pugna-se sempre pela manifestation that, regardless of the measures adopted defesa de um Direito Penal mais humano, e que pre- by the State to contain criminal offenses, it is always ze pelos direitos e garantias fundamentais do homem, defended by a more humane Criminal Law, and that it pois só assim ver-se-á concretizado um Estado, tipica- pays for the fundamental rights and guarantees of man mente, Democrático de Direito. , since this is the only way in which a State, typically a Democratic State of Law, will be realized. * O presente texto corresponde a um recorte de uma pesquisa ampla de conclusão de curso. 1 Doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e Docente do curso de Direito da Universidade de Rio Verde (UniRV) – email: [email protected]. 2 Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e assistente em administração da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – email: [email protected]. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 86ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA KEYWORDS: Criminal Law. State Minimum Interven- para punir aquele que, de alguma maneira, infringisse tion. New Trends in Combating Crime. ou ferisse um bem jurídico pertencente ao homem e tutelado pelo poder estatal. 1 INTRODUÇÃO Porém, ainda hoje, se mostra crescente a busca por um equilíbrio entre os meios punitivos aplicados pelo Esta- A vida em sociedade exige o cumprimento de um com- do e as condutas a serem punidas, mesmo sob a égide plexo de normas que estabeleça as regras necessárias de leis penais incriminadoras, vigentes em nosso atual à convivência humana, sob pena de coerção daqueles Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, obser- que as desobedecerem. va-se que o Direito Penal não pode ter por finalidade No Direito Penal, o Estado detém a titularidade de a solução de todo e qualquer conflito que demande exercer os ius puniendi, assim, tem ele o poder-dever intervenção estatal, mas, sim, a tutela dos bens mais de proteger a sociedade, coibindo e reprimindo os in- importantes para a convivência harmônica em socie- fratores da norma penal. dade. Ao chamar para si esta responsabilidade, o Estado se Para tanto, seguindo os ensinamentos deixados por comprometeu a resguardar a paz pública. Tal interven- Beccaria, em sua grandiosa obra intitulada “Dos Deli- ção foi e, ainda, é necessária na medida em que o exer- tos e das Penas” e inspirada nas ideias iluministas do cício da própria razão revela-se desmedido e não raras século XVIII, têm-se a seguinte lição: “[...] para não vezes, selvagem. ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve No entanto, diante da necessidade de se estabelecer ser, de modo essencial, pública, pronta, necessária, a um controle mais eficiente sobre as práticas delituo- menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, sas, alguns movimentos de política criminal insurgi- proporcionada ao delito e determinada pela lei” (2007, ram-se, baseados no ideário de um Direito Penal Má- p. 107, grifos nossos). É, pois, neste cenário Iluminis- ximo. ta que começam a surgir as ideias de um Direito Penal Logo, o foco do presente trabalho é a sugestão do uso Mínimo. de um direito criminal tão somente na medida neces- De acordo com Mata (2008, p. 66), “[...] se o Estado é sária para a prevenção e reprovação do delito. Ade- produto da razão, jamais poderá ser considerada legíti- mais, a pesquisa tem como objetivo discorrer sobre ma a sanção penal que se findar, única e exclusivamen- o papel do Estado enquanto garantidor de uma tutela te, no sentimento de vingança”, pois: jurisdicional mais eficiente e humanitária. Para tanto, abordará algumas alternativas trazidas pela doutrina a É com base nesse pensamento, que podemos fim de diminuir o âmbito de aplicação do sistema pe- afirmar que o Direito Penal deve ser a “ultima nal. ratio”, devendo ser chamado a intervir somente Por fim, o estudo pretende demonstrar algumas me- quando os demais ramos do direito se mostrarem didas alternativas em substituição ao cárcere para incapazes, inaptos ou insuficientes para a tutela aquelas infrações que não coloquem em risco os bens do bem jurídico infringido (BITENCOURT , p. 11 sociais mais preciosos. apud MATA, 2008, p. 66, grifos do autor). Conclui-se, portanto, que ao Estado cabe à instrumen- talização de um Direito Penal mais humanitário, mí- Para Franco (1996, p. 185) apud Telles (2010, p. 27): nimo e efetivo, elementos estes que se espera de um Estado Democrático de Direito. O Direito Penal Mínimo é, sem nenhuma margem de dúvida, a correta representação 2 TEORIA DO DIREITO PENAL MÍNIMO: ASPECTOS GE- do Direito Penal de um Estado Democrático de RAIS FAVORÁVEIS Direito, laico, pluralista, respeitador do direito à diferença, em suma, de um modelo político No decorrer do tempo, constantes foram, e ainda são, social que tenha o ser humano - e sua dignidade as modificações sofridas pela ordem jurídica penal. - como centro fulcral da organização estatal. Assim, durante o transcorrer da história da pessoa hu- mana, inúmeros foram os meios e modos empregados Tem-se, pois, que o Direito Penal Mínimo é o modelo de Direito Penal Garantista , norteado por princípios fundamentais, os quais exercem a função de refrear a 1 BITENCOURT, Cézar Roberto. Manual de direito penal: parte geral. 17. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002. 2 FRANCO, Alberto Silva. Do princípio da intervenção mínima ao princípio da máxima intervenção. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, p. 185, 1996. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 87ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA atividade punitiva estatal, conforme já observado em Deste modo, parte da doutrina entende que a aplica- linhas acima. ção do Direito Penal Mínimo mostra-se mais positivo Bastante oportuna é explicação de Telles (2010, p. para a sociedade, além de se coadunar com as bases 9-10) sobre o assunto, in verbis: de um Estado Democrático de Direito (SANTOS, 2013). Em que pesem os argumentos apresentados a favor [...] o Direito Penal Mínimo, também conhecido dessa posição, é sabido que se desenvolveram, ao como Direito Penal do Equilíbrio, surge tendo longo da evolução histórica do direito penal, teorias e como fundamento primordial a intervenção movimentos de política criminal que preconizaram, ou mínima do Direito Penal nas condutas humanas, mesmo continuam a preconizar, diferentes formas de porém punindo efetivamente os crimes de maior se combater a criminalidade. relevância jurídico-social. Em outras palavras, Seguindo, mais ou menos, uma ordem cronológica, significa limitar os mecanismos de punição tem-se, assim, o abolicionismo penal e o direito penal do Estado, utilizando-os somente quando máximo com suas vertentes: o movimento da lei e da estritamente necessários para a proteção dos ordem, a teoria das vidraças quebradas, a tolerância indivíduos. zero e o direito penal do inimigo. Nessa linha, a intervenção do Direto Penal encontra 3 ABOLICIONISMO PENAL abrigo apenas quando há ofensa aos bens jurídicos mais importantes para a sociedade, ficando às pertur- Trazendo uma conceituação empreendida por Ferrajoli bações mais leves a ordem jurídica tutelada por outros (2002, p. 201): ramos do direito. Nesse sentido, também a lição de Roxin (2013, p. 16): [...] a função do Direito Penal consiste em O abolicionismo penal constitui um conjunto garantir a seus cidadãos uma existência pacífica, um tanto heterogêneo de