PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes Comunicação e Multimeios ENTRE O MISTÉRIO E O POÉTICO TECNOLOGIAS ANCESTRAIS DE TRANSMUTAÇÃO VÍDEOINSTALAÇÃO MULTIMÍDIA Gabriella Serrano de Oliveira São Paulo, 2020
Gabriella Serrano de Oliveira ENTRE O MISTÉRIO E O POÉTICO TECNOLOGIAS ANCESTRAIS DE TRANSMUTAÇÃO VÍDEOINSTALAÇÃO MULTIMÍDIA Memorial apresentado para a conclusão da disciplina Trabalho de Conclusão de Curso II, Curso de Comunicação e Multimeios da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Orientadora: Profa. Dra. Elisabete Alfeld
Gabriella Serrano de Oliveira ENTRE O MISTÉRIO E O POÉTICO TECNOLOGIAS ANCESTRAIS DE TRANSMUTAÇÃO VÍDEOINSTALAÇÃO MULTIMÍDIA BANCA EXAMINADORA _______________________________________ Profa. Dra. Elisabete Alfeld _______________________________________ Profa. Dra. Jane de Almeida ______________________________________ Prof. Dr. Marcus Bastos
EPÍGRAFE
“Fez-se, assim,porque assim o fizeram os antigos, que cumpriram esses ritos, nesses lugares, num tempo sem tempo. E é essa re- petição do gesto, espiralar e prospectiva, que funda a grafia do rito, revisitada e fertilizada pelo gesto do presente, numa espa- cialidade curvilínea que atualiza o tempo em sua durée mística, sincronizando o pretérito no presente e , neste, figurando o futu- ro.” Leda Maria Martins
DEDICATÓRIA
Dedico esse trabalho a todos os artistas negros, principalmen- te artistas independentes, que diariamente lutam por visibili- dade e a manutenção de suas vidas. Dedico também à minha mãe, Aline, e à minha avó, Abgahyr, mulheres que sempre dedi- caram suas vidas à mim e representam desde sempre uma re- ferência poderosa de força. Que a arte possa sempre transfor- mar suas vidas, assim como transforma a minha todos os dias.
AGRADECIMENTOS
Agradeço,primeiramente,àminhamãe,Aline,por terfinanciadodu- rante todos esses quatro anos o meuestudonestainstituição,semela eucomcertezanãoestariaaqui.Alémdetodoseuamorededicação. Agradeço ao meu pai, Luis, que mesmo longe por con- ta da pandemia, sempre me apoiou nesse caminho. Agradeço ao Scooby, meu cachorro, por ter tornado todo esse processo mais tranquilo com a sua companhia. Agradeço à todas as amizades que construí dentro da PUC, principalmente à Amanda, à Ligia, à Milena e ao Vic- tor, por fazerem desse caminho mais leve e divertido. Agradeço à minha orientadora Bete, por toda sua gentilezaa, por ter ajuda a construir esse projeto e a confiar nas minhas ideias. E também ao Marcus, por ter ensinado tanto sobre esse univer- so artístico e ter me apoiado por diversas vezes nesse percurso.
RESUMO
Como projeto final, foi concebida uma vídeo instalação interati- va baseada em elementos importantes na construção da cosmo- logia africana por meio da natureza, a fim de proporcionar uma experiência artística do transmutar em uma vivência pseudo-ri- tual. O tema do projeto investigou como os saberes ancestrais de matriz africana, canalizado pela arte contemporânea, servem de ferramenta para a transmutação, ou seja, lugares efêmeros de regeneração do ser humano. O objetivo do projeto é trazer à tona uma perspectiva descolonial de junção entre a arte e a ancestralidade africana como enfrentamento do trágico. A pro- posta traz um olhar descolonial da relação complexa no enten- dimento da arte como uma antídoto de morte e vida. A obra foi composta pela projeção de uma animação abstrata inspirada na estética de alguns minerais, sobre uma superfície aquosa cir- cular, formando uma espécie de elixir energético. Esse conteúdo é acionado pelo som formado da percussão africana de forma generativa, e da própria oralidade do público; toda essa estrutu- ra cercada por uma contigente de terra. Desse modo, utilizando desses elementos e seus poderes mágicos de forma conjunto para construir um espaço para a experiência artística do transmutar. Palavras - chave: cosmologia africana; arte contemporânea; transmutação.
