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OS PORTOALEGRÍADAS

Published by BIBLIOTECA SÉRGIO CAPPARELLI, 2021-05-13 22:22:07

Description: OS PORTOALEGRÍADAS: uma fábula para a cidade.

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OS PORTOALEGRÍADAS uma fábula para a cidade CLÁUDIO LEVITAN

Copyright © 2020, Cláudio Levitan CLÁUDIO LEVITAN Editor: Roberto Schmitt-Prym OS Projeto gráfico: Lucas Levitan PORTOALEGRÍADAS Todos os direitos desta edição reservados. uma fábula para a cidade Rua Marquês do Pombal, 788/204 90540-000, Porto Alegre, RS Fones: (51) 3779.5784 - 99491.3223 www.bestiario.com.br L664p Levitan, Cláudio Os portoalegríadas - uma fábula para a cidade / Cláudio Levitan. - Porto Alegre, RS : Class, 2020. 94 p. : il. ; 21cm x 25cm. ISBN: 978-85-94187-96-3 1. Literatura infanto-juvenil. I. Título. CDD 028.5

A CIDADE E O ARTISTA Luís Augusto Fischer Quando uma cidade tem um artista por perto, o melhor a fazer é prestar aten- ção nele, em sua figura, no que ele diz. Tem gente que até foge dele, porque seu aspecto pode ser meio estranho (artistas muitas vezes se vestem de modo raro, têm cabelos esquisitos, inventam idéias espantosas) e porque suas palavras con- tam coisas diferentes do comum (artistas inventam mundos e rimas, imagens e sons, ritmos e vidas). Mas o mais certo é prestar atenção a ele, porque nessa apa- rente maluquice tem muita profundidade. Porque, no fim das contas, quase sempre o artista tem razão — mesmo que essa razão demore para aparecer claramente para todos. Sua criatividade e seu talento o conduzem a percepções delicadas sobre coisas que em geral nós vemos apenas em sua brutalidade, em sua cotidiana banalidade. Nós vemos pedra, o artis- ta vê ovo; nós ouvimos ruído simples, o artista ouve a sinfonia da vida. Se o artista se chamar Cláudio Levitan e a cidade for Porto Alegre, bem, aí a mis- tura é perfeita. Ele faz já muito tempo que inventa canções, narrativas, persona- gens, imagens, poesias, sempre nos fazendo ver melhor o que passava batido pela nossa atenção fraca. Ver melhor quer dizer entender melhor, e é isso que o Levitan faz conosco: ele conta uma história que parece delirante, a gente vai ver e percebe que ficou mais inteligente, mais capaz de compreender o mundo. Aqui, neste belo livro que o leitor tem agora na mão, A cidade enfeitiçada, ele ao mesmo tempo inventa personagens — a sofrida e linda Imagnália, o atormenta- do e corajoso Nenhures — e comenta a vida real e concreta, esta que a gente vive e nem percebe que vive, esta da cidade que não presta a devida atenção à água generosa que tem ao lado de casa e que era para ser limpa e de todos. Tudo rimado e com ritmo, que deve ficar bem interessante de ler em voz alta, para se divertir e, mais uma vez, para despertar a consciência. Se eu fosse tu, ficaria aqui, bem pertinho desse livro, só prestando atenção. Mesmo que em alguma parte esta narrativa pareça coisa de maluco (é, pensando bem, é mesmo coisa de maluco), pode crer que aqui o que mais tem é sabedoria, pura e sublime sabedoria. Cláudio Levitan é o artista da nossa aldeia.

Antes de começar o relato, Para que fique claro, de fato, Cabe avisar ao nobre leitor Tratar-se de uma história de amor Entre Imagnália, deusa da antiguidade, e Nenhures, um jovem da atualidade. Como que alguém de um tempo atrás Encontra outro de um tempo depois? Isso não se explica, mas muito nos apraz O fato do amor ser assim, ligar os dois Com sua flecha mística como um laço Unindo corações solitários num só passo. Por isso, torna-se lenda, fábula, mito, Tudo o que não se entende pela razão E surge, de súbito, sem seguir nenhum rito Por dentro das pessoas em forma de paixão.

Quando os sessenta casais Partiram de uma pequena ilha Solta no meio do oceano E, como pombas dos pombais Lançaram-se num vazio sem trilha, Ali, nossa história abriu o pano. Vagaram com o vigor dos amantes Por estarem, assim, com seus pares, Não sentiam solidão em terras distantes Sonhavam com filhos enchendo os lares. Fronteiras confundiam-se nos horizontes E eles seguiam sem esmorecer o brio Enfrentando monstros, matas e montes, Até chegarem, enfim, às margens do rio.

