Important Announcement
PubHTML5 Scheduled Server Maintenance on (GMT) Sunday, June 26th, 2:00 am - 8:00 am.
PubHTML5 site will be inoperative during the times indicated!

Home Explore 2018 THEATRO AUTOMÁTICO 1

2018 THEATRO AUTOMÁTICO 1

Published by Floriano Martins, 2018-11-27 14:34:08

Description: 2018 THEATRO AUTOMÁTICO 1
ZUCA SARDAN & FLORIANO MARTINS

Keywords: teatro

Search

Read the Text Version

ZUCA SARDAN | FLORIANO MARTINSTHEATRO AUTOMÁTICO ATO I | PALIMPSESTO

Theatro automático, 1 @ 2018, Zuca Sardan e Floriano MartinsARC Edições, coleção “Nuances postiças” # 4Capa: Floriano Martins Agulha Revista de Cultura http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/ Fortaleza CE Brasil _____ 2018

O grande poder de um ilusionista está em sempre convencer a todos de que sua cabeça está vazia. MACACA MOLAMBA

ATO I | PALIMPSESTO AÍDA LAPARTIDA ODUVALDO FOGUEIRA BENTO CRUZ PAN VALENTINO PANFIR BISPO FERRASCO PAPA BORGES CAPITÃO GARRANCHO PAPA GREGÓRIO IX CARECA PONTO EUXÍMIO COROINHA GANIMEDES QUASIMBO DO PRADO CURA ARNÓBIO REI MIGALHAS DE CRETADOUTOR PERY CECILIANO RIGOLETTA ESCAPULÁRIO ESCRIVÃO OLEGÁRIO RÚBIO BORDOSA EXORCISTA CALLIGARO SANCHO BERMÚDEZINQUISIDOR HERMENEUTO SANDRA FOX LUPÉRCIO SARGENTO PELICANO MARILINA SILVÉRIO DOS POTES NARCISO MELINDRO

• Cura Arnóbio e Bispo Ferrasco no subterrâneo do Santo Ofício. O severo Bispo interroga o suspeito Cura. BISPO FERRASCO – Estás acusado, Cura Arnóbio de teres participado numa curra ignóbil. CURA ARNÓBIO – Curra Ignobe não, Bispo Ferrasco, Cura Arnóbio, a vosso dispor. BISPO FERRASCO – Bancas o surdo pra escapares de mansinho de graves acusações. E o sabá? CURA ARNÓBIO – Sim, Bispo, confesso… Tenho um sabiá na gaiola… Seu cantinho inocente é aúnica alegria que me concedo, numa vida de flagelações, ajoelhado em grãos de feijão, e cilício aopeito, a rezar pra Santa Espinácia… BISPO FERRASCO – Santa Espinácia foi destituída de seu estatuto de santa. Descobriram-segraves irregularidades de seu comportamento no Mosteiro de Beja. CURA ARNÓBIO – Mas eu a tenho anotada como santa em meu calendário. BISPO FERRASCO – Teu calendário é recente? As lamentáveis descobertas são do ano passado. CURA ARNÓBIO – Meu calendário tem 47 anos, mas sempre o atualizo a lápis, pros dias dasemana.

BISPO FERRASCO – Ficarás sete semanas enclausurado numa cela trancafiada, durante teuprocesso. CURA ARNÓBIO – Tem água corrente? Luz elétrica? E ventilador? Poderia ter comigo meu sabiá? BISPO FERRASCO – Terás uma vela no topo duma garrafa vazia, e um chicote pra te flagelares ànoite, de modo a espantares essas mórbidas tentações de mordomia. CURA ARNÓBIO – Mas tal processo não procede, serei sempre acusado de meus descometidos. BISPO FERRASCO – O que pensas com agravo deverá ser pauta para tua condenação, párocoinfiel! CURA ARNÓBIO – Mas tanto que me curava a alma minha saltitante sabiá, tanto que deu linhanova ao meu horizonte faminto. BISPO FERRASCO – As notícias se espalham, Arnóbio, não me embromes com tua falácia. CURA ARNÓBIO – Se eu falasse com quantas brumas se chega a uma visão nítida do absurdo… BISPO FERRASCO – Nem me testes com essas filosofias diletantes… CURA ARNÓBIO – Ainda me falas em processo… Ora, Ferrasco, já és o próprio carrasco!

BISPO FERRASCO – Eu te condeno por aviltamento de nossos milagres recolhidos. CURA ARNÓBIO – Eu fui ao espelho cortar sombras. Lá me deparei com vultos dançando e ummantel de castidade arrependida. Dos interiores daquela dança saltavam labaredas e tudo em quetocavam ia ganhando cores e as sombras se amancebavam salpicando alegorias para o lado de fora doespelho. BISPO FERRASCO – Benza Deus! É o Inferno redivivo! CURA ARNÓBIO – Os grandes Santos são os que sofrem as maiores tentações. BISPO FERRASCO – Estarás agora, na tua insânia te julgando um santo?… CURA ARNÓBIO – Na falta de coisa melhor, nesses dias plebeus, os Diabos buscam tentarmodestos curas de aldeia… BISPO FERRASCO – Quem não tem cão caça com rato. CURA ARNÓBIO – Exato, Ferrasco… Olha essa gata macia que ora se aproxima rebolando, de rabopra cima… BISPO FERRASCO – Mas!!! Donde saiu esta gata??? Vá de retro, Satana!!!! CURA ARNÓBIO – Como anda o estoque de velas do bispado?

BISPO FERRASCO – É a camareira da Torre, sobrinha do vigário Pernetta, coitado, repete tudoque a gente manda, certo de tratar-se da palavra de Deus! CURA ARNÓBIO – Bendição satânica! O que essa proeza viu em tal mamulengo? BISPO FERRASCO – É sobrinha, maldoso! CURA ARNÓBIO – E daí? O Pernetta é cotó? BISPO FERRASCO – Ah fugitivo da Ordem, salpicado de luxúria, as compensações da vida, meucaro cura curro cara cof cof ara que droga, me engasguei… CURA ARNÓBIO – Bota sal no brandy e vira de uma talagada só. BISPO FERRASCO – Melhor deixar a menina Giselda cuidar de seus afazeres. Um descanso paraque penses em teus pecados, logo voltarei para as necessárias penitências. CURA ARNÓBIO – Pois é… Dizem que a Giselda é sobrinha do Pernetta… Ah!… Tivesse eu umasobrinha, assim gentil e dedicada!… BISPO FERRASCO – Eis-te de novo com teus pensamentos demoníacos!… Ansiando por umadultério, aproveitando-se da inocência da sobrinha!…

CURA ARNÓBIO – Mas eu não tenho sobrinha!… E se tivesse… Jamais abrigaria más intençõescom a pobre mocinha… Jamais!!!… BISPO FERRASCO – Estás delirando, perverso!… A Giselda é sobrinha do Pernetta! CURA ARNÓBIO – Pois é… Deus dá nozes… ao tamanduá!… E guizos… ao grilo! BISPO FERRASCO – Aí está!… Tuas maldades ocultas!… Boquirroto!!!… Dizendo que o vigário é…broxa!… CURA ARNÓBIO – Nem mesmo Deus sabe ao certo o quanto duram os efeitos de um sermão! BISPO FERRASCO – O vigário Pernetta subia ao púlpito com ideias desencontradas: – Aleijadinhoestava possuído pela mais obscura resplandescência! O general Empalhado é a vergonha maior darepública! Não esqueçam que o céu não é o limite e que este domingo tem buchada no sítio de DonaMarrequinha Cabedelo. CURA ARNÓBIO – Ah que pujança heroica! Os domingos de ouro da viúva Cabedelo! Leva aGiselda, Ferrasco, leva! BISPO FERRASCO – Não sairás deste porão dos pecaminosos, seu verme entroncado! Não hámais terra prometida para teus desagravos. Os anjos cansaram de ser cordiais com tuas infâmias.