ABSTRACT
As a final project, an interactive video installation based on important elements in the construction of African cosmology through nature was conceived in order to provide an artistic ex- perience of transmuting, in a pseudo-ritual experience. The the- me of the project investigated how the ancestral knowledge of the African matrix, channeled by contemporary art, serves as a tool for transmutation, that is, ephemeral places of regeneration of the human being. The aim of the project is to bring to light a decolonial perspective of the junction between art and african ancestry as a confrontation of the tragic. The proposal brings a decolonial view of the complex relationship in the understanding of art as an antidote to death and life. The work was composed by the projection of an abstract animation inspired in the aes- thetics of some minerals, on a circular aqueous surface, forming a kind of energetic elixir. This content is triggered by the sound formed by African percussion in a generative way, and by the pu- blic’s own orality; all this structure surrounded by a contingent of soil. Thus, using these elements and their magical powers toge- ther to build a space for the artistic experience of transmuting. Key words: African cosmology; contemporary art; transmutation
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Transmutação da carne (2015), Ayrson Heráclito, per- formance no Sesc Pompéia, São Paulo Figura 2 - Transmutação da carne (2015), Ayrson Heráclito, per- formance no Sesc Pompéia, São Paulo Figura 3 - Somagramas Figura 4 - Figura 4: O trauma é brasileiro Primeira exposição indi- vidual. Galeria Homero Massena. Instalação. Vitória, 2019 Figura 5 - Figura 4: O trauma é brasileiro Primeira exposição indi- vidual. Galeria Homero Massena. Instalação. Vitória, 2019 Figura 6 - Dineo Seshee Bopape, When Spirituality Was a Baby, Instalação, Collective, Edimburgo, 2018. Figura 7 - Dineo Seshee Bopape, When Spirituality Was a Baby, Instalação, Collective, Edimburgo, 2018. Figura 8 - Planta da Instalação Figura 9- Planta da Instalação Figura 10 - Simulação de projetor Figura 11 - Paleta de Cores Figura 12: Textura de elementos citados. Fonte: Compilação da autora Figura 13 - Layout de produção de sonoridades generativas. Figura 14 - Layout de produção de sonoridades generativas. Figura 15 - Layout de produção de sonoridades generativas.
Figura 16 - Layout de parâmetro de configuração do projeto cria- do no Ableton como recurso de MIDI para o Touchdesigner. Figura 17: Parâmetro de interação gerada pelo Ableton e pela en- trada de microfone externa. Figura 18: Configuração de criação de texturas por meio de parâ- metros de ruído Figura 19: Configuração de criação de texturas por meio de parâ- metros de ruído Figura 20: Resultado de imagem Figura 21: Imagem original Figura 22: Imagem após pós-produção Figura 23: Imagem após pós-produção
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.......................................................................................pág.20 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA...........................................................pág.26 2.1 ANCESTRALIDADE: HIBRIDIZAÇÕES ENTRE ARTE E CURA 2.2 O CINEMA EXPANDIDO 2.3 SOM: ORALIDADE E MÚSICA 2.4 NATUREZA MÁGICA: PROCESSOS RITUALÍSTICOS 3. CONCEITUALIZAÇÃO DO PRODUTO............................................pág.58 3.1 DIRETRIZ CONCEITUAL 3.2 DIRETRIZ VISUAL 4. ETAPAS DE REALIZAÇÃO.................................................................pág.64 4.1 ROTEIRO DE PRODUÇÃO DE PRODUTO 4.2 CROQUIS, LAYOUTS E PALETAS DE CORES 4.3 RECURSOS E MATERIAIS UTILIZADOS 4.4 ESTRATÉGIAS DE EDIÇÃO E MONTAGEM 4.4.1 PRODUÇÃO DE SOM 4.4.2 PRODUÇÃO DE IMAGEM 5. PÓS-PRODUÇÃO..................................................................................pág.76 6. ESTRATÉGIAS DE VISIBILIDADE...................................................pág.80 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................pág.82 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................pág.86
INTRODUÇÃO pág.20
A investigação aqui apresentada para produção do proje- to final, parte do tema da relação híbrida entre a arte con- temporânea afrodescendente e processos rituais de trans- mutação que estão fortemente conectados com o saberes ancestrais, visto que muitos das obras apresentadas por es- ses artistas carregam aspectos da cultura afro diaspórica. A arte afro-contemporânea teve sua notoriedade fortemente es- timulado apenas a partir dos anos 2000, com algumas políticas públicas de reparação da escravidão, como a criação de cotas nas universidades e a obrigatoriedade do ensino da cultura afrodes- cendente nas escolas. É notável pela mostra Brasil+500, Mostra do Redescobrimento, criado na época, no qual a contribuição da arte afrodescendente colaborou para a formação de “uma história da arte brasileira”, e também a criação do Museu Afro Brasil em 2003. É visível que as obras de artistas afrodescendentes ganham maior notoriedade no cenário internacional, no que em seu próprio lu- gar de origem, visto o crescente interesse de colecionadores em feiras como Art Basel e ARCO. Por mais que políticas públicas de inclusão de grupos marginalizados estejam em voga, visto que as cotas estão formando atualmente os primeiros contingentes acadêmicos e incluindo esse povos na estrutura social e política, como por exemplo a da deputada Erika Malunguinho, que permitiu pág.21