doutrinas, teorias livre e socialmente segura, sempre e quando e postura ético-culturais, cuja característica estas metas não possam ser alcançadas com comum é a negação de qualquer justificação ou outras medidas político-sociais que afetem em legitimidade externa à intervenção punitiva do menor medida a liberdade dos cidadãos. Estado sobre a desviança. Assim, o Direito Penal Mínimo tem um importante pa- De acordo com o autor, os pressupostos filosóficos e pel “[...] no combate à criminalidade, tendo em vista a as perspectivas políticas do abolicionismo são bastan- criação de meios ressocializadores mais efetivos aos te diversos e advêm desde o século XVIII (FERRAJOLI, egressos da prisão, da aplicação de penas alternativas, 2002). Sua concepção mais moderna, entretanto, surge dentre tantos outros exemplos” (TELLES, 2010, p. 26). nas décadas de 60 e 70, como resultado de estudos e O Direito Penal Mínimo é, pois, a representação do po- artigos realizados por Louk Hulsman, Thomas Mathie- der coercitivo de um Estado Democrático de Direito. sen e Nils Christie (SANTOS, 2013, n.p.). A ação sancionadora estatal não pode ser tirana nem O Abolicionismo Penal é conceituado por Nucci (2010, descontrolada, tendo em vista a própria proteção do p. 310), como “[...] um novo método de vida, apresen- cidadão frente ao Estado. tando uma nova forma de pensar o Direito Penal, ques- Ao contrário do que muitos possam imaginar, tionando o significado das punições e instituições, bem como construindo outras formas de liberdade e justiça”. De acordo com Nucci (2010, p. 310): O Direito Penal Mínimo não defende o O movimento trata da descriminalização abrandamento jurídico-penal. Longe disso, quer (deixar de considerar infrações penais que o direito penal siga pelos caminhos de seu determinadas condutas hoje criminalizadas) objetivo, de sua função, que é tutelar os bens e da despenalização (eliminação – ou intensa jurídicos fundamentais. A criminalidade não é atenuação – da pena para a prática de certas mitigada e sim reformada, sistematizando o que condutas, embora continuem a ser consideradas é real competência da seara penal, tornando-a delituosas) como soluções para o caos do efetivamente criteriosa em sua esfera (FROTA sistema penitenciário, hoje vivenciado na grande JÚNIOR; DINIZ, 2009, n.p.). maioria dos países (grifos do autor). 3 De acordo com a definição de Nucci (2010, p. 312), o garantismo penal é “[...] um modelo normativo de direito, que obedece a estrita legalidade, típico do Estado Democrático de Direito, votado a minimizar a violência e maximizar a liberdade, impondo limites à função punitiva do Estado”. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 88ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA Nesse sentido, o encarceramento, tido como princi- xão de que algo precisa ser feito, porém, não se mos- pal sistema punitivo utilizado pelo Estado, estaria se tra crível imaginar uma sociedade livre, pacífica e justa mostrando bastante falho quanto a sua função res- sem o mínimo da tutela penal. socializadora; haveria, inclusive, um elevado índice Por outro lado, apresentamos outra corrente doutriná- de reincidência. Assim, de acordo com o pensamen- ria absolutamente oposta ao abolicionismo penal, qual to abolicionista, seria importante a busca por outros seja o Direito Penal Máximo, que reflete e norteia, tam- métodos coercitivos, tendo em vista a ineficácia da bém, o modo de ser e agir do Direito Penal estatal. privação de liberdade como sistema repressor (NUCCI, 2010). 4 DIREITO PENAL MÁXIMO Assim, segue abaixo, uma composição que espelha a idealização do Abolicionismo. Vejamos: De acordo com Nucci (2010, p. 312), o Direito Penal Má- ximo “[...] é um modelo de direito penal caracterizado a) abolicionismo acadêmico, ou seja, a pela excessiva severidade, pela incerteza e imprevisi- mudança de conceitos e linguagem, evitando a bilidade de suas condenações e penas”. construção de resposta punitiva para situações- Com muita propriedade, Ferrajoli assim escreve: problema; b) atendimento prioritário à vítima (melhor seria destinar dinheiro ao ofendido A certeza do direto penal máximo de que do que construindo prisões); c) guerra contra nenhum culpado fique impune se baseia, ao a pobreza; d) legalização das drogas; e) contrário, no critério oposto, mas igualmente fortalecimento da esfera pública alternativa, subjetivo, do in dúbio contra reum. Indica uma com a liberação do poder absorvente dos aspiração autoritária. Mas, em geral, a ideia meios de comunicação de massa, restauração corrente de que o processo penal deve conseguir da autoestima e da confiança dos movimentos golpear todos os culpados é fruto de uma ilusão organizados de baixo para cima, bem como a totalitária. [...] Ali onde uma lei escrita com restauração do sentimento de responsabilidade caracteres determina que o mais insignificante dos intelectuais (NUCCI, 2012, p. 395, grifos do evento não fique impune; que todo o delito das autor). trevas, nas quais a fatalidade às vezes o envolve, seja necessariamente conduzido ao dia claro de Para Telles (2010, p. 27), “[...] a aplicação mínima do di- juízos; que a pena não se afaste do delito em reito penal é tida como ‘um mal necessário’, excluindo nenhum momento, ali se faz necessário que nas a possibilidade de resolução das demandas por meios mãos do juiz se configure um poder arbitrário informais, assim como propôs o Abolicionismo”. e imoderado. A presteza da execução exclui as Nessa linha, “[...] não há dúvidas de que, por ora, o formalidades e substitui o processo pela vontade abolicionismo penal é somente uma utopia, embora absoluta exterior. A rigorosa investigação do traga à reflexão importantes conceitos [...], demons- delito oculto não se realiza mais senão por meio trando o fracasso do sistema penal atual em vários as- de um poder ilimitado e de violência necessária pectos, situação que precisa ser repensada e alterada” e atentados sobre a liberdade de um inocente. (NUCCI, 2010, p. 310, grifos do autor). Semelhante poder ilimitado de um terrível No mesmo sentido, vejamos Ferrajoli (2002, p. 275): inquisidor não pode estar sujeito aos laços de um processo regular. Em tal estado, a liberdade [...] O abolicionismo penal – independente civil de modo algum pode subsistir (2002, p. 85, dos seus intentos liberatórios e humanitários grifos do autor). – configura-se, portanto, como uma utopia regressiva que projeta, sobre pressupostos Para o ilustre doutrinador, o modelo acima citado se ilusórios de uma sociedade boa ou de um Estado opõe ao Direto Penal Mínimo, pois, ao contrário desse, bom, modelos concretamente desregulados o Direito Penal Máximo se encarrega de estabelecer as ou autorreguláveis de vigilância e/ou punição, condições bastantes para a execução da pena, e não as em relação aos quais é exatamente o direito necessárias para uma absolvição (FERRAJOLI, 2002). penal – com o seu complexo, difícil e precário Para Ferrajoli (2002), um sistema penal garantista tem sistema de garantias – que constitui, histórica e por fundamento a punição apenas daqueles delitos axiologicamente, uma alternativa progressista. cuja autoria reste comprovada pela comissão, ao con- trário do que busca o Direito Penal Máximo, a conde- Uma patente inviabilidade deste modelo de direito pe- nação de todos os fatos tipificados na legislação penal. nal é visualizada em seus próprios fundamentos, não É, pois, um Direito Penal inquisidor, incerto e imprevisí- que estes sejam absurdos, pois