CURA ARNÓBIO – Então vai tu e deixa aqui a cabrocha, cuidando do roçado de meusarrependimentos! BISPO FERRASCO – Então confessas…? CURA ARNÓBIO – Eu escrevo até uma carta a Deus, louvado seja, desde que me deixes ditá-la aGiselda… BISPO FERRASCO – Pernetta que não me escalpele, mas tenho que me sujeitar aos termos desseespertalhão, pois se acaso não envio ao Vaticano uma confissão serei excomungado na primeiraoportunidade. CURA ARNÓBIO – Pois já estou eu cá, preventivamente enclausurado há sete anos, do queesqueceram Vossas Eminências, ora querendo me encerrar nesta cela mal fedida onde mofo desdeentão… BISPO FERRASCO – Já estavas cá preso então há sete anos?… O Carrasco nada me contou. Emtodo caso foi uma medida acauteladora do bom corcunda para que não cometesses inanidades. CURA ARNÓBIO – Trancado sem poder falar com qualquer humana criatura… Alguém que acasome trouxesse um pouco de piedade e esperança… BISPO FERRASCO – Aí está, Cura sinistro!… Confessaste!… Se não foi com nenhuma criaturahumana… estiveste então com o Diabo!!!

CURA ARNÓBIO – Com o Diabo não, Bispo Ferrasco… Ele pouco se interessa por tão humildecura… Não viria conversar comigo. Ele só trata com os Grandes Potentados… BISPO FERRASCO – Mas com quem conversavas então, já que ninguém tinha acesso a esta celafechada a sete chaves?… CURA ARNÓBIO – Sete anos, não sete chaves… BISPO FERRASCO – Não me atropeles, apenas responde… CURA ARNÓBIO – Com minha amiguinha, tão pequenina, que passa pelas grades da prisão. BISPO FERRASCO – Mas essa amiguinha pequenina, como pode acender a este altíssimotorreão?… CURA ARNÓBIO – Ela sabe voar, Bispo Ferrasco, ela zumbe e tem uma calcinha listrada… BISPO FERRASCO – Uma abelhaaa!!! Agora compreendo porque tens por trás da moringa oaçucareiro!!! CURA ARNÓBIO – Mas o açucareiro é pro meu café… BISPO FERRASCO – Não tentes me enganar, ignóbil lúbrico perverso!!!

CURA ARNÓBIO – Mas veja, abispado: se hoje sou outro, distinto do que fui há sete anos, comoentão posso ocupar simultaneamente o mesmo espaço carcerário? Será este o truque famigerado comque a Religião quer desafiar a Ciência? BISPO FERRASCO – E como saber que és outro? CURA ARNÓBIO – Porque está provado que sempre somos outro, a cada instante, e que não nosrepetimos. Sendo assim, se me consideras culpado de algo cometido há sete anos, certamente eu nãoposso ser agora condenado pela mesma falta. BISPO FERRASCO – Então eu te deixo apodrecer pelo mesmo pecado fatal que não prescrevejamais… CURA ARNÓBIO – Isto não existe! A Igreja acredita em expiação. E a Ciência não chega a descrerde todo no milagre da reencarnação… BISPO FERRASCO – E onde está a maldita abelha com quem conversavas? CURA ARNÓBIO – Onde sempre esteve. Em mim!!! BISPO FERRASCO – Pífia imagem alegórica… CURA ARNÓBIO – Alegórica não!!! Ela vive no meu… bolso.

BISPO FERRASCO – No teu bolso? Pois puxa pra fora e mostra!… CURA ARNÓBIO – Um gesto falho?… (puxa pra fora) Aqui está. BISPO FERRASCO – Guarda esse toco fedorento?… CURA ARNÓBIO – Foi um mal-entendido… (guarda o toco) BISPO FERRASCO – Está ocorrendo uma falta de dignidade neste interrogatório. CURA ARNÓBIO – Como não há escrivão acompanhando, poderemos torná-lo mais digno. BISPO FERRASCO – Sempre com tuas manias de falsificar as laudas do processo. Vou telefonarpara o escrivão. (liga o celular:) – Alô, Tobias?… Já estamos em pleno interrogatório! Avia-te, paspalho! CURA ARNÓBIO – Guarda tua encenação para quando chegue o júri. Certamente haverá umescrivão. Agora estamos somente nós três… E se vais me torturar que seja pra valer… BISPO FERRASCO – Três? CURA ARNÓBIO – Esqueceste a abelha! BISPO FERRASCO – O Diabo, queres dizer…

CURA ARNÓBIO – Não posso impedir que vejas o reflexo de tua precária existência, onde querque pouses o olhar. BISPO FERRASCO – Última oportunidade eu te dou agora de confessares um pouco que seja dacarga impune de tuas falhas… Do contrário começarei por livrar-te de cada uma das 20 unhas de teusdedos… CURA ARNÓBIO – …19… BISPO FERRASCO – Como? CURA ARNÓBIO – Há muito decepei, eu mesmo, um dedo da mão, para evitar o peso severo darotina nos mosteiros. BISPO FERRASCO – Pois que sejam 19… Vamos cuidar disto agora… CURA ARNÓBIO – Começas pelos pés, ou pelas mãos?… BISPO FERRASCO – Que seja, pois, pelos pés… CURA ARNÓBIO – Porque não chamarmos para tétrica tarefa a Madre Tareja?… BISPO FERRASCO – Madre Tareja é uma santa… Não dá pra tarefas sangrentas.

CURA ARNÓBIO – Antes de fazer seus votos, era excelente manicura. BISPO FERRASCO – Como sabes tais coisas, Arnóbio?… CURA ARNÓBIO – Sei ouvir e falar… BISPO FERRASCO – Zurras pelas orelhas, asno frascalho!… CURA ARNÓBIO – És um santo verdugo, Ferrasco. Ouça lá uma difícil charada… BISPO FERRASCO – Chega de circunlóquios, Arnóbio. Vamos, pois, aos suplícios. CURA ARNÓBIO - Esperemos o Escrivão chegar pra anotar meus gritos. BISPO FERRASCO – Não virá escrivão nenhum. Manicura ou qualquer outra máscara de mel quequeiras dar ao destroço de tua condição. Ninguém… CURA ARNÓBIO – Não é assim, não, não é. Que tal a charada? BISPO FERRASCO – Eu tenho a eternidade a meu favor, cura devasso! Tu que estás ficando semtempo… Dá-me lá uma charada que seja…

