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Mnemocine

Published by David Alves, 2017-10-28 04:13:37

Description: A REVISTA MNEMOCINE é uma publicação eletrônica semestral gratuita que apresenta textos acadêmicos e ensaísticos de maior profundidade, com call for papers aberta aos acadêmicos do universo audiovisual.

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de São Paulo, o patrimônio advento do cinema modernoque interessa não é o público. brasileiro.3 Foi também assim comInstituição federal em São Paulo, a geração seguinte, que retiroua Cinemateca conta com nada ou a Cinemateca dos escombrosquase nada dos poderes públicos. em que se encontrava e reuniuNa esfera municipal, onde se técnicos, conseguindo atravessarquebra a cara por muito pouco, a incêndios e patologias, assumindoCinemateca consta apenas como a instituição como a própria casa.locação para a SPCine. A situação Essa geração, formada por nomesmunicipal, quando comparada como Carlos Augusto Calil, Mariaa qualquer outro arquivo Rita Galvão, Zulmira Ribeiro Tavareslatino-americano, é realmente cumpriu papel decisivo inserindosurpreendente, na medida em novamente a Cinemateca naque arquivos menores recebem cultura local, mesmo se a atmosferaestímulos mais expressivos que as familiar tenha prevalecido sobre asmigalhas que a Prefeitura de São decisões mais objetivas. Foi assimPaulo oferta à Cinemateca. mais uma vez com a geração que viu o governo Lula acenar comPor outro lado, em razão de certo a possibilidade de nova etapa.fenômeno de difícil explicação A geração posterior, na qual meracional, toda essa história de incluo, assistiu feliz o progressoabandono, desprezo e destruição, da instituição ser custeado comproduz, para além dos zumbis a própria precarização e, aoressecados e ressentidos que longo de uma década inteira,descreve Paulo Emílio, um aceitou formas espúrias deindivíduo particular, que vê na trabalho, que iam desde favoresprópria ação um gesto pela pátria a filhos (bastardos e inglórios) dee, em nome de uma elevada políticos, à terceirização a maisconsciência cultural, se doa para violenta, isso para não mencionara instituição, trabalhando com a desigualdade de remuneraçãoextrema determinação, aceitando para trabalhos similares e sematé mesmo a precarização do importância. Enfim, aberraçõesvínculo de trabalho. Foi assim que o “trabalho flexibilizado”com a “belle equipe”, formada permite nos dias que correm. Opelos notáveis Jean-Claude fato é que quem viveu os anosBernardet, Gustavo Dahl, Sérgio Lula na Cinemateca, viu umaLima, que marcou época no instituição nascer e florir, se

101ajustando aos novos tempos, sem NOTAScontudo garantir a longevidadede seu acervo e sem constituir um 1 GAUTHIER, Christophe. La passion ducorpo sólido de trabalhadores. ci néma Cinéphiles ciné-clubs et sallesToda a pujança da instituição spécialisées Paris de 1920-1929. Paris:esboroou com um único gesto Association française de recherche surde Marta Suplicy que, com a histoire du cinéma/École nationale desirresponsabilidade que se tornou Chartes, 1999.sua marca explícita logo emseguida, impediu a continuidade 2 HAGENER, Malte. The Emergence ofdos trabalhos e a superação do Film Culture: Knowledge Production,enorme passivo histórico que a Institution Building, and the Fate of theinstituição carrega até hoje. Avant-garde in Europe, 1919-1945. Amsterdam: Berghahn Books, 2014.Entretanto, contra todas asprevisões, a Cinemateca Brasileira 3 MENDES, Adilson Mendes. “Le cinémaprossegue, com suas atividades brésilien moderne et la Biennale de Sãode restauro paralisadas, com seu Paulo”. In: 1895. Mille huit cent quatre-instável quadro de trabalhadores vingt-quinze, n. 77, 2015.bem reduzido, apesar de muitoaguerrido e confiante na própriamissão redentora. Graças aoempenho atual, a Cinematecaainda se constitui como instituiçãoformadora de quadros decisivospara o patrimônio audiovisualbrasileiro, segue renovandoreferências com sua programaçãoousada e principalmente, seguesendo o epicentro do pensamentosobre o patrimônio audiovisual.O fato é que nenhum tipo depensamento tem tido êxito nostempos que correm, mas a luta daCinemateca pelo reconhecimentopode estar ameaçada se novosregressos assaltarem o audiovisual,como tudo leva a crer.

cineclubismo

103 E cineclube hoje? Felipe MacedoFelipe Macedo é jornalista, cineclubista, autor de Movimento Cineclubista Brasileiro (Ediçãodo Cineclube da Fatec, 1982)Falando em termos internacionais, são percebidas superficialmente como possivelmente o senso comum cineclubes, sem o ser realmente; e, hoje é de que não existem mais ao contrário, muitos cineclubes não cineclubes. Ou de que, pelo percebem nem eles mesmos suamenos, eles ficaram tão antiquados e verdadeira natureza. Essa confusão,isolados num contexto de onipresentes claro, tem uma história.e rápidas transformações, de múltiplaacessibilidade, que se tornaram meio Para começar, os cineclubes nãoexóticos e praticamente irrelevantes. Já surgiram nos anos 20, em torno dasem termos nacionais, essa percepção chiques premières da revista Ciné-clubvaria bastante. Dependendo do país ou ou das ceias elegantes de Ricciottoda região, muitas práticas e instituições Canudo. A origem dos cineclubes é

simultânea e paralela à do cinema cuja finalidade é a apropriação e de seu público, e deita raízes do cinema2. O primeiro caso distantes nos clubes políticos fartamente documentado – e culturais operários do século possivelmente houve outros, 19 e nas conferências e debates mesmo antes, ou em outros ilustrados com projeções de países – é o do Cinema do Povo, lanternas mágicas. Nos séculos cooperativa de anarquistas e 17 e 18 os jesuítas já usavam simpatizantes criada em Paris essas projeções para maravilhar em 19133. No Brasil, onde o e “fazer a cabeça” dos índios nas cinema já era parte das atividades colônias americanas1. Diversas de educação e propaganda anarquistas, também houve aA origem dos tentativa de se criar um Cinema docineclubes é Povo em 19144. Há muitos outrossimultânea e exemplos, em todo o mundo,paralela à do cinema praticamente todos localizados nose de seu público. meios operários, organizados por anarquistas, socialistas e feministas, formas de organização e diferentes além de iniciativas de ordens ou práticas – de ajuda mútua, denominações religiosas, também políticas, artísticas - convergiram em ambientes populares5. Afinal, o para o estabelecimento de uma próprio cinema comercial também instituição que, desde o início estava instalado e lutando para do século 20, consolidou suas se desligar dos ambientes de características próprias, dali em imigrantes e trabalhadores pobres diante reproduzidas em todas naquela época, entre 1905 e o as circunstâncias e contextos início da Grande Guerra, chamada históricos, nacionais, culturais: o pelos historiadores de período de cineclube. transição e de institucionalização do cinema6. Um cineclube se define por ser uma associação democrática A institucionalização do cinema entre iguais, sem fins lucrativos, representa a consolidação de um paradigma ou dispositivo cinematográfico hegemônico, com uma linguagem padronizada,

105formatos de produção, circulação, várias localidades na França,exibição e recepção estabelecidos com milhares de associados, oupara sistematizar e promover as Ligas Operárias de Cinemao lucro. Nesse modelo, os que se espalharam pelo mundoespectadores se constituíram todo nos anos 30 e, nos Estadosno que Kracauer chamou de Unidos, por exemplo, tornaram-público cosmopolita (Weltstadt se a única alternativa a HollywoodPublikum)7, uma “audiência e deram origem, em diferenteshomogênea” domesticada ramificações, ao documentário eque, entretanto, apontava para ao cinema de vanguarda daqueleuma nova forma de estrutura país. Mas a versão adotada pelassocial capaz potencialmente de grandes instituições, como aautonomia. Uma institucionalização Imprensa, a Universidade e asdo cineclubismo, a apropriação agências e programas de Estado,da experiência popular e foi a do cineclube de elite, dosua incorporação ao modelo templo de culto ao bom cinema,dominante, dá-se exatamente da cinefilia de connaisseurs. Esseatravés do elitismo que modelo espalhou-se pelo mundotranspiram as iniciativas de e até hoje reverbera no sensoDelluc, principalmente, Canudo comum. Depois da II Guerrae os meios intelectuais pela Mundial, um novo impulso - aEuropa afora depois do conflito redemocratização e reconstruçãomundial. O cineclube passa a ser dos países mais atingidos - levou“reconhecido” institucionalmente a um crescimento de cineclubescomo uma reunião de cinéfilos de todos os tipos. Mas o modelo(especialistas conhecedores do reforçado e promovido pelascinema) sob a tutoria de uma instituições foi mais uma vez o depersonalidade (um cineasta8, um uma meia dúzia de cineclubesautor, um artista), capaz de se parisienses10 que deram um novoexpressar de maneira cultivada impulso à concepção elitista de(literária)9. cinefilia.Nas décadas seguintes os Depois dos anos 60, mais oucineclubes de trabalhadores menos, o cineclubismo entroucontinuaram a existir e crescer: em declínio na maior parte docomo Os amigos de Espártaco mundo. Não simplesmente(1928), que se estendeu por porque houvesse novas formas



