FLORIANO MARTINSLIVRO DESMEDIDO DE WILLIAM BLAKE
Livro desmedido de William Blake @ 2018, Floriano MartinsARC Edições, coleção “Nuances postiças” # 2Capa: Floriano Martins Agulha Revista de Cultura http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/ Fortaleza CE Brasil _____ 2018
Como podes saber que cada Pássaro que percorre seu aéreo caminho éum imenso mundo deleitoso se estás encerrado em teus cinco sentidos? William Blake A imagem do fogo se move dentro dos limites da paisagem. Suas ondulações confundem a visão. Talvez dela se afaste ou a leve consigo para outro sítio ausente de minha percepção. O mundo é o que eu imagino ou o que me é dado pelo devaneio? FM
1831 | O BLASFEMOO pintor e escultor Frederick Tatham foi um discípulo de WilliamBlake. De íntimo convívio com ele, após sua morte abrigou a viúvaCatherine, como empregada da casa. Com ela dividiu a guarda doespólio de Blake do qual tratou de assenhorear-se quando morreCatherine, mesma época em que conhece o pregador presbiterianoEdward Irving, cuja ortodoxia levaria Tatham a considerar blasfema aobra de seu mestre. Em face disto, parcialmente a destruiu, vendendoo que lhe restou, por necessidade, graças ao que a memória de Blakeem algo se preserva.FREDERICK TATHAM ⎼ Darei ao fogo o que somente a ele cabe castigar. Ao fogo e à manifestação de todas as línguas que sabem discernir entre o impróprio e o valor inestimável do que nos honra a existência devota. Não há como forjar a inocência ou a experiência. O mundo é o que nos permite a compreensão de Deus. Cada
vocábulo de nossa vida é uma doação. Existimos para fortalecer ocoração do Senhor. Vejo agora que a obra de Blake trai essa bênção divina que lhe foidada desde muito jovem. Blake foi um pregador da dissidência, daante-devoção carismática, um apóstolo da perversão erótica quedestrói todos os cânones divinos. Não importa que tenha dito que não há utilidade em seusmanuscritos. O Senhor me ordena livrar o mundo de seu pecado.Blake não deve existir. E disto não me arrependo.
1835 | ENCARNAÇÃO DE CATHERINE SOPHIAFilha de um jardineiro, eu nasci em abril de 1762. Minha vida jamaisteria se cruzado com a do senhor Blake se ele não tivesse atravessadoa margem do rio Tâmisa para se recuperar de um amor que lhe haviaabatido. Tenho muito presente em minha vida o instante em que eleme disse que me amava pelo simples fato de que eu havia meapiedado de seu sofrimento amoroso. O senhor Blake sempre foi umanjo predestinado. Nós nos casamos rapidamente, eu então não sabialer ou escrever, de modo que na igreja assinei um papel apenas comum x. Tudo o que aprendi na vida me foi ensinado por ele. Eu lhedevo tudo e sei que preenchi seus dias com a minha dedicaçãoincondicional. Não tivemos filhos e este foi o único desconfortonosso, ao ponto em que ele por vezes insistiu em ter conosco outramulher apenas para que lhe desse um filho. Eu sei que ele defendia oamor livre de um homem com várias mulheres, porém sempre merespeitou e muito lhe considero também por isto. Eu não privei muitode sua companhia, porque ele passava a maior parte do tempo em
estado paradisíaco, ausente do mundo. Em suas últimas palavras, aomorrer, no momento em que me desenhava o rosto, reconheceu quesempre fui um anjo para ele. Quando o personagem de Enitharmon surgiu, há um entendimentode que eu o inspirei, o que seria uma idealização da imaginaçãocriadora se expandindo além dos instintos afetivos em busca de umaconcretização carnal do amor. O senhor Blake então seria Los, o meuprofeta eterno, e eu seria uma vez mais a sua sombra de prazer, comome descreveu em um de seus livros. Quando morreu, eu lhepermaneci fiel companheira. Recolhida à casa de um de seusdiscípulos, Frederick Tatham, fui trabalhar como governanta e seguicolorindo e vendendo as obras de meu anjo. Em vida eu o ajudei acuidar das finanças e trabalhamos juntos, ensinada que fui aimprimir e colorir suas gravuras. Quando morri Frederick nos desapontou de várias maneiras, acomeçar pela afirmação de que o senhor Blake lhe havia tornadoherdeiro único de suas obras. Convertido a uma religião hipócrita ⎼meu amor sempre me ensinou que todas as religiões são uma só eque não se pode acreditar em nenhuma que queira existir em isoladoou se considere superior às demais ⎼, passou a considerar profanos
aqueles escritos e desenhos, e parcialmente os destruiu. Sãocriminosas as chamas ateadas sobre a quase totalidade dos escritos erascunhos de um livro como Os quatro Zoas. Este homem não merececlemência, onde quer que esteja. Graças ao meu William aprendi que a expulsão do homem doParaíso não reflete a transgressão de uma lei divina, mas antes o seuestabelecimento. É a lei que expatria o homem.