CURA ARNÓBIO – Tolice, Ferrasco, a ordenação do tempo é uma manifestação da ilusão.Esqueces o curso que fizemos no Colégio Berthelot. Nenhum de nós vai mais longe, no tempo, doque já fomos. A cada tempo vivido corresponde um tempo por viver. Queres a charada? Como saberquando uma chave abre ou fecha a caixa preta do que ainda não vivemos? BISPO FERRASCO (dispara uma gargalhada) – Não há pior tolo do que aquele que se acreditanômade porque assim lhe soprou na orelha a mais velhaca das esfinges. Cambaio das ideias tortas…Vamos logo desunhar esses dedos todos… A menos que me contes quem é a abelha que trazes dentrode si. CURA ARNÓBIO – Ela não é de agora. Nem de ir, nem de ficar. Diabos, eu estou apertado. Precisofazer xixi… BISPO FERRASCO – Primeiro me conte da Abelha… Como se chama?… CURA ARNÓBIO – Ela se chama Bizbiz, sabe zumbir delícias sonoras… BISPO FERRASCO – Delícias sonoras?… Que tolice!… CURA ARNÓBIO – E a Música das Esferas Celestes, em que estão incrustados os Planetas?… BISPO FERRASCO – A Música das Esferas é Obra de Deus!… Não vás compará-la com zumbidosduma abelha, herege!…

CURA ARNÓBIO – Quem, herege?… Eu?… ou… Bizbiz? BISPO FERRASCO – Certamente tu, celerado… Uma abelha é tão só um inseto… CURA ARNÓBIO – E a abelha de Dante?… Que tem morada no Céu?… BISPO FERRASCO – Abelha de Dante?… Além de herege és um vão abestado… CURA ARNÓBIO – Não era besta, e sim abelha. BISPO FERRASCO – Eu acabo de lembrar que havia mesmo um Frei Charmosito que mantinha àsescondidas uma modesta colônia de abelhas nos fundos do mosteiro Dante Alighieri. CURA ARNÓBIO – Ele tinha um negócio de colônias… Foi desbatinado. BISPO FERRASCO – E dado como louco. Jurava haver inventado uma fórmula de extrair perfumedas abelhas. Chamava aquela gosma de Mel das Esferas, seduzia os garotos da região, um vidrinho domelaço em troca de carícias… CURA ARNÓBIO – Eu sei, Bizbiz escapou de lá… E me contou tudo. BISPO FERRASCO – Mas de qual Céu me falas, então?

CURA ARNÓBIO – Ora, atearam fogo na colônia, depois que levaram o frade para um hospício.Bizbiz foi para o Céu das Abelhas, que é o mesmo de Dante… BISPO FERRASCO – E como ela agora está contigo, paspalho? CURA ARNÓBIO – Eu já disse. Ela não está comigo. Ela está em mim! BISPO FERRASCO – Não te emendas. Vamos logo arrancar essas unhas… BIZBIZ – Cala-te! Já chega de aguentar teu falatório autoritário. Vamos acabar com esse processoque julgas terapêutico, bofe de sacristia! BISPO FERRASCO – E que voz alterada é essa!!! BIZBIZ – Não é ele. Sou eu. Terás agora que tratar comigo, fraude carmelita! BISPO FERRASCO – Deus é Pai, Piedoso e Clemente, deixa essa morada, Indesejável, sem que tecaiba punição alguma… Apenas vai, segue o teu descaminho eterno. BIZBIZ – BZZZ - BZZZ- BZZZ… BISPO FERRASCO – Quem fala?… Tu, Abelha Satânica, ou o Cura possesso?… BIZBIZ – BZZZ- BZZZZ-BZZZZ… Venho do Jardim das Delíííícias…

BISPO FERRASCO – Apoderaste-te do espírito daninho desse cura pecaminoso… BIZBIZ – BZZ- BZZZ… Ele não reclama… Comigo conheceu o Êxtase Divino… BISPO FERRASCO – Passa fora!!! Vá de retro, Satana!!! BIZBIZ – Quem dera o teu proseado com Deus tivesse alguma força para tanto, intrépido iludido!Por que não tens agora ao menos arrancar as minhas unhas? BISPO FERRASCO – O Senhor te ordena, demônio, volta para teu fétido lagamar! BIZBIZ – Que gracinha! BZZZ- BZZZZ-BZZZZ… Quer um cadinho de mel fervido nas entranhas deuma alma bíblica?! BISPO FERRASCO – Em nome do Senhor, eu te ordeno… BIZBIZ – Ei, ei…Padreco, uma das maravilhas da possessão é que os tempos e as memórias semisturam…Conheci a Verinha… Lembra dela? BISPO FERRASCO – …O próprio Deus te ordena, deixa este corpo…

BIZBIZ – Ordena nada, patética variante de uma cobra manca… Também tu não deixaste o corpode Verinha… A bunduda nervosa implorava que saísses dela e, no entanto, repetias o prato comoquem rompe um jejum de milênios…! BISPO FERRASCO – Fiasco do Diabo, não sabes o que dizes, amei aquela menina como se fosseuma divindade… BIZBIZ – Eu sei, sei, uma dívida bem saudada e também suada, a traveca suava por todos os poros,e sugaste os trocados que lhe deixara sua vozinha cafetina. BISPO FERRASCO – Que horrooooorrrrrrr!!! Mentira!!! Mentira!!! Mentira!!! CURA ARNÓBIO – Ferrasco, estás possesso!… Precisamos chamar urgente um exorcista!!! BISPO FERRASCO – Agora tu, Cura descarado, me acusas de possessão??!!! A audácia!!! CURA ARNÓBIO – Estás possesso, Ferrasco!! E discutes com o diabo que te possui!… DIABETA/BISPO FERRASCO – Essa BizBiz é tuuuuuaaaaaa!!! CURA ARNÓBIO – Pois és tu que falas com ela, Ferrasco!…Estás delirando, meu pobre Bispo… DIABETA/BISPO FERRASCO – Bzzzz-Bzzzzzzz-Bzzzzzzz

CURA ARNÓBIO – Vou chamar pelo televaticano o exorcista Calligaro… DIABETA/BISPO FERRASCO – Bzzz-Bzzz… Padre Calligaro eu conheço. CURA ARNÓBIO – Conheces o Padre Calligaro? BISPO FERRASCO – Que Padre Calligaro? CURA ARNÓBIO – Acabas de dizer que o conhecias… Foi então teu Diabo quem falou. DIABETA/BISPO FERRASCO – Bzzz-Bzzz… Diabo não, Arnóbio, tu sabes bem, safadão, sou umaDiabeta, bem jeitosa… Bzz-Bzzzz… • Entra o Exorcista Calligaro, com dois assistentes, Panfir e Careca. DIABETA/BISPO FERRASCO – Pois então, Bzz-Bzzz Calligaro, cá nos encontramos outra vez,depois da Viúva que encorpei. EXORCISTA CALLIGARO – Consegui te tirar fora da Viúva Mileta, mas ela enlouqueceu. E agoraentão encorpaste o Bispo!… DIABETA/BISPO FERRASCO – Um momento!… Eu sou o Bispo Ferrasco, o Inquisidor… Bizzz-Bizzz Seus calhordas, não sairei tão fácil!…

EXORCISTA CALLIGARO – Cura Arnóbio, já conhecias o Possuído?… CURA ARNÓBIO (no televaticano) – Sim, mandem um camburão urgente… O Bispo Ferrasco estápossuído por uma Diaba poderosa… Será um trabalho difícil… Melhor levá-lo com exorcista prumacela do Santo Ofício… DIABETA/BISPO FERRASCO – És um safado herege, Ambrósio!…Bzzz… Por isso mesmo eu gostotanto de você, meu amor… EXORCISTA CALLIGARO – Presto, Panfir e Careca!… Segurem o Possuído, que está querendobeijar o Cura!!! DIABETA/BISPO FERRASCO – Andem, meus brutamontes apetitosos, mil vezes melhor que oArnobinho com suas asas caídas… BIZBIZ – Por quem me tomas, pangaré do demo! Não te atrevas a falar de minhas asas…Conhecerás a minha ferroada fatal! DIABETA/BISPO FERRASCO – Feijoada? Hum, como as coisas mudam! EXORCISTA CALLIGARO – Deus meu, agora são dois possuídos!!! Amarrem-nos!!! E ponhammordaças seguras, até que chegue o camburão do Vaticano.