107de acesso ao cinema, como os estão sempre presentes, em maiorprimeiros vídeos em fita VHS ou menor número, reconhecidos– relação que muitos fazem, ou ignorados pelas instituiçõesapressadamente, mas pela sua públicas e privadas. Mas,própria incapacidade de se indiscutivelmente, vivemos umrenovar. Afinal, um dos grandes grande refluxo do cineclubismo.ímpetos do movimento, o pós- Ele é paralelo ao recuo dasGuerra, se deu concomitantemente instituições populares culturais ecom o boom da televisão. Outro políticas em geral e, como este,argumento nesse sentido, que mostra um relativo esgotamentoretoma minha exposição, é de que de formas de participação,nos anos 70, no Brasil (quando a relacionamento e organização.televisão realmente se expandiu Hoje, o país com mais cineclubespor aqui) e em outros países talvez sejam os Estados Unidos,da América Latina, um “novo” onde praticamente cada cidadetipo de cineclube apareceu e se tem sua film society. O maior eexpandiu significativamente11. mais exemplar cineclube desseEm meio às ditaduras espalhadas tipo é a Film Society of Lincolnpor todo o Sul do continente, um Center13, de Nova York, fundadacineclubismo de resistência logo em 1969. Como ela, e da mesmase propôs objetivos mais amplos, forma geralmente criadas docomo a valorização do cinema final do século para cá, umanacional e o estabelecimento de infinidade de sociedades adota oum modelo de cinema popular modelo cineclubista (associados,e democrático. Era, de fato, a sem fins lucrativos, acesso eretomada vigorosa da tradição fruição do cinema) nas cidadesmais original do cineclubismo, estadunidenses, cumprindo umpopular e combativa. papel tradicional do cineclubismo: trazer para o público os filmes queA decadência de mais esse ciclo não têm distribuição comercial,do cineclubismo, no final dos mais ousados ou representativosanos 80, tem várias explicações, de uma diversidade queque não cabem nos limites deste especialmente o mercadoartigo. Mas fica a demonstração de americano não tem. Mas essepresença firme do cineclubismo12 formato indiscutivelmentena cultura brasileira. Mais que isso, cineclubista, oriundo da versãoem todo o mundo os cineclubes elitista internacional – e não

das Workers Film Leagues que comunitários, que se propunhamtanta influência tiveram no a ir além do cineclubismo de tipocinema americano - assumiu elitista, espalhando pelo país umadiversas características do rede de salas comunitárias geridasmodelo de gestão comercial, pelo governo e programadasdescaracterizando em grande pela Cinemateca Nacional. Noparte o potencial e vocação Brasil, entre 2009 e 2010, criou-seinconformistas associados à idéia um programa de distribuição dede cineclube. As film societies equipamentos básicos de projeçãoexercem hoje mais um papel (foram distribuídos mais de mil)complementar, subsidiário, e uma central de distribuiçãoaliviando tensões causadas pela de conteúdos, justamenteincompletude do cinema comercial denominada Programadoraao qual, aliás, não cessam de Brasil, revelando sua vocaçãoprestar homenagem. Esse modelo centralizadora e paternalista.tipicamente norte-americano é Esse tipo de iniciativa, ao invésuma variante do cineclubismo de estimular a comunidade, deuelitista que predomina não apenas origem ao que alguns autores15nos países mais ricos, mas em chamam de “onguização”, istogrande parte do mundo, como é, a substituição da iniciativa daresíduo14 colonial. comunidade pela especialização – e dependência - dos interlocutoresTalvez o ciclo brasileiro ou do Estado. É o que chamolatino-americano, a que me de paradoxo brasileiro noreferi, tenha sido a última cineclubismo: poucos anos apósexpressão da linhagem popular e a criação de muitas centenas dostransformadora do cineclubismo. então chamados apenas de cines,Porque também esta sofreu um praticamente nenhum deles existetipo de desgaste e deformação. mais - nem a Programadora.Já neste século, sob a direção degovernos populistas progressistas, Esta é, em poucas palavras, ao Estado interveio fortemente em história. Virtualmente, a históriamuitas atividades e organizações do cineclubismo nos últimos 50culturais comunitárias, anos; e nos dá a resposta para aincorporando-as como forma pergunta que abre este texto. Hojede estímulo. Na Venezuela, por ainda há milhares de cineclubesexemplo, foram criados os cines em todo o planeta; mas este

109campo é bem vasto, e esse número Por um lado, a revolução digitalé muito menor do que há meio produziu e continua a criar formasséculo. Pior: o cineclubismo se e mecanismos de inédito potencialmostra desgastado, suas práticas de democratização das relaçõesdeformadas e sua influência no sociais, particularmente no terrenocinema16 e na cultura reduzida da comunicação e da expressão:à insignificância. Muitos quase o campo do audiovisual. Porcompletamente domesticados; outro, o cineclube é uma agênciaoutros, mais perdidos que atuantes. privada de hegemonia18, umaMas, ainda assim, os cineclubes instituição geradora de culturacontinuam sendo cineclubes: e de valores, e é nesse sentidoassociações estruturadas segundo que deve se situar no momentoum modelo democrático, que não histórico atual. Uma instituição quese confundem e não reproduzem potencialmente visa construir ea atividade comercial, dirigida realizar a substituição do modelopela busca do lucro, e que ainda dominante por um paradigmabuscam se apropriar do cinema, audiovisual em que o público –mesmo que não seja contestando e não o capital – é o referencialcom maior eficácia sua estrutura de essencial. A vocação do cineclubepoder. É isso o que temos quanto à é ser a forma de organizaçãoindagação: e cineclube hoje? audiovisual da comunidade19, mantendo viva a relação coletivaMas se a constatação é dura, as de recepção do cinema – sob suasperspectivas não o são. Ou melhor, diversas formas e em todas asa construção de um cineclubismo telas -, reunindo, preservando econtemporâneo, livre da submissão produzindo a cultura identitáriaou adesão ao modelo comercial do ambiente em que se enraíza.dominante e, ao mesmo tempo, Essa, ou melhor, essas novascapaz de superar as práticas de formas de organização estãocooptação, de paternalismo, entre sendo descobertas e construídas,outras estreitezas ideológicas que sem ainda uma autoconsciênciao contaminam, será uma tarefa plena, neste momento. Falar disso,bem árdua. Mas, como disse Marx: o cineclube do futuro, já não cabe nos limites deste texto, mas o“...a própria tarefa só aparece cineclubismo – como outras formasonde já existem, ou pelo menos de organização do público e daestão no processo de se formar, comunidade – certamente aindaas condições materiais da sua reserva muitas surpresas pararesolução.”17 quem o deu por morto, ou mudo.

NOTAS 7 KRACAUER, Siegfried. 1987 (1926). “Cult of Distraction”, em New German1 TRINDADE, Liana. 2000. Conflitos Critique, v. 40, p.928, apud HANSEN,Sociais e Magia. São Paulo: HUCITEC, p. Miriam Bratu.2001. “Estados Unidos,28. Paris, Alpes: Kracauer (e Benjamin) sobre o cinema e a modernidade”, em2 As duas primeiras condições, CHARNEY, Leo e Vanessa R. Schwartz. Oestabelecidas na exemplar “lei 1901” cinema e a invenção da vida moderna.francesa, foram adaptada e adotadas São Paulo : Cosac & Naify, p.421.por um grande número de países. Aterceira, que caracteriza, distingue os 8 Termo atribuído a Louis Delluc: “umcineclube até particularmente, depende estudioso de assuntos cinematográficossobretudo do contexto em que ele que colabora na realização de um filme”,radica: apropriação pode significar em ARISTARCO, Guido. 1961. Históriaacesso, conhecimento, formação, fruição das Teorias do Cinema. Lisboa : Edirorae muitas outras motivações para a Arcádia, p. 113.autoformação de um público organizado. 9 Um estudo mais completo dessas3 MUNDIM, Luiz Felipe. 2016. O povo características pode ser encontrado emorganizado para a luta. O Cinema GAUTHIER, Christophe. 1999. La passiondo Povo na França e a resistência do du cinéma. Cinéphiles, cinéclubs et sallesmovimento operário ao cinema comercial spécialisées à Paris de 1920 à 1929.(1895-194). Tese de Doutorado. Paris : AFRHC, e em DE BAECQUE, 2011.Universidade Federal do Rio Grande Cinefilia – Invenção de um Olhar, Históriado Sul – Université Paris1- Panthéon- de uma Cultura: 1944-1968. São Paulo:Sorbonne. Cosac & Naify. Para uma visão crítica dessa concepção de cinefilia: JULLIER,4 FIGUEIRA, Cristina Aparecida Reis. Laurent et LEVERATTO, Jean-Marc. 2010.2003. O cinema do povo: um projeto Cinéphiles et cinéphilies. Une histoireda educação anarquista-1901-1921. de la qualité cinématographique. Paris:Dissertação de Mestrado. Pontifícia Armand Colin; BURCH, Noel.2007. DeUniversidade Católica de São Paulo. la beauté des latrines. Pour réhabiliter le sens au cinéma et ailleurs. Paris :5 MACEDO, Felipe. 2016. Le cinéclub L’Harmattan, STAIGER, Janet. 1992.comme institution du public : Interpreting Films. Studies in thepropositions pour une nouvelle histoire. Historical Reception of American Cinema.Dissertação de mestrado, Université de Princeton: Princeton Univeristy, ou aindaMontréal. MACEDO, Felipe, ibidem.6 Há muitas fontes sobre esses temas. 10 O movimento da Nouvelle Vague,Para uma síntese, ver: COSTA. Flávia as revistas Cahiers du Cinéma e PositifCesarino. 2008. “Primeiro Cinema – A eram ligados a uma meia dúzia desegunda década (1907-1913-15): O cineclubes parisienses e outro tantocinema de transição”, em MASCARELLO, de personalidades, e em especial,Fernando (org.). História do Cinema às sessões promovidas por HenriMundial. São Paulo: Papirus Editora, p. Langlois na Cinemateca Francesa –37- 52. criada em 1936 a partir do cineclube Cercle du Cinéma (1935). Na mesma