trazem de fato a refle- vel. A busca desse para a efetiva condenação de todos REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 89ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA os acusados põe em risco a liberdade civil, já que, para Kelling e Wilson sustentavam que se uma alcançar seu objetivo, pouco importa se um inocente janela de um imóvel fosse quebrada e não também for punido. imediatamente consertada, as pessoas que por ali passassem concluiriam que ninguém se 4.1 Movimento de Lei e Ordem importava com o local e que naquela região não havia autoridade responsável pela manutenção De acordo com Telles (2010), o movimento de “Lei e Or- da ordem. Em pouco tempo, algumas pessoas dem”, ou Law and Order, nasceu nos Estados Unidos em começariam a atirar pedras para quebrar as meados da década de 70. O Estado, utilizando todo o seu demais janelas ainda intactas. Tão logo, todas as poder, combatia avidamente a delinquência e condenava janelas estariam quebradas. severamente os criminosos. Iniciava-se, assim, a decadência daquela rua e Os meios de comunicação, por sua vez, disseminavam na da própria comunidade. Apenas os desocupados população a crença de que o recrudescimento das penas e pessoas com tendências criminosas sentir- e a ausência das garantias processuais aos acusados so- se-iam à vontade para ter algum negócio ou lucionariam o problema da violência (TELLES, 2010). mesmo morar na rua cuja decadência era Nas palavras da autora: evidente. O passo seguinte seria o abandono daquela localidade pelas “pessoas de bem”, O movimento de lei e de ordem se faz convencer deixando o bairro à mercê dos “desordeiros”. por intermédio de sensacionalismo, transmitindo Pequenas desordens levariam a grandes e, imagens chocantes de crimes como o estupro mais tarde, ao crime. Em razão da imagem das de crianças, pedofilia, corrupção etc, que janelas quebradas que seria a origem de todo o possam causar revolta e medo na sociedade, “caos”, o estudo ficou conhecido como Broken fazendo-a acreditar que somente um direito WindowsTheory (LOVATTI, 2009, n.p., grifos do penal máximo é capaz de deter o mal causado autor). pela delinquência. Pelo fato de a atuação do Estado ser máxima, Pequenas condutas, voltadas mais ao campo moral, inevitavelmente algumas garantias e direitos quando praticadas, eram severamente reprimidas fundamentais dos indivíduos são suprimidos, para que não estimulassem outras infrações maiores. uma vez que não há proporcionalidade na Cite-se, por exemplo, o simples ato de jogar lixo no aplicação das penas, pouco se respeita a chão, apresentar embriaguez em público ou mesmo a dignidade da pessoa humana e, principalmente, prostituição. faltam ao cidadão as garantias processuais De acordo com Lovatti (2009, n.p.), “[...] se um peque- asseguradas constitucionalmente (TELLES, no delinquente não fosse punido exemplarmente, o 2010, p. 27). grande criminoso se sentiria seguro e à vontade para atuar na região da desordem”. Em nosso país, não é nenhuma novidade o apelo sen- Do mesmo modo que o Movimento de Lei e Ordem, sacionalista da mídia nacional ao exibir incessante- também a Teoria das Vidraças Quebradas não encontra mente matérias chocantes, a fim de persuadir a socie- amparo em nossa legislação pátria, justamente porque dade de que as máximas de endurecimento das penas, se sobrepõe às garantias fundamentais do cidadão. limitações a garantias processuais e até mesmo a ado- A resposta ao crime é imediata, mas também desme- ção da pena capital sejam respostas mais eficazes no dida, desarrazoadamente desproporcional ao ato pra- combate à criminalidade. Tais ideologias, contudo, não ticado. Postura esta totalmente contrária à evolução se coadunam com um Estado Democrático de Direito. que se espera do Direito Penal. 4.2 Teoria das Vidraças Quebradas 4.3 Tolerância Zero A Teoria Das Vidraças Quebradas, segundo Lovatti A “Tolerância Zero” surgiu em 1993, na cidade de Nova (2009), teve origem com o estudo realizado por Ja- York, guiada pelo prefeito Rudolph Guiliani, como uma mes Q. Wilson e George Kelling intitulado The Police consequência da Teoria das Vidraças Quebradas (TEL- and Neighborhood Safety - A Polícia e a Segurança da LES, 2010). Comunidade – e publicado na revista Atlantic Monthly. A autora, brilhantemente, nos expõe a ideologia dos Aludida teoria acredita que a repressão criadores desta teoria, ipsis litteris: imediata e severa das menores infrações e desentendimentos em via pública evita o desencadeamento dos grandes atentados REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 90ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA criminais, restabelecendo um clima sadio de Segundo sua ótica, não há a supressão das garantias ordem, pois demonstra a existência de uma fundamentais do cidadão, e sim, discricionariedade de autoridade responsável pela manutenção da permissão quanto ao uso destas. Para o Estado, o ini- ordem (SILVA, 2012, p. 223). migo não faria jus ao socorro dessas garantias. Tal entendimento, “[...] na realidade, à luz do sistema Como restou demonstrado, o Movimento de Lei e Or- penal brasileiro, essa postura seria manifestamente in- dem, a Teoria das Vidraças Quebras e a Tolerância Zero constitucional” (NUCCI, 2010, p. 312). são vertentes de um Direto Penal Máximo, utilizado O Direito Penal do Inimigo faz uma clara distinção en- como instrumento de controle criminal prévio ao co- tre o cidadão comum e aquele considerado hostil para metimento do delito, portanto, um direito penal que o Estado. O adversário, segundo esta concepção, não tem no homem um inimigo caso este não se condu- é digno das mesmas garantias fundamentais inerentes za pelas regras impostas pelo Estado, ainda que sejam à pessoa humana. O Estado tem com eles uma relação normas de cunho moral. de conflito. Por tudo que foi exposto, verifica-se, que este mode- 4.4 Direito Penal do Inimigo lo de Direito Penal também não encontra guarida em nosso ordenamento jurídico. A teoria do Direito Penal do Inimigo é outra vertente Apresentadas algumas das teorias e movimentos de do Direito Penal Máximo, desenvolvida pelo alemão política criminal, que se autojustificaram no passado, e Günter Jakobs, na década de 90 (TELLES, 2010). outras que ainda se mostram presentes, como formas Para Nucci (2010, p. 312), “trata-se de um modelo de de se buscar alternativas no combate à criminalidade, direito penal, cuja finalidade é detectar e separar, den- expõem-se, agora, algumas colocações acerca da apli- tre os cidadãos, aqueles que devem ser considerados cabilidade da teoria do Direito Penal Mínimo no Direito inimigos (terroristas, autores de crimes sexuais violen- Brasileiro. tos, criminosos organizados, dentre outros)” (grifos do autor). 