a criação do quilombo urbano, centro cultural, Aparelha Luzia, ainda se demonstra um espaço extremamente branco e elitiza- do. Esse invisibilidade leva muitos artistas a se estabelecerem no cenário independente, criando suas próprias condições de existência. A produção de alguns artistas negros se estabelecem direta- mente com a ancestralidade, que tem em seus ritos e mitos, uma perpectiva comológica de exepriência de vida, trazendo esse tema do trágico em suas obras. Se destacam como pioneiros no tema aqui apresentado o artista Rubem Valentim, um dos repre- sentantes do concretismo no Brasil que tem seu trabalhos carac- terizados pelo uso de formas geométricas a partir de referências do universo religioso do candomblé,suas ferramentas de culto, signos e cores, como Templo de Oxalá, apresentado em 1977 na XIV Bienal de São Paulo , na qual se constituíam painéis e escul- turas em madeira branca; Mestre Didi, artista que executa obje- tos rituais, traduzindo sua visão de mundo por meio de seus an- tepassados para a experiência artística, como Èyé Kan [Pássaro Ancestral], estrutura formada por matéria natural como madeira e búzios, instrumento sacerdotal; e Rosana Paulino, que tem em suas obras a forte presença da imagem impressa em conjun- to como outros diversos modos de execução artísticas, elabo- pág.22
rando nesses trabalhos temas como gênero, identidade e repre- sentação negra, como a instalação Parede da Memória de 1994, conjunto de patuás costurados à mão, e reproduzidos neles onze pequenos retratos de arquivo familiar, que combinados de dife- rentes formas somam 1500 imagens. A pesquisa desenvolveu na interseção de algumas ferramentas fundamentais para a compreensão do tema. A relação entre an- cestralidade e a produção artística, citando alguns artistas con- temporâneos que elaboram trabalhos que atravessam a questão do trágico de alguma forma; o entendimento da transmutação como um elemento a ser canalizado e extrapolado pela arte; o recorte do desenvolvimento do produto que vê no cinema expan- dido e no conteúdo abstrato, uma expansão dessas potenciali- dades trabalhadas no tema, e o som que dá vida a essas ima- gens; e a relação da natureza, a partir desses saberes ancestrais, como uma forma de enfrentamento também. A partir desta pesquisa, foi criada a obra: Entre o mistério e o poético, tecnologias ancestrais de transmutação, uma instala- ção de vídeo multimídia que procura nos saberes ancestrais afri- canos uma forma de transmutar o trágico em arte e seu devir ritu- al. Ela foi composta a partir de matérias naturais e ferramentas tecnológicas de áudio e vídeo. Em uma sala escura, foi colocado pág.23
uma bacia cheia d’água de formato circular, tendo em seu envol- to a presença de terra; nessa bacia foram projetadas animações abstratas, tendo como referência a estética de alguns minerais, a fim simular a composição de um elixir; além disso contou com a presença sonora de forma interativa: a palavra do público que altera as animações e os sons generativos baseados na percus- são da cultura africana, que também se torna um dispositivo de alteração das animações. pág.24
pág.25
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA pág.26
Ancestralidade: hibridizações entre arte e cura A ancestralidade é uma ferramenta importante de compreensão do ser humano, ela nutre com saberes do passado o que aconte- ce no aqui e agora. Responsabiliza nossa as ações, pois já nos faz tornar os ancestrais do futuro, implicando uma responsabi- lidade coletiva de ação. Ela vem como um elo dos saberes afri- canos vivenciados do outro lado do Atlântico para se consolidar em uma nova roupagem para a cultura atual, assim a tradição se esvazia, não por não ter sua retomada latente, mas entender que essa retomada sempre estará viva em constante transformações atualizadas para o tempo presente e as subjetividades de cada indivíduo. Essa retomada representa um fortalecimento e conti- nuidade da experiência africana na diáspora, que para além de uma unidade de saberes, representa um ferramenta política de resistência a uma cultura hegemônica branca colonizadora, vem então como uma ferramenta de compreensão das problemáticas do tempo presente e invenção de modos de resistências. Ela se organiza de em uma troca cotidiana que podem atravessar diver- sos canais, seja simbólico, material, linguístico e entre outros. pág.27
Diante de uma visão um pouco racionalista da ancestralidade, Oliveira (2003; 2007, 2009) observa que a experiência africana não fragmenta os diferentes aspectos da vida – o sagrado, o profano, o imaterial, o material, a comuni- dade, o indivíduo. Não existe distanciamento entre a condição humana e a natureza, o que promove uma interação constante entre todos os elementos que compõe o universo africano. A ancestralidade, ao mesmo tempo em que ocupa o espaço do sagrado, participa da vida dos seus descendentes e por isso manifesta-se também no mundo profano, demandando a necessidade de uma observação total da vida para a sua compreensão. (ROCHA, 2020, p.35) Muitos artistas afro-brasileiros trazem o enredo da ancestrali- dades para suas obras, se desdobrando em percursos que borram certas fronteiras como a mitologia e a religião. Essa herança ancestral e dos ancestrais ressoa nas expressões da arte negra, em geral, dos congados, em particular, tendo na assimetria um dos seus signos agen- ciadores. Essa concepção assimétrica diz, em muito, de um certo pulsar do sujei- to em movimento constante, assegurando que a relação com as origens é sempre prospectivapois,como nojazz,fundaosujeitoemmovimento.(MARTINS,1997,P.36) Esse cenário é bem observado por Roberto Conduru na exposição “Incorporations: Afro-Brazilian Contemporary Art”, sediada em Bruxelas dentro da programação do Festival Internacional de Artes da Europa, Europalia-Brasil, na La Centrale Eletrique entre 2011 e 2012. pág.28