111época existiam literalmente milhares “Sociedade civil, participação ede cineclubes em toda a França. Estes cidadania: de que estamos falando?”,fatos não retiram a importância da em MATO, Daniel (coord.). Políticas decontribuição dada ao cinema pelo ciudadania y sociedad civil en tiemposgrupo de cineastas e críticos formados de globalización. Caracas: FACES -naquele ambiente. Apenas a situam Universidad Central de Venezuela, p.contextualmente. 95-110. Disponível na internet.11 No Brasil, onde talvez esse 16 Lembro rapidamente que durantecineclubismo mais se desenvolveu, no a maior parte da história do cinemafinal de década havia 600 cineclubes os profissionais se formavam nosfiliados à federação nacional, e cineclubes. Dos cineclubes surgiu acerca de 2 mil pontos de exibição maior parte das cinematecas do mundo,mais eventual, ligados a diversos assim como os festivais de cinema, amovimentos populares, atendidos pela crítica cinematográfica e mesmo osdistribuidora de filmes gerida pelos cursos universitários de cinema. Acineclubes, a Dinafilme. Ver MACEDO, origem do documentário se confundeFelipe, 50 anos da Ditadura: lições de com os primeiros cineclubes e, emresistência e democracia dos cineclubes, muitos países, no chamado Terceirodisponível em: https://www.academia. Mundo, o próprio cinema nacional –edu/12424767/ pelo menos antes do predomínio das tecnologias digitais – se confundia com12 Embora não trate disso aqui, o os cineclubes locais.cineclubismo no Brasil teve umaexpansão geográfica e uma presença 17 MARX , Karl. 1859. Prefácio à Críticasocial sempre crescentes desde, pelo de Economia Política. A citação completamenos, o final dos anos 20 (senão é “Uma formação social nunca decaiantes), trajetória apenas interrompida antes de estarem desenvolvidas todasbrevemente por momentos de as forças produtivas para as quais érepressão em conjunturas autoritárias suficientemente ampla, e nunca surgem(40-45, 68-71). Mais que em qualquer relações de produção novas e superioresoutro país, há um grande número antes de as condições materiais dede trabalhos acadêmicos (TCCS, existência das mesmas terem sidodissertações, teses, capítulos de livros chocadas no seio da própria sociedadee artigos acadêmicos) com as mais velha. Por isso a humanidade colocadiversas abordagens e sobre múltiplos sempre a si mesma apenas as tarefasaspectos do cineclubismo brasileiro – que pode resolver, pois que, a umamas pouquíssimas pesquisas de fontes consideração mais rigorosa, se acharáprimárias e não orais. sempre que a própria tarefa só aparece onde já existem, ou pelo menos estão13 Site: https://www.filmlinc.org/ no processo de se formar, as condições materiais da sua resolução.” Disponível14 Ver o conceito de culturas residuais em http://www.bresserpereira.org.e emergentes em WILLIAMS, Raymond. br/Terceiros/Cursos/1859.Prefacio-2011. Cultura e Materialismo. São Paulo: %C3%A0-cr%C3%ADtica-da-economia-UNESP, p. 56-59. pol%C3%ADtica.pdf15 DAGNINO, Evelina. 2004. 18 Sobre instituições de hegemonia e

hegemonia, ver GRUPPI, Luciano.2000. OConceito de Hegemonia em Gramsci. Rio deJaneiro: Ed. Graal, p. 76-8019 Comunidade é a forma de associaçãode pessoas que têm uma identidade,um interesse ou até um gosto comum.Assim, estou me referindo a comunidadesgeográficas e culturais, mas também declasse, gênero, etnia, gosto, etc.

análise fílmica

Entre gravar e revelar: vestígios de uma memória em Elegia Oriental Fabiola NotariFabiola B. Notari é artista visual e pesquisadora. Leciona História da Fotografia eFotomontagem no Curso Superior de Fotografia no Centro Universitário Belas Artes deSão Paulo e coordena o Grupo de Estudos Livros de artista, livros-objetos: entre vestígios eapagamentos na Casa Contemporânea.Aleksandr Nikoláievitch vez mais inacessível e esquecida, Sokúrov (1951 - ), em seu principalmente, para os Ocidentais, filme Elegia Oriental (1996), que nunca de fato a acessaram. No leva o espectador a uma filme, a cultura japonesa é resgatada deviagem em direção ao Oriente, ao diversas maneiras, dentre elas, pelosJapão, por meio de seus habitantes relatos de alguns de seus habitantese de sua paisagem, que, envolta em que permanecem na ilha mostradanévoa, simulam um tempo e espaço nos primeiros minutos. Neste longaoutro, quase imateriais. Através metragem, as memórias são exaltadasde suas lentes e de um trabalho e moldadas como matéria-prima para aexaustivo de pós-produção, o cineasta construção das imagens, aproximandonos aproxima de uma cultura cada o espectador do Japão dessas

115memórias perdidas no tempo. como se só assim fosse possível manter sua existência.Nessa construção espaço-temporal, analisa-se o filme Elegia Dentre tantas outras linguagensOriental a partir de dois conceitos: que o homem criou e desenvolveufragmento e memória, que para lidar com essa questão esurgiram da provocação lançada a outras intrínsecas a ela, o cinemapartir da citação de Jeanne Marie surge como possibilidade deGagnebin: mesclar a transmissão oral viva com a inscrição, a gravação de(...) a memória dos homens se uma mensagem por meio deconstrói entre esses dois pólos: o códigos, no caso, imagens numda transmissão oral viva, mas frágil determinado tempo e espaço quee efêmera, e o da conservação tocam o presente no momentopela escrita, inscrição que talvez em que são assistidas, ao seremperdure por mais tempo, mas que revisitadas.desenha o vulto da ausência. Nema presença viva nem a fixação pela Iuri Lotman (1922-1993), em seuescritura conseguem assegurar a livro Estética e Semiótica doimortalidade; ambas, aliás, nem Cinema (1973), lança a seguintemesmo garantem a certeza da pergunta “O cinema é um sistemaduração, apenas testemunham de comunicação?”. Ao que eleo esplendor e a fragilidade da mesmo responde:existência, e do esforço de dizê-la.”(GAGNEBIN, 2009, p.11) (...) parece [que] ninguém põe isso em dúvida. Os cineastas,Nesse trecho, a pesquisadora os atores, os argumentistasafirma o difícil e complexo [roteiristas], todos aqueles queprocesso ao qual a memória do criam um filme querem dizer-homem está condenada, pois nem nos algo com a sua obra. Ela écom a transmissão oral e nem com como uma carta, uma mensagema escrita é possível mantê-la em dirigida aos espectadores. Massua plenitude. Mesmo estando para compreender a mensagemcondenada ao esquecimento, a é necessário conhecer a suapermanência da memória torna- linguagem”. (LOTMAN, 1978, p.13)se uma inquietação do homem,que busca de diferentes maneiras Lotman estuda o cinema a partirguardar, catalogar, organizar e da interpenetração dos signosresgatar essas diversas memórias, verbais e figurativos, isto é, o

cinema permite a adoção de uma busca-se demonstrar como onarrativa às imagens, lidas como cineasta elabora a construçãoum texto. Essa forma de narrativa dos planos a fim de criar umpor imagens está presente possível lugar de permanênciana cultura humana desde as da memória. Para isso, observa-sepinturas rupestres, por exemplo, que ambas as estruturas possuemcomo um esforço de síntese de uma característica em comum, oconhecimento, cada qual com fragmento.sua convenção histórica e valorartístico. Segundo Walter Benjamin (1892- 1940), o fragmento consegueAo se analisar o cinema como uma guardar um ponto de vista únicolinguagem artística, Lotman afirma sobre o todo. Tal afirmação podeque o cinema não se restringe ser observada no seu texto Aem reproduzir o mundo como tarefa do tradutor (1923) em queum espelho, mas transforma as afirma: “Do mesmo modo que osimagens do mundo em signos, cacos tornam-se reconhecíveispois “(...) [o cinema] é uma cadeia como fragmentos de uma mesmade descobertas que visa expulsar o ânfora, assim também original eautomatismo de todos os aspectos traduções tornam-se reconhecíveissusceptíveis de um tratamento como fragmentos de umaartístico” (LOTMAN, 1978, p.34). linguagem maior” (BRANCO, 2008,Nessa forma de criação, o cineasta p.61). Nessa metáfora, Benjaminnão se limita à continuidade demonstra a importância de cadae sequencialidade do espaço fragmento, no caso, de cadae tempo da vida. Libertas das tradução, como sendo únicosamarras da descrição linear, as em si, porém, complementares aimagens cinematográficas fluem um entendimento amplo e maiorcom regras próprias, às quais o perdido, segundo seu argumento,espectador é introduzido durante o na Torre de Babel1.filme. Junto ao conceito de fragmento,Ao relacionar a linguagem que foi tomado como base paracinematográfica teorizada por análise do filme Elegia Oriental, éLotman com a problematização importante esclarecer os limites doapresentada por Gagnebin sobre a conceito de memória.permanência ou não da memória, A memória, segundo Benjamin,

117não é unidirecional, não é apenas isso ocorra, são necessáriosum movimento que surge no estímulos, indícios que façampresente e se volta para o passado, essa intersecção acontecer.como é o caso da rememoração; Segundo Jacques Aumont (2010),mas é bidirecional, em que no a imagem, em ambos os casos, épresente tanto se visa o passado esse indício, com uma finalidadequanto o futuro. Este tempo de determinada, estabelecer relaçõesintersecções é o agora [Jeztzeit], no com o mundo, entre espectadorqual esses dois tempos, passado e e realidade. No caso da imagemfuturo, se tocam. cinematográfica, a montagem no sentido eiseinsteniano paraO agora de Benjamin é a sua construção, dessa maneira,convergência de passado e futuro, apresenta-se no próximo capítulo acomo é possível observar no livro construção de cada uma das duasEm busca do tempo perdido, sequências que são analisadas.de Marcel Proust (1871-1922). Opassado faz-se presente como As sequênciasimagem transfigurando o próprio Os conceitos de memória e depresente em agora, mas, de modo fragmento são articulados naainda mais radical, sustenta-se que análise de dois trechos nos quaistudo que verdadeiramente resta aparecem pessoas relatandodo passado é essa potência de episódios de suas vidas. Ostransfiguração do futuro. Assim, a dois personagens japonesestarefa do historiador para Benjamin descrevem e comentam momentosé redimir os acontecimentos, marcantes a partir de colocaçõespercebendo no passado os e provocações que o narrador,indícios de uma potência de sempre em voz off, faz.transfiguração; e isso só é possívelno agora. Essa tarefa é urgente A primeira sequência a serporque os indícios estão sempre analisada é a de uma mulherprestes a desaparecer. (00:14:20-00:18:01). A câmera encontra-se fixa num canto dentroA busca pela permanência de um cômodo escuro, no qualé sempre dada no presente, só é possível ver uma janela, ou,no qual há a retomada de um pelo menos, algo que lembrepassado junto com uma projeção uma abertura2. Simultaneamenteao futuro. No entanto, para que ouvem-se sons externos, o