1828 | CATHERINE SOPHIAEle me fez cair em seus braços sem que a noite suspeitassedo acaso. As lágrimas criam mundos em miniaturas.Ele se alimenta da inocência do abismo e este recolhesuas flores de lótus como um reflexo de que a inocêncialhe confidencia a planta de acesso à beleza mais voraz.Eu dei a William a orfandade de seus abismos e letras.Eu o inspirei a adentrar uma realidade propensa ao desvario.Fui sua pérola líquida, esteio de argumentos transparentes,cascata de luzes fantásticas, o ponto em que ele não sentiasequer a urgência de estar vivo. Bem ali, naquele arvoredo,na penumbra do impronunciável, ele se desfez em mim.Tenho comigo um bilhete em que declara apressadamenteseu temor de não estar a falar comigo. Desde os temposda escrita, do devaneio, da criação. Desde a silente físicados prelúdios e a química dos lamentos. Eu jamais fuiduas mulheres para ele, embora em mim fossem muitas
as vozes a se confundir. Sua imaginação sempre se alimentoude si mesma, com suas visões e o ditado incessante do amor.Ele me criou dentro de seus braços. Eu jamais quis ira lugar algum. A sua inocência me deu toda a razão de ser.
ARREDORES DE 17651. Blake em seu passeio matinal pelos campos nas redondezas dacasa dos pais. Em uma árvore o surpreende um grupo de anjos.Reconhece um deles em um galho mais alto. Ao regressar à casa cuidade desenhar a cena. Indagado pelo pai afirma tratar-se de Ezequiel.JAMES BLAKE ⎼ William, não deves nunca mentir.WILLIAM BLAKE ⎼ Há semanas que os vejo, pai, e hoje reconheci Ezequiel. Não me disse uma palavra, porém sei que era ele.2. Sequência de imagens: Blake desenhando suas visões; agarrado aalguns livros, aprendendo sozinho a ler e escrever; indo a seboscomprar livros e gravuras; copiando-as, em casa. O pai admirado umdia o leva a frequentar o atelier de um gravador.
WILLIAM BLAKE ⎼ Por sete anos, eu copiei os mais distintos mestres, ao mesmo tempo em que desenhava estátuas e efígies sepulcrais.3. Pequena conversa entre Blake e seu maestro de gravura:WILLIAM BLAKE ⎼ Em uma vida tomada pela criação os erros se reproduzem na mesma escala dos acertos. Por vezes não excedemos o sítio das adivinhações. Criar é entregar-se à voragem da existência.JAMES BASIRE ⎼ Cuida para que o ofício não corroa a percepção.WILLIAM BLAKE ⎼ Os meus dias estão certos. Desde que vi Jesus e seus apóstolos compreendi que todos temos que nascer para uma segunda vida. Este será o meu evangelho.
NO ATELIER DE JAMES BASIRE COPIANDO OS MESTRESEu vi os teus olhos caídos em mim.A tua árvore destinada ao mistério.O milagre cotidiano de estar aquino instante em que te posso evocar.E que sejas mais de um, pois jamaisnós iremos apenas a um único outro.Não há distinção entre a verdadee o milagre. A minha inocênciaagora me faz ver que as opiniõessão fontes de um sufrágio eterno.Eu estou aqui. Não há como sabercom que frequência nos reproduzimos.A realidade é uma espécie de reinodos desmentidos. Basta pensarmosna astúcia de quem encarcera a história.Os nossos primeiros valores nos cercam
de eternidade. A realidade não costumapassar de um instante. Eu te ausentode tudo. Eu sou a ausência mais plena.Eu sou o inferno aconchegado em teus braços.O abraço dos céus, emaranhadode não estar em parte alguma.Eu fui o primeiro a compreenderque lugar ocupo no abismo.Estou pronto para reconheceros motivos de tantas aparições.