[...] Na maioria das reflexões artísticas da problemática sociocultural afrodes- cendente, religião e política estão misturadas entre si e com outras questões, sejam da arte, sejam de outros domínios, tempos e lugares, pois raramente as referências africanas e afro-brasileiras são exclusivas. Nesse caminho poéti- co-crítico, transitando entre sagrado e profano, individual e coletivo, pessoal e público, local e universal, arte, religião e política, os artistas acabam por ins- taurar uma África irrestrita a continentes e nações, uma África complexa, plu- ral, porosa e atual, uma África brasileira. [...] (CONDURU apud FARES, 2011, p.81) Esse caráter híbrido das obras de diversas artista se demonstra fortemente no conceito de afropolitano, no qual se demonstra como um estética e uma determinada poética do mundo; uma forma de localizar nesse universo, recusando-se por princípio, qualquer forma de identidade-vítima - o que não significa que ele não está ciente da injustiça e da violência infligida ao con- tinente e seu povo (MBEMBE, 2005, p. 28). Ou seja, cultua diver- sas dimensões que desconstroem a ideia de um discurso que tem como a África a origem de uma cultura “pura”. O afropolitanismo para além de ser uma contelação teórica, é um local que possi- bilita uma tensão entre as bordas identitárias e culturais, transmutando pertenci- mentosemconsciênciapolitica–tangenciandodiversoscamposdoconhecimen- toedavida,aexemplodaartecontemporânea(FERREIRAeSANT’ANA,2013,p.2341). pág.29
A partir dessa fronteira entre a arte e os saberes que constituem a ancestralidade de maneira híbrida, temos um poderio muito forte em alguns trabalhos de um aspecto ritual, que ampliam essas relações em buscam por dentro dessas matrizes africanas, matéria para elaborar a partir da ferida processos de cura, que é simbolicamente representado pelo corpo transmutado em arte. Temos como exemplo o artista Ayrson Eréclito, em sua obras, ele se aproxima das práticas e concepções religiosas do Candomblé, da investigação do orgânico e do cultural a partir da perspectiva afro-baiana. Muitos de seus trabalhos se apresentam como per- formance, no qual se apresenta um série ritualística de limpeza e cura com a utilização de elementos orgânicos, como a pipoca e o azeite de dendê. Transmutação da Carne, por exemplo, no qual a memória de maltratos sobre corpos negros é trazida em cena na performance, a carne de charque - como metáfora de home- mes e mulheres que foram escravizadas - servem de vestimenta para serem marcados à ferro e braza, representando esse trauma brasileiro; cheiro, som, combustão de uma ferida, que para o ar- tista, deve ser transmutada pela arte, a transformação desses fantasmas em uma energia positiva e transformadora. pág.30
Figura 1: Transmutação da carne (2015), Ayrson Heráclito, performance no Sesc P péia, São Paulo. Fonte: Christian Cravo / Cortesia do artista Figura 2: Transmutação da carne (2015), Ayrson Heráclito, performance no Sesc P péia, São Paulo. Fonte: Christian Cravo / Cortesia do artista pág.31
O que o próprio artista explica: Ressaltamos nossa oposição politica de artistas afro-diaspóricos,lan- çando um olhar contemporâneo às diversas tradições da vida que nos engendram enquanto artistas racializados e culturalizados. Além dis- so, acentuamos o estabelecimento de intercâmbios estéticos en- tre matricialidades e a arte como um possível caminho poético den- tro da linguagem contemporânea. (FERREIRA e SANT’ANA, 2013, p. 2350) A artista e psicóloga Castiel Brasileiro, por dentro de sua pers- pectiva como mulher trans, traz também esse conceito para ilus- trar seu estado permanente de morte e vida, que para a colo- nialidade se mostra contraditória, porém é um signo identitário para o prisma da vida, que só teve sentido no acesso a ancestra- lidade. Transmutar é isto: negociações entre morte e vida (BRA- SILEIRO,2020, p.47). Ela desenvolve um trabalho que nomeia Es- téticas Macumbeiras na Clínica da Efemeridade, um curso que mistura a experiência clínica com a arte e saberes da cultura africana, “poéticas que anunciam e constroem caminhos de ex- perimentações vitais desordenadas da racialização”. O trabalho traça uma pesquisa baseada em artistas que carregam uma es- tética que extrapola o conhecimento ocidental e é gerida por um complexidade abundante; desconstrói a tríade cristianismo-ra- cismo-cisheteronormatividade, traz uma perspectiva por meio pág.32
das religiões de matriz africana, ao realizar aproximações com o mundo vegetal, mineral e animal; e trabalhar a corporeidade por meio de somagramas. Figura 3: Somagramas. Fonte: https://castielvitorinobrasileiro.com/Curso-Esteticas- -macumbeiras Trauma é Brasileiro, outro trabalho da artista, propõe a instala- ção de um quarto de cura, a partir de uma pesquisa contínua sobre a vida, traz elementos de sua cidade Fonte Grande e fragmentos da herança cultural de sua família de descendência Bantu para criar um espaço em que o trauma vem como um catalisador im- pág.33