vento soprando junto com vozes mais nítido. A granulação dosincompreensíveis que parecem negros e cinzas cria uma atmosferacantar e eis que surge uma voz de suspensão e de imaterialidade,masculina, que denominaremos de como se a qualquer momento, estenarrador, dizendo em russo: “Eu rosto pudesse desaparecer, comosinto você e eu estou escutando”. poeira ao vento.Em seguida, surge uma voz off Dando sequência ao relato,feminina que fala em japonês, e a a mulher diz que era “umaseguir um vulto cinza embaçado criança que sofria de paralisiapróximo ao centro do quadro, e de solidão”. Sua fala, mesmoenquanto o espaço interno se sendo fragmentada, transmiteesvaece em fade out3. Durante a tensão pela qual passou. Aotoda a sequência, observa-se que final da sequência, o rosto funde-a fala feminina é seguida pela voz se à imagem de uma porta ouoff do narrador, que a traduz do janela. Ele é sobreposto porjaponês para o russo. Com uma uma paisagem externa, em quefala calma e pausada, a japonesa, é possível ver edificações ao pélogo depois, relata algo que não de uma montanha, novamente,necessariamente seja tão tranquilo com a sobreposição, a câmeraquanto sua voz faz transparecer, aproxima-se de uma janela queenquanto que o vulto inicial torna- rapidamente se sobrepõe à janelase mais nítido, mostrando que é de dentro do cômodo. Depoisum rosto, o rosto da japonesa. desse deslocamento espacial, atravessado em todo momento porEla descreve um dia qualquer de uma neblina constante e por umsua infância, no qual pessoas de som de chuva com alguns trovões,sua comunidade estavam limpando o rosto da japonesa emerge douma rua. Por causa da neblina, não escuro do espaço interno.conseguiam se ver. Conforme aneblina se dissipava, as pessoas Ela começa a argumentar quecomeçavam a se reconhecer. nunca teve medo da solidão, e que é uma pessoa feliz, pois sempreA câmera mantém-se fixa o tempo buscou ser autônoma em suastodo, como se prestasse atenção atividades, no entanto isso lheao que aquela voz relata, e, de trouxe um afastamento do mundo,maneira sutil, o que era um rosto tornando-se mais solitária ainda.embaçado, torna-se um pouco

119Quando diz isso, seu rosto é Num corte seco, a câmera retornasobreposto por uma mão que ao vulto por trás do anteparo,acaricia o que possivelmente simultaneamente inicia um som,seja um tatame, o som volta como uma voz a cantarolar, e oa ser o mesmo do início da personagem por trás do anteparosequência, o de uma ventania começa a se movimentar, a passarque assopra e assobia, mas a mão na cabeça e no rosto.agora misturada com o som Novamente, mais um corte brusco,do mar. Enquanto ainda a a câmera mostra a japonesacâmera mostra a mão no fazendo o mesmo gesto: comtatame, o narrador faz uma as mãos no rosto, faz pequenospergunta à japonesa: “O movimentos na região do olho.que se pode perguntar paraDeus?” O tom de cinza muda, tornando-se mais acastanhado, e assim a vozQuando inicia a voz emresposta à pergunta, acâmera volta a filmar o rostoembaçado que surge dofundo negro, porém, agora, orosto está mais centralizadono enquadramento do plano etambém mais ampliado, aindaindefinido e o granulado comodescrito anteriormente. Depois deuma pausa, responde que pediriabom senso e um julgamento justo.Em seguida, o narrador faznovamente outra pergunta: “Avida tem te desgastado?” Quandoa câmera volta a filmar o rostoda japonesa, há uma melhorpercepção das feições de seurosto. Suspirando, responde quesim.

off do narrador diz: “Que sonho dando lugar a uma imagemestranho! Onde eu nasci?” Antes indefinida, que, ao se completar,de responder, há um corte seco no surge como uma pequena cabeçaplano que mostra outra sequência sem corpo no meio do plano. Seusque tem os mesmos tons tons são diferentes das tonalidadesavermelhados e amarelados que da sequência da japonesa, eles sãose iniciou no plano da japonesa mais quentes, esmaecidos entre ocom as mãos nos olhos. granulado e o negro do plano.Como no trecho descrito acima, A imagem do rosto do japonêso segundo relato (00:20:15- vibra sutilmente, como uma chama00:27:42) mantém as mesmas de fogo, enquanto relata que nocaracterísticas, a voz off do vilarejo onde houve o naufrágionarrador se dirige a outra havia uma mulher “louca” quepessoa, dessa vez um japonês. com caretas começou a dançar eDiferente da sequência anterior, gritar entre os corpos. Mesmo comesta se inicia mostrando uma essa atitude estranha, ninguém aárea externa o que aparenta interrompeu. Enquanto continuaser a entrada de uma casa. Essa o relato, essa imagem escureceimagem é acompanhada pelo gradativamente e fica cada vezsom de um cantarolar e de uma menor, a presença do japonês éventania, como na sequência reduzida praticamente ao som,anterior. Logo após, surge uma pois ela mal consegue ser vista.voz off masculina que se expressa Dessa maneira, tem-se a sensaçãoem japonês, cujo conteúdo é de que a qualquer momento ela irátraduzido pelo narrador. Ele relata desaparecer por completo, comoum naufrágio que aconteceu certa uma chama de fogo que perdenoite. Na manhã seguinte, após o intensidade.acidente, os pescadores, com suasredes, recolhiam os corpos dos Esse homem revela que ficaramarinheiros mortos e estes eram curioso e espantado com a belezacolocados enfileirados na praia de um dos mortos e de como seuscobertos com esteiras. negros cabelos se movimentavam com as ondas do mar. Aproximou-Enquanto o japonês relata o se do corpo do jovem marinheiroinício dessa história, a imagem do que falou a ele: “Tudo está bem,ambiente externo vai escurecendo, tudo dará certo”. Finalizando

121este relato, o japonês afirma que Após essa sequência, o narradoreste jovem marinheiro morto faz uma pergunta: “Você sabe oprematuramente encontra-se entre quanto que os homens mudamas ondas repetindo: “Tudo está depois da morte?”, a quebem, tudo está bem”. responde: “Eles se tornam mais ternos, eu aprendi isso depois queAo traduzir essas palavras, o falei com pessoas como eu, quenarrador, prolonga-se na sua fala, não estão mais nesse mundo”.deixando-a mais lenta e arrastada.Simultaneamente, o rosto do Mais um corte seco, para mostrar,japonês, que já mal se consegue em seguida, a imagem dever, funde-se à a chama de uma uma lamparina próxima a umalamparina. No entanto, a voz do mão que acaricia um tatame,japonês continua, como também aparentemente, parece ser ao cantarolar e a ventania. A seguir mesma mão da sequência dainverte-se a imagem: a lamparina japonesa. Há um silêncio na fala,desaparece lentamente e o rosto mas, mesmo assim, conseguimosdo japonês torna-se poesia, mas ouvir uma respiração, um suspiro.agora um pouco mais ampliada. Esse silêncio é rompido pelaNesse momento, o narrador pergunta do narrador: “Por quepergunta ao japonês sobre seu pai. tem tanta tristeza na poesia? Talvez você saiba”. O japonês sugereEm todo momento, a câmera com o corpo o entendimento dapermanece fixa. Ao falar sobre seu pergunta, mas nada responde.pai, comenta uma característicaque sempre o intrigou, ele O narrador, chamando a atençãochamava sua esposa de mãe. do japonês, diz: “Volte para nós,Ainda fixa, a câmera permanece precisamos de pessoas comoatenta e ouvinte quando há um você!”. Em seguida, o japonêscorte seco, em que se mostra um responde: “Está bem, já chega, jáinseto em close-up que, escondido é o suficiente. Eu não quero mais.entre partes de uma casa, não é Estou cansado”. E continua: “Mas,notado pelos habitantes daquele se eu tiver que viver a vida na terralugar, que podem ser percebidos novamente, eu gostaria de viverpelos estalos de madeira, como se como uma bela árvore com frutosestivessem andando. vermelhos”.

Quando o japonêsagradece com o movimentocaracterístico de se curvarpara frente, o quadro épreenchido pelo somoff de gaivotas. Apósum corte seco, pássarossurgem voando. Mais umcorte seco, que substituaa imagem dos pássarospela imagem de umapaisagem envolta de umanévoa enquanto o som dospássaros permanece.ReflexõesEm ambos os trechosselecionados para análise(00:14:20-00:18:01 e00:20:15-00:27:42),Aleksandr Sokúrov articulaas imagens como peças,dessa maneira, a cada novacombinação, a cada novamontagem, comunica-se uma determinadamensagem ao espectador.Conforme sua declaraçãoem entrevista cedida aJeremi Szaniawski:(...) a natureza intelectualdo cinema é baseada naliteratura e literatura émontagem, montagem depalavras. Na palavra emsi sempre há montagem.Ao unir duas palavras,

123eu reforço seus sentidos e conhecimento nas outras artes,a associação incorreta de como a pintura, soluções para aduas palavras pode torná-las construção dessas imagens. Assim,incompreensíveis, torná-las ao estudar cada cena, também sealgo universalmente comum estuda o resultado da reunião deou desconhecido. O mesmo diferentes planos que se articulamacontece com a montagem. no espaço e no tempo da película.(VASCONCELLOS, 2011, p.13) Nos dois trechos selecionadosObservando a maneira como descritos anteriormente, buscou-cada plano é construído e como se criar relações entre os conceitoscada imagem é articulada, a de fragmento e de memóriamontagem torna-se uma peça com a articulação dos elementosfundamental neste filme, como audiovisuais proposta pelorecurso de construção de um lugar cineasta.de permanência da memória.Nessa articulação, tanto o conceito A primeira delas é a sobreposição.do filme quanto os instrumentos Entre as fusões que mostramutilizados na sua construção o fim de uma cena e início dedialogam entre si, pois quais são outra, há um eclipse temporalas imagens possíveis de serem e espacial, possibilitando assimsuscitadas quando se fala sobre uma junção entre fragmentos.memória? Quais as escolhas Até então, a cena anterior e aestéticas feitas por Sokúrov? posterior eram independentes entre si e continham seus própriosAlguns elementos da montagem significados, logo é possívelnos dão pistas de como se associá-las ao conceito dearticulou o processo de criação fragmento, como sendo uma partedas imagens no filme, entre eles, completa em si, mas que faz partesobreposições e deformações de um todo maior: o plano.de fragmentos. Não existe umaregra pré-determinada para a No momento da intersecção,sua utilização, como o próprio ambos os planos dialogam entreSokúrov já afirmou. Em muitos si, mesmo que não haja nenhumamomentos, a sua intuição faz com ligação lógica entre as imagens.que crie e modifique partes da Segundo Serguei Eisenstein (1898-cena independente de sua lógica, 1948), “a montagem é uma ideiapois busca em seu repertório e que nasce da colisão de planos