5 O MODELO ATUAL DO DIREITO PENAL: NOVOS RU- Segundo Nucci (2010), estes indivíduos não merecem MOS que o Estado trate-os com as mesmas garantias fun- damentais. Neste modelo de direito penal, há uma Inobstante o direito penal brasileiro ter como alicerce considerável redução, para não dizer ausência, das o princípio da intervenção mínima, tem-se observado garantias humanas fundamentais. Cite-se, por exem- uma tendência ao enrijecimento do sistema punitivo plo, a garantia ao contraditório e à ampla defesa, sem com a redução de direitos e garantias fundamentais mencionar a elasticidade da aplicação de determina- da pessoa humana, isto em virtude da reação bélica do dos princípios consagrados constitucionalmente, tais Estado frente ao indivíduo (SILVA, 2012). como a legalidade, a anterioridade, a taxatividade, en- Neste ponto, Franco (2000) apud Silva (2012) oportu- tre outros. namente citam, como exemplo, características do Mo- Para Jakobs e Meliá (2003, p. 33) apud Nucci (2010, vimento da Lei e da Ordem, presente em nossa cultura. p. 312), “[...] o direito penal do cidadão é um direito de De acordo com o autor, o movimento funda-se na cria- todos; o direito penal do inimigo é daqueles que for- ção de novos tipos penais, no recrudescimento das pe- mam uma frente contra o Estado, embora possa haver, nas já existentes, no aumento das medidas cautelares, a qualquer tempo, um acordo de paz”. na supressão das garantias processuais, tudo isso para Jakobs e Meliá (2003) apud Nucci (2010) justificam transmitir à sociedade e à opinião pública uma aparen- esta separação de direito penal do cidadão e direito te ideia de segurança. No entanto, estas leis acabam penal do inimigo, aduzindo que a negação de uma pes- por exercer apenas uma função simbólica, já que não soa em participar do estado de cidadania tem o con- têm a eficácia esperada. dão de retirar-lhe os privilégios do conceito de pessoa. Entende-se, contudo, que as supressões das garantias Defensor da adoção do Direito Penal do Inimigo, fundamentais e o endurecimento das penas podem Jakobs (2003) apud Nucci (2010) ainda enumera ou- não ser a solução mais adequada para o problema da tros fatores que considera favorável a este sistema. 4 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Derecho penal del enemigo. Madrid: Thompson-Civitas, 2003. 91ISSN: 2177 - 1472 5 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Derecho penal del enemigo. Madrid: Thompson-Civitas, 2003. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde
REVISTA JURÍDICA criminalidade. Ademais, conforme preleciona Silva Tal fato ocorre, segundo Zanoni (2010), por meio de (2012), são as camadas mais pobres da sociedade as um juízo criterioso de algumas condutas que perdem o que experimentam de todo o rigor destas leis, fato este necessário desvalor para a sociedade, deixando assim que corrobora com o enfraquecimento do sistema. de serem delitivas. Ressalte-se, ainda, que apesar desta função puramen- Para Mata (2008), o processo de descriminalização te simbólica, o Movimento da Lei e da Ordem tem sido constitui um importante movimento de política crimi- um dos mecanismos utilizados na tentativa de conten- nal da atualidade, em que “[...] o direito penal só pode ção da criminalidade, com o fortalecimento e a exacer- intervir onde se verifiquem lesões insuportáveis das bação das penas, pois satisfaz a opinião pública que condições essenciais de livre desenvolvimento e reali- tem nestas medidas a certeza da solução do problema zação da personalidade de cada homem” (DIAS , 1993, (CALLEGARI; DUTRA , 2007 apud SILVA, 2012). p. 65 apud MATA, 2008, p. 73). É importante destacar que não existe uma fórmula Nesse sentido, Dias (1999), citado por Mata (2008), certa sobre qual instrumento ou medida de política nos fornece importantes ensinamentos, pois segundo criminal deva ser adotada no combate, ou mesmo na o autor, mesmo que um ato delituoso viole um bem prevenção da criminalidade. Tentar esgotar o assunto, jurídico, é preciso acionar outros meios que não os pe- elencando todas as alternativas possivelmente listadas nais, porque estes só se justificam em última ratio. pelos doutrinadores, tornaria o trabalho por demais Para melhor clareza do assunto, o citado autor elenca extenso e, ainda assim, não chegaríamos a uma alter- algumas condutas consideradas delituosas, as quais nativa assertiva, ou mesmo a mais eficaz. além de estarem em total desarmonia com o que quer Entretanto, independentemente de quais medidas a sociedade, ainda ocupa o Direito Penal com situa- adote o Estado, pugnamos, sobremaneira, por um di- ções que não deveriam reclamar a sua tutela. Tem-se reito penal humanitário, portanto, respeitador das ga- como exemplo o autoaborto, a bigamia, a contraven- rantias e dos direitos fundamentais do ser humano. ção da jogatina e o descaminho, entre outros (MATA, As proposições logo abaixo apresentadas não são iné- 2008), temas estes que demandam uma discussão no ditas no ordenamento jurídico brasileiro, mas surgem campo jurídico sobre os bens jurídicos merecedores como alternativas à aplicação de um Direito Penal Mí- da proteção penal. nimo, segundo os autores que as descrevem. 5.2 Despenalização 5.1 Descriminalização Em linhas anteriores restou consignado que, após Segundo Mirabete e Fabbrini (2012), a partir do sur- surgimento da Nova Defesa Social, na década de 70, gimento da Nova Defesa Social, de Marc Ancel , tem começa um movimento de política criminal mais hu- início um movimento de política criminal mais humani- manizado, o qual serve de inspiração a outros movi- zado, fundamentando-se na ideia de que a comunida- mentos: os descriminalizadores e da despenalização de, como um todo, somente é defendida à medida que (ZANONI, 2010). possibilita ao condenado tornar-se mais preparado a viver em sociedade. Para Gomes (1995. p. 74) apud Santos Júnior (1998, p. Esse movimento se deu por volta de 1970 e, serviu de ins- 463-464): piração, segundo Zanoni (2010, p. 11), para “[...] os movi- mentos descriminalizadores, objetivando a redução de Despenalizar, por seu turno, significa adotar penas no ordenamento jurídico, tanto sob o aspecto quali- processos ou medidas substitutivas ou tativo de descriminalização, como sob o aspecto quantita- alternativas, de natureza penal ou processual, tivo, o da despenalização”. que visam, sem rejeitar o caráter ilícito da Segundo Santos Júnior (1998, p. 463), “a descriminaliza- conduta, dificultar ou evitar ou restringir a ção ocasiona a desnaturação do caráter ilícito de uma con- aplicação da pena de prisão ou sua execução ou, duta, retirando-a do sistema punitivo” (grifos do autor). ainda pelo menos, sua redução. 6 FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos: anotação sistemática à Lei no 8.072/90. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. 7 CALLEGARI, André Luís; DUTRA, Fernanda Arruda. Direito penal do inimigo e direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. 8 De acordo com Mendes, “a Nova Defesa Social, foi uma doutrina elaborada sobretudo por Marc Ancel, eminente jurista, que deu a esta a serenidade e firmeza de seu brilhante pensamento. [...] a nova defesa social teve o mérito de recolher de outras escolas o que tinham de aproveitável, atualizando estes ensinamentos, afastando o que comprometia os fins humanitários a que se propunha” (1971, p. 9). REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 92ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA Vê-se, pois, que a despenalização não retira o caráter tindo o registro da declaração de nascimento fora do ilícito do crime, mas impõe a este a minoração da re- prazo legal diretamente nas serventias extrajudiciais, primenda, adotando, para tanto, outras formas de pu- sem a necessidade primeira da intervenção judicial nição que não a pena privativa de liberdade. (MIRANDA, 2010). Cite-se como exemplo, o art. 28, § 1° da Lei n. Há ainda a que dispõe sobre a arbitragem (Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas) que, ao contrário da le- 9.307/1996), a Lei de Falências (Lei n. 11.101/2005) gislação anterior, Lei n. 6.368/76, não mais prevê a e muitas outras dentro do ramo civil. No entanto, de pena de prisão ao usuário de drogas (CAPEZ, 2010). acordo