• Panfir e Careca cuidam de suas tarefas e Calligaro de suas orações. BizBiz zumbe imitando uma risada, mesmo amordaçada, enquanto a Diabeta solfeja uma valsinha satânica. Logo adentram o subterrâneo dois homens de branco que, com a ajuda de Careca e Panfir, levam dali os possuídos. Calligaro sai em seguida. Palco às escuras. Despenca a cortina preta. Silêncio macabro na sala, mal iluminada pelos pequenos archotes nas paredes. Morcegos revoam guinchando. A esquelética baleira, com vestidinho preto meio puído, curtinho, com as pernas macérrimas à mostra, traz em seu tabuleiro charutos exus, pés de coelho, balas puxa-puxa, figos e figas, rosários, missais, velas, folhas de jornal, esqueletos de sapos de fraque ou de saias e blusas decotadas… e exemplares do libreto de nossa peça… Vão agora se apagando os mortiços archotes, ressoam na plateia algumas tosses roufenhas e abafados espirros… e meio bamba, com ranger de ossos, levanta-se lentamente, a cortina. A nova cena, austera, é a cela do Santo Ofício, com duas macas, onde se encontram amarrados (não mais amordaçados) os dois possuídos, Arnóbio e Ferrasco. Estão dopados. A seu lado conversam Calligaro e o Inquisidor Hermeneuto. Na parede de fundo, sombrio quadro, obra do magistral Bonarroto, um retrato do Papa Gregório IX, de mão alçada numa benção ad Urbi et Orbi, de boca quase escancarada, onde se esconde um megafone, que permite a Sua Santidade falar com as pessoas presentes na sala. PAPA GREGÓRIO IX – Muito bem, filhos meus, que ora atuais com magistral empenho, e vocês,espectadores deste auto tão edificante, dou-vos uma santíssima benção. Tomai lá!…ZAAAAFFFFTTTTT!!! LUPÉRCIO (espectador sentado na primeira fila) – O Papa nos deu uma banana, Marilina!…

MARILINA (a seu lado) – Sossega, Lupércio… Sua Santidade já está podre de morto, não sabe maisdireito o que faz… LUPÉRCIO – Pois devia dar-se ao respeito e manter-se na condição de morto, desfrutando osfungos de tão horrorosa pintura… MARILINA – Dobra essa língua, marido. Ainda nos expulsam do teatro… LUPÉRCIO – Que o façam! Ontem estão as boazudas que os cartazes prometem? MARILINA – Devem ser as bruxas, marido, quieta as barbas, devem estar chegando… Vaicomeçar… HERMENEUTO – Como já se percebe, Calligaro, enfrentamos uma crise delirante de altíssimasproporções. São sintomas físicos, como a letargia, o descaimento da postura e mesmo a histeria. Nãote fies na alteração da voz ou na fala em antigos idiomas, são truques aos quais nos devemos manteratentos. EXORCISTA CALLIGARO – Mais me inquietam o linguajar e a agudez da sedução. INQUISIDOR HERMENEUTO – Sinal de que ainda há um homem dentro dessa batinahorrenda… (rindo-se) Aceite minhas desculpas, não pude evitar essa pitada de humor. EXORCISTA CALLIGARO – Por mais que tente reprimir, algo em tal conduta ainda me molesta.

INQUISIDOR HERMENEUTO – Só não deixe que percebam… EXORCISTA CALLIGARO – A muito custo, a muito custo… INQUISIDOR HERMENEUTO – Mas enfim, o que temos aqui? Qual o histórico desses dois? EXORCISTA CALLIGARO – O da esquerda, Bisbo Ferrasco, sempre foi um irmão da mais inteiraconfiança. Já esteve à frente de inúmeros processos. Desta vez estava tratando do interrogatório desteoutro, Cura Arnóbio, por supostos casos de sodomia. Quando intervi os dois já estavam possuídos emesclavam gestos animalescos com recordações de outros processos em que estive envolvido… INQUISIDOR HERMENEUTO – Tudo isto está beirando o descontrole. O Vaticano tem semostrado condizente com esse pasto de sandices. Precisamos repelir duramente tamanha indecênciaespiritual. EXORCISTA CALLIGARO – Conte comigo. INQUISIDOR HERMENEUTO – Vamos dar ao fogo o que o fogo clama… EXORCISTA CALLIGARO – Ai! O que me preocupa, Hermeneuto, é que vi uma diabita safada napupila do Ferrasco!…

INQUISIDOR HERMENEUTO – Sossega, Calligaro, tua imaginação é um abismo… Não teachegues à beira… EXORCISTA CALLIGARO – Conto com tua ajuda, Hermeneuto, para enfrentar as bruxarias doFerrasco… INQUISIDOR HERMENEUTO – Do Ferrasco?… Não creio. Acho que é o Arnóbio o maléficosedutor… Aquele hermafrodita… EXORCISTA CALLIGARO – À acusação de ser sodomita, Arnóbio respondeu dizendo haver ummal-entendido… Ele se diz tão somente sonomita, pecado puramente mental, de ter sonhos deatrozes deboches… INQUISIDOR HERMENEUTO – Os pecados mentais são piores que os corporais, Calligaro. Épela intenção maldosa que o Príncipe das Trevas domina o Mundo!… A Serpente do Paraíso… EXORCISTA CALLIGARO – Pecados mentais são assim tão graves? Então, Hermeneuto, ninguémescapa, vai toda a Humanidade para o Inferno!… AH-RA-RA-RA-RAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA (reboa na sala uma gargalhada sinistra, seguidade um automático FLAAAAAAAAAAAAAAAAPPPTTTTTTTTT!!! Despenca a cortina.) LUPÉRCIO – O que diabos é isto? Já acabou? MARILINA – Calma, homem. Viu como a cortina caiu de pancada, deve ter dado um treco.

LUPÉRCIO – Um treco é o que estou para ter. Viemos aqui nos divertir e olhe só quantoaborrecimento! MARILINA – Olha só, já estão subindo a cortina… INQUISIDOR HERMENEUTO – Contenha as gargalhadas, Calligaro. Estamos testando umaengenhoca nova na cortina e nas luzes. Nosso teatro precisa se modernizar. Continuemos… EXORCISTA CALLIGARO – Como eu dizia, grande picareta este Arnóbio. Que preciosa invençãoesta do sonomita… O cura é um poeta! INQUISIDOR HERMENEUTO – Um salafrário, isto sim. LUPÉRCIO – Um pilantra… MARILINA – Aquieta, marido. EXORCISTA CALLIGARO – Mas então o Ferrasco é inocente? INQUISIDOR HERMENEUTO – Estás besta? Isto aqui é o Santo Ofício. Ninguém é inocente. Obispo Ferrasco é culpado de um crime paralelo, tão hediondo quanto o de ceder a diabólicasfornicações do espírito. Ferrasco é um plagiador de possessão…

EXORCISTA CALLIGARO – Plágio??? INQUISIDOR HERMENEUTO – Observe bem o modo como ele copia os trejeitos, a paranoiamística, as síncopes do transe, tudo, tudo. Porém dá para perceber que se trata de cópia, nota-se oque há de artificial em sua conduta. EXORCISTA CALLIGARO – O desgraçado me enganou direitinho. INQUISIDOR HERMENEUTO – O exorcismo não é uma ciência exata, Galligaro. Note que eleestá despertando, vamos pressioná-lo. (Aproximam-se da maca onde se encontra o bispo) INQUISIDOR HERMENEUTO – Já desperto, Ferrasco. Chegamos a pensar que a viúva Miletaestaria uma vez mais entre nós… BISPO FERRASCO – Como assim? EXORCISTA CALLIGARO – Não te recordas de nada? BISPO FERRASCO – O que há para ser recordado? INQUISIDOR HERMENEUTO – O que queres recordar? BISPO FERRASCO – Eu conheço este procedimento. Não vão me enganar.