À beira desse rio de água difusa Viviam, no meio de lindas paisagens, Os índios e, entre eles, uma musa, Imagnália, princesa dessas paragens. Índia de lindos olhos puxados, Dois riscos na pele morena, Mergulhava o corpo nos azulados Matizes do céu que o rio drena. Lavava com capricho na luz matutina Os restos que sobravam dos sonhos Essas imagens do amor de menina Escorriam feito prantos tristonhos. Ela divertia-se pintando sua face Usando cores do arco íris no rio Que o sol despejava com classe Enquanto esvaía-se o dia por um fio. Copiava aqueles vês que via no azul Dos pássaros, em bandos, indo pro Sul.

Ninguém se atrevia a perturbar Porém, a jovem musa tinha um dever, Esses momentos de terna paixão Como toda princesa de uma história, Quando seus gestos soltos no ar Tornavam transparente a sua visão. Cuidar da terra virgem e proteger E na leveza da espera, no calor, Seu povo de uma invasão inglória. Ela vislumbraria Nenhures vindo Para viver a epifania desse amor, Para isso, ela trazia com a luz Como um príncipe meigo e lindo. Dos seus delicados olhos divinos Que a tudo com sua graça reluz, Nenhures, um jovem qualquer, Encanto às cores em tons cristalinos. Tornar-se-ia Homem só num olhar Essa claridade intensa, pura magia, Ao descobrir nela a sua mulher, Causava nos forasteiros ambiciosos Aquela que veio para o iluminar. Uma estranha mudança que fazia Quererem ser cidadãos virtuosos. Passavam a gostar muito dessa terra Como sendo a melhor das amantes Em troca de invasão ou de guerra, Tornavam-se seus novos habitantes.

Imagnália, moça tão inexperiente Desse novo mundo, jovem e frugal, Não conhecia a ambição de gente Como os Homens de Cimento e Cal. Distraída, ensurdecida pelos planos, Abafada pela alegria dos jovens casais Não ouviu os insensíveis e insanos Passos esmagando os motivos da paz.

Essa gente era cega por lucro e tesouro. Soterravam campos selvagens com insensibilidade Escravizavam homens ao redor do mundo, Dos seus pés de paralelepípedos, pesados e fortes, Vendendo-os como objetos que viravam ouro Deixando em seus rastros estradas, vilas e cidades Nos portos e em todo o tipo de lugar imundo. Imagnália infeliz não conseguiu sensibilizar E jogando os indígenas na ausência das mortes. Olhos que só enxergavam fortuna e fama E espalhavam por onde iam, em todo o lugar, Sofrimento, medo, torturas, corrupção e lama. Mesmo ferido tragicamente, o último guerreiro Arremessou a lança da Revolta sobre a pampa Com coragem e força de um gesto derradeiro, Fez sobrevoar sobre as cabeças como lampa A sua mensagem carregada de indignação Lançada em voou pro alto num gesto perfeito Veio a cravar-se na pedra, com toda precisão Prendendo o amor de Imagnália em seu peito.

Naquele momento, o tempo parou para ela. Todas cores que pintaram o rosto da menina Foram derramando-se no rio feito aquarela. Em seu pranto silencioso, chorava sua sina. As cores foram devolvendo ao dia, No meio daquele lamento dolorido, A linda maquiagem que deu alegria E encheu seu fino rosto de colorido. E, ainda hoje, belos pôr do sol aparecem À beira do rio que se esparrama pela baía É Imagnália com suas lágrimas que descem Da face para espelhar sua dor no fim do dia.

Os sessenta casais, vendo a indiazinha Conta-se, sem explicação, que tudo mudou Paralisada nas pedras do rio, indefesa, Não se sabe onde procurar. Em que praça? Tentaram escondê-la da força daninha Fala-se na Alto da Bronze, tempo do bonde, Num abrigo, protegendo-a da natureza. Escadaria das Flores, Ponta da Cadeia. A cidade não parou de crescer nenhum dia Fica a dúvida, porque a cidade esconde Braços de cimento foram tomando conta, Essa princesa singular, por onde passeia? Gerações vieram e a memória ficou vazia Não se sabe muito, se sabe uma ponta, Quase nada, sobre o lugar em que ficou Parada, o amor juvenil guardado com graça.

Toda essa lenda estaria perdida, não fosse a bruxa “A cidade crescerá e crescerá sempre sem parar A sussurrá-la baixinho, em assobios, pelos barbantes, Destruindo tudo, inclusive, seus próprios moradores. Ao pé dos ouvidos dos meninos que ela tanto puxa, Morrerão peixes, pássaros, bichos da terra e do ar, Quando voa pendurada pelas pandorgas errantes. Nem a água do rio sobreviverá a tantos horrores! Procura um Nenhures para Imagnália ter seu par. Dizem que é a alma penada de uma índia feiticeira, E a cegueira dos Homens de Cimento e Cal Que assistiu quando a flecha na pedra veio a cravar, Se espalhará e tomará conta de cada cidadão E com muito rigor profetizou uma praga traiçoeira: Ninguém mais se importará com todo o mal Que ganância e soberba causam ao coração”.