1782 | PRESSENTIMENTOS A inocência fixa no horizonte uma turvação de imagens que rompem o atrativo da lógica. Blake conhece Catherine e logo se casa com ela. Ele a ensina a ler e escrever, bem como a lidar com gravura e aquarela.CATHERINE ⎼ Meu amor, o que vens fazendo se encontra acima de meus sentidos.WILLIAM BLAKE ⎼ Desde a morte de meu irmão que o vejo a me guiar por outros labirintos.CATHERINE ⎼ As tuas visões te pertencem.
WILLIAM BLAKE ⎼ Nós pertencemos ao mundo. As instruções mais preciosas são aquelas que nos põem em contato com o pressentimento. Nossas mãos escrevem as linhas reveladoras do que somos.CATHERINE ⎼ As tuas visões são uma dádiva. O mundo anseia por ouvir a tua voz.WILLIAM BLAKE ⎼ Sabes que está escrito que não posso viver sem cumprir meu dever, que consiste em acumular tesouros no céu.CATHERINE ⎼ Mas também acumulas tesouros em mim.WILLIAM BLAKE ⎼ Não te esqueças, Kate, que a soberba do pavão real é a glória de Deus.CATHERINE ⎼ Não me importa a cólera, a nudez, o excesso de entendimento. Já me deste à luz, meu anjo. Também o inacreditável é uma imagem da verdade.
WILLIAM BLAKE ⎼ Não tenho outra manhã em minha vida que não sejas tu.CATHERINE ⎼ Somos os nossos provérbios: exuberância é beleza.
1793 | A ÚLTIMA INOCÊNCIAA noite cumpria os detalhes imprevistos de cada instante.Certas luzes excitadas erguiam tanto as pernas que maispareciam lutar contra a agudez de uma dor insuspeita.O horizonte não se limita à confiança de quem o contempla.A astúcia soletra o pregão da fé. A dúvida debulhaseus motivos insepultos. O dia me vem de cada domínioque identifico, como alguém que se escraviza a si mesmo.A luz delata a paisagem? A noite é uma enfermaria da alma?Quanto temos que destruir até que a eternidade recuperesuas energias? Tanto quanto o bem, o mal nunca soubeo que fazer de si. O espelho sempre foi a grande tormenta.Sempre buscamos o outro na margem errada desse riode ilusões. Os erros são uma indecifrável verdade a esmo.Que me ponham a ferros e o abismo não me roubará
a porção de mim mesmo, traída ou não, que acreditouna inocência como uma última quimera. Meus provérbioscaíram por terra quando parte de minha inquietude foidestruída pelo filho mais amado. A eternidade não suportaas obras do tempo. Os mortos constituíram uma aliançade injúrias. O orgulho não tem mais vergonha algumade seu mórbido espectro. A exuberância tornou-se feia.Nada mais é demasiado, exceto o equívoco. Eu creio no fato.Não há metáfora que realoque a tormenta do espírito.Ainda vejo como Catherine confiou a Frederick as minhascrianças. Aquele que não honra uma herança desesperaráem vida. O que bastará à morte para que eu exista, senãodesejar-me ardentemente. O fogo crê apenas na destruição.
1793 | A CRIAÇÃODevo criar um mundo ou me deixar sujeitar pelo de outrem.O homem não me interessa como uma peça isolada no tablado ou como um simulacro de suas ansiedades. Não quero saber da palavra que não transgrida o ato que a representa.O amor é o único evangelho eterno. Um Deus que não ame a si mesmo jamais fará bem a quem o siga.Quem cria não pode ser devorado pela tristeza.Não há sabedoria longe da persistência na loucura.A eternidade me comove, tão sensível a cada letra que gravo na pele do tempo.Eu não creio no engenho precário dos sofismas ou na verdade apalavrada pelo hedonismo.O amor é a evidência capaz de substituir a si mesma pela descoberta do outro. A restituição da humanidade a seu estágio capital de correspondência e entrega.