portante para o diálogo de procedimientos de cura, encarnados ali por meio de experiências clínicas e os mais variados elemen- tos simbólicos da natureza que carregam a religiosidade. Figura 4: O trauma é brasileiro Primeira exposição individual. Galeria Homero Masse- na. Instalação. Vitória, 2019 Fonte: https://castielvitorinobrasileiro.com/inst_otrau- ma pág.34
Figura 5: O trauma é brasileiro Primeira exposição individual. Galeria Homero Masse- na. Instalação. Vitória, 2019 Fonte: https://castielvitorinobrasileiro.com/inst_otrau- ma Todo seu trabalho transcorre abundantemente entre os encontros entre o conhecimento ancestral como ferramentas de cura den- tro do processo artístico. A própria autora afirma esse resgate de saberes a partir da cultura Bantu como uma forma de existên- cia que consequentemente espelha os caminhos pelo qual suas obras traçam: pág.35
Desde quando lembro de mim, sempre fui macumbeira, e comecei a desen- volver minha mediunidade com as tecnologias bantu de acessar e construir a camada da invisibilidade – ou a camada que nossos olhos animais não conseguem ou não são permitidos de enxergar – que compõe nossa exis- tência. Tenho entendido que tudo está em tudo porque em nossa existên- cia há mundos e planetas se fazendo presentes em forma e modo anatô- mico, celular, fisiológico, emocional, gestual, cognitivo. Os Benzimentos (ou Fitoenergética) bantu me ensinam isso. (ROCHA e DANTAS, 2020, p. 234 ) A questão da transmutação, elaborada entre morte e vida, é ela- borada por Suely Rolnik também, a partir de análises sobre o tra- balho de Lygia Clark, ao trazer ferramentas imprescindíveis para a compreensão das aproximações entre a arte e a clínica. A arte é o campo privilegiado de enfrentamento do trágico. Um modo artis- ta de subjetivação se reconhece por uma especial intimidade com o enre- damento da vida e da morte. O artista consegue dar ouvidos às diferenças intensivas que vibram em seu corpobicho e, deixando-se tomar pela ago- nia de seu esperneio, entrega-se ao festim do sacrifício. Então, escreve Ly- gia, como uma gigantesca couve-flor, abre-se seu corpo-ovo; dele nascerá sua obra, e junto com ela um outro eu, até então larvar. (ROLNIK, 1996, p. 2) Nosso corpo não se demonstra passivo, pelo contrá- rio, ele se insere como um corpo vibrátil que carrega consigo diferentes fluxos de universos, que nos perpas- sam a todo momento; é a partir dessa agitação que nas- cem novas composições inexploradas dentro de nós. pág.36
Essa germinação toma forma, amadurece, vai crescendo ao pon- to de não mais sustentar-se, buscando novas formas para se expandir; é nesse ponto que o “bicho” é sacrificado, e simulta- neamente abre espaço para uma nova forma; esse é o trágico, quando o corpo se encontra em seu estado mais vulnerável. Nes- se contexto, a arte transpassa exatamente esse ponto, ela é o canal que irá dar a luz a nova forma, apoiado sobre o entrelaça- mento entre artista e obra em sua infinita reação cíclica de no- vos eu’s; a criação artística é produto do enfrentamento do mal- -estar dessas agitações, que contaminam outros corpos, que a partir de sua próprias subjetividades irão moldar esse encontro: “aproximar-se de seu corpo vibrátil e acolher as exigências de criação impostas por esse seu corpo” (ROLNIK, 1996, p.2). Nesse contexto é visível as fronteiras existentes entre a arte e clínica, suas transversalidades, sem se moldar a uma ou a outra, mas uti- lizar do devir artístico em conjunto com a prática clínica. Neste sentido as obras servem como materialidade para sustentar o imaginário inconsciente do artista e assim proporcionar a ima- terialidade da experiência para aquele que usufrui. O imaginário inconsciente, segundo Carl Jung, é origem da nossa vida onírica onde semeia a maioria de nossos símbolos; o ser humano natu- ralmente está disposto a produção de símbolos, transformando pág.37
inconscientemente objetos e formas em símbolos como forma de se expressar, isso é característico na produção artística. Se- gundo o autor muitos artistas modernos utilizavam da produção artística não-figurativa como uma porta de acesso a esse ima- ginário. O objetivo do artista moderno é dar expressão à sua visão interior do homem, ao segundo plano espiritual da vida e do mundo. A obra de arte moderna aban- donou não só o domínio do mundo concreto, “natural” e sensorial, mas também o universo individual. Tornou-se altamente coletiva e, portanto (mesmo na sua forma abreviada, (o hieróglifo pictórico), deixou de tocar a uns poucos para atingir a muitos.(JUNG,1964, p.251) . A abstração como instrumento artístico funciona como uma por- ta de acesso a esse universo inconsciente, uma forma de expres- são do misticismo da natureza, tão misterioso, quanto profundo, é uma oportunidade de abordar sua realidade interior e tornar consciente do seu eu essencial e do seu ser. Esse modalidade iniciada pelos modernos tem aplicação para a produção atual no formato de se trabalhar com o processos de pós-produção, ao reunir formas de se elaborar conteúdos. Os artistas da pós-produção utilizam e decodificam e utilizam essas formas para produzir linhas narrativas divergentes, relatos alternativos. Os artistas da pós-produção utilizam e decodificam e utilizam essas formas para produzir pág.38
