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Plaquete-Na realidade-Sandra-Silvério

Published by sandra, 2021-09-01 15:20:32

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Na realidade (textos curtos) Sandra Silvério



Sumário Trinta minutos Aprendizado Carne crua Depoimento Maisa empurra o carrinho de bebê Não, vô Nascimento Rosto na janela Saci Solte seu ódio Vai se foder você



A distância entre uma verdade e uma mentira, uma história inventada e uma coisa doída, pode ser só o tempo. Trinta minutos Lindaura olhou para o sofá. As pernas do menino, que antes balançavam sem alcançar o chão, não estavam mais lá. Ela tinha que cuidar do filho da empregada. Ou então ia ter que levar o cachorro para passear, recolher cocô, pegar cartas na portaria. As ajudantes andavam faltando e um homem como seu marido não pode ter casa bagunçada. A manicure tirou um bife da cutícula. Lindaura chegou a mexer os lábios para reclamar. Paciência. Precisava das unhas feitas. O menino desligou a televisão. Sozinho. Já sabe mexer no controle. Lindaura olhou para a cesta da manicure. ─ A cor de sempre. A moça esquentou entre as mãos o vidro vermelho escuro e começou a passar o pincel. O menino andava pela sala. ─ Onde você vai? Liga a TV de novo. Ele resvalou na cadeira dela. ─ Borrou? Assim não ia dar. Precisava estar perfeita à noite. Às vezes fingia enfado com os paparicos dos convidados mas percebia como os olhares se detinham nos detalhes da vida da família. Depois das refeições, alguns soltavam frases entrecortadas fazendo armações que ela não entendia, mas ela sorria. O menino se pendurou na maçaneta da porta. ─ Sair não pode. Fica aqui que a sua mãe foi na portaria e já vem. Ele não olhou para ela.

─ Querida, pode dar uma paradinha? ─ Terminando esse dedo. Hoje o jantar era com construtores. Só homens. Ela, esvoaçando pela sala no vestido azul de decote nas costas, cabelos com escova, informando a safra do vinho, pousando a mão no ombro do marido. Iam reparar nas unhas. Ouviu o rangido do elevador. O menino alcançava a porta. Já estava lá dentro. ─ Sai daí. Ele balançava a cabeça olhando para o chão. ─ Por favor, sai daí – ela sabia pedir com jeitinho. ─ Sai daí já!, estou mandando – mas podia endurecer, o que fazia o menino mexer ainda mais forte a cabeça sempre olhando para baixo. A mão com unhas vermelhas já estava quase alcançando o braço fino quando ele deu um puxão. Que peste de menino. Borrou. Examinava a unha quando a porta do elevador fechou. ─ Você conserta o borrão? Dá tempo? A manicure esfregava o algodão com removedor quando a empregada voltou. Jogou num pote o chumaço sujo de vermelho e preparava o pincel. O cachorro correu pela sala e a empregada colocou a correspondência na mesa lateral. “O menino, cadê o menino?” A manicure consultou o relógio do celular: 9h30. Outro cliente esperava por ela. Só terminando. Espalhava o esmalte quando o interfone tocou. O menino caiu. Um grito na cozinha. Consertou a unha? Lindaura puxou a mão. Borrou? Como seria a noite? O menino ensanguentado. Não respira. Alguém chama o Samu? A empregada correndo na escadaria. Lindaura com náusea no elevador social. Via a guarita do prédio e a rua girando. A mãe gritava por cima do corpo. A mãe apontava o dedo para Lindaura. Lindaura sem voz. Lindaura no escuro. Lindaura com unhas e dedos borrados que tremiam. A polícia isolando a área. O pano branco cobrindo o corpo. O frio de uma cela. Um chute, um puxão de cabelo. Alguém chama meu marido? Eu tentei, o borrão, menino teimoso. Tantas coisas, o jantar, a polícia. Não senhor, o menino não é meu não. A mãe está louca. Pare de gritar, pelo amor de Deus. Delegacia, não. Lindaura gira nos pés, os joelhos bambos, amolecendo quando encosta no corpo do marido.

─ Estou aqui, meu bem – ele olha o celular: 10h00 – o advogado já vai chegar. Lindaura pendura o queixo no ombro do homem, deixando as lágrimas e a saliva molharem seu paletó. ─ O policial disse que faz meia hora que o menino caiu, mas só me ligaram agora – o marido segura os dedos macios da mulher. ─ Está tudo bem, meu bem. Já passou. Não foi nada. ─ Não foi nada, Lindaura repetiu enquanto olhava a unha consertada. Precisava pensar no que servir no jantar.

Neste livro de contos, a autora passeia por alguns fatos reais (e outros nem tanto), que marcaram as nossas lembranças de brasileiros acostumados a viver em uma sociedade violenta. Ela reconta essas histórias a partir de olhares inesperados, ora levando a crueldade às últimas consequências, como em “Trinta minutos” e “Aprendizado”, ora dando finais felizes a eventos trágicos, como em “Saci” e “Nascimento”. Às vezes ainda a releitura da realidade se faz pondo foco na própria forma como as informações vão para o público e se perdem, como acontece em “Depoimento”, onde o personagem principal não é a mulher mas sim o jeito como a história é contada. A diferença entre um fato real dolorido e a invenção pode ser só o tempo ou a distância. Ler essas histórias nos faz relembrar, rever, recriar e duvidar.


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