EXORCISTA CALLIGARO – Pois foste tu a nos enganar, com tua lábia encardida. INQUISIDOR HERMENEUTO – Ferrasco, nós sabemos que usaste uma boa tática, de envolver odemônio em uma possessão coligada. Agora já chega de fingimento. Ainda temos que cuidar deArnóbio, e vamos precisar de tua ajuda. BISPO FERRASCO – Não participei da possessão coligada!… Um caetetu lacranou-me a perna emminha investida pro meio do mato, onde se desenrolava o sabá tenebroso com ativa participação doCura Arnóbio. Quis interferir, para exorcizar os demônios, mas eu estava manco da perna ferida, enão pude me aproximar. Pelo contrário, rolei pelo chão, gemendo de dor… Passei três meses sempoder montar na minha mula. Fez-me falta no patrulhamento do Bispado, onde controlo o nefandotráfico de drogas, que vem aceleradamente aumentando. INQUISIDOR HERMENEUTO – O-Ro-Roooo!… Bela desculpa, Ferrasco… Tua incúria iguala a doCura. Não te explicaste sobre os teus controles e outras tramoias com as drogas, especialmente com acocaína. BISPO FERRASCO – Com a cocaína?!… Pois mostrei o maior zelo em combater o tráfico!… Deiprovidências sobre a maléfica droga, proibindo que circule em pó e determinando que fossecomprimida em barras, com a chancela do Bispado. Sempre anunciei sua partida onde quem quisessecheirar, e poderia o cliente tirar das barras, pagando o quinto. Com a queda das dádivas dosabastados, que se vão afastando e se desinteressando em dar apoio a nosso apostolado, precisamosampliar e inovar nossas fontes de rendimentos.

INQUISIDOR HERMENEUTO – Sim, disso tudo já sabemos, porém logo teve mais saída nomercado uma versão spray nasal. Porém tudo muito diluído e enxertado com gesso, talco e dizemque por vezes até mesmo com cal. Era mínimo o percentual da população com acesso à droga pura,como sempre. O inferno já estava de tal modo instalado que não coube ao Bispado senão orientar seumelhor uso. BISPO FERRASCO – Ao custo de apontar alguns bodes expiatórios, como antes já houvera sidoprática aberrante, desde o desterro dos exorcistas em face do fracasso da Inquisição, até a privação dedefesa de muitos de nós ante as acusações de pedofilia. EXORCISTA CALLIGARO – Hoje sou um exorcista apátrida, presto serviços a pequenascomunidades em troca de um sustento. Mal disfarço meu desagravo, o que por muitas vezes medeixa nas mãos até mesmo de pequenos diabos… INQUISIDOR HERMENEUTO – No entanto, temo que aqui estejamos fortalecendo o mal,enquanto avultamos as nossas queixas, ao delinear certos truques, dissimulações, ofensas… Odemônio não pode saber que o Bem não é o que se quer, mas sim o que se alcança. CURA ARNÓBIO (ouve-se uma dilacerante, assustadora e prolongada gargalhada) – Oh quantasalmas prostradas terei esta noite como um banquete divino! MARILINA – Ouviu isso, Lupércio?… Vão oferecer um banquete ao público!… LUPÉRCIO – Eu sempre disse que o Theatro Automático é o melhor do Brasil!…

MARILINA – Certamente o Banquete é só pros assistentes da primeira fila. LUPÉRCIO – Pra primeira fila, certamente. Mas também para os ocupantes do Balcão Nobre. Lávem o Sineiro Quasimbo nos avisar. MARILINA – Pra que um Theatro precisa de Sineiro?… LUPÉRCIO – Pra mostrar gabarito. Aposto que o Theatro São Carlos de Lisboa terá também seusineiro. Mas, em vez de corcunda, será na certa um burro-sem-rabo… MARILINA – Duvido que o sineiro do Theatro Garnier também seja corcunda… LUPÉRCIO – Esses requintes de tradição só os grandes teatros possuem. O Garnier andouperdendo um pouco de prestígio com a inauguração da Ópera Bastilha. MARILINA – A Ópera Bastilha tem guilhotina? De que adianta ter guilhotina, se não tem rei praguilhotinar? LUPÉRCIO – Realmente, um Presidente não teria o cacife do Landru. Mas o Rei de Creta fariasucesso. MARILINA – Olha lá, marido: Quasimbo s’aproxima, enquanto Oduvaldo se levanta da segunda-fila…

ODUVALDO FOGUEIRA – Seu Quasimbo, os ocupantes da segunda-fila também têm direito aoBanquete? QUASIMBO PRADO – Vocês terão um sanduíche e uma cervejinha, prum lanche nas suascadeiras… E poderão assistir ao Banquete de Luxo que se desenrolará no palco, com a presença degrandes autoridades… Além do Papa Borges, virá também o Rei Migalhas de Creta, que solertementepor uma corda s’escapou de sua cela na Bastilha, e acaba de chegar a nosso Theatro. • Palco às escuras. Enquanto Panfir e Careca arrumam a cena para o terceiro ato, Oduvaldo Fogueira aproveita para repetir seu improviso rocambolesco que tantas moedas já lhe trouxe de amparo, o chapelão puído sempre a postos. ODUVALDO FOGUEIRA – Sempre que as coisas parecem perdidas surge um tacho de luz com aslinguiças “Rosas ao Luar” lembrando às turbulências que nenhuma viagem tem regresso. O mortoassim permanece quer lhe agrade o esquife ou não. A aristocracia se alimenta das sobras de nossospesadelos mais supérfluos. Não se aproximem de mim aqueles que não empalideceram diante domapa desfigurado de sua memória. E tu, meu negro amor, com teu disfarce de cisne, quantosesconderijos decifras enquanto palitas os dentes com o ponteiro das horas perdidas nos telhadosagitados da floresta? • Ouve-se o sino tocar três vezes. Luzes se abrem: palco composto por duas poltronas, uma de frente para outra. Papa Borges à direita, com seu cajado. Rei Migalhas de Creta à esquerda, com sua coroa

jogada ao chão. Careca e Panfir ainda estão terminando de varrer o chão, mais alguns minutos e desaparecem. PAPA BORGES – Estive conversando com alguém que me disse que deveríamos converter nossaaventura teológica em um romance populoso, tão repleto de personagens que a meio capítulo deleitura já se torne impossível localizar trama central e paradeiro de suas ações. REI MIGALHAS DE CRETA – As impressões mais cômicas são aquelas que sustentam o cascoenquanto o desastre avalia suas chances. A vida é um teatro constante, em que o Absurdo representatodas as antíteses de sua própria vaidade. PAPA BORGES – As obras póstumas deixam passar vínculos inusitados entre a história e aimaginação. Serão mesmo anacrônicas as revelações, de santos ou demônios, que convertemos emmitos designados a nos convencer de que se uma verdade se mostra ali estão, a seu lado, todas asverdades? REI MIGALHAS DE CRETA – Não perdes nunca o vício de fazer de si um espetáculo à parte.Quanto mais resignados ao esplendor, mais patéticos nós nos deixamos extorquir pela propaganda dacoexistência. PAPA BORGES – A coexistência era perfeita nos bons tempos coloniais, quando os GrandesImpérios Europeus, sobretudo Inglaterra e França, colonizaram a África, o Próximo, o Médio e oExtremo Oriente, com os negócios da China. Naqueles tempos a coexistência era boa, e com a espadae a cruz, trouxemos para os povos incultos a Civilização e a Verdadeira Fé!… Os pobres selvagens…