linhas narrativas divergentes, relatos alternativos. Assim, como nosso incons- ciente tenta, bem ou mal, escapar à suposta fatalidade da história familiar por por meio da psicanálise, a arte conscientiza os enredos coletivo se propõe outros percursos dentro da realidade, corn a ajuda das próprias formas que materializam essas narrativas impostas. (BOURRIAUD, 2009, p.50) Esse elementos se tornam essenciais para a constituição do pro- duto aqui apresentado, pois partem justamente da utilização da abstração e combinação de diferentes formas, como uma ma- neira de trazer a tona o inconsciente, que aqui se apresenta em seu formato de cinema expandido, um dispositivo que potencia- liza ainda mais a ideia de expansão do consciente pela arte, e consequentemente enfrentamento trágico, como meio de trans- mutação. O Cinema Expandido Esse forma de extensão de nossas dimensões mais profundas embarcou na produção da imagem em movimento em sua forma expandida. Youngblood, sustenta a mesma percepção de arte como uma forma de luz a nosso imaginário inconsciente, só que realizado pelo cinema expandido. pág.39
Quando dizemos cinema expandido queremos dizer consciência expandida. Ci- nema expandido não refere-se a filmes de computador, vídeo de fósforos, luzes atômicas ou projeções esféricas. Cinema expandido não é um filme em tudo: assim como a vida, é um processo de se tornar unidade permanente do homem histórico para manifestar a sua consciência para fora da mente, para a frente dos olhos. Não se pode mais se especializar em uma única disciplina e espero, sinceramente, expressar uma visão clara de suas relações no ambiente. Isso é especialmente verdadeiro no caso da redes intermídia de cinema e televisão, que agora funcionam, nada mais nada menos, como o sistema nervoso da hu- manidade (YOUNGBLOOD, 1970, p.41, tradução nossa).1 Essa percepção pertencente ao tempo contínuo e presente de cada indivíduo deriva do que ele chama de cinema sinestésico, uma linguagem multidimensional e sensorial. Esse cinema expan- dido como forma de acesso ao inconsciente e assim ao enfrenta- mento do trágico num processo de transmutação se desdobre em sua forma instalativa, ocupando espaços para construções de cenários únicos. A instalação se hibridiza com diferentes apa- ratos midiáticos e cria novas composições de espaço-tempo, o “agora” é massivamente tomado pelo indivíduo que é cercado por sensações visuais, sonoras, olfativas, táteis em que ocupa. Um infinito de possíveis criam fluxos no qual o participador per- 1 No original: “When we say expanded cinema we actually mean expanded cons- ciousness. Expanded cinema does not mean computer films, video phosphors, atomic light, or spherical projections. Expanded cinema isn’t a movie at all: like life it’s a process of becoming, man’s ongoing historical drive to manifest his consciousness outside of his mind, in front of his eyes. One no longer can specialize in a single dis- cipline and hope truthfully to express a clear picture of its relationships in the envi- ronment. This is especially true in the case of the intermedia network of cinema and pteálegvi.s4io0n, which now functions as nothing less than the nervous system of mankind.”
passa a obra, integrando-a, e vice e versa. O aspecto imersivo é trabalhado por Christine Mello ao tratar da relação entre o visi- tante e a videoinstalação, a partir da diferenciação entre o eu e o outro e de sua análise crítico-reflexiva. É estabelecida uma rede de conexões ambíguas, já que o espaço expositivo e o es- paço da vida são mesclados à todo momento gerando comple- xas formas narrativas, fazendo com que essas fronteiras sejam borradas. É gerado uma nova relação com o espaço perceptivo, “uma relação dupla, simultânea, entre a imersão e a emersão” (MELLO, 2008, p.92), um mergulho constante nos múltiplos senti- dos de contatos. Essa nova relação ganha ainda mais eficiência com o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, e mais do que isso, de seu barateamento e popularização, já que permite que dispositivos eletrônicos sejam inseridos na arte. Giselle Bei- guelman fala sobre corpos “ciborguizados”, como se os aparatos eletrônicos que se fazem tão presente no nosso cotidiano permi- tam expandir nossa capacidade em permanecer sempre no aqui e agora (BEIGUELMAN 2013. p.147). Não há mais uma diferença entre o virtual e a realidade, estamos tão devorados pela nosso próprio tempo em rede que não há mais uma separação, fazemos parte de um mesmo corpo que se encontra no pós-virtual . Desse modo os mecanismos tecnológicos já não aparecem mais como pág.41
uma novidade para os artistas, esse espaço é familiar para eles, faz parte deles, está presente no seu processo criativo e em suas obras. Isso faz com que tenham um domínio maior sobre seus trabalhos, ocupando fichas técnicas inteiras com seus próprios nomes, são seres multimídias que utilizam da experimentação de uma forma crítica para criar cenários transdisciplinares de diferentes simbologias conceituais. A utilização da arte gene- rativa, é uma marca digital presente na confecção de obras au- diovisuais que exigem a interação do participador, seja ele qual for, visitante, computador ou autor. Ela se caracteriza pela cons- trução de dispositivos programados pelo artista que acionado, por mecanismos digitais ou analógicos, se altera ao longo do tempo de existência da obra formando caminhos imprevisíveis pela máquina. Arte generativa1 não é nem programação, nem arte, em seu senso convencio- nal. São