Esta maldição num gesto se desfaria, O feitiço se desfará em minutos Assim é com todo feitiço que se presa, Tempo que Nenhures dispõe Nenhures vencendo a cegueira bastaria Para colher, de vez, os frutos Para descobrir Imagnália em sua beleza Que essa escolha lhe impõe: Perdida em algum lugar dessa cidade Dentro de si mesma, como num casulo Uma princesa, que no desatino, Feito borboleta, o amor na maturidade Revelará sua linda fisionomia E disposto a seguir o seu destino Para desfraldar as asas no seu pulo. Enfrentará tudo com sabedoria Asas que crescem com calma Se livrará da prisão do egoísmo, Como pétalas de uma flor rara Dos loucos labirintos da idolatria Decidido a doar-se sem eufemismo Ou bandeiras da revolta d’alma, A esse amor com plena alegria. Nas costas dessa moça tão cara.

Antes de partir, seguindo a direção do vento, Assim nesse dia, que parece tão especial, Sussurra a bruxa para Nenhures no ouvido: Ele entra em casa com um olhar diferente Como se outra alma o conduzisse e, ao final, -“Pensa que é o fim do sofrimento? Noutra entidade o transformasse, de repente. Que foi sorte ter sido o escolhido? E como vindo de dentro de si com humildade, Uma luz cálida faz seu olhar ser o da criança, Pois você está muito enganado! Os móveis e tudo que aparecem na claridade Ainda terá batalhas pela frente, Se cobrem, então, do ar quente da esperança. Será a todo momento pressionado Surgem, num turbilhão, antigas imagens A desistir, a ficar preso em corrente, Escravo da rotina, a nunca mudar. Que passam voando em sua memória. Precisa estar atento aos seus atos, Pensa:- “Posso, através dessas miragens, A usar de muito rigor para julgar descobrir os segredos da minha história E de compaixão pra ser exato. Precisa ser justo, sim, e destemido. E, se alcançar alguns méritos certos Não foi escolha sua, ser o escolhido!” Os mundos ocultos serão abertos”.

“— Onde andou com essa chuva, meu filho? Desse jeito se resfria. Senta, toma café, come uma uva, Não faça sujeira, busque na pia Os seus talheres e seu prato Só faltava você para o jantar. Cuida do tapete de fino trato Que acabamos de comprar. ‘’Assisto ao noticiário, coisa pesada, Parece o fim do mundo, nem te digo! Trabalhei muito e estou cansada Depois que terminar falo contigo. Espero de você alguma boa nova Não aguento mais tanta prova!”

Nenhures está confuso, será que conta E saiu dizendo: “— Pretendo logo partir! O que uma voz lhe dissera em segredo? Quero ser um homem de verdade! Que Imagnália cresce e estará pronta Descobri nessa mulher o real elixir Para levá-lo junto para longe do medo, O que me fará viver na felicidade. Nosso amor empurra-me para frente Viver num paraíso como Adão e Eva Me faz despertar, é pura adrenalina! E assim sai falando seus pensamentos Acende a chama do prazer ardente. Sobre as palavras da mãe e se enleva, Porque confia nela, nos sentimentos. Me faz ver o mundo com outra retina!” A mãe se atrapalha toda e até Derrama no tapete o seu café.

“— Sabia que isso logo aconteceria, Estava escrito em algum lugar, Que você, meu filho, um dia seria Uma estrela importante a brilhar! E quando você viesse a mim pra dizer Que tinha uma missão difícil a cumprir Eu estaria pronta para me desfazer Em mil pedaços só para contribuir! Agora vai, segue seu rumo, sua sina, E seja o noivo dessa rainha-divina!”

A mãe se lava em lágrimas, se derrete em prantos. Treme a casa, paredes gemem, chão mexe de vez, Cortinas, toalhas, panos se misturam aos mantos, Escorrem como tinta, pintam o tabuleiro de xadrez. A casa toda se desmorona, vira escombros Da sala que pulsa, se transforma, se definha Surge uma figura imponente, que só tem ombros, D’onde sai, peça importante do jogo, a Rainha.

Rigorosa no tom, comenta com o Rei: O Rei se move lento e com desenvoltura. “— Eis aí nosso filho, que desde menino, Sabe que a pressa pode causar muito dano. Se mostrava pronto para ser, lhe avisei, Fala, pausadamente, com voz firme e dura Alguém a mudar o mundo, um paladino, Para ele descobrir o segredo do engano: Não algo sem importância, peão à toa, “— Calma, o mundo não está perdido, Mas um justo, sábio, uma rica pessoa! Só está a todo instante sendo construído. Cuida para que ele não perca o caminho, Parece que estamos num jogo de xadrez Ensine-o a cobrir a sabedoria com carinho!” Onde cada peça joga a vida na sua vez Com o medo de errar e perder tudo “Perdi minha chance, como eu mudo?” Se desespera sendo vítima do destino Como se estivesse escrito em pano fino: “Viverá para sempre num buraco fundo” Mas não é assim, não em nosso mundo, Você terá sempre outra chance basta Buscar em você e em sua natureza vasta Aquela centelha de certeza que ilumina Tua alma no despertar da hora matutina!”