ficaram tão felizes, com seus belos apartamentos com ar refrigerado, luz elétrica, água corrente,ventilador, porteiro e elevador. E se eles fossem sinceros, veja só que bom seria… REI MIGALHAS DE CRETA – Pois é, são uns ingratos!… Maldizem nosso Santo Colonialismo eagora então… os Mouriscos do Mustafá Feroz querem nos matar a todos!… em nome de Allah!… PAPA BORGES – Decapitam tod’o cristão que encontram… Mas são tão atrasados que ainda nãoconhecem a Guilhotina… O Mustafá Feroz mostrou-lhes como decapitar com a espada!… Vil trabalhobraçal… E já há centenas de terroristas do Mustafá na Europa… prontos pra passar a metralha noscircundantes, ou s’explodir levando consigo pra morte centenas de pessoas em supermercados, oufestas de rua… Mas das centenas de mortos, só o terrorista irá pro Céu, onde ganhará várias mocinhaslindíssimas, de Prêmio Divino!… REI MIGALHAS DE CRETA – Recebendo tal recompensa até eu queria ser terrorista-kamikaze!…Mas no nosso Paraíso, não há dessas gostosas mordomias… Só há rezas e adorações… Então… nãoadianta se kamikanizar… Temos de aproveitar aqui e agora… alguns pecadilhos ligeiros, mas…gostosos… PAPA BORGES – Vais parar no Purgatório, seu hipócrita!… Precisamos catequisar os Islamitascom uma política de Ecumenismo!… Todas as Religiões são iguais… Devemos rezar todos juntos,fraternalmente, cada um pro seu próprio Manipanso Divino!… REI MIGALHAS DE CRETA – Todo Manipanso é o Mesmo Manipansão, com nomes diferentes…

PAPA BORGES (a sottovoce) – Sim, todos são o Mesmo!… Menos… o Nosso… Pssst!… Caluda,Migalhas!… o Nosso… é diferente… mas não conte pra ninguém. REI MIGALHAS DE CRETA – Como lemos ainda ontem: sou quem fui e tu és quem serás. Asnossas escrituras são mais sagradas, nossos templos têm mais lábias, nossa vida um caroço com suaimaginária forma de humor. PAPA BORGES – Simplifiquemos os perigos. A morte advém da falta de lealdade. Devemos regernossos passos pelo assombro com que cada crença nos bate à porta com seus mistérios, legumes emilagres. REI MIGALHAS DE CRETA – O espírito livre requer uma dieta de slogans. A cruz como u7maderivação dramática do Paraíso. A Esfinge como um mapa despedaçado de nossos desígnios. Aescuridão viciada em mel como quem desapareceu sem deixar vestígios. PAPA BORGES – Mouros e cristãos em sua infindável batalha no caldeirão do tempo. Um baião dedois que sacia a fome de clichês de todas as religiões. REI MIGALHAS DE CRETA – Ninguém sabe mais o sabor do épico do que as meninas com seusdotes ecumênicos que foram curradas violentadas açoitadas trucidadas raladas molestadas emtablados e camas e postes, não importa a lei, desde que seus senhores desamarrassem o pé do odre. PAPA BORGES – A lei jamais foi panela para qualquer guisado. Não reclamem agora de tantasbombas e tantos melados desaparecidos…

REI MIGALHAS DE CRETA – Bombas por bombas, prefiro as bombas d’água… Excelentes numcaso de naufrágio… PAPA BORGES – A Igreja é a Nau do Espírito e o Papa o seu Capitão. REI MIGALHAS DE CRETA – E que me dizes, Capitão Borges, da Baleia?… PAPA BORGES – A Baleia do Iluminismo? Colossal!!! Um perigo fatal pra nossa Nau!… REI MIGALHAS DE CRETA – Pior que o Príncipe das Trevas?… PAPA BORGES – O Príncipe é mais maneiro… Mais sofisticado… E nos conhecemos há seculiseculorum… Mas a Baleia do Iluminismo… é uma Besta Colossal!… Burríssima!!! REI MIGALHAS DE CRETA – Podemos selecionar nossos amigos. Mas os inimigos são uma pragaincontrolável!… De repente surge um ladrão… Depois um carrapato, um escorpião… ou então… PAPA BORGES – Ou então o terrível Sambalelê do Depósito das Carniças ou mesmo do Empóriodos Gatunos… REI MIGALHAS DE CRETA – Não são o mesmo? PAPA BORGES – Um mesmo feitiço destinado a duas vítimas distintas…

REI MIGALHAS DE CRETA – Dizem que nem mesmo o Diabo os quer por perto. Foram eles queconverteram a Alvorada em dois pratos iguais, um deles emborcado como um mistério hostil, o outrocom a boca aberta para o vazio. PAPA BORGES – São métodos recíprocos onde é impossível cometer o mesmo pecado duas vezes.Segundo a crença popular, a semelhança é o maior dos malefícios. REI MIGALHAS DE CRETA – Graças a eles o Vaticano achou por bem suspender o sacrífico comque se completava cada homenagem a todos os santos. PAPA BORGES – Aposentaram a sacolinha? REI MIGALHAS DE CRETA – Mas o Coroinha Ganimedes segue usando a sacolinha por contaprópria. PAPA BORGES – Avançando nos bens da Igreja??? Sacrilégio mortal!!! (puxa a borla da sineta) COROINHA GANIMEDES – Chamou-me, oh Santo Padre? PAPA BORGES – Segues circulando a sacolinha em proveito próprio? COROINHA GANIMEDES – Em proveito próprio não, oh Santíssimo Padre!… Em benefício daIgreja.

PAPA BORGES – Em benefício da Igreja? E os cobres, onde estão? COROINHA GANIMEDES – São oferecidos ao tratamento dum mísero rapazinho desmamado,órfão e desmunido. REI MIGALHAS DE CRETA (comovido) – Órfãozinho desmunido das tetas maternas, na maistenra idade?… COROINHA VENCESLAUS (em lágrimas) – Sim, Majestade, de tetas tampouco dispõe o pobrerapaz… REI MIGALHAS DE CRETA – Sequer ainda nascido? COROINHA GANIMEDES – Ah meu rei, já soubeste do prometido? REI MIGALHAS DE CRETA – É tudo o que mais desejamos, Ganimedes. COROINHA GANIMEDES – Pois que se cumpra a vontade do Senhor, antes que nos assolem ascrônicas do zodíaco negro… PAPA BORGES – Que estardalhaço mais infame, herege. Estás a deslustrar bolso e memória denossa campanha ecumênica!