independentes - planos até dos sentidos, Eisenstein sintetizaopostos um ao outro: o princípio esse pensamento:‘dramático’”. (2002, p. 52). “O circuito foi completado.Esse princípio “dramático”, citado Pela mesma fórmula que une ocomo metodologia da forma, significado de todo o fragmentosurge quando, por exemplo, a (seja todo o filme ou uma únicajaponesa funde-se ao fundo negro seqüência) e a seleção meticulosa,e uma mão surge acariciando a hábil dos fragmentos, surgesuperfície de um tatame. Algo a imagem do tema, fiel a seuparecido acontece no segundo conteúdo. Através desta fusão, etrecho do filme no qual há uma através da fusão da lógica do temalamparina sobre o tatame que do filme com a forma superior nafunde-se ao rosto do japonês. Em qual distribui este tema, aparecenenhuma das duas sequências, as a total revelação do significado doimagens sobrepostas dialogam filme.” (EISENSTEIN, 2002b, p.61)entre si, nem no nível visual enem no sonoro, logo, percebe-se Por todo o filme, o som alterna-que não há subordinação, mas se entre falas, gemidos,complementação e soma. sussurros, músicas e ruídos. Esses atravessamentos podem estimularDessa colisão de imagens, algo e provocar no espectadorsurge, uma terceira imagem que sensações, experiênciasse amarra ao restante das imagens, sinestésicas que ampliam ocriando um sentido. As escolhas alcance da imagem através dapor recursos da montagem fade montagem. Ao mesmo tempo emin, fade out e cortes secos trazem que é fragmento, o som , como asao filme um movimento, um ritmo outras imagens, é um elementoque está diretamente ligado à de estabelece a continuidademontagem de cada plano, que entre um plano e outro, pois orajustapostos e sobrepostos levam ele é anunciador de imagenso espectador a ser participante posteriores, ora é elemento dedo filme, a fazer a ligação entre resgate de imagens anteriores.as imagens, mesmo que paraisso seja necessário desconstruir Na montagem, os planosuma narrativa para construir um são articulados a partir dosentido. No texto Sincronização direcionamento do cineasta e daquilo que busca comunicar ao outro, ao espectador. Entre

125a fidelidade e a liberdade, o P/B4, essa visualidade é criadacineasta cria imagens, comunica o por Sokúrov por meio de filtrosincomunicável como entrelinhas utilizados nas câmeras comode um texto. Segundo Lotman: também por um trabalho exaustivo de pós-produção. As imagensNem toda comunicação tem surgem a partir desses grãosnecessariamente um sentido, estando imersas a eles, como senem encerra necessariamente a todo o momento pudessem serdeterminada informação. apagadas, com o sopro de vento.(...) A informação consisteno desaparecimento de uma Relacionando essa escolhadeterminada incerteza, na estética ao conceito de memória,supressão da ignorância e na percebe-se uma possível relaçãosubstituição pelo conhecimento. plástica, pois, frequentemente, asOnde não há ignorância também imagens surgem e desaparecem.não pode haver informação. O movimento de ir e vir por entre(LOTMAN, 1978, p.29). essas temporalidades aponta, no filme, uma impossibilidade,Como dito no início deste texto, trazendo à tona diversosSokúrov, no filme Elegia Oriental, “presentes” por meio daconvida o espectador a uma projeção desse filme que operaviagem ao Japão, no entanto não por anacronismo, uma vez quecomo um país asiático reconhecido concebe a experiência do tempopor sua economia, história, como um espaço repleto depolítica, cultura ou geografia, agoras.mas, sendo o país o lugar daspequenas histórias, dos detalhes e Nesse espaço cinematográfico,das efemeridades. A partir desse há a montagem reivindicadamicro universo intrigante e quase como construção da memória,inacessível, o cineasta mostra outro processo por intermédio do qualtempo e espaço imateriais, feitos se produz o conhecimento. Nessede memórias, suas e de outros. sentido, Benjamin afirma que o historiador (materialista) “(...) deveAlém da sobreposição, o diretor visar uma montagem: vale dizer:trabalha com a deformação. de uma collage de escombrosPodendo ser observada em e fragmentos que só existe natodo o filme; a granulação é um sua configuração presente dedesses recursos. Característicapredominante das fotografias

destroço”. (BENJAMIN apud Esse movimento permite aSELLIGMANN-SILVA, 2003, p.70) reconstituição de vários presentes que se fundem para comporNesse ponto, associa-se a figura outro presente, que resiste comodo cineasta a deste historiador, forma. Nesse sentido, o cineasta,pois o passado não é mais visto ao trabalhar com planos, comcomo “um passado eterno”, fragmentos, transforma essasmas como fato em movimento, imagens em memórias ao mesmofato de memória, que evoca os tempo em que essas memórias seacontecimentos e os constrói tornam imagens, tendo consciênciano saber presente do cineasta de sua transformação no tempo ee novamente quando o filme é no espaço.assistido. Sendo assim, o cineastaé um “trapaceiro” da memória das Junto com a granulação, há acoisas, seu trabalho se fundamenta deformação dada por uma lentena interpretação e reapresentação esférica. Mais um dos recursos dede rastros, assim tudo é anacrônico Sokúrov que pode ter sido utilizadoe simultâneo, as memórias na hora da filmagem quantonão fazem parte do passado na edição e pós-produção dodesaparecido, são matéria que filme. Como se fossem vistos porsobrevive. orifícios e/ou pequenas aberturas, os dois japoneses são acessadosNisso há uma tensão dialética, pois, parcialmente, não sendo possívelenquanto busca-se a necessidade ter detalhes de suas feições e nemdo lembrar-se, depara-se com a reconhecer claramente o ambientesua impossibilidade. As imagens onde se encontram, apenas sabe-são construídas a partir disso, se que são ambientes internosestão sempre no limite entre escurecidos.vistas e reconhecidas, entrepresenças e ausências. A partir do Entre construção e desconstruçãoentrecruzamento de manifestações de sequências e temporalidadespassadas e presentes, torna-se heterogêneas, Sokúrov elaboracada vez mais difícil determinar imagens que circulam em umas marcas que caracterizam tempo aberto, sem início ou fim,presente, passado e aspirações apenas o meio, o entre. Essaao futuro, logo, à medida que o suspensão do tempo encarna afilme é acessado, ele se transforma. memória no presente. O filme

127se transforma em ruína, frágil e E, no caso da cena em questão,fadada à destruição; por causa eu não queria um corte seco.disso, o tempo presente se revela Queria uma dissolução tênue.importante a partir da ameaça (VASCONCELLOS, 2011, p.13)constante do esquecimento e dodesaparecimento. Por meio da linguagem do cinema, Sokúrov busca confrontar a históriaPor fim e o presente.; busca conduzirAo buscar novas formas de olhar, o espectador à percepção deSokúrov muda constantemente, que o presente está ameaçado,desagregando constantemente sendo sempre um esboço que sesua identidade, e, ao fazer isso, reorganiza permanentemente. Emarmazena em sua memória um núcleo de tensão, o tempoimpressões que se transformam permanece entre sua constituição eem imagens. A memória manifesta- sua destruição, por isso o fascínio ese na luta contra o movimento a fixação pela memória, concebidaimplacável do tempo, contra o como criação e conhecimento,esquecimento. Tanto na montagem e pelo contingente efêmero.quanto no enredo do filme, a Nesse sentido, busca aproximarmemória passa a ser percebida o que está distante e distanciar ona maneira como as imagens são que está próximo, retornando aoconstruídas e pelas sensações passado a partir do presente quecausadas no espectador, entre a nos é próprio, ou seja, operandoinacessibilidade e a inconstância. anacronismo.Sokúrov afirma: Em Elegia Oriental, SokúrovO que acontece na associação traduz em imagens a consciênciade duas imagens em frente da perenidade do presente ede nossos olhos? Qual é essa demonstra a busca incessante pelaexplosão, essa conflagração? Eu permanência da memória, mesmoestou disposto, em decorrência esta feita de fragmentos.disso, e eu pretendo, em meusesforços artísticos, enquanto tiveroportunidade, fazer experiênciascom certos domínios da técnica,principalmente com a montagem.

BIBLIOGRAFIA NOTASAUMONT, Jacques. A imagem. 1 Então, desceu o Senhor para verCampinas: Papirus Editora, 2010 a cidade e a torre, que os filhos dos homens edificavam; e o Senhor disse: EisBRANCO, Lucia Castello (org.). A tarefa que o povo é um, e todos têm a mesmado tradutor de Walter Benjamin: quatro linguagem. Isto é apenas o começo;traduções para o português. Belo agora não haverá restrição para tudoHorizonte: Fale/UFMG, 2008 que intentam fazer. Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem,EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio para que um não entenda a linguagemde Janeiro: Editora Zahar, 2002 de outro. BIBLIA. Português. A Bíblia sagrada. 2. ed. Trad. João Ferreira de__________________. O sentido do filme. Almeida. São Paulo: Sociedade BíblicaRio de Janeiro: Editora Zahar, 2002b do Brasil, 1993.GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar 2 Essa dúvida é gerada pela ausência deescrever esquecer. São Paulo: Editora 34, nitidez da imagem, pois, além da falta de2009 detalhes, a lente da câmera causa uma leve distorção, tornando-a mais esférica.LOTMAN, Iuri. Estética e semiótica docinema. Lisboa: Editorial Estampa, 1978 3 Fade out, do inglês significa desvanecer, enfraquecer. Na linguagemLöwy, Michael. Walter Benjamin: aviso de cinematográfica, fade out é oincêndio. São Paulo: Boitempo, 2005 escurecimento total do quadro feito de maneira gradativa. O oposto deste efeitoMACHADO, Álvaro (org.). Aleksandr é o fade in, quando a imagem surge doSokúrov. São Paulo: Cosac&Naify, 2002 escuro.SELIGMANN-SILVA, Márcio (org). História, 4 A granulação do papel fotográficomemória e literatura: o testemunho na é resultado do composto químicoera das catástrofes. Campinas: Unicamp, fotossensível do qual é feito, o haleto de2003 prata que possui forma de cristais.

