PREFÁCIO: RUPTURA se torna LIMIAR. Esse livro é sobre fronteiras. Sê refugiado, na própria pátria, andar se escondendo dos próprios soldados, guerra civil entre casas fantasmas. No processo de desconstruir muros e barricadas. Demolir o resto das ruínas, desapropriar intrusões E libertar os donos da terra. Liberar a raiva dos guardiões traídos e aprisionados. Fronteira não é criada por concreto. Fronteira é limiar. Ato de traçar uma linha no tempo, fraturar uma passagem em desequilíbrio. Implodir pontes construídas por tratados nascidos do destrate. Reconhecer a beleza de face furiosa, fazer rugir a guerra. O último conflito assume a causa da justiça, a retomada do território, dos recursos, a retomada dos espólios. Apreciar as próprias paisagens completamente destruídas, devastação do impasse que se arrastou por anos, apreciar as terras e os rostos exaustos das criaturas que sofreram nas mãos de forasteiros. Saber que o tempo, que devora todas as coisas, também irá devorar o trauma, a dor e a destruição, Que então reine a destruição total. Que haja o novo, que novos pulmões respirem o ar, Que olhos novos, famintos por conhecer e serem conhecidos, se abram na linha do horizonte e engulam o mundo e o universo inteiro numa única bocada. A construção, antes então sepultada nas entranhas da terra, ascende, rasgando o solo. Revela-se na superfície, o labirinto, que é a porta. Não há outra forma de entrar. O labirinto construído para guardar agora é guardião, é sentinela que contém toda a sabedoria para decidir quem tem acesso ao interior e quem não tem. Para tocar a materialidade, é preciso aprender todas as leis da terra e da essência. Esse é o processo de acessar o novo ser, no centro desse labirinto, na caldeira, forjado no fogo, nos pés da árvore sagrada, qual as raízes seguram o inferno e as folhas da copa sustentam o céu.
Prólogo: Mapeando emanações
A Guia Serpentes conseguem enxergar tanto a luz visível, quanto os raios infravermelhos, invisível aos olhos humanos. A cobra enxerga muito mais por meio das fossetas, que são células especializadas em captar o calor dos corpos no ambiente através da percepção da luz infravermelha. É assim que a cobra consegue perceber a presença de presas ou ameaças, exergando o tamanho, a distância o qual se encontra e os movimentos. As terminações nervosas desses órgãos especializados enviam sinais para o cérebro que formam imagens térmicas dos animais de sangue quente.
ruptura
dano que emudece oculta, coagula.
craquelamento
Explicar o que não se pode ver, Perder o fôlego descrevendo o ar |Tempo
Queimar Engolir Cuspir
Painéis|votivos Escrever orações para pessoas que vão matar algo
Asas sujas de carvão, pés grudentos de lodo, face enevoada, mãos quentes.
desimanação
O corpo sabe, ele sempre sabe quando algo proibido atravessou a fronteira |Contrabando
Acariciar as costas do crocodilo no local exato que a boca dele não pode alcançar. |Segurança
esfinge
|Incômodo Luminosidade demais também esconde, cega. A distância tende ao belo. Mas o toque, revela a sujeira, A sensação pegajosa dos acúmulos, da realidade. A Intimidade é feia. E por isso é absurdamente confortável.
A cobra coral oferece a ponta da cauda enquanto esconde a cabeça. Dá o fim ao fim. Guarda memória. Se apropria da vida. |Micrurus lemniscatus
Epílogo: Com intervenção ou sem intervenção? Capturando na materialidade o que impede a escrita Para variar meu cronograma estava estourado e projeto congelado num ponto de nada absoluto. Eu não conseguia iniciar o projeto de reedição nem após 10 banhos de sal grosso e Guiné e uma sessões de desobsessão. Havia uma trava mais antiga que todas essas coisas. Meu processo criativo sempre permeou a ilusão de conseguir parir algo na existência que fosse completamente acabado, no sentido de pronto, perfeito, intocável. Vir a esse mundo como uma estrela cadente. E por isso o processo de escrita por si só era muito fatigante, pois tudo tinha que ser perfeito, as pessoas precisavam entender tudo com absoluta clareza, não poderia haver sentidos vicinais, nem duplas interpretações, o fluxo da narrativa era para ser controlado completamente para que nada fosse perdido. Esse sempre era o meu medo, que algo fosse perdido. A primeira edição de chamou-se Ruptura, doeu como um parto muito problemático, foi uma gestação de risco, o pai da criança era um demônio azul antigo, que roubava a energia da cria durante toda a gestação, como uma toxicidade complexa, fruto de uma relação horrível. Ruptura nasceu 11 de agosto, um parto sofrido, a cria nasceu morta, pálida, desnutrida, as páginas amuadas, com escrita espremidas sobre um desconfortável offset branco, feito com muita pressa numa gráfica rápida. a, ia perdendo energia, a escrita perdia a autenticidade e eu sentia história virar cinzas na minha boca e travar. Estava formado o bloqueio criativo. Ruptura então surge como o filho que vingou, Ruptura se torna Cronos, o filhote que Gaia consegue esconder de Urano. Que vinga a mãe exausta, castra a fecundidade profana do pai, que apenas explorava sem limites a força criativa da Terra, trazendo bestas para o mundo.