REI MIGALHAS DE CRETA – Faz jus à tua cegueira, Papa Borges, e não o desmascares. Afinal,quem de nós não precisa de uma reserva para os dias que virão… E se é verdade que há um prometidoa caminho, ainda melhor. PAPA BORGES – E se o prometido não der as caras? COROINHA GANIMEDES – Ora, Deus sempre saberá onde nos encontrar! REI MIGALHAS DE CRETA – Nada como um dia na frente do outro… COROINHA GANIMEDES – Mas seria preciso saber exatamente o que foi prometido?… REI MIGALHAS DE CRETA – Não terá sido promessa do Xalim, do Bazar Baltazar?… COROINHA GANIMEDES – Bem lembrado, Majestade!… Xalim prometeu colossal liquidação deestoques, saldos a granel!… E seu slogan de propaganda é, justamente: Nada como um dia atrás dooutro !… REI MIGALHAS DE CRETA – Foi uma das minhas intuições. Estudei Astrologia, rapaz!… Será queXalim tem sortimento de mantos?… O meu está já meio furado… COROINHA GANIMEDES – Certamente!… Sua gama de artigos é inacreditável!… Não quereistalvez uma coroa nova? Da melhor qualidade!…

REI MIGALHAS DE CRETA – De ouro?… Quanto custa?… COROINHA GANIMEDES – De ouro mesmo não, mas de latão folheado a ouro… Belíssima, comescudo do Vasco. REI MIGALHAS DE CRETA – Precisa ser com escudo de Creta. Seria pro meu filhote. Já estágrandinho, e tem ambições… COROINHA GANIMEDES – Cuidado, Majestade, o rapaz pode lhe dar uma chifrada… REI MIGALHAS DE CRETA – Pois é, Ganimedes, a juventude é impetuosa… Nem todos os jovenssão assim educados como tu. E, como ora vens de me aconselhar, todo o cuidado é pouco. O filhote,justamente bufando me investiu, mas em Creta, como sabes, somos exímios toureiros… Dei umaverônica com o manto, o filhote passou raspando, e um fio me rasgou a borda do manto. COROINHA GANIMEDES – Já promete ser um Rei enérgico, que acabará com a esbórnia e acorrupção de Creta!… Talvez seja ele o Prometido!… Que pensais da hipótese, Papa Borges?… PAPA BORGES – Eu temo que não se possa esperar tanto, que o varão cresça e ponha ordem narede de propinas de Creta. Depois teria que vir para cá, onde os valérios se multiplicaram de talforma que mesmo os espelhos não creem mais no que refletem. Não haverá outro prometido? REI MIGALHAS DE CRETA – Como sabes, por aqui toda promessa é dúvida.

COROINHA GANIMEDES – E mesmo assim todas foram surrupiadas, não há mais nenhumadando sopa… ODUVALDO FOGUEIRA (grita da plateia) – Fuuuuuu! Parem com essa miséria consequente.Deixem o caos refletir um pouco sobre os mecanismos da racionalidade. Conf-cof… O teatro não fazexigência alguma quanto à realidade. Não culpem os espelhos. Eles são conscientes de suas farsas. Eda mentira dogmática de todos os credos… Cof-cof… A mentira… cof… cadavérica da justiça… cof… Atragédia sádica da aliena… cof-cof… alienação… Cof… • A partir daí é impossível. Oduvaldo Fogueira é tomado por um imparável acesso de tosse. Há certa inquietação na plateia, enquanto no palco a luz se apaga até tocar a escuridão completa. MARILINA – Alguém ajude, alguém socorra o coitado… • Careca e Panfir adentram um corredor da plateia e dali retiram Oduvaldo Fogueira em uma maca, o pobre se desfazendo em tosse. O público disperso retoma seus acentos na medida em que a luz no palco volta a surgir. Vê-se ali agora instalado um confessionário, ao qual se dirige o exorcista Galligaro, e ocupa seu lugar. EXORCISTA CALLIGARO (fazendo o sinal da cruz) – Alguém se apresente… MARILINA – Se ninguém for, eu vou, quer ver? LUPÉRCIO – Aquieta, mulher! Lá vem alguém…

RIGOLETTA ESCAPULÁRIO (ocupando seu lugar no confessionário) – Sua bênção, Padre! EXORCISTA CALLIGARO – Deus te abençoe, minha filha. Quando pecaste pela última vez? RIGOLETTA ESCAPULÁRIO – Um único pecado me atormenta a vida inteira, Padre. O pecado dadúvida. O senhor acredita mesmo que todos nós sejamos culpados pelos fracassos de Deus? EXORCISTA CALLIGARO – Difícil pergunta, minha filha!… Levantou-me a mim também agora, opecado da dúvida!… Deixa-me pensar um poucochito… COROINHA GANIMEDES – Dá-lhe, Calligaro!… Não se deixe encurralar!… Invente umaescapatória!… TORCIDA DOS CAROLAS – Dá-lhe, Caligaro!!! Dá-lhe Calligaro!!! MATA!!! ESFOLA!!! METE ABOTINA NA PERUA FRESCA!!! EXORCISTA CALLIGARO – Calma, pessoal… Enfim… Digamos pois, minha filha, Deus sofremuito com nossos pecados… E isso o faz se sentir fracassado… Somos todos malvados… Mesmo osbons estão se rarefazendo… Caindo nas ciladas da Ciência racionalista… Vão se tornando céticosincréus… e zombando à socapa da Santa Madre Igreja… É esta zombaria que faz o nosso Bom Deussofrer… vendo seus templos cada vez mais vazios…

COROINHA GANIMEDES – Já não temos mais faxineiros… Eu mesmo tenho de passar oaspirador em toda a gigantesca nave… CAPITÃO GARRANCHO (bradando da mais alta galeria, a mais barata, do Theatro) – A igrejaagora comprou um navio?… Excelente ideia… Podem rezar para que as redes se encham de peixe, seráum autêntico Milagre!… A poluição marinha está acabando com os cardumes!… EXORCISTA CALLIGARO (dá chave de galão) – Poleiro não se manifesta. COROINHA GANIMEDES – Capitão Garrancho tem lá suas razões, Dom Calligaro!… Precisamosde uma verdadeira Nave, e as duas torres seriam as chaminés!… CAPITÃO GARRANCHO – Ah!… Uma pesca milagrosa!… Ai se pescassem para mim uma sereiagentil, rolicinha, que saiba lavar, passar… e cozinhar !… EXORCISTA CALLIGARO (faz severo sobrolho) – O Capitão é católico?… CAPITÃO GARRANCHO – Passou perto, Dom Calligaro!… Sou Pentecostista… EXORCISTA CALLIGARO – Pois então… queira se entender com seu pastor. Se não lhe descolaruma sereia, que siga a cantoria em seu mocambo. Mas Nossa Santa Madre Igreja só se ocupa deCatólicos. E não fazemos pagode no ofício. LUPÉRCIO – Que padre respondão!… Destratando o pobre Capitão!…