129 A poética da transformação em A vida dos outros Ana Key KapazAna Key Kapaz é formada em Cinema pela FAAP e Mestre em Romanística pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg, Alemanha. Foi artista gráfica, entre outros, do longa brasileiroO Roubo da Taça (2016), vencedor do Kikito de Melhor Direção de Arte. Sua tese de mestrado,O fenômeno Tropa de Elite e suas relações com a sociedade brasileira contemporânea, épublicada pela Editora Mnemocine.Anarrativa de A Vida dos um casal de artistas, uma atriz e um Outros, filme alemão de 2005 escritor. Em uma cena1 crucial do dirigido por Florian Henckel desenvolvimento deste personagem, Von Donnersmarck, baseia- ele é colocado pela primeira vez comose, essencialmente, na formidável e observador ativo da transformaçãooutrora improvável transformação do moral pela qual passa. Pretendoprotagonista, um espião da Stasi, a analisar brevemente a linguagempolícia secreta alemã. Gerd Wiesler cinematográfica da dita cena, que se(Ulrich Mühe) é o típico estereótipo passa no elevador do prédio ondeimpiedoso da infame Stasi. Esta solidez Wiesler mora, e que traz elementosde caráter se revela permeável quando importantes a este processo deWiesler passa a espionar diariamente transformação.

O capitão da Stasi um artista e amigo próximo,No começo do filme, Wiesler é um intensamente perseguidotípico tecnocrata que crê piamente e censurado pelo governo.na moral que rege o governo Transtornado, Dreyman senta-sesocialista da Alemanha Oriental, ao piano e toca uma peça cujana qual está inserido e ao qual partitura ganhara de presenteserve. Ao receber a missão de de Jerska alguns dias antes, deespionar o escritor Georg Dreyman aniversário: a Sonate vom guten(Sebastian Koch) e a atriz Christa- Menschen, ou “Sonata do HomemMaria Sieland (Martina Gedeck), Bom”. Wiesler ouve tudo pelo seuno entando, ele é diretamente fone, e a câmera se movimentaafetado pela vida do casal e em torno dele em um travelingcomeça a questionar sua moral e semicircular. Vemos que ele estáseus valores. Por um lado temos visivelmente tocado. Dreyman tocaa corrupção interna do partido2 até o fim, e após uma breve pausae os interesses pessoais dos seus fala para Christa-Maria:superiores. Mas por outro lado,mais relevante para esta análise, há “Eu sempre penso no queo poder e a função da arte como Lênin falou da Apassionata [deferramenta de transformação. Beethoven]: não posso ouvi-la atéPara Wiesler torna-se claro que a o fim, senão não levarei a cabo atal moral em que acreditava não Revolução.existe. O valor da vida artísticade Sieland e Dreyman e o amor E após uma breve pausa, continua:que sentem um pelo outrotambém atuam na transformação Pode alguém que ouviu estade Wiesler, que de observador música, digo, que de fato ouviupassivo passa a ser protetor ativo esta música, realmente ser umado casal. pessoa má?”*Voltemos uma cena. Antes de A cena do elevadorchegar em casa, Wiesler se Vemos agora o prédio de Wiesler.encontrava no turno de trabalho Ele chega e entra no elevador, ena central de escuta construída uma bola, quicando, entra atrásno sótão do prédio de Dreyman. dele, seguida por um garoto, que aDreyman recebe uma ligação que agarra e pára ao lado do capitão. Ao informa do suicídio de Jerska, porta fecha.

131O garoto o observa em silêncio. acontecer, responde: “Você é bemWiesler permanece incólume. E estranho. Bolas não têm nome!”3*.então o garoto pergunta: “Você é Wiesler volta a olhar para frente. Omesmo da Stasi?”*. Em um plano elevador chega ao seu andar e eleamericano, vemos os dois lado sai, e a cena termina.a lado no elevador - a diferençade tamanho é bem acentuada. Decupando Gerd WieslerWiesler vira a cabeça para ele e Na central de escuta, na cenao observa em silêncio antes de anterior, a transformação deresponder: “você sequer sabe o Wiesler tornara-se evidente. Carlque é a Stasi?”*. Ao que o garoto E. Scott comenta em seu artigoprontamente responde: “Sim, meu Communist moral corruption andpai disse que são homens maus the redemptive power of art in ‘Theque prendem as pessoas.”* Um lives of others’ que aqui começaprimeiro plano mostra somente o também a renovação moral dorosto de Wiesler. Com a expressão personagem. Ele derrama atépraticamente inalterada, ele mesmo lágrimas ao ouvir a músicaretruca: “Ah é? E qual é o nome...”*, de Dreyman - evidência de quee então pára repentinamente. ele realmente a ouviu. Outro fator fundamental é a fotografia destaApós dois segundos a câmera cena: a câmera, em um movimentomuda para o garoto, que olha semicircular, passa de um ladopara Wiesler (fora de quadro) e do seu rosto para o outro empergunta: “Quem?”*. A câmera um só plano, mostrando todo ovolta para Wiesler, que completa: processo da escuta e seu efeito“...da sua bola? Como se chama nele – o movimento de câmera nosa sua bola?”*. O garoto, sem transporta de um lado seu para operceber o que acabara de outro, e literalmente através de sua transformação.

Na cena do elevador ele é é a vez do garoto assumir certaconfrontado publicamente pela maturidade. Usando o pronomeprimeira vez, e justamente por alemão de tratamento informal du,uma criança, que faz perguntas incomum na relação com pessoasplenamente ingênuas sobre um mais velhas e/ou desconhecidos,tema delicado. A primeira reação ele chama Wiesler de “estranho”,de Wiesler é questioná-lo sobre pois bolas definitivamente nãoo seu conhecimento da Stasi. O têm nome. Tamanha maturidadegaroto responde com a explicação surpreende o capitão, que saisimples e direta de seu pai, rapidamente do elevador emutilizando um vocabulário bastante silêncio, e a cena termina aqui.infantil – o principal é que se tratamde homens maus. A escolha de No roteiro original4 do filme, apalavras vai de encontro com a palavra usada para definir Wieslerfrase de Dreyman na cena anterior. nesta cena não é komisch, mas simWiesler, como espião a serviço lustig. O dicionário Lagenscheidtde um Estado repressor, deveria traduz lustig como “jovial, alegre,descobrir o nome deste homem, divertido”. Já komisch traduz-semas hesita. O garoto, intrigado, como “cômico, esquisito, ridículo,pergunta de quem ele quer saber burlesco”, dando ao diálogo umao nome. Se perguntasse o nome conotação bastante distinta. O finaldo pai do garoto, Wiesler seria da cena também seria diferente:apenas mais um capitão da Stasiem busca de opositores do Estado. “Wiesler sai do elevador, porémPorém ele já se encontra em se vira mais uma vez. [O garoto]plena transformação. Sua crença observa Wiesler e Wiesler ona moral socialista repressora e observa.no papel da Stasi já se encontra GAROTO: Mas você não é umprejudicada neste ponto da homem mau.trama. O que se segue, aponta A porta fecha lentamente.”*Carl E. Scott, é “a [sua] primeiraflexibilização piedosa do código da Wiesler de fato “não é um homemStasi, quando ele opta por evitar mau” – isso já se tornara evidentebuscar informações incriminadoras em seu comportamento. Reforçardo pai de um garoto de seu esta transformação também noprédio, inocentemente reveladas diálogo seria supérfluo. Wiesler épor uma criança”*. Agora, porém, chamado direta e literalmente de “um homem bom” somente mais

133adiante na trama, quando encontra Wiesler passa por esse procesoSieland em um bar, transtornada. de transformação que culmina naWiesler a convence de que própria recusa de sua função nosua carreira é fundada em seu sistema de espionagem da RDA.grande talento como atriz, o que Em uma entrevista à Der Spiegel, oa faz mudar de ideia e não ir ao ator Ulrich Mühe falou sobre esseencontro sexual com o Secretário papel “subversivo” da arte:de Estado, Bruno Hempf, que achantageia com ameaças de tirá-la “Com certeza [a arte subverte]. Edos palcos. Antes de sair do bar e sua força subversiva é tão fortevoltar para casa e para Dreyman, que torna tecnocratas comoSieland diz a Wiesler: “e você é um Wiesler humano. Ele passa a serhomem bom”. confrontado por pensamentos que até então nunca teve, por umaSutilezas de linguagem liberdade que lhe era estranha. NoDiversas críticas sobre o filme o processo, ele passa a desenvolvercaracterizam como “sutil”. Essa sentimentos. A camada de dogmascaracterística é evidente nos marxistas-leninistas nos quaisexemplos já citados, bem como ele tanto acreditava se rompe – eem outras alterações entre roteiro Wiesler pode finalmente entrar nae filme, ou através do trabalho de verdadeira vida”*.edição. Tais mudanças dão força àlinguagem cinematográfica, sem Isso não quer dizer, comoque seja necessário expressá-las aponta Carl E. Scott, que Wieslerverbalmente. O site de cinema romperá completamente com aaustríaco DVD-Forum.at, por destruição moral do regime, muitoexemplo, aponta que “seria fácil pelo contrário. Quando o Muroe simplista demais classificar os de Berlim cai, em 1989, ele sepersonagens do filme como bons encontra em um porão, violandoe maus, agressores e vítimas [...]. cartas com a ajuda de umaFlorian Henckel-Donnersmarck máquina de vapor. O que lhe resta,opta por mais sutileza, após sua subversão pela arte? Aprofundidade e complexidade no cena final do filme.filme e permite até que agressorese vítimas lenta e progressivamente HGW XX/7se desfaçam e se misturem”*. Na cena final do filme vemos Wiesler mais velho, entregando correspondências nas ruas de