Os Bispos chegam, sorrateiro “Sabemos dos mais fracos, da opressão Cada um, de um canto da sala: Que a miséria causa à humanidade. “— Se seguir, passo a passo, inteiro, Louvamos, sim, a sua preocupação Os conselhos que o mais sábio fala, Nós também já tivemos a sua idade Buscar nos livros todo conhecimento Fomos jovens e sofremos de morte Compartilhando com amigos a leitura Por todos! Mas o tempo nos ajudou E com um mestre no aconselhamento a encarar com frieza e bem tal sorte Para desvendar nas letras a sua cura. E hoje não sofremos tanto, já passou. Assim, sem sentir, subirá o alto pico Aprendemos que a mudança virá Na escada da vida reservada ao justo Ao seu tempo, quando a essência, E, mesmo sem posses, se sentirá rico O que na alma de cada pessoa há, Corrigindo o mundo a qualquer custo. Brotar sem sofrimento nem violência.”

Sem tempo para pensar dos Bispos os versos, “O forte comendo o mais fraco, As Torres avançam como um exército de pau, O bobo sendo colocado no saco. Carimbando com seus passos ritmos diversos Quando se é jovem, se é justiceiro, E entoando feito tiros de metralhadoras do mal. Depois, com o tempo, por dinheiro, Se muda muito, fica-se esperto, De início, soltam uma sonora gargalhada E começam a falar com soberba confiança: O errado passa a estar certo Vale tudo para se vencer na vida, “— Ha!Ha!Ha! Que palhaçada! Até nos outros pisotear a ferida. Ver quando um peão avança, Mas cuidado com o corte De tanto balançar a pança Que faz o fio da faca Quase morremos de rir desse ardil Por ele entra a morte E sai a vida fina e fraca Essa maneira de ser tão pueril. Preste atenção! É assim que se faz, Será esse o seu destino A melhor defesa é o ataque, rapaz! Caso não se comporte?”

O ritmo marcado das Torres sofre descompasso. Nenhures entende, em meio a um relincho, De repente, sobrepõem-se a esse o dos Cavalos O alerta pra que escape o quanto antes, Que pulam tentando saltos, mas pesam como aço, Senão acontecerá o mesmo com ele, Nenhures se assusta, parece que vão amassá-lo. Suas pernas virarão um mero suporte, Seu movimento se resumirá aquele Figuras estranhas, cabeça e longa cabeleira, Que tanto temia e lhe parecerá a morte Porém sem corpos, sem patas nem dorso, Repetir sempre a mesma jogada que fez Sustentadas sobre os suportes de madeira. Prendendo-se a uma enfadonha rotina Avançam pouco apesar de tamanho esforço. Desse velho e frio tabuleiro de xadrez Como ele, estão presos também nesse nicho Jogar, sempre jogar, será a sua sina. E têm vontade de fugir a um lugar distante

Nenhures fica nervoso, Pois o tempo não pára, Corre e ele vai e esbarra Tudo fica muito dificultoso. Nisso, ele percebe no salto dos cavalos a sua chance Joga-se sobre o pescoço Impulsionando-o para o alto. Usa suas pernas no lance Botando assim todo esforço Pra frente, contra a vidraça Saltam os dois pro outro lado Fazendo grande arruaça Deixando vidro espatifado Por todo chão da calçada.

A rua vazia está em paz. Olha a cara do Cavalo, Que ao seu lado jaz Estendido junto ao valo. Um leve sorriso na boca Da peça d’um jogo perdido. Ele também sorri pela louca Atitude, por ter se decidido! Agradável prazer de liberdade Corre pelo seu corpo, embora, Teme por qualquer fatalidade. O silêncio é total e dá para ouvir Um ruído estridente de máquina Que parece muito longe dali Pois é baixo o som traquina. Porém, aumenta velozmente Começa um frio no estômago Algo se aproxima rapidamente Não tem tempo, está no âmago Do perigo! Tem que sair antes, Correr por entre atalhos abertos Por que terríveis e horripilantes Dentes metálicos semi-cobertos Por lábios da boca que odeia a vida Vem mastigá-lo apagando a memória E espalhando uma tristeza dolorida No coração dos homens sem história.

Corre a não poder mais. Ofegante, seu corpo todo sua, Nisso, uma ponta de aço, záz! Surge firme na esquina da rua Aos poucos, vai aparecendo Aquela terrível máquina da morte. O monstro de metal se movendo Vai rasgando a noite feito corte À procura de qualquer vulto perdido Que vague pela madrugada.

Tritura a mente do enlouquecido Tortura a vítima desamparada Arranca das vísceras do cidadão Confissões que nem ele sabia. Destrói a essência humana em vão Com uma fome que nada sacia.

A fera vem em sua direção. Na sombra, ele, figura escondida, Palpita na boca o seu coração, Engole qualquer vestígio de vida Fica em si, ostra enclausurada, Imóvel, como um inseto morto. O monstro passa rente a calçada Sem notá-lo e dirige-se ao porto. Roça a ponta dos seus sapatos.