Criei Ruptura para expor o processo de enfrentamento do bloqueio criativo que vinha atrasando minha produção por 15 anos. Comecei trazendo materialidade ao texto, inspirada pelos painéis de imagens, inspirada pelo aprendizado na disciplina imagem e experiência da professora Angélica Adverse, que nos apresenta Aby Warburg e Atlas Mnemósine – como a busca infinita por arquivar imagens e pensamentos. E ali, nas imagens o que se engasgava era diluído. Trazendo a força da imagem como potência dissolutiva de emoções complexas demais, ou desgastantes demais. Em um certo ponto da minha trajetória desesperada com meu cronograma, a palavra mobilidade da imagem começou a piscar na minha cabeça em um profuso letreiro neon vermelho sangue, e eu então resolvi imprimir todo o miolo do livro, cru, e a recortar os excessos. Literalmente cortar, eu cortei todas as palavras do prólogo e comecei a reestruturar toda a narrativa com as palavras, agora soltas. Diluindo completamente a forma da primeira escrita, revelando camadas de coisas realmente preciosas que estavam esmagadas pelo meu desespero em esconder o que de fato era precioso no texto. Pelo menos para mim. Os textos foi se acalmando, e imagens se revelaram. Eu encontrei vícios e virtudes, e travas reveladas. Foi um processo de dissecar completamente um texto, de suprimir para que a revelação viesse, e então surge a fotografia como aparato de captura total do texto. O primeiro momento de Ruptura surgiu para dar corpo a um desconforto tão terrível que iria matar a hospedeira, e então tudo foi escrito. O segundo momento de Ruptura surge como o encarar esse desconforto em seu silêncio e materialidade. Surge o impulso da fotografia. A fotografia como canalização do desconfortável, do incômodo, mas da transformação do olhar, até que o incômodo passe a ser belo, a beleza das coisas rotas, sem lugar, jogadas, perdidas, desgastadas, quebradas, violadas.
A degradação da natureza sempre me entristeceu e me incomodou, os aspectos de desmazelo e desorganização me causavam rebuliços terríveis, e foram eles que capturaram meu olhar irrequieto, e no fim de todo um processo de trauma e exaustão, me trouxeram uma paz descomunal. Entulho me trazia extremo incomodo, deterioração de imóveis habitados, desorganização, sujeira e reparos feitos para serem emergenciais e que se tornavam permanentes, coisas que não combinam, coisas que estão em lugares que não pertencem, excessos de estímulos, o feio para mim é sempre algo que me causa uma vontade quase incontrolável de reparar, de me intrometer, de mediar, de precisar guiar. O feio para mim era minha incontrolável obrigação de intervir. Aceitar que para se criar algo novo, é preciso destruir, ou melhor, aceitar as destruições, aceitar imperfeições, aceitar retiradas, aceitar retrocessos, partidas, ranger os dentes, revirar os olhos e principalmente, para mim, Ruptura é aceitar que em muitos momentos, tudo que eu posso oferecer para o mundo é um incomodo. A dessensibilização é a sensibilidade de saber, que apesar de toda escrita ser preciosa, nem tudo precisa estar no texto. É ótimo ter muito espaço. Editar meus textos me proporcionou a experimentação de remover com todo cuidado, camadas de explicação supérfluas. Dilapidar, dissecar, limpar até que a imagem e sensação por trás de cada palavra pudesse ficar mais clara, e então, o ruído natural da cacofonia criativa se reinstala, ou não. O silêncio pode ficar também. No fim, RUPTURA ruiu, incendiou, desimanou. Transmutou-se no centro do labirinto em LIMIAR. JESSICA PENA DE SÁ (ursamaior.jpg)
Referências 1.AGAMBEN, Giorgio. Ninfas. São Paulo: Editora Hedra, 2012. 2.CADÔR, Amir Brito. O livro de artista e a enciclopédia visual. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2016. 3.CESAR, Ana Cristina. Antigos e Soltos: Poemas e Prosa da Pasta Rosa. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2008. 4.BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. 5.BENJAMIN, Walter. O Anjo da História. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012 6.DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998. 7.DIDI-HUBERMAN, Georges. The Surviving Image: Phantoms of Time and Time of Phantoms: Aby Warburg's History of Art. Paperback edition. Chicago: University of Chicago Press, 2018. 8.ECO, Umberto. História da feiura. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007. 9.FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 10.JUNG, Carl Gustav. Arquétipos e o inconsciente coletivo. Vol. 9/1. 11ª Edição. Petrópolis: Vozes, 2014. 11.KAFKA, Franz. Diante da Lei. O Processo. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 12.MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg e a Imagem em Movimento. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2001. 13.OTTE, George. Limiares e Passagens em Walter Benjamin. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. 14.FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios Para uma Filosofia da Fotografia. 1ª edição. São Paulo: É Realizações Editora, 2018. 15.WARBURG, Aby. Histórias de fantasma para gente grande. Tradução de Celina Cavalcanti. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda., 2018. 16.WARBURG, Aby. A Presença do Antigo: Escritos Inéditos. Campinas: Editora Unicamp, 2019. 17.WARBURG, Aby. Atlas Mnemosyne. Madrid: Akal, 2010.
Search