Berlim. E então ele se depara NOTAScom o novo livro de Dreyman,entitulado “Sonata do homem 1 A cena se localiza entre 53’12” e 54’16”.bom”, exposto na vitrine de umalivraria. 2 O partido em questão é o SED (Sozialistische EinheitsparteiEle entra e pega uma cópia. Ao Deutschlands, ou Partido Socialistaabri-lo, encontra uma dedicatória Unificado da Alemanha).com agradecimentos de Dreymana ele, HGW XX/7 (o codinome do 3 A frase em sua versão original é: “Ducapitão usado nos registros da bist aber komisch. Bälle haben dochStasi). keinen Namen!” O garoto usa o pronome de tratamento informal du, geralmente“Algo como um sorriso, algo como usado entre amigos e pessoas da mesmaum contentamento, é esboçado idade – nesta situação era de se esperarem seu rosto. Aqui se encontra um que uma criança falando com um adultohomem que, embora danificado, que não conhece usasse o tratamentotem sua própria vida para viver” formal Sie. A palavra komisch, traduzida(Carl E. Scott)*. diretamente como “estranho”, carrega uma conotação tanto de “engraçado”À pergunta do caixa sobre embalar quanto de “bizarro, estranho”. O garotoo livro para presente, Wiesler também usa a palavra típica alemã doch,responde que o livro é para ele. uma partícula que dá ainda mais ênfaseTudo o que ele fizera por Dreyman à negação de que não, as bolas não tême Sieland materializa-se naquilo nome.que ele fez por si mesmo, por suaprópria vida como um homem 4 VON DONNERSMARCK, Florianlivre. “Não, é para mim.” E o filme Henckel. Das Leben der Anderen:acaba. Filmbuch, p. 78. * traduções nossas

novos olhares

Retraçando o acidente napaisagem em Chris Marker Lucas NavarroLucas Navarro é formado em Cinema pela FAAP e desenvolveu, enquanto bolsista da FAPESP,uma pesquisa em torno da obra de Chris Marker.1Sensível aos limites da análise “de Verne galvaniza a leitura. Elevado a fontes”, me ponho a trabalhar uma orientador destinado a dar à juventude escrita em face da obra de Chris francesa do entreguerras o gosto Marker apreciando o fato dessa das grandes expedições através de alinhar-se, muitas vezes, com as leituras ilustrações insólitas – projeto longe e imagens de sua infância. Immemory, de ser inocente nesse período de o CD-Rom ao qual ele confiou certos expansão colonial –, Verne sugere elementos de sua biografia afetivo- uma forma nuclear para mise-en- intelectual, precisa como essas leituras scène de Marker. As viagens desse marcaram os ares da maturidade. último avançam noutros itinerários, Quando seguimos na seção “voyage” dobrando todas as frentes do globo, do mesmo CD, o nome de Jules entre o caminhar sem projeto e o

137rastreio do fluxo e refluxo das da cinematografia de Marker.esperanças revolucionárias. Por No entanto, é da pequena ilhaoutro lado, viaja-se entre um ficcional que aflora um novoinventário de mídias (cinema, paradigma cartográfico a explorar:fotografia, literatura, programação) a viagem no tempo. Se nas obras– antevendo uma série de questões de juventude, como em Dimanchehoje em voga em torno da à Pékin (1956), já se revelava umaideia de “cinema expandido” –, certa tendência em aproximarincorporando o deslocamento em a viagem no tempo ao trabalhoestilo, que altera múltiplos pontos de rememoração, será precisode vista sobre um mesmo objeto, esperar até La jetée (1962) parasem buscar uma verdade para que essa aproximação deixe dealém do próprio deslocamento. ser metafórica e passe a cumprir um idêntico processo. A expediçãoO fascínio totalizante mediante permanente ganha a coloraçãoo qual se apreende o distante, fantástica dos livros de outrora.ganha o oceano documental Isso pode explicar certa fama de

ubiquidade entre seus colegas A cena se repetirá ao final docineastas, sem dizer muito sobre filme, seguindo um princípioa originalidade dessa condição formal próprio ao cineasta, o dedepaysé de perceber as dinâmicas “regressar sempre a”, repetir parada História, em que nunca se melhor ver e avaliar: a imagemestá temporalmente ajustado sabe mais que o olhar que pousaao que lhe é contemporâneo, sobre ela. Justificativas dramáticasmesmo quando se põe no âmago para o replay também não faltam.de um acontecimento. Não O que mais interessa ao cineastaajustado porque posicionado são os esforços feitos pelo heróinarrativamente em um tempo para reencontrar (ou seria recriar?)exterior, em que os desenlaces uma mulher morta a partir dasdaquilo que descreve podem ser lembranças da infância.vistos em perspectiva, extraindolições das situações. Composto quase inteiramente por imagens fixas, o filme se contrapõePor outro lado, falar das imagens à ilusão de continuidade,do presente como imagens do construindo uma estrutura depassado institui a posição do imagens interrompidas. Há, porém, sintonia: lampejos de um filme,2narrador trágico por excelência. fragmentos de uma memória, A principal cena de La Jetée paisagem em ruínas. Em seu livro tem lugar no aeroporto sobre o cinema moderno, Gilles de Orly. 14 imagens. Deleuze tenta mensurar como o A caminhada, as torres período do pós-guerra intensificou,metálicas, a balaustrada dedicada na Europa, os impasses dos artistasà observação do espetáculo, a para submeter em forma “situaçõesmultidão, o sol fixo, a rampa, os às quais não sabiam mais reagir,sons e as vozes, o ritual familiar em espaços que não sabiam maisno domingo: todo dispositivo descrever”.cinematográfico montado.Dentro dele, um evento visual A circulação de imagensé apresentado ao olhar: o rosto sobreviventes da shoah abriu umade uma mulher ao fundo da ferida irreversível na cultura visualplataforma, seu grito fixado no do século XX, produzindo umar, um corpo que cai, uma fratura déficit simbólico análogo à afasiavisual. 14 imagens e uma não- dos combatentes que voltaramimagem. do front, descrita por Walter

139Benjamin. Assim, uma exigência Atravessada a aridez do presenteparadoxal começa a se desenhar: do filme, o narrador retomatransmitir imagens reconhecendo a a tal “imagem da felicidade”,impossibilidade da representação acrescentando, dessa vez, umdaquilo que, justamente, as plano feito logo em seguida dasimagens vêm transmitir. Essa mesmas crianças, aproximadastensão de uma forma que está no por um zoom que treme com alimite de desempenhar sua função, força do vento: tudo que ele haviade um sujeito que tomou para si a cortado para manter o prumo dostarefa de estabelecer o acordo e a instantes capturados é julgadoharmonia, mas chega tarde demais, pela maneira como decidiuapontam para uma tragicidade mostrar. Agora ele pode associarno interior da própria forma. Não essa imagem, implicar nela oexiste paisagem que recubra a peso da História. Um contraplano,topografia do horror, encontra-la é realizado cinco anos depois: a Islândia coberta pelas cinzas do3perder-se necessariamente. vulcão despertado: “e foi como se Em maio de 1983 Marker todo o ano de 1965 tivesse sido exibe Sans Soleil em Paris. coberto de cinzas”, conclui. Já não No início do filme, uma somos inocentes. Ou melhor, a voz nos apresenta uma inocência deixa de ser um recursoimagem de três crianças sob o sol, para traduzir as contradições desubindo a falésia contra o vento. uma subjetividade constrangidaEla nos informa que a imagem fora no momento de nomeação. Pois étomada na Islândia em 1965 e que, justamente a visão desses impassespara o viajante que a filmou, se nas formas de olhar que tornam atratava da imagem da felicidade, obra de Marker uma obra críticanão conseguindo associá-la a de resistência, que nunca cumprenenhuma outra imagem. O filme a promessa de redenção, poisavança. Um narrador prenhe sabe que a capacidade de levar odas memórias do futuro observa desespero ao extremo é a maneirae reflete sobre um presente privilegiada de forçar o caminhocondenado a repetir os massacres para o aparecimento de novasdo passado, reconhecendo o possibilidades para a linguagem, ohorror como único aliado da desejo e a ação.História e, por isso mesmo,produzindo um imaginário quesofre de amnésia do futuro.



141 O espírito e os autômatos em O filho de Joseph, de Eugène Green João NóbregaJoão Victor Nóbrega é estudante de cinema na FAAP, desenvolve o projeto de TCC UmaLonga Noite Até Você Voltar e fez iniciação científica sobre a Nostalgia na Obra de WesAnderson.OFilho de Joseph (2016), O filme apresenta Vincent (Victor de Eugène Green, é uma Ezenfis), um adolescente que vive em parábola farsesca, voltada Paris com sua mãe, Marie (Natacha à união entre Céu e Terra, Régnier), que, embora seja doce eentre Sagrado e Profano. O filme traz afetuosa, recusa-lhe informações sobreuma Sagrada Família relida de maneira o pai. Vincent é atormentado por essaostensivamente mundana, e cuja união ausência inexplicável, tanto quanto porse dá menos pela vontade do pai, e uma imagem que parece condensarmais pela rebelião adolescente do boa parte de seu tormento: o quadro Ofilho. Ainda que o filho tenha dito ouvir Sacrifício de Isaac, de Caravaggio. Estea voz de Deus, nada aqui se compara quadro retrata o momento em que oao milagre do nascimento de Cristo, anjo impede que Abraão, atendendonascido de uma Virgem.

ao pedido de Deus, sacrifique seu Tudo isso colabora para o climafilho Isaac no monte Moirá. Vincent, farsesco: há qualquer coisa deentão, empreende uma pequena patético e, por isso mesmo, dejornada para achar seu pai. extremamente humano, em observar, por tanto tempo, essesFacilmente o garoto descobre que atores que soam como autômatosseu pai é Oscar Pormenor (Mathieu inspirados por um sopro de vidaAmalric), um editor de livros repentino. O filme como umegocêntrico e egoísta, que, apesar todo, na realidade, soa um poucodo nome, despreza os detalhes. assim, como um grande autômato,Sendo que, para Oscar, o maior inspirado por um sopro de vidados detalhes é a família. Buscando repentino. É como se, temerososvingança, Vincent prende e de logo perder a vida que lhes foi,amordaça Oscar para matá-lo, mas tão inesperadamente, concedida,desiste de seu plano na última os autômatos precisassem dizerhora. Fugindo de seu quase crime, o que pensam, da forma maiso garoto conhece Joseph, o irmão imediata e sincera possível. Mesmohumilde e generoso de Oscar. E Oscar, em seu cinismo absoluto, éaqui as coisas começam a mudar. irremediavelmente sincero quanto a suas motivações últimas.Fazendo uso de mise-en-scènemuito particular, Eugène Green Walter Benjamin, filósofo alemão,estabelece as regras de seu disse, em suas Teses Sobre Ouniverso que, mesmo não sendo Conceito de História, que oexatamente paralelo ou mesmo materialismo dialético é como umapartado do nosso, mostra-se autômato enxadrista que, para seratravés de características muito vitorioso, deveria ser comandadopróprias. A dicção dos atores pelo espírito da Teologia. Se bemfica entre a declamação e a que em circunstâncias bastantecasualidade, e a câmera, sobretudo diferentes, Eugène Green parecedurante os diálogos, coloca-se pensar o mesmo de seus filmes. Eleentre os interlocutores, inquirindo próprio diz ter pensado primeiroos personagens frontalmente, de na trama do garoto apartado demodo que temos muito tempo seu pai, para depois acrescentar aspara examinar a atuação artificiosa, camadas teológicas, camadas semmas ao mesmo tempo sincera, de as quais o produto final, de fato,cada ator. ficaria bastante esvaziado.