Gira de novo em noventa graus E desaparece atrás dos matos. Nenhures corre, sobe degraus Direção oposta a do inimigo Vai em busca de lugar seguro Onde possa encontrar um amigo. Talvez ache naquele bar escuro. Amigos estão junto às mesas Como sempre, fazendo festa, Conversando, cheias cabeças De planos e sonhos. À testa, Papo Sério e Conversa Mole, Junto Mexerico e Algazarra Viram num circo a cada gole O bar, que é motivo de farra.

“ALÔ AMIGO! ENTRA, SENTA Aí, Nenhures se junta a folia E TOMA CONOSCO UMA CERVEJA. Mexerico, vem cochichando, BONS TEMPOS O TRAZEM AQUI Pergunta o porquê da correria? VOCÊ?! QUEM DIRIA, ORA VEJA!” Conversa Mole, desconversando, Logo anuncia o motivo da alegria: “— A noite, meus companheiros, Que ainda parece uma criança, Sempre traz uns velhos parceiros Para junto da nossa vizinhança!”

Nisso, Papo Sério logo interveio “Descobri que existe uma voz confusa E indaga sobre a palidez de Nenhures: A nos perseguir e dizer ao pé do ouvido, Fatos estranhos da história de uma musa, “— Fale, amigo, porque você veio? Uma rainha, presa em um canto escondido, Desembuche, desabafe, apure-se!” Esperando por mim, não é brincadeira, Ele resolve falar tudo o que lhe pareça: Se eu a encontrar, se quebrará a magia “- Tenho vivido coisas que não consigo E estaremos todos livres dessa cegueira entender nem organizá-las na cabeça. Dessa falta total de sentido que nos guia. Nem vocês vão acreditar no que digo. Preciso estar disposto a me transformar No homem de verdade e não na fantasia. Ter mais paixão pela natureza desse lugar Acarinhar a princesa que vem ao fim do dia Iluminar o mundo com amor incondicional E vivermos juntos numa harmonia total”

Algazarra pula nas mesas “— Ora, ora, ora, querendo ir embora! A falar pelos cotovelos Bem que fazes, se fosse você, não iria! Com suas três cabeças Tem medo de assumir responsabilidades? E um monte de novelos Aqui é o lugar e fim de papo, sem ironia! Duvido que consiga vencer grandes cidades Dizendo e se contradizendo, Com a rotina de triturar pobres emigrantes! Como se fosse da sua natureza As nossas chances estão lá fora, distantes! Não perder e já estar perdendo: Aqui só tem gente atrasada, gente tacanha, Porque não vou? Por pura preguiça e fim! Não vou deixar amigos por uma estranha! Preciso tanto deles como eles de mim!”

“— Preste atenção, por favor, amigo! Imagnália cresce, enquanto fico aqui Ouvindo tanto conselho ambíguo Isso me atrasa, preciso muito ir Vim avisá-los: somos uma fantasia!” Diz isso e sai em tremenda correria. “— Ei, espera! Explica a sua fala! O que quis dizer, assim, “somos” Uma fantasia ou coisa que o valha! Afinal como você sabe o que fomos?”

Sente a sua chance nos ventos secos, Corre com receio de como vai ser, Que sopram sua última oportunidade. Achar entre muitos rostos parecidos Sai a procurar Imagnália pelos becos, Um, a quem se apaixonou sem ver, Nos lugares antigos da velha cidade, E está entre tantos desconhecidos! Nos que tiveram nomes corriqueiros Que nomeavam a vida, como Ladeira, Praia da Tristeza, Beco dos Marinheiros Caminho do Meio ou Passo da Areia.

Cansado, resolve dar uma parada Vai à casa de Mirtes, sua velha amiga, Seu último refúgio, a antiga namorada. O coração bate confuso com a intriga, Pela correria e por chegar, de repente, Fora de hora sem avisá-la que vinha Há tanto tempo, não seria prudente, Mas, pensa, que alternativa que tinha?

Abre com cuidado a porta para não acordar “— Nenhures, o que faz aqui a essa hora? No escuro do quarto as velhas lembranças, O que está acontecendo? Está tão pálido! Parece um fantasma! Entra, não demora! Mas não consegue impedir que o cheiro Não esperava vê-lo assim tão esquálido!” Chegue antes dos olhos se acostumar, Aos poucos, à paz das perdidas bonanças Faz as suas pernas balançarem primeiro. A desordem das roupas sobre a guarda, Os livros na mesa, o perfume da amiga. Entre esses pensamentos e outros avulsos, Mirtes se acorda bastante assustada Com aquele vulto parado à moda antiga Grita surpresa, se protege com os pulsos:

“ — Estou cansado, confuso e também aflito! “Fique, arranjaremos um bom trabalho Vim até aqui porque precisava lhe contar Terá uma vida segura. Pare de sonhar! Será alguém e fará parte do baralho E me despedir. Imagnália é em mim um grito Me chamando de algum canto pra voltar”. E toda essa confusão vai acabar! Esqueça essa mulher, ela não existe, “— Você está louco? Isto é um pesadelo! É uma coisa perigosa da sua mente. Tudo parece maluquice. Está se iludindo. Fez você se tornar uma pessoa triste. Sejamos felizes como toda a gente!” Tire isto da cabeça, histórias de apelo, Paixões, feitiços estão lhe destruindo.