A palavra e a imagem não se revelam como malícia e ardil. Elas se fundem em uma lei ulterior: revelação de que o mundo existe muito além do visível.Rir ou gozar, são apenas dois credos sufocados pela abstinência de um desejo maior: deixar-se fecundar pelo mundo.Não me contenhas, mundo, que não me privo de tua inundação.A cautela é a morte da imaginação.Eu ouço o verbo. O verbo necessita caminhar. O adjetivo é uma cisterna irrespirável que acumula tragédia em seu umbigo.Não há dores averbadas na lapela. O que rompe o coração é a única matéria possível de narrar a expansão do ser.Os meus estados de transe não me confundem. Ajudam a temperar a ideia que tenho de um mundo em que apenas o espírito pode enriquecer-se de si o suficiente para expandir-se na forma de uma humanidade.O espírito é a soma de seus infinitos.À luz não lhe falta razão nunca.Eu descrevi um mundo soterrado pelas pedras da ganância. Um sol que amava apenas a própria órbita. Os espíritos cativos de uma revolução empenhada em criar ruínas.
A tirania é o pecado de desejar o mundo apenas para si, a visão de um lugar cego que reflita a norma e não a utopia.As almas decaíram pela objetividade do mistério.O piano pode se embriagar independente de seu músico.Eu não separo dia e noite em minha vida. Estarei aqui a todo instante anotando o que me é dado, o que percebo, o que convive com minhas dúvidas.
LAPELAS NA FLORO primeiro homem eu criarei agora.As mesas acumuladas na vertigem do olhar.O mistério rodeado de trombetas.Nenhum profeta é eterno, por mais que se confundacom a joalheria de nossas ansiedades.Maravilhoso ou funesto,o desejo é sempre movediço.Eu desço à profundidade das inquietudes,ao reino indolente de tantas ilusões.Ali identifico a tua silhueta,em todas as vicissitudes copiadas.Estes são os registros da miragem tangível.O mundo como o habitamos.O império, a divisão, as artes, a angústia.Como um rol pressuposto de modos de viver.Se acaso há um inimigo em linha,
então o inimigo somos todos nós.Não há núpcias antes que o baralho esteja completo.Nenhuma ordem haverá de garanti-lo:seja a arte, a ciência ou a religião.O primeiro homem deve saberque o seu evangelho é o da regeneração.
BLAKE CANTANDO AO CRIAREu me ponho a cantar enquanto a vida se arrasta por veias humanas.Humildade transparece hipocrisia. Generalizar é abrigar a fealdadeespúria. Deus não nos ensina tanto quanto nossos próprios passos.Eros não teme seus erros. Eu vejo como o mundo se desvanece emdisfarces. O homem é uma súplica de si mesmo.
BLAKE CANTANDO SEUS POEMASEle cantava os poemas como se ouvisse a voz do espírito,as imagens anunciando uma selva de sentidos, a terraamanhecendo no dorso de cada palavra, o ritmo buscandosemelhança nas sombras, nos raios do canto, imagensque se aproximam ansiosas por velhas conexões,imagens cantadas como um espasmo do instinto.Blake cantava como se desejasse que a razão lhe desabitasse.Queria seus filhos amáveis, bem vestidos de ânimocomo um braseiro incessante. A vida flamejante que se atreviaa renascer a todo instante, ardendo de si mesma,tecendo as fibras de uma simetria impensável.Blake cantava como se em cada uma de suas árvoresresidisse uma nova morada do ser. Ao final de cada diaa Deus pedia que as roubasse, para que assim pudessem voltara vê-los de outro modo na trilha de uma essência inquieta.