143A vingança que Vincent tenta levar mas sim de entender o fenômenoa cabo, ao amarrar e amordaçar ótico como a própria manifestaçãoOscar, para então ameaça-lo com divina: é a ciência movida pelouma faca, é, na realidade, uma espírito.reencenação do sacrifício de Isaac,porém com as partes invertidas, Diferentemente da Sagradaisto é, aqui seria o filho a sacrificar Família original, porém, a famíliao pai. Assim como ocorre com deste filme não é unida pelaAbraão, o sacrifício protagonizado vontade de um Deus, de um Paipelo garoto é interrompido por Todo Poderoso e seus milagres,uma intervenção divina. Mas, mas pela iniciativa de um filhocomo o jogo do diretor é tornar desajustado, internamentemundano todo o sagrado, não cindido, e que vê em Joseph umase vê surgir nenhum anjo. O que redenção possível para seu larimpede Vincent de executar sua fragmentado. Tudo isso, comovingança é um reflexo do sol com sempre em Green, é mediado pelaaparente vida própria. Embora o alta cultura europeia (a réplica doreflexo pudesse apenas um efeito quadro de Caravaggio no quadroótico, o fenômeno acaba por de Vincent, as estátuas na praça,exercer uma força mística sobre o a visita ao Louvre, etc.). O impulsorapaz. humanista, e de preservação de um patrimônio, apresentadoMas vale menos pensar, em O pelo diretor, fica claro mais umaFilho de Joseph, que esse seria vez. Aquele reencantamento doapenas um efeito ótico, este mundo, inclusive, só é acessívelefeito ótico acaba por ser a apela Arte.própria manifestação divina: éGreen buscando reencantar um É sempre através dos quadros quemundo desencantado. Isso não o adolescente acessa a Teologiasignifica, contudo, voltar a ser que o moverá, que o levará a seuingênuo, a trajetória de Vincent próximo passo crucial. De fato,tem justamente a ver com perder Arte e Teologia aqui quase sea ingenuidade inicial, atravessar confundem, ambas constituemlimites, e voltar do lado de lá mais o espírito que deverá animar ospleno. Não se trata, portanto, de autômatos. Assim, se a Arte nãocrer que o reflexo é uma entidade é responsável por revoluçõesdivina e não um fenômeno ótico, concretas, ela se mostra capaz de

revoluções silenciosas, no interior É assim que o diretor, que nãodos seres. se furta a transformar a fuga de José e Maria para o Egito numaEntretanto, o diretor, e também perseguição policial, une Sagradoroteirista, não deixa de opor-se e Profano numa narrativa farsesca,ao grand monde responsável propondo o reencantamento depor criar uma paródia malfeita um mundo que se secularizou emde alta cultura. Esse é o caso do tal medida, que não lhe restariapai biológico de Vincent, Oscar, mais nada além da supressãoe de todo seu círculo social, constante de todos os prazeres.com destaque para a leviana Seria preciso, então, que oscrítica literária Violette (Maria espíritos tomassem o controle dosde Medeiros), a caricatura mais autômatos que nos tornamos.acabada de um mercado de arteincapaz de reconhecer valoreshistóricos, ou de atribuir os devidospesos e relevância àquilo quecomercializa.Por excelência, esse é o mundocompletamente desencantado, ummundo afundado em questões semimportância, e regido pelo prazerimediato. A este mundo Green vaiopor a família que Vincent constróipelas próprias mãos, quando unesua doce mãe Marie ao solícitoJoseph. O casal que daí surge émarcado, justamente, por aquelabondade exaltada na Bíblia: umabondade que não se sabe boa, quenão faz alarde de si, que enfrentaas adversidades sem se abalar, eque, por isso mesmo, torna-se maisadmirável.

145 Alberto Cavalcanti, um produtor de cinema no Brasil Tania Arrais de CamposTania Arrais de Campos, Mestranda em Multimeios no Programa de Pós Graduação doInstituto de Artes, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), produziu e montou ocurta-metragem documental Bambas (2017).Buscando pelo nome de Alberto Inglaterra, onde seu trabalho enquanto Cavalcanti, encontra-se a produtor se sobressai, revelando tanta figura de um brasileiro que foi riqueza e comprometimento com a diretor, roteirista, cenógrafo e função quanto naquela de direção. produtor cinematográfico. A análise Apesar de desfrutar de uma situação de sua trajetória no cinema se revela estável e bem sucedida no meio bastante rica e diversa. Participou cinematográfico inglês, foi justamente da chamada “primeira vanguarda para assumir o cargo de Produtor-Geral francesa”, sobretudo como diretor, da Companhia Cinematográfica Vera nos anos 1920, e mais tarde, nos Cruz, que Alberto Cavalcanti retornava anos 1930 e 1940, trabalhou na ao Brasil, em 1949.

Na ocasião de uma série de depoimento revela a forma queconferências sobre cinema que Cavalcanti encarava o cinema e aele deu no Museu de Arte de São indústria do filme, e como tentouPaulo, os membros da burguesia articular seus conhecimentos napaulistana, Franco Zampari e Vera Cruz.Francisco Matarazzo Sobrinho lhepropuseram um contrato de quatro No primeiro encontro entreanos no novo empreendimento Cavalcanti e Franco Zampari,industrial de cinema, com o qual acompanhado de Adolfo Celi eCavalcanti concordou. No entanto, Ruggero Jacobbi, estes levaram-antes de completar o prazo o no para conhecer os terrenoscontrato acabou sendo rompido, onde se instalariam os estúdiosainda em 1953. Se por um lado da companhia. Apesar de osdemonstrava grande domínio de considerar homens alheiossuas atribuições como produtor ao cinema, do ponto de vistapor sua trajetória consolidada industrial, Cavalcanti acabouanteriormente na Europa, por aceitando o cargo de Produtor-outro lado, com sua saída da Vera Geral, acreditando que teria cartaCruz e o fracasso da mesma que branca para desenvolver sualogo se revelou, diversas questões função. Entretanto, a experiênciaforam levantadas em torno da contada por ele é permeadacompetência de Cavalcanti para a pela constante interferência derealização de seus trabalhos. Franco Zampari naquelas que eram atribuições suas. Enquanto oEm Burguesia e cinema: o Produtor-Geral se dedicava a trazercaso Vera Cruz, livro de Maria os técnicos mais bem qualificadosRita Galvão que trata de tal do exterior para compor o quadroempreendimento cinematográfico, geral da companhia, por exemplo,há um depoimento de Alberto Franco Zampari contratava oCavalcanti. O produtor discorre próprio irmão, Carlo Zampari,sobre a experiência, desde enquanto diretor de produção parao momento da proposta de os filmes, mas logo este revelaracontrato até o seu rompimento. não ter competência alguma paraÉ evidente que a percepção que desenvolver suas funções.tem sobre tudo que passou sofreuimpacto dos fatos ali vividos, mas Em defesa do irmão, Francoo pensamento expresso em tal Zampari dizia que ele havia sido

147comandante da Marinha de Guerraitaliana, com o que Cavalcantise indignava, pois isso não lhetornava um bom produtor defilmes. Enquanto elemento deligação entre a administração daempresa e as equipes técnicasdos filmes, o Produtor-Gerallidava com a extrema falta deplanejamento que acometia suasproduções e interferia em seusresultados, no entanto, mantinha-se comprometido com suasresponsabilidades.Através de suas estratégias paraa consolidação das equipestécnicas para filmagem, alémda flexibilidade com que lidavacom os imprevistos e com ainsubordinação à hierarquia nacompanhia, Cavalcanti pareciapensar na formação, a longoprazo, de um cinema brasileiroindustrial de fato. Tanto queinstruíra Adolfo Celi em toda afilmagem de seu primeiro filme,Caiçara (1949), acreditando queele realizaria sua obra seguinte deforma independente. Ao tentardiscutir seu próximo trabalho,todavia, Celi dizia não querer maisdirigir filmes, mas voltar ao teatro.Cavalcanti ficaria extremamentedecepcionado com a falta deresponsabilidade do diretor paracom a sua função e a continuidadede seus trabalhos na Vera Cruz.

Em 1953, após o rompimento um militar ou comandante, ao quede seu contrato com a Vera podemos relacionar à discordânciaCruz e com um profundo pesar em relação ao irmão de Francosobre a impossibilidade em dar Zampari que atuava como diretorsequência aos seus projetos de produção, qualificado por jáfílmicos, Cavalcanti escreveu ter sido comandante da Marinha.seu livro Filme e Realidade, no Apesar disso, ao discorrer sobrequal discute o cinema em suas estes postos chaves, Cavalcantivariadas épocas, técnicas e formas. revela todo seu conhecimentoEm determinado capítulo sobre sobre o fazer cinematográfico eos “Postos Chaves no Filme de demonstra domínio, ao menosFicção”, ele ressalta a direção teórico, daquela que fora suae a produção, apresentando função na Companhia Vera Cruz,as principais atribuições de permitindo questionamentoscada função, usando, inclusive, acerca dos erros e acertos queexperiências próprias de trabalho tomaram lugar na empresa e acomo exemplo. quem estes se atribuem.Apesar de não fazer referênciadireta à Vera Cruz, comentacasos do cinema brasileiro noqual a ligação é evidente. Emcerto momento, ao falar sobre acapacitação de um produtor, dizque não bastava ter um título, ser


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