Nenhures permanece quieto assim, como ela, Guardada muito tempo, que se espalha Ficam vendo o surgimento daquela claridade Em ondas como um grito de liberdade Que vai envolvendo a todos, sem falha, Aparecendo, por trás deles, na janela. Num só brilho de tamanha fraternidade? Não é o amanhecer, sua intensidade, Porque é noite ainda, tudo se esconde Só essas densas cores surgem à toa De algum lugar não se sabe de onde. E se for a luz do peito de uma pessoa?

Joga-se contra a janela. Cai lento, Ouve estilhaços de vidro e gritos Na queda, vem o arrependimento, Frio na barriga, vazio, faniquitos. O encontro já está acontecendo! Nenhures avança decidido e surdo Aos apelos — Mirtes está sofrendo — Aos prantos, tudo parece tão absurdo. Ele ainda olha os objetos com paciência Como sendo os do seu antigo quarto: “O que serão deles na minha ausência? Mover-se-ão sozinhos ou sumirão, de fato?”

Vontade de voltar atrás e não podendo. Temor de encarar o fim, a eternidade. Lembranças remotas vão aparecendo Feito pedaços de vida, em velocidade. Sim, enfrentar o mundo, faz sentido Passou o tempo sem dar-se conta Nada real, como se não tivesse vivido Agora, na queda, tudo é uma afronta! Juntos, tantos pensamentos delirantes E a verdade aparecendo mais clara. Como é que não percebera antes? Ela estava nítida diante da sua cara, Não tinha como, porque estava cego Enxergava só sua própria vontade. Nada importava, além dele e seu ego Abafava emoções, não tinha humildade, Mudava de amigos, mas não de opinião. Diante de tanta coisa, ele não agia, Mentindo a si mesmo, ao seu coração Por não estar certo, vacilante, ele cedia.

Seu braço sente um forte empurrão Fosse corajoso ao crer no que o conduz Que joga o corpo, como saco, exausto, Por isso, estou aqui para salvar sua vida Sobre o telhado de um velho casarão Continue em busca desse imenso afeto Com a turbulência de um vento fausto. Assim, seu passado, seu futuro, em seguida, Isto faz tremer suas pernas feito vara: Se revelarão na eternidade do amor dileto” “— Que susto!” — murmura. “— Não tema!” — cochicha uma voz n’ouvido - “Não pára!” “Agora que chegasse próximo ao dilema Avance em direção a essa sua Rainha, Seja correto ao receber o que lhe cabe da luz, E justo ao compartilhar a sua ladainha.

Nenhures, firme, tomado de coragem, Sobem alto, sobre prédios e frontispícios Mergulha seu corpo no azul celestial Vão descendo lentamente até o porto Jogando-se feito pássaro selvagem Acima dos armazéns e ficam propícios Sobre a musa de uma maneira natural Pousa suave sobre a nudez das costas Ao encantamento, pela paisagem absortos. Onde asas fortes, como d’aves de rapina, Abrem-se em leque, delicadamente postas, Brotando do corpo, translúcida, cristalina.

Sobre o rio escuro, viajando no ar, Sobrevoam o esparramar-se denso Como sopa das águas indo ao mar. D’outro lado, onde morre o sol imenso, Espelha o amanhecer sobre a cidade Com o cristal d’asas, como luz invertida, Ilumina sombras com toda variedade De cores do arco íris tornando divertida A surpresa do surgir d’um dia ao avesso. Pessoas carregam os corpos cansados. Vão ao trabalho, aos empurrões e tropeços. Passam a ver os monstros assustados Tentando se esconder no que resta Da escuridão do medo que construíram. E, agora, esse dia diferente se presta Para mostrar que as carapuças caíram.

Os Homens de Cimento e Cal, postes duros Presos em suas armaduras de ferro e pedra, Não conseguem que seus olhos imaturos Evitem que a força da luz, que tanto medra, Penetre no fundo de seus corações de aço E vai abrindo, amolecendo passo a passo, Fazendo-os despertarem para alegria da Vida E logo começam a sorrir às gargalhadas Ao verem por todo canto tanta flor colorida Esparramadas à toa pelas muitas calçadas.