com Santos Júnior (1998), a desjudicialização De acordo com a legislação em vigor, a pena para o não existe em nosso ordenamento jurídico, mas, repre- usuário de drogas consiste em: advertência sobre os sentando o instituto da suspensão condicional do pro- efeitos das drogas; prestação de serviços à comunida- cesso, está previsto no art. 89 da Lei n. 9.099/95 (Lei de e medida educativa de comparecimento a progra- dos Juizados Especiais) um caminho nesta direção. ma ou curso educativo (Lei. n. 11.343/2006, art. 28, I, A suspensão condicional do processo coteja a auto- II e III e § 1°). composição nos litígios, assim, “[...] somente sofre restrições nos casos de indisponibilidade subjetiva 5.3 Desjudicialização ou objetiva da relação jurídica material controvertida no processo ou fora dele” (JARDIM , 1992, p. 92 apud Santos Júnior (1998, p. 464) define desjudicialização SANTOS JÚNIOR, 1998, p. 464). como “[...] a não instauração do processo judicial cri- Depreende-se, conforme autores consultados nas li- minal”. nhas acima, que a desjudicialização revela-se como De acordo com Mendes (1971, p.17-18): mais uma possível alternativa, a fim de se retirar do âmbito penal aquele ato lesivo cujas proporções não Não consiste em retirar do direito penal seu justifiquem a intervenção estatal. caráter, nem sua técnica de ciência jurídica. Consiste somente em apontar os limites, em 5.4 Descarcerização sustentar que o fenômeno criminal não pode ser compreendido e apreciado socialmente Conforme é sabido, a pena, em sua origem mais remo- apenas pelos procedimentos de análises ta, nada mais foi senão a vingança, um revide à agres- jurídicas e que existem, ao lado do direito penal, são sofrida. Esta passou por algumas fases: vingança cuja importância não vem sendo negada e cuja privada, vingança divina, vingança pública e período autonomia é cada vez mais afirmada, disciplinas humanitário. A pena, conforme conceituação de Nucci não anexas, senão paralelas, às quais deve-se (2010, p. 309), “[...] é a sanção imposta pelo Estado, reconhecer sua autonomia e sua importância. por meio de ação penal, ao criminoso como retribui- ção ao delito perpetrado e prevenção a novos crimes” Fora do âmbito penal, no direito brasileiro, são conhe- (grifo do autor). cidas várias formas de desjudicialização. Cite-se ape- Inobstante o dever-poder do Estado na aplicação da nas como exemplo a Lei n. 11.441 de 04 de janeiro de sanção coercitiva ao infrator da norma jurídica, há que 2007, que altera dispositivos da Lei n. 5.869, de 11 de se ressaltar o respeito aos princípios implícitos e explí- janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, possibili- citos do texto constitucional, os quais têm, entre ou- tando a realização de inventário, partilha, separação tros, o condão de garantir a dignidade e a integridade consensual e divórcio consensual por via administra- física do apenado. Na observação destes princípios tiva, dispensando, deste modo, o procedimento judi- reside a limitação do poder estatal, entrementes, a re- cial, se as partes forem maiores e capazes (MIRANDA, alidade demonstra que as finalidades constitucionais 2010). aventadas às penas não têm sido alcançadas (TELLES, Também a Lei n. 11.790, de 02 de outubro de 2008, al- 2010). terou dispositivos da Lei de Registros Públicos, permi- 9 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal português: parte geral II – as consequências gerais do crime. Lisboa: Editorial Notícias, 1993. 10 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 11 GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal Mínimo: lineamentos das suas metas. Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciário. Brasília, ano 1, v. 5, p. 71-92, 1995. 12 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 93ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA Nesse sentido, é oportuno explanar brevemente as cor- virtude da falta de estrutura do sistema penitenciário. rentes doutrinárias sobre a natureza e os fins da pena, Segundo a autora, a pena de prisão passa por um pro- dentre as quais, seguindo a classificação de Mirabete e cesso de descaso, prova disso são os incessantes abu- Fabbrini (2012), destacamos: teorias absolutas (de re- sos aos direitos e garantias constitucionais do egresso. tribuição ou retribucionistas), teorias relativas (utilitá- Acerca destas violações, a autora destaca dois impor- rias ou utilitaristas) e teorias mistas (ecléticas). tantes fatores, sendo o primeiro deles a ociosidade dos reeducandos. De acordo com Telles (2010), a inativida- As teorias absolutas (de retribuição ou de do preso além de dispendiosa para o Estado, repre- retribucionistas) têm como fundamento da senta risco para a sociedade. sanção penal a exigência da justiça: pune-se o O segundo fator apontado refere-se à superlotação agente porque cometeu o crime (punitur quia das penitenciárias. É sabido que tanto os presos pro- pecatum est). [...] O castigo compensa o mal visórios como os condenados cumprem pena juntos, e dá reparação à moral. O castigo é imposto ou seja, no mesmo estabelecimento prisional. Também por uma exigência ética, não se tendo que não se ignora o fato de que muitos presos provisórios vislumbrar qualquer conotação ideológica nas cumprem quase que previamente sua reprimenda se sanções penais. [...] Para a Escola Clássica, a estimada a morosidade do andamento de seu proces- pena era tida como puramente retributiva, não so criminal (TELLES, 2010). havendo qualquer preocupação com a pessoa Ademais, para Telles (2010) há uma tendência indis- do delinquente (MIRABETE; FABBRINI, 2012, p. criminada na aplicação da pena privativa de liberdade, 230, grifos do autor). a qual é empregada mesmo em decorrência de ações delituosas pouco expressivas social e juridicamente, Já as teorias relativas, para Silva (2013), diferem da an- fato que também contribui para a superlotação dos teriormente apresentada. As teorias preventivas bus- presídios. cam fins preventivos, assim, a ideia de retribuição ao Já há algum tempo os rumores de uma possível falên- mal cometido pelo autor do delito é substituída pela cia do sistema carcerário brasileiro têm sido objeto de prevenção da ação delituosa ou ainda cuidando para acaloradas discussões, de igual modo, as condições que o infrator não volte a delinquir. Têm, portanto, a precárias e, por que não dizer, insalubres a que é ex- função precípua de inibir práticas criminosas. posta essa população prisional. Já as teorias mistas ou ecléticas somam a junção das Assim, a Lei n. 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais duas primeiras correntes apresentadas, quais sejam: Criminais) é um exemplo dessa ideia de redução da in- prevenção e reparação. Aqui, a pena é entendida como tervenção estatal. Como constitucionalmente previsto retributiva por natureza, mas também goza em sua fi- no art. 98, inciso I, o Juizados Especiais Criminais tem nalidade de um misto de educação e correção (MIRA- como meta imprimir maior celeridade e informalidade BETE; FABBRINI, 2012). na prestação jurisdicional, revitalizando a figura da ví- O Código Penal brasileiro, no art. 59 , indica a adoção tima do delito e incentivando a resolução consensual da Teoria Mista ou Unificada. De acordo com a defini- do litígio (CAPEZ, 2010). ção de Silva (2013, p. 151): Nas palavras de Capez (2010, p. 600), “[...] o critério informativo dos Juizados Especiais Criminais reside na Seria dizer que a pena teria em seu conceito busca da reparação dos danos à vítima, da conciliação uma retribuição jurídica para o ato delituoso, civil e penal, da não aplicação da pena privativa de li- proteção essa que só se justificaria se e quando berdade [...]”