1778 | MINERAÇÃO ESPARSA1. Na abadia de Westminster foram inúmeras as visões enquantoesboçava seus desenhos. A arquitetura gloriosa das formas expressa as raízes da alma humana como um livro antigo apreendido na árvore tirânica do corpo amado. A humanidade se reproduz por um pacto incessante de morbidezes. Até mesmo o amor a Deus é sujeição. Quando um homem abraça sua mulher uma maldição sempre os petrifica.2. O poeta contestando a defesa de Joshua Reynolds de uma verdadegeral. Nenhum criador está acima de sua criatura. É uma lei natural: o destino do homem é o mesmo da elipse. Nem mesmo Deus repete suas orações a cada noite.
3. Sobre o amor livre. Não há como guardar livros para um momento ideal de leitura. Ou nuvens para uma chuva mais propícia. A especulação é a erva daninha de uma vida livre. As instituições são um fracasso da convivência humana. Imaginemos um sindicato dos castores, uma arquidiocese das pedras brutas ou um livro de sementes postulado por elas mesmas contra o desmatamento. Não há tempos turbulentos. A turbulência é parte íntima de cada templo humano. Os amigos corporais são inimigos espirituais.4. Ao ser contratado por William Hayley. A arte da guerra não se dissocia dos credos ou dos grilhões. Os heróis não são evidências da realidade, e sim personagens plantados. Sem o comércio das almas o mundo não leva a cabo sua excentricidade de bruxas e conspirações. Há uma nova era a cada manifestação de inquietude, algo está sempre por vir. Porém o homem é tirânico, e raramente sobrevive a si mesmo.
PERCURSOS DA QUEDAO verbo é uma queda. O verbo é uma cor. O verbo é um disfarce. Umsinal de movimento que pode exigir uma silenciosa vigilância. O verbocobra pedágio por revelação de seus movimentos. O verbo não sabe aquem ama, a quem desafia. O verbo é uma pastagem de venenos.Qualquer imagem ali aventurada evidenciará outra e exigirá um teatrotormentoso que a justifique. Somos renovados pelo pensamento oupela recordação? O passado ignora nosso desejo de sua incansávelpresença? A vida acaba por ser uma luxúria tediosa.Não vamos a parte alguma. As leis existem em face de suas exceções.O mundo restrito da semelhança negociável. O generoso céu que nãosabe onde reside o inferno. A evidência que rejeita os argumentos daimaginação.
A solitária intuição entranhando-se nas vertigens menosinexploradas. O verbo é uma escada encarcerada. O verbo é uma maladisposta a refazer a viagem. O verbo é uma esponja.Um mito desgovernado.
1827 | UM DIA PARA MORRER(Blake e suas últimas palavras a Catherine) Mergulha tua existência de anjo na pena com que te desenho agora. Logo que o teu olhar seja a realidade da tinta entoaremos canções que serão a ponte de nossa essência. Sabes que eu sempre quis conhecer o lugar que nos reserva a morte. Desconheço que hóspedes seremos, porém intuo que mesmo na morte nenhum retrato se completa.(Catherine e suas últimas palavras a Blake) Estou indo a teu encontro, meu amor. Não falta muito tempo para nós. Creio, no entanto, que teus ensinamentos serão, no mínimo, esquecidos. Estamos cercados de variantes monárquicas, cada uma disposta a criar seu próprio efeito revolucionário. Eu te liberto de mim. Como Beatriz jamais libertaria Dante. Que sejas um anjo
abençoado e não a casa sagrada onde não mora ninguém. A nossa morada comum foi a da liberdade acima de todos os desfalecimentos. Ninguém entenderá como nos criamos e recriamos em lâminas, ácidos, beijos e vislumbres. Jamais deixarás de ser Blake em mim.(O túmulo) Cada morte coleta suas páginas aparentemente dispersas e busca limitar os efeitos de um brilho peculiar com o qual jamais se identificará. A vida é generosa em sua escala de dissídios. A morte contratou um teatro de fantoches para lhe garantir perpetuidade. Quem é o implacável tirano: o que nos impõe a vida ou sua extinção? Como criar regras destinadas ao que não compreendemos? As tuas obras rebeldes podem ser enterradas contigo. Ninguém estará aqui amanhã. O teu túmulo deveria estar aquém do júbilo de tua memória. Porém o túmulo parece ser a única forma com que os mortos participam da vida.(Um manuscrito)
Eu estou tomado de mortes. Os chamados sempre me quiseramconverter, a morte por parcimônia, o credo da morte, seusexperimentos todos. Jamais fui santo ou cientista ou poeta.Recordado como dissidente, não residi em recanto algum desses trêssítios que sempre me foram um só. Os que venham a destruir, porfalso altruísmo ou qualquer reserva fanática, entendam que aamizade não disseca o coração, que golpeia a si mesma à espera nãode sepultar equívocos, mas antes de surpreendê-los em outra via quenão seja a da exploração de abismos e graças plenas. O mundo nãoacaba nunca. Para que possamos chorar por ele, sempre.