Assim conta-se a lenda. E segundo Dizem, os dois voaram no céu avesso Num ato corajoso de amor profundo, Num gesto firme de prazer travesso E salvaram, aos olhos de quem os viu, A cidade amaldiçoada pelo desamor. Sobrou, daquele vôo matinal um fio, Uma única lágrima de Imagnália. Andor. Lenta, caiu solitária, atravessando o céu E pingando na pequena poça d’água. Refletindo a ponta de um riso no véu Que encobria o motivo de sua mágoa: Encontrara, por fim, o amado Nenhures, Mas o perderia no manto da continuidade? O fim do feitiço que se espalhou alhures, Perfumando tudo com aroma da liberdade, Deixou-a feliz e sabe de agora em diante Que o encontrará de novo em resoluta Noite para viverem o amor exultante Depois de um longa semana de labuta.

Será sempre um encontro mágico e profundo Quando esse homem de verdade, que foi um dia Inseguro, jovem atordoado que, no fundo, Vivia cego no escuro do medo e da fantasia Retornará como o primeiro homem do mundo Pronto para oferecer seu amor sem engano, Corrigindo o antigo erro para sempre. E assim Terminamos. Se fosse teatro cairia o pano Como é um livro todo rimado, fecha-se e FIM.

OS PORTOALEGRÍADAS, UM LIVRO PERDIDO NO LODO no. Mesmo que estivessem cobertos de nuvens espessas e as calçadas cheias de minúsculas poças de água da chuva, uma beleza pulsava sob a Não faço alarde, porque ainda tenho dúvidas de que isto esteja luz acinzentada. Fiquei curioso com os meus passeios diários. Os raios acontecendo. Fico com receio de que, a qualquer momento, a bruxa, de luz invadindo a sala da minha casa e a umidade escorrendo pelas por alguma artimanha, tire de suas mãos esse livro e você não con- paredes me passavam uma sensação de perigo no ar, algo de delírio, ou siga terminar a leitura e, mais uma vez, a lenda afunde na lama do de poesia. Não achava mais normal que aquelas flores lilases caíssem desconhecimento. junto às outras de cor violeta formando tapetes nas ruas tão cinzas. Não entendia por que uma cidade coberta de fumaça e barulho, ao final Há quem pense que é loucura minha, mas tudo é verdade. Não de um dia inútil, se enfeitava com um céu assim. Não me conformava há dúvida de que a lenda existe e que a maldição está aí para nos com versos, nem com o ranço bairrista de que o pôr-de-sol da minha perseguir. Os habitantes de Porto Alegre não poderão banhar-se nas cidade era o mais lindo do mundo. Nada explicava a luz estranha que águas de seu rio e, pouco a pouco, toda a beleza natural vai desapa- saía pelos cantos de algumas ruas desconhecidas. O vento soprava pe- recer e não restará mais nenhuma referência ao paraíso que foi. las esquinas como sussurrando alguma mensagem. Até o jeito que encontrei essa história confirma a existência da Algo me dizia que essas minhas visões, esse meu encantamento, lenda. vinha de outras eras, outros tempos. Só então, me dei conta que não conhecia nada acerca da cidade em que vivia. Desconhecia completa- Foi por acaso, quando menos esperava, enquanto caminhava dis- mente sua história. Não lembro se no mesmo dia ou em outro comecei traído pelas margens do Rio Guaíba. Meus pés ao afundarem na areia a procurar nas bibliotecas livros que falassem das origens do lugar em fofa tocaram num objeto estranho. No começo, pensei ser um bicho que nasci. Comecei a pesquisar sobre povos que aqui viveram desde morto, mas ao desenterrá-lo, com os pés mesmo, percebi tratar-se o seu começo, da época dos homens invisíveis ou sem face - como são de um livro. Estava úmido e enrolado numa capa dura de couro e chamados os nossos homens primitivos - até aos mais recentes. Li so- amarrado por uma tira trançada. Não dava para ler nada do que esta- bre os índios e sobre a natureza ainda virgem daqueles tempos. (Pa- va escrito. A tinta de uma folha se misturara com a da outra e viraram recia a descrição do paraíso: os morros caindo harmoniosamente nas manchas coloridas, desaparecendo todas as suas letras. Naquele dia, águas límpidas e lentas; os peixes fartos que vinham do mar desovar o que me atraiu, além de sua aparência externa, foram as páginas num estuário manso e seguro). Li sobre suas lendas, por exemplo, a de borradas cheias de cores indefinidas. A capa tinha um título indeci- Obirici, uma verdadeira história de amor. Ela e uma outra índia se apai- frável, faltavam-lhe letras. Só depois de muito tempo, praticamente xonaram pelo mesmo homem e para resolver o impasse, ele propôs um toda a minha vida com aquelas letras capengas martelando em mi- torneio entre ambas: a que melhor atirasse com arco e flecha seria sua nha cabeça, juntei-as, as ausentes com as que apareciam, e se com- esposa. Obirici perdeu, mas não se conformou. Chorou sem parar por pôs Os Portoalegríadas. Um título esquisito que depois pareceu fazer dias e noites, embaixo de uma figueira, junto ao areal. Chorou tanto sentido. até se transformar num pequeno riacho, o Ibicuiretã - o que atravessa as areias. Hoje, esse riacho, que passa pelo Passo da Areia e desaguava A primeira coisa que fiz ao encontrar o livro quase morto foi guar- no lago Guaíba, está canalizado sob uma avenida. Sujaram suas águas, dá-lo numa caixa bem protegido para que pudesse examiná-lo, com abusaram de seu corpo líquido, como fazem com as prostitutas, e so- mais calma, num futuro, que imaginei, próximo. Naquele mesmo dia, ao retornar com o embrulho escorrendo pingos pelo caminho, alguma coisa mudou em mim. Eu que não era de reparar muito em paisagens, passei a me impressionar com as cores dos céus de outo-