. realmente fosse necessária sua intervenção para Os institutos da composição civil, da transação penal, a proteção da sociedade. A retribuição seria o da representação nos delitos de lesões corporais le- limite de prevenção para que assim se inibisse ves, culposas e da suspensão condicional do processo algum excesso de uma teoria unicamente previstos na Lei n. 9.099/95, como bem lembrou Mata orientada pela prevenção, ou seja, usaria a (2008), representam formas de descarcerização trazi- retribuição a favor da prevenção. das pela lei. Avançando um pouco mais sobre o tema, Telles (2010) entende que a criminalidade é em parte fomentada em 13 Art. 59, CP - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. (BRASIL, 1940). REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 94ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA Também, não se pode deixar de citar que “[...] a des- ciedade em geral não está preparada (pelo menos não carcerização inclui todas as possíveis formas de ate- atualmente) para receber o egresso (TELLES, 2010, p. nuação da sanção penal, bem como medidas alternati- 68-69, grifos nossos). vas à prisão” (MATA, 2008, p. 77). A Lei n. 9.714, de 25 de novembro de 1998, que alterou Nesse sentido, doutrinadores como Bitencourt (1993) alguns dispositivos do Código Penal e introduziu penas apud Telles (2010) defendem a ideia de novos e pro- alternativas, é outro exemplo. De acordo com o artigo fundos debates acerca da ressocialização, pois a pri- 43 da citada lei, são penas restritivas de direito: são não tem funcionado, necessariamente, como meio reabilitador, motivo pelo qual o assunto demanda uma Art. 43. As penas restritivas de direito são: profunda revisão. I – prestação pecuniária; Nossa contribuição nesta pesquisa limitou-se a mo- II – perda de bens e valores; desta indicação de algumas alternativas à aplicação de III – vetado; um Direito Penal Mínimo, reconhecida a amplitude das IV – prestação de serviço à comunidade ou a discussões que envolvem o tema. Não houve qualquer entidade pública; pretensão de se ditar um caminho. Entrementes, com V – interdição temporária de direitos; base nos autores consultados ao longo desse trabalho, VI – limitação de fim de semana. (BRASIL, 1998). defendemos a adoção de um sistema penal limitado pelo respeito à dignidade da pessoa humana, pois esta Para Melo (2003, p. 40) apud Mata (2008, p. 81), é pre- constitui fundamento de um Estado Democrático de ciso dizer que “[...] diante da ideologia do tratamento Direito, conforme esculpido em nossa Lei Maior. ressocializador e das prisões, do elevadíssimo custo operacional do sistema penal e da existência de leis 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS desconexas, a descarcerização se torna necessária”. Apesar de as penas alternativas não representarem a Uma digressão histórica do Direito Penal, principalmente solução para toda a problemática do sistema prisional em sua origem mais remota, revela que a expiação, muito brasileiro, na opinião de Telles (2010), a justa aplicação longe de contemplar a justiça ou a equidade, configurava deste instituto reforça a ideia de que a privação de li- um verdadeiro revide, que a doutrina sedimentou deno- berdade justifica-se tão somente nos casos de grave minar de “vingança ao mal sofrido”. agressão ao bem jurídico tutelado. Assim, o Direito Penal desenvolveu-se com a negação É importante ressaltar, ainda, que o Direito Penal Mí- desta vingança, objetivando impedi-la. Porém, a evo- nimo não nega a necessidade da aplicação da pena lução desta ciência jurídica alterna entre idas e vindas, privativa de liberdade àqueles crimes cuja natureza principalmente quanto aos meios de que têm se valido resulte de modo efetivo em um risco social, a exemplo como instrumento regulador da convivência humana. do que ocorre com o homicídio, a extorsão mediante Nesse sentido, no transcorrer da pesquisa demonstrou- sequestro, e outros, entretanto, nestas circunstâncias -se que as supressões dos direitos e garantias fundamen- há de se humanizar a justiça penal. tais do cidadão, fomentadas por políticas criminais de ex- A ressocialização é outra problemática que envolve ceção, disseminam na sociedade uma falsa ideia de que a encetadas discussões. Muito embora o movimento maximização do Direito Penal pode solucionar a proble- promovido pela Nova Defesa Social fundamente-se na mática da criminalidade, a exemplo do que tem ocorrido ideia de que a comunidade como um todo somente é em nosso país com a edição de leis de emergência. defendida à medida que possibilita ao condenado tor- Ainda de acordo com a pesquisa, foi possível verificar nar-se mais preparado a viver em sociedade, o que se que se torna inaplicável a prescrição de uma receita tem visto é justamente o contrário, senão vejamos: que cure todas as mazelas sociais, com a pura e sim- ples aplicação de leis penais, independentemente de Diante do crescente número de delitos e do conse- qual política se utilize. Assim, o intuito do trabalho foi quente sentimento de insegurança causado, a socie- reforçar a aplicação de um Direito Penal minimalista, dade tende a não aceitar a ressocialização do conde- como forma de proteger os bens jurídicos imprescin- nado. É o estigma que ele leva, na maioria das vezes, díveis à sociedade, e apenas estes. por toda a sua vida, ficando impedido de retornar ao convívio social. Percebe-se, por conseguinte, que a so- 14 BITENCOURT, Cézar Roberto. Falência da pena de prisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 95ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA Nessa linha, a pesquisa pretendeu demonstrar que a os institutos da descriminalização, despenalização, prevenção do Direito Penal há de ser limitada, combi- desjudicialização e descarcerização. nando a necessidade de proteção da sociedade com Por fim, verificou-se que a prisão, considerada mante- as garantias fundamentais dos princípios limitadores nedora da ordem social, é medida excepcionalmente do sistema penal. necessária, que não tem cumprido com a fundamental Igualmente, conclui-se que um Direito Penal efetivo missão ressocializadora, principalmente do egresso. não se dissocia do respeito à condição humana, pelo Verifica-se, portanto, que o Direito Penal é uma ciência contrário, realiza de modo cabal o dever que lhe im- em constante evolução, há muito para ser feito a fim põe, garantindo os direitos fundamentais e prevenindo de torná-la mais efetiva. Nesta procura, o minimalismo a prática de novos delitos. penal revela-se uma alternativa, pois finca sua base na Seguindo esta ideia, foram extraídas da doutrina algu- redução do intervencionismo penal estatal sobre as mas sugestões de um sistema penal pouco interven- condutas humanas, esperando-se assim a concretude cionista, porém, não menos eficaz, com destaque para de um sistema penal deveras garantista. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2007. BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF: Presidência da Repúbli- ca, 31 dez. 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm. Acesso em: 21 jul. 2015. BRASIL. Lei nº 9.714, de 25 de novembro de 1998. Altera dispositivos do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezem- bro de 1940 - Código Penal. Brasília, DF: Presidência da República, 25 nov. 1998. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9714.htm. Acesso em: 21 jul. 2015. CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: legislação penal especial. vol. 4. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. FROTA JÚNIOR, George Newton Cysne; DINIZ, Alécio Saraiva. Expansão do poder punitivo estatal e estudo do direito penal mínimo. 2009. Disponível em: http://www.fa7.edu.br/recursos/imagens/File/direito/ic/v_encon- tro/expansaodopoderpunitivo.pdf. Acesso em: 20 ago. 2015. LOVATTI, Sheila Lustoza. O uso simbólico do Direito Penal. Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande, XII, n. 67, ago. 2009. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&arti- go_id=6541. Acesso em: 16 set. 2014. MATA, Sílvio Pereira da. Doutrinas, ideologias e teorias da pena: a busca por um direito penal mínimo. 2008. 94 f. Monografia (Especialização) - Fundação Escola do Ministério Público do Paraná. Faculdades Integradas do Brasil, Curitiba, 2008. MENDES, Nélson Pizzotti. A nova defesa social: verificação da obra de Marc Ancel. Revista Justitia. São Paulo, v. 36, n. 85, p. 9-27, abr/jun, 1971. Disponível em: www.justitia.com.br/revistas/gb6wzc.pdf. Acesso em: 10 out. 2014. MIRABETE, Júlio Fabbrini; FABBRINI, Renato Nascimento. Manual de Direito Penal: parte geral, arts. 1° a 120 do CP. 28. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2012. MIRANDA, Marcone Alves. A importância da atividade notarial e de registro no processo de desjudicialização das relações sociais. Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 73, fev 2010. Disponível em: http://www.am- REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 96ISSN: 2177 - 1472
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REFLEXÃO ACERCA DE INVESTIGAÇÕES CRIMINAIS REALIZADAS POR MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO REFLECTION ON CRIMINAL INVESTIGATIONS BY MEMBERS OF THE PUBLIC MINISTRY Dannilo Ribeiro Proto RESUMO developed according to some Brazilian juridical legal O presente artigo analisa a investigação criminal reali- scholars. zada por membros do Ministério Público e discute sua legalidade diante do atual sistema processual brasilei- KEYWORDS: Legislative Interpretation. Criminal inves- ro. Embora a Carta Magna seja totalmente expressa e tigation. Public ministry. Processual Brazilian System. clara quanto a este tema, são necessários os aponta- mentos divergentes neste paradoxo. Com essa abor- 1 INTRODUÇÃO dagem, serão distanciados os discursos pré-fixados e corporativistas da Teoria dos Poderes Implícitos, qual O atual cenário do ordenamento jurídico brasileiro em seja: quem pode o mais que é processar, pode o menos questões que tratam sobre competência funcional em que é investigar, tratando-se, assim, de um verdadeiro investigações criminais é bem claro, tanto na Consti- malabarismo de interpretação legislativa com o intui- tuição Federal, quanto nas demais leis infraconstitucio- to de ganhar mais poderes. Para tanto, foi desenvol- nais, que somente as Polícias Civil e Federal possuem vido este estudo exploratório e bibliográfico segundo tais prerrogativas. Todavia, existem alguns Projetos de alguns estudiosos do ordenamento jurídico brasileiro. Emenda Constitucional (PEC), tramitando no Congres- so Nacional, que buscam ampliar este rol funcional, PALAVRAS-CHAVE: Interpretação Legislativa. Investi- concedendo tais poderes aos membros do Ministério gação Criminal. Ministério Público. Sistema Processual Público. Exemplo dado é a PEC 197/2003 do Deputado Brasileiro. Antônio Carlos Biscaia, que propõe a modificação do art. 129, VIII da Constituição Federal: ABSTRACT Art. 1º. O inciso VIII do art. 129 da Constituição This article analyzes the criminal investigation carried Federal passa a vigorar com a seguinte redação: out by members of the Public Prosecution Service and ‘Art.129 discusses its legality in the face of the current Brazilian VIII – promover investigações, requisitar procedural system. Although the Magna Carta is fully diligências investigatórias e a instauração de expressed and clear on this theme, the divergent notes inquérito policial, indicados os fundamentos are necessary in this paradox. With this approach, the jurídicos de suas manifestações processuais;’ pre-fixed and corporativist discourses will be distan- [...] ced from the Theory of Implicit Powers, which is: who can do what is more, is the least that is to investigate, Pois bem, é natural observarmos nos dias de hoje uma being thus a veritable juggling of legislative interpreta- tendência usurpadora dessa função investigativa por tion with the intention of gaining more powers. For this parte de membros do Ministério Público, principalmen- purpose, this exploratory and bibliographic study was te com alguns argumentos de que o índice de crimi- nalidade está elevado e por isso estão somando forças * Professor de Direito Constitucional na Faculdade FIC, Pós-Graduado em Ciências Penais, Delegado de Polícia – Estado de Goiás. Email: danniloproto@ gmail.com. REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 98ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA para reduzirem esses números, ou criam doutrinaria- princípios balizadores da Carta Magna (LIMA, 2014). mente algumas teorias falaciosas, como, por exemplo, Assim sendo, os poderes de investigação criminal e a “Teoria dos Poderes Implícitos” pactuando que quem propositura da ação penal estão expressamente e mui- pode o mais que é processar, pode o menos que é in- to bem definidos na Constituição Federal de 1988, em vestigar. que cabe às polícias civil e federal a apuração de infra- Deixando de lado o corporativismo que cada institui- ção penal: ção pública possui, deve-se analisar esse paradoxo de forma jurídica, levando-se em consideração que o país Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, adota “teoricamente” o sistema acusatório processual direito e responsabilidade de todos, é exercida e uma vez burlado isso, poderão ser causados danos para a preservação da ordem pública e da irreparáveis aos litigantes do processo. No contexto incolumidade das pessoas e do patrimônio, prático, um membro do “Parquet”, com natureza pre- através dos seguintes órgãos: cipuamente de acusação, iniciaria uma investigação I - polícia federal; criminal, de forma totalmente parcial, e após conclusão II - polícia rodoviária federal; desse trabalho investigativo, ele oferecerá a denúncia e III - polícia ferroviária federal; acompanhará o processo até seu trânsito final. Tem-se IV - polícias civis; uma verdadeira overdose de poderes concentrados na V - polícias militares e corpos de bombeiros mão de um único braço da justiça, o que pode trazer militares. um prejuízo na busca da verdade real. § 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados Desta forma, o presente estudo objetivou adotar uma de polícia de carreira, incumbem, ressalvada corrente garantista e constitucionalista para discutir tal a competência da União, as funções de polícia paradoxo e interpretar a norma constitucional e infra- judiciária e a apuração de infrações penais, constitucional de forma objetiva e legalista, não pactu- exceto as militares. (BRASIL, 1988). ando com a argumentação de que a concentração de maiores poderes na mão de uma instituição irá sanar Por conseguinte, os membros do Ministério Público os problemas da criminalidade no país. Cabe salientar, têm o egrégio poder de promover a ação penal e re- ainda, que a