1827 | NO LEITO DE MORTEA luz que me alcança em meu leito abre diante de mim um portão de minúcias.Uma nuvem de lágrimas descreve as viagens secretas da Ilusão.A forma que almejamos para as nossas profecias.Uma acústica de sonhos que se reescrevem a cada noite.Meu desejo de que o mundo nos guarde em seu acaso perene.Somente o espontâneo está livre da destruição.A luz move minha mão trêmula e desenha teu rosto, os deuses comungam resguardados por tua presença.Cada mínimo traço possui a idade da imagem.As árvores iniciadas no horizonte ainda hoje prosperam.As aves reconhecem a geografia alquímica que seus voos conjugam.
Pedras de luz de uma vida sem aflições.Uma criança cercada de mistério.O pequeno bote da angústia atracado em um ancoradouro de teias aguardando a chegada de alguém.O breu se alimentando de uma garatuja de infortúnios.A ansiedade sempre insiste em assinar um tratado com a dúvida.A luz que me visita me ensina a morrer apenas em teus braços.Aprendo a dieta de seu tempo inexato, como a última coordenada de um barco antes de entregar-se às rugas de uma corredeira.A luz me chega filtrada por sua botânica incessante.Decifro teu nome, Catherine, entalhado em cada pedra da arquitetura de minhas visões.O rio não apascenta seu temperamento.O mar não lhe deixa outro recurso senão a joia visionária.
Eu sou a multidão de tuas sombras, assim como fazes florescer em mim uma respiração devota do infinito.Nós somos um abismo que descende da própria queda.Somos o maior pecado da eternidade.
1827 | CONTINUO MORRENDOQuando estive pronto para morrer eu sabia o significado da morte.Mesmo morto a minha vida permaneceria a meu lado. Os meus errosforam a intransigência de uma alma dedicada ao vislumbre. Jamaisestive em outra margem que não fosse aquela da essência humana. Eupressenti as dores dos reis e dos deuses. As febres místicas. Asdinastias religiosas. Oh Deus, que ainda jovem me cobriu de visões,eu pequei por transbordamento da imaginação. Porém as tuasescrituras foram a minha letra de ouro. O que queres negar em mimque já não seja o escárnio de tua presença no mundo? Acaso o céutambém não abriga a origem de todos os males? Será apenas oinferno a se apropriar de nossa docilidade? Tens que me dizer tudode outro modo. As tuas reticências não mais curam os apelos dasalmas mais expostas. A vida lacra um ninho de absurdos para servircomo última cena.
1827 | BLAKE & CATHERINEELE ⎼ Eu quero muito que o desejo se apiede do homem.ELA ⎼ O que me deixas para guardar-te a memória?ELE ⎼ O meu estar contigo. Que sigas aprendendo outros idiomas, outras nuanças, para que completemos nossa missão. Eu não morro aqui. O mundo flutua à espera de quem o decifre.ELA ⎼ A tua sombra seguirá comigo.ELE ⎼ Não, Kate, a tua deve falar consigo e dar liberdade a uma nova eloquência.ELA ⎼ Choro a tua morte e digo que te amarei sempre.
ELE ⎼ As evocações são apenas o princípio de um novo mundo. Nenhuma criação é ilimitada. Um dia virá alguém para nos dizer que todas as profecias são perecíveis. Somente o abismo é um mundo sem fim.