ambas e nenhuma dessas coisas. Programação é uma interface entre o homem e a máquina; é uma disciplina clara e lógica, com objetivos clara- mente definidos. A arte é um sujeito emocional, muito subjetivo e recusando definição . Arte Generativa é o lugar de encontro entre os dois; é a disciplina de pegar processos lógicos, frios e rigorosos e subvertê-los para criar resulta- dos ilógicos, imprevisíveis, e expressivos. (PEARSON, 2011,p.4, tradução nossa) 1 Generative art is neither programming nor art, in its conventional sense. They are both and neither of these things. Programming is an interface between man and ma- chine; it is a clear and logical discipline, with clearly defined objectives. Art is an emotional subject, very subjective and refusing definition. Generative Art is the me- eting place between the two; it is the discipline of taking logical, cold and rigorous processes and subverting them to create illogical, unpredictable, and expressive results. (PEARSON, 2011,p.4) pág.42
Segundo Pearson, não é algo que planejamos com materiais e ferramentas, cresce como uma flor ou uma árvore, mas suas se- mentes são a lógica e a eletrônica, em vez de terra e água, é criar o orgânico usando o mecânico. Uma analogia semelhante a fala de Brian Eno, em que a criação da arte generativa se aproxima ao ofício do agricultor. Ele planta a semente sem esperar resul- tados absolutos, mas observa seu crescimento até gerar frutos proporcionados pelo puro acaso do tempo. Essas ferramentas de tecnologia da arte generativa inserido em instalações audiovi- suais, criam uma das inúmeras possibilidades do cinema, é o que Rodrigo Gontijo aponta ao classificar uma das vertentes do ci- nema ao vivo - onde edições de montagem, cor, formas e tempo são construídos em tempo real - como cinema generativo. O Cinema Generativo surge em ambientes digitais semelhantes aos ana- lógicos, onde o computador atua como um filtro para produzir variações de elementos, transformando inputs em novos outputs. Ao captar um som, por exemplo, algoritmos binários referentes a determinados parâmetros sonoros (freqüência, timbre ou volume) são transformados em algoritmos relaciona- dos a imagens abstratas que se constroem numa relação direta com a música. (GONTIJO,2012, p.225) Esse e entre outros trabalhos que utilizam da arte generativa em conjunto com o cinema, o visitante semelhante a um dj que exe- cuta e manipula músicas em um show, nesse caso um vj, pois pág.43
estamos falando de vídeo, se torna a própria figura performá- tica, já que o uso de aparatos sensoriais criam uma ponte para conectar mídias de diferentes formatos a fim de traduzir ima- gens em sons, movimento em cores, batimentos cardíacos em ví- deo, são inúmeras as possibilidades de formação que guiam os corpos daqueles visitantes para uma interação necessária, em que o aparelho só é acionado pela presença daquele instante, mesmo dispositivos utilizados para elaboração do produto aqui presente. A instalação multimídia “when spirituality was a baby” da artista Dineo Seshee Bopape, traz exatamente os aspectos presentes no cinema expandido para trazer a tona a questão da ancestralidade como um elemento importante para o enlace da vida. Ela explora a memória, narração e representação de dife- rentes formas, trabalhando com conteúdos visuais e conceitu- ais, utilizando como material, além dos aparatos tecnológicos, terra e madeira. Trata sobre a relação da cronometragem, espi- ritualidade, geologia, astronomia e cosmologia comumente ig- norado pela ciência ocidental. O ambiente imediato do Dineo torna-se um conjunto radical de ativação, trazendo o celestial e terrestre, o corpo e o metafísico; o pessoal e coletivo em coa- lescência; combina materiais crus, formas esculturais, simbolo- gias, em conexão com aparato da cosmologia e da espiritualida- pág.44
de, a instalação aparece como um local de ritual, um santuário que contenha os seus universo próprio de interações, energias e substâncias; Práticas espirituais afro diaspóricas, os objetos são traçados através do espaço em relação a determinadas car- tas estelares e constelações astrológicas. Figura 6: Dineo Seshee Bopape, When Spirituality Was a Baby, Instalação, Collective, Edimburgo, 2018. Fonte: Tom Nolan Figura 7: Dineo Seshee Bopape, When Spirituality Was a Baby, Instalação, Collective, Edimburgo, 2018. Fonte: Tom Nolan pág.45
Som: oralidade e música Cânticos, invocações, louvores, citações, textos míticos e oraculares, histórias, parábolas e sons são instrumentos de comunicação que, através de sua forma significante, contribuem a manifestar e transmitir a complexa trama simbóli- ca cujo pacto semântico se realiza. Alguns estudiosos afirmam que sem pala- vra a mente morreria, pois guardamos informações da mesma maneira como a célula conserva energia. (CAMPOS, 2015, p.178) Ao pensarmos na oralidade, a palavra para a cultura africana vem com um elemento mágico, de forte poder de ação, como força vital. Como representante de uma cultura que transmite seus conhecimentos de forma oral, a palavra ganha uma forte responsabilidade, não só concebido ao seu signo, mas a aquele que a transporta. Dessa forma a memória se torna um símbolo pág.46