intepretação da sistemática processual quisitar a instauração de inquérito policial, bem como brasileira não dá amparo à intenção ministerial de pro- propor diligências, sendo: mover inquéritos ministeriais criminais, não obrigando a qualquer pessoa que compareça perante o Ministério Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público a fim de prestar depoimentos ou outras oitivas. Público: I - promover, privativamente, a ação penal 2 INVESTIGAÇÃO CRIMINAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO pública, na forma da lei; [...] III - promover o inquérito civil e a ação civil 2.1 Sistema Processual Penal Constitucional Brasileiro pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses Acolhido de forma explícita pela Constituição Federal difusos e coletivos; [...] de 1988, o sistema acusatório tem como principal ca- VIII - requisitar diligências investigatórias e a racterística a posição bem definida dos sujeitos pro- instauração de inquérito policial, indicados os cessuais e do gestor das provas. Este modelo reflete fundamentos jurídicos de suas manifestações uma igualdade entre as partes, na produção das pro- processuais; (BRASIL, 1988). vas, todavia respeita vários princípios constitucionais, entre eles o contraditório e a ampla defesa. Já o Códi- Muito se discute quanto à possibilidade de o Ministério go de Processo Penal adotado no Brasil tem nítida ins- Público realizar investigações criminais, justamente piração no modelo fascista italiano, ou seja, em uma por ferir o sistema acusatório e criar um desequilíbrio primeira fase tudo se inicia através de uma investiga- na paridade de armas. Em julgados recentes pelo STF ção criminal, realizada pela polícia, de forma totalmen- (Supremo Tribunal Federal), foi perpetrado que mem- te inquisitorial, não obedecendo a nenhum dos princí- bros do Parquet podem instaurar inquérito civil, requi- pios supramencionados. Na segunda fase, de caráter sitar instauração de inquérito policial e realização de acusatório, o órgão acusador apresenta a acusação, o diligências, bem como realizar o controle externo da réu se defende e o juiz julga, vigorando nitidamente os atividade policial, todavia, é de um tudo desproporcio- nal concentrar poderes investigativos no órgão acusa- dor (LENZA, 2010). Segundo Cabral e Souza (2013), apesar de retórico, o Código de Processo Penal em seu art. 4º atribui essa atividade investigativa na busca da materialidade e au- REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 99ISSN: 2177 - 1472
REVISTA JURÍDICA toria unicamente às autoridades policiais, não esten- mentada do membro do Ministério Público que preside dendo essa atribuição a qualquer outro órgão: “Art. 4º as investigações. A polícia judiciária será exercida pelas autoridades po- liciais no território de suas respectivas circunscrições e Art. 12 O procedimento investigatório criminal terá por fim a apuração das infrações penais e da sua deverá ser concluído no prazo de 90 (noventa) autoria.” dias, permitidas, por igual período, prorrogações O Conselho Nacional do Ministério Público, contrarian- sucessivas, por decisão fundamentada do do a Constituição Federal de 1988, bem como a pró- membro do Ministério Público responsável pria Lei Complementar nº 75/93 e com o fim de regu- pela sua condução. (CONSELHO NACIONAL DO lamentar o PIC (Procedimento Investigatório Criminal), MINISTÉRIO PÚBLICO, 2006). criou a Resolução nº 13/2006. Tal função, legislando em causa própria, está em total desacordo com o que Por fim, cabe salientar que o investigado através de versa o Código de Processo Penal, chancelando, assim, seu advogado tem total acesso às provas já documen- uma parcialidade na apuração da verdade real e pior, tadas neste Procedimento Investigatório, sob pena de não sofrendo qualquer tipo de controle externo, incor- violação ao preceito do art. 5º LXIII, da Constituição rendo assim em possíveis abuso de poderes (CABRAL; Federal. Além disso, segue o direito do investigado de SOUZA, 2013). permanecer em silêncio (nemu tenetur se detegere), entre todos os outros direitos fundamentais da pessoa 2.2 Procedimento Investigatório Criminal (PIC) humana (LENZA, 2010). Firmada a possibilidade do Ministério Público possuir 2.3 Inconstitucionalidade do PIC (Procedimento In- atribuições investigativas, tendo como certo que o ór- vestigatório Criminal) gão ministerial não pode presidir Inquéritos Policiais, discute-se acerca do instrumento utilizado para a re- A leitura pormenorizada da Resolução nº 13 do Con- alização das investigações por parte de membros do selho Nacional do Ministério Público permite concluir Parquet (NUCCI, 2014). que o CNMP verdadeiramente extrapolou suas atribui- De acordo com o referido autor, o meio utilizado para ções legais. Note-se que tal disciplina é completamen- pactuar as investigações realizadas pelo Ministério Pú- te diversa daquela citada pelo Código de Processo Pe- blico é o Procedimento Investigatório Criminal (PIC). nal, de forma que o referido Conselho não se limitou a Este procedimento foi regimentado pelo Conselho regulamentar o art. 8.º da LC 75/1993, nem o art. 26 da Nacional do Ministério Público (CNMP) em 2006 pela Lei 8.625/1993 e, sim, legislou sobre processo, o que é Resolução nº 13 e segue as mesmas características de competência exclusiva do Congresso Nacional, sen- básicas de um Inquérito Policial, qual seja: inquisito- do, portanto, um dos indícios de inconstitucionalidade rial, meramente administrativa, informativa, que tem da referida resolução (NICOLITT, 2015). por objetivo apurar autoria e materialidade de crimes A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no ano de e que poderá servir de base para uma eventual ação 2006, ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalida- penal. de (ADI) nº 3836 no Supremo Tribunal Federal, contra Essa investigação ministerial poderá ser instaurada a Resolução nº 13/2006 do CNMP, sob o fundamento de ofício por membro do Ministério Público ou atra- de que o dispositivo legisla em causa própria e se tudo vés de colegiados designados para atuarem na apu- não bastasse sobre matéria processual penal, confron- ração de ações criminosas. Essa instauração deve se tando-se, assim, com a Constituição Federal no seu dar por portaria fundamentada, indicando os motivos, artigo 22, I: “Art. 22. Compete privativamente à União os eventuais envolvidos e as diligências iniciais neces- legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, proces- sárias. De acordo com a referida resolução, as oitivas sual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial poderão ser documentadas por áudio/vídeo e, ao tér- e do trabalho; [...]”. mino, o procedimento deverá ser finalizado com um Nesta ADI, a OAB questiona as investigações realizadas relatório explicativo e indicativo de eventuais autorias, por membros do Ministério Público, que são totalmen- além das provas apuradas (LIMA, 2014). te contrárias aos preceitos da Constituição Federal em O prazo estipulado para conclusão do PIC segundo a seu art. 144 e do Código de Processo Penal no seu art. Resolução do CNMP é de 90 (noventa) dias, podendo 4º. Outro ponto questionado nessa ação é o prazo de ser prorrogado sucessivas vezes, por decisão funda- 90 (noventa) dias para conclusão do PIC, prazo esse totalmente diferente dos fixados processualmente nas REVISTA JURÍDICA /Ano 07, Número 09, Julho/2019 Universidade de Rio Verde 100ISSN: 2177 - 1472
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