terraram-na sob as vestes da cidade. Mas isso é outra história, o im- - Perdemos mais um dia! Onde está a nossa coragem? Não conseguiste des- portante é que essa lenda me impressionou muito. Percebi nela que o fazer o feitiço que caiu sobre nós. amor move a própria natureza, o que me fez pensar que talvez outras partes da cidade também fossem formadas por sentimentos. Nas madrugadas insones, fui desenrolando de meu corpo o longo poema e seu segredo. Quando as palavras me confundiam e não con- Estudei com o mesmo interesse a saga dos sessenta casais açorianos seguia dizer o que deveria ser dito, eu desenhava para que as imagens que fundaram Porto Alegre. Imaginei, na primeira leitura, o alvoroço decifrassem a minha lembrança. Assim, fui juntando em páginas colo- que teria sido a viagem deles, recém-casados, atravessando o mar em ridas, palavras e desenhos, como pedaços de um quebra-cabeça. Os busca de um lugar especial para construírem seus lares. Continuei len- papéis abarrotavam minhas gavetas. Só mais tarde... – coisas da bru- do e lendo cada vez mais sobre a história dos Sete Povos das Missões, xa, que vive criando obstáculos para que eu não consiga contar essa os Bandeirantes, as guerras, a escravidão, as imigrações européias, história para você! Como estava dizendo, só mais tarde, me dei conta africanas, a formação da cidade e seus arredores. que as cores que eu usava e os versos que se entrelaçavam, pareciam as manchas do antigo livro que achara nas margens do rio. Acho que por causa de toda essa leitura, de repente, comecei a ouvir e a enxergar coisas estranhas. Decifrava com facilidade rabiscos que as Saí em busca daquela caixa que se perdeu novamente, agora em bai- pandorgas escreviam no céu. Ouvia com clareza murmúrios que o ven- xo das coisas que acumulei com o tempo. Demorei anos para achá-la. to morno fazia em seus barbantes. Comecei a transcrever em papéis avulsos versos que o vento soprava e que, mais tarde, se configurou Quando coloquei o velho livro sobre minha mesa de trabalho, como num longo poema. Frases inteiras surgiam como memórias da minha um objeto precioso, ele passou a respirar novamente. Ainda tinha aque- infância. O mesmo sussurro instigante, cochicho malicioso, que me le lodo molhado em seu embrulho, a umidade inerente aos textos iné- alertava sobre um feitiço que há contra a nossa cidade, me dizia que ele ditos. Foi em outro outono, muito depois da minha juventude, já quase poderia ser desfeito, bastava eu aceitar ser um herói e vencer todos os idoso, que comecei a ver os versos se desprendendo das manchas e os desafios, não me entregar ao jogo com facilidade, não me deixar trans- meus desenhos se misturando aos do livro e uma coisa passando a ser formar em mera peça de xadrez, dar um sentido a minha vida, entender outra. Compreendi, então, que o livro de um autor perdido sobrevivera porque estamos aqui. ao naufrágio pelas mãos de um jovem que se afogara na sua própria sina, o de viver uma lenda que não tinha ainda sido escrita. Palavras que estavam depositadas no fundo da minha mente passa- ram a se desgrudar como se estivessem atoladas no lodo do rio e fo- O sol e a persistência, a memória e a invenção conseguiram levar ram subindo aos poucos e fazendo sentido à medida que chegavam à até as margens do outro rio, o da leitura, onde quem escreve e quem superfície dos meus ouvidos. Tudo foi se clareando, o que era real do lê vencem o tempo e a umidade e fazem as palavras secarem tomando imaginário. E a lenda começou a entrar na minha vida. Não havia tarde a sua forma original. Agora as páginas podem pousar e as frases mur- ou madrugada, quando andava solitário pelas ruas, que não reparasse murar como cochicho aos seus ouvidos, caro leitor, e, talvez, possamos uma luz acesa em alguma clarabóia das casas velhas e pensava: “deve encontrar, entre um de nós, o verdadeiro Nenhures, aquele que desco- ser Imagnália crescendo!” Ou quando escurecia e um pranto silencioso brir a Imagnália. escorria nas esquinas do centro antigo; ou, ao final da tarde, na Ponta da Cadeia, quando o sol se punha e uma profunda melancolia se abatia Cláudio Levitan sobre tudo, eu ouvia um lamento geral: Verão de 2020


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