MARILINA – Bem se vê que Capitão Garrancho é um homem de bem. Suas intenções para com asonhada Sereia são honestas. LUPÉRCIO – Os Pentecostais são mais sintonizados com as mudanças da sociedade. Seus pastoressão muito engajados e acessíveis. MARILINA – Acessíveis… com as sereias?… LUPÉRCIO – Essa proximidade com sereias é mais coisa do Candomblé. Eu estava me referindoaos paroquianos. RIGOLETTA ESCAPULÁRIO – Por essas tantas que o plenário divino vem esvaziando. A tudolevas na chacota, Padre, intermediado por essa horda mexeriqueira. Um dia acordarás sob osescombros de tuas próprias leis. Recordas que não são mais tempos para novos processos. O queficou para trás, enterrado com os ossos de Barrabás, para trás ficou. A boa e cega devoção já esgotouseus ciclos centenários. As meninas ursulinas e as irmãs de Salem não aceitam mais os vexames queas comeram vivas… EXORCISTA CALLIGARO – Oh minha alma perdida, não te aniquiles tanto assim, não te afastesdo bosque do Senhor, ouve as récitas do arrependimento, que é teu, é meu, é de todos nós. RIGOLETTA ESCAPULÁRIO – Nem por sanha de feitiços ou misericórdias aviltadas, nem porsuplícios sexuais ou lesões provocadas por reencarnações malsucedidas… Mil galos teriam que cantar

infinitamente até a voz do Senhor me dizer por que é tão cavilosa quando me ilude ao sacrifício equase não se escuta quando imploramos por menos sofrimento. EXORCISTA CALLIGARO – Por que te distas tanto assim da fé, oh infeliz criatura?! RIGOLETTA ESCAPULÁRIO – Não me caçoes, vulto maligno! Por que insana razão és tãocúmplice de um Deus que te mune de um crucifixo e te resseca a alma? LUPÉRCIO – Não aguento mais essa interminável querela do padreco labioso. Estou doido porsexo em cena, o beijo da infâmia, o Diabo aprontando das suas… MARILINA – Você quer ver sacanagens, mas em casa você é um santarrão… Só quer fazer papai-mamãe… LUPÉRCIO – Você é que banca a matrona familiar… Fico inibido… Então só me resta saborearsafadezas em teatro de superior qualidade… MARILINA – Talvez então você aprenda algumas posições exóticas, pra apimentar seu repertório.Eis que s’aproxima o Ponto Euxímio. PONTO EUXÍMIO (senta-se ao lado do casal) – Não aguento mais este pastelão religioso, essasquerelas da padrecada…

MARILINA – Foi exatamente o que meu marido acaba de me dizer. Mas porque você saiu doburaco do ponto?… PONTO EUXÍMIO – O buraco está expelindo vapores pestilentos, com cheiro de enxofre. MARILINA – Deve ter rato morto no fundo. Chama o Bedel pra sacar fora a carniça… PONTO EUXÍMIO – Não tem rato morto, e o buraco não tem fundo… Desce a profundidadesabissais… Eu preciso me segurar nas bordas pra não cair. LUPÉRCIO – Veja!… está saindo fumaça do buraco… e agora aparece um tipo estranho, de chifrese cavanhaque, segurando um bastão… PÚBLICO – BRAVOOOOOOOOOOOOO!!! VIVAAAAAAAAAA!!! PLAC-PLAC-PLAC-PLAC!!! PONTO EUXÍMIO – Os parvos!… Estão loucamente aplaudindo porque pensam que este lance fazparte da peça… LUPÉRCIO (desconfiado) – Não faz parte?… Mas então… PONTO EUXÍMIO – Justamente, Lupércio. Este lance é assombrado… Não faz parte da peça. Qua-Qua-Quaaaaaaaa!!!…

LUPÉRCIO – Como assombrado, se está sendo visto por todos! O assombrado só costuma sedeixar ver por poucos, pelos escolhidos. MARILINA – Escolhidos ou prometidos? LUPÉRCIO – Não me ressuscite essa tolice… Vejam o chifrudo como se move em meio a umaespessa névoa que toma todo o palco. Como dizer que ele não faz parte da peça? • Panfir e Careca retiram o confessionário, deixando o palco inteiramente livre, tomado por um efeito de névoa, em meio da qual surge uma imensa figura com chifres e uma capa tomando o corpo inteiro. MARILINA – Diabos, o que será aquilo? Será um viking? O touro de Picasso? Um corno? Omonumento Solarius? LUPÉRCIO – Abriram os portões do inferno? MARILINA – Maldigo a hora em que aceitei vir contigo a esse teatro! Vamos daqui, Lupércio,anda!!! PONTO EUXÍMIO – Impossível! Todas as portas foram lacradas. Agora vai começar a verdadeirapeça. • Na medida em que a névoa se intensifica começam a surgir várias mulheres em uma dança frenética ao som de tambores e guizos. As luzes se avermelham em tons variados. Do teto descem cordas como

se fossem cipós, como se o cenário fosse aos poucos tomado por uma grande árvore. A criatura com chifres deixa cair sua capa e dança com as mulheres, o que permite ver sua imensa cauda com a ponta tripartida. Tudo é música, movimento, luxúria. PÚBLICO FINO EM TRANSE – Bravoooo!!! Bravoooooooo!!! Vivaaaaaaaaaaaa!!! LAFRANHUDOS DO POLEIRO – Vivaaaaaaa!!! Todo mundo nuuuuuuuuuuuuuuuuuu!!! • Coincidindo com os desejos do público a nudez toma a cena como um todo, acompanhando o ritmo frenético dos tambores. A figura diabólica se aproxima de cada uma das mulheres, em gestos cada vez mais pulsantes de uma sodomia profana e infinita. Panfir e Careca trazem para o canto esquerdo do palco um rústico simulacro de telão, vazado. Quando um facho de luz incide em seu centro vemos ali as figuras de Sancho Bermúdez e Sandra Fox, respectivamente críticos de arte e literária que improvisam uma cobertura televisiva para o espetáculo. SANCHO BERMÚDEZ – Extraordinário, Sandra. Inexplicável esse lance digno do Scala de Milano,do Bolshoy de Moscou, do Teatro Garnier! Um capolavoro de bailado, duma maestria e dum luxoassombroso, neste mafuá de vaudeviles mambembes e pífias xaropadas carolas a la… Maritengo!… SANDRA FOX – Estou perplexa, é realmente inexplicável esta verdadeira obra-prima universalaparecer neste circo mocambesco!… SANCHO BERMÚDEZ – Está escrito no programa que a peça é do Bento Cruz, um dramaturgocatólico, severo, um pouco brusco, mas voltado para, através de uma apresentação sem rebuços da

sociedade bestializada em que vivemos, chocar a plateia e deixá-la em dúvidas metafísicas profundasque a levem a se indagar sobre seu próprio vazio espiritual, e, em seu desespero existencial, voltar ase indagar sobre o Mystério do Além. SANDRA FOX – Sim, assim pensei daquele começo muito ao gosto das xaropadas doExistencialismo Cristão… Mas agora, com essa súbita Explosão de Arte, eu não posso acreditar que setrate de obra do Bento Cruz, um beatífico paspalho. Mas Ponto Euxímio está cá em nossos estúdios,vamos pedir-lhe explicações… PONTO EUXÍMIO – Sim, Dona Sandra, eu, vosso fanático admirador, cá estou inteiramente avossas ordens para o que der e vier. SANDRA FOX – Muito grata, meu bravo Euxímio… Mas então, diga-me… Esta peça é mesmo deBento Cruz?… PONTO EUXÍMIO – Eeeeeeeeera…, Dona Sandra, eeeeeeeeeeeraaaaa… Mas agora… O buraco émais embaixo!… O-Ro-Rooooo… SANCHO BERMÚDEZ – Um pouco mais de discrição e cortesia em sua prosápia seria benvinda,meu rapaz… Mas diga-me lá, sem maiores circunlóquios, esta peça, é ou não é de Bento Cruz?… PONTO EUXÍMIO – Já que o senhor me considera circunloquiano, pergunte, pois, ao próprioBento Cruz, que ora se achega…


Like this book? You can publish your book online for free in a few minutes!
Create your own flipbook