importante para aquele sujeito, já que existe um estreitamento na relação de conteúdo e emissor.“A palavra é geradora de mo- vimento e por isso deve ter a sua potência regulada e seu uso orientado, pois, após ser proferida, ela desprende de seu locutor e sua energia passa a reintegrar a natureza e a participar da vida coletiva”, (ROCHA, 2020, p. 27). Muito mais que um sopro de vida, a oralidade vem como um sopro de libertação para os corpo pre- tos. Grada Kilomba ao trazer à memória uma máscara no qual escravos utilizavam para serem impedidos de se alimentar da cana de açúcar e do cacau enquanto trabalhavam nas planta- ções, traz a imagem de um elemento de tortura e silenciamento que persiste até hoje; desse modo a máscara representa simboli- camente o colonialismo. Manter esse distanciamento pelo medo de trazer ao consciente a voz de um “outro” que não representa o branco. “Há um medo apreensivo que é o sujeito colonial que fala, o colonizador terá de ouvir. Será forçado a um confronto in- cômodo com “outras verdades. Verdades que têm sido negadas, reprimidas e mantidas em silêncio, como segredos”.(Kilomba, 2010, p.21)1. 1 “There is an apprehensive fear that is the colonial subject speaks, the colonizer will have to liste44n. She/he will be forced into an uncomfortable confrontation with “other truths. Truths that have been denied, repressed and kept quiet, as secrets” (Ki- lomba, 2010, p.21). pág.47
A voz vem com uma força imensa de transformação desse corpo, não apenas gerando forças ao confrontamento de imposições do ser dominador, mas ao próprio indivíduo que por conta de me- canismos de defesa geridos por alguns aspectos do ego, como a vergonha, a negação e a culpa, acabam sabotando o bem estar psíquico do indivíduo em suas esferas profundas de conciliação com si mesmo. Esse poder transformador da palavra, volta nova- mente como um o sopro de vida, que se reinicia a cada segundo, gerando um caminho fértil de propagação do ser. (...) a voz, a palavra, os gestos e movimentos ritualizam toda a performan- ce, regida pela respiração polifônica dos tambores. Essa fala musical, em sua singular diversidade, é um dos significantes - rizoma que banalizam as expressões artístico-culturais negras nas américas, fundadas por for- mas básicas dominantes das quais derivam, por exemplo, a assimetria do “pimping” afro-americano e da ginga brasileira. (MARTINS, 1997, p.122) Além da oralidade, a música vem como uma forma de expressão forte de comunicação e na combinação de melodias, ritmos e harmonias, que fazem manifestar esse também sopro vital, que é tão presente em ritos e ganha seu devir místico de aproxima- ção com o divino. Na vida social dos africanos, os tambores foram sempre considerados in- dissociáveis de quase todas as suas manifestações sociais, quer de ordem pág.48
religiosa, quer de encantamento mágico, função igualmente presente na maioria das expressões rítmicas africanas no Brasil e mesmo naquelas cria- das pela integração de matrizes culturais diversas. (ARAÚJO 2002,p. 111) É a partir dessa devir que a música nos traz que o trabalho sono- ro é produzido aqui, utilizando da percussão da cultura africa- na, como um meio de transmutação também. A constituição da produção não perpassa conhecimentos ideais de musicalidade, mas utiliza de packs pré-definidos de instrumentos que em seu conjunto formam um produto musical. É possível produzir uma obra musical sem saber tocar uma única nota, utili- zando os discos existentes. De modo mais geral, o consumidor customiza e adapta os produtos comprados à sua personalidade e às suas necessidades. (BOURRIAUD, 2009, p.40) É partir dessa produção que a musicalidade aqui se constrói, den- tro dos padrões da arte generativa, como visto anteriormente. A parte sonora então, tanto quanto a presente como a presente na musicalidade, quanto a presente na oralidade, dão vitalidade para a composição imagética em movimento da obra, criando profundas relação de percepções, visto como a música visual. A música visual parece servir como um termo guarda-chuva para todo o tipo pág.49
de produção audiovisual - o guarda-chuva tornou-se muito grande desde o adven- to da tecnologia em tempo real, abrigando tudo, desde o cinema ao vivo [atra- vés de vídeos e instalações musicais, até aplicações interativas] (...) está pro- fundamente enraizado na exploração artística da sinestesia. (LUND, 2015, p.231) Nesse contexto é visível que arte é utilizada como um canal do enfrentamento do trágico, ou seja uma processo de transmuta- ção presente em muitas obras de artistas contemporâneos, no caso aqui apresentado, artistas negros que perpassam uma cos- mologia africana. Uma arte que ultrapassa a forma pictórica abstrata, e se encontra no cinema expandido uma forma tam- bém potente, instrumentalizada por agentes tecnológicos, de li- dar com os dilemas interiores. A combinação simbólica encara uma potente forma de expressão para alguns artistas contem- porâneas, é na raiz de seus ancestrais que a arte ganha seu devir mágico, de tratamento e desdobramento, ao recuperar a memó- ria e colocar-la em nossos tempos. Natureza Mágica: processos ritualísticos As associações entre ancestralidade, trabalhada pelos povos 1 Visual music seems to serve as an umbrella term to all kind of audiovisual pro- duction - the umbrella having become a very large one since the advent of realtime technology, sheltering everything from the live cinema [through music video and ins- tallations, to interactive applications] (...) is deeply rooted in the artistic exploration pofásgyn.5ae0sthesia. (LUND, 2015, p.23)
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