1826? | TRÊS CARTAS1. A inquietude de William Blake refletia-se na profusão de uma obraextensa e dotada de uma voragem rara: buscar relevância em cadamínima projeção do humano em seu ambiente tangível, justificar ohomem em cada ato, tateando as relações possíveis entre doismundos, o sagrado e o profano. Em uma carta ao jornalista HenryCrabb Robinson, confessou que escreveu mais do que Rousseau ouVoltaire.⎼ Não publicarei mais nada. Tenho escrito por ordem dos mais altosespíritos. Meu traço é uma extensão daquela palavra sagrada que sedestina a iluminar o homem e seu tempo. Não creio em obrainacabada. Tudo o que fiz em minha vida é o que tratei, de algummodo, de tornar público. Finalizo a minha existência em mim mesmo.O que por ventura seja preservado pela eternidade não é decisãominha.
2. O entendimento de certa blasfêmia no contexto filosófico da obrade Blake vem do fato de que a sua visão de mundo não era a de umenviado religioso e sim de um poeta, empenhado em cotejar a relaçãoentre todas as formas de oposição geradas pelo abismo entre doismundos.⎼ Não sou Deus ou mesmo um emissário seu. Escuto o que me dizem asvozes celestes, porém a minha persistência por não retocar os versosfoi mais além do prejuízo estético. Por mais que misturemos os temposo futuro não terá mesmo como intervir no passado. O que imaginoserá sempre distinto do que recordo. Eu quis dizer a todos nós que oerro, o pecado, o crime, mesmo o arrependimento, não são valoresintrínsecos, que estão a cargo de um roteiro que não se satisfaz senãoao provar a fragilidade de nosso cuidado mais íntimo. Destino é umafalha do acaso. Destino é humilhação.3. Blake gravou a própria vida em metal, fez-se personagem de suaescrita, imprimindo relevância ao modo como o homem participa datrajetória divina e vice-versa. A criação artística como uma declaraçãode princípios.
⎼ O homem jamais teve pudor algum de si mesmo. Onde começa omundo? As minhas palavras não foram de conforto ou assimilação dealgum modo de estar vivo. O homem não é nada se crê em umadivindade e não a contesta. Não há diálogo sem confronto.
TRAMELA DAS FÓRMULASNão há santos humildes ou páginas desencontradas da história.Uma histeria de aniquilados transforma em areia o temporegado pelas religiões. A pequena flor que alimenta a visãohumana discorre sobre suas agonias a cada trono deposto,a cada minuta da fé como um instrumento da razão.As dúvidas perfuram os olhos dos cegos. Até hojenão encontrei nenhum motivo para estar aqui.Ao rasgar a imagem do que almejamos representar,que significado pode restar em cimentar altares vazios?
ESPELHO EM BRASAA deusa se foi por entre os lábios, sem nada perdoar,sem receber as honras por seus rigores excessivos.A deusa não cabe em receituário de orações.O inferno é benevolente com a virtude.O vulto divino é um fracasso em suas transparências.O inferno tem um estoque de demônios para o casode um mundo mais imperfeito do que o imaginado.Glória a Deus, nas alturas do inferno por ele mesmo criado.As malícias ignoradas, os crimes adiados, as volúpias forjadas…O mundo cai por terra por tão pouco, a todo instante.Como haver um poeta para a astúcia de cada desequilíbrio?Ninguém no mundo jamais confiou em si mesmo.A deusa escapuliu dali, desconfiada dos arrependimentos.
ANOTAÇÕES AUTOBIOGRÁFICASNasci em novembro de 1757. Meus pais eram fabricantes de meias.Desde criança as visões foram o meu dote incomum. Aos quatro anosgritei diante de uma janela ao ver ali impresso o rosto de Jesus. Ospais não acreditaram e, por sugestão de minha mãe, acabei medesmentindo para evitar apanhar de meu pai. Aos 11 anos voltei a servisitado por outra visão, desta vez uma árvore repleta de anjos comasas reluzentes como estrelas. Entre todas elas a que mais me cativoufoi a visão do funeral de uma fada, seu corpo pousado em uma pétalade rosa. Minha vida sempre cercada de anjos. Logo que comecei aescrever meus cantos, essas figuras se apresentam dominando asimagens, conversam comigo, me levam consigo por um mundoespantoso de luzes e magia. Quando fiz 15 anos, já desenhava e escrevia, meu pai me inscreveno atelier de gravura de James Basire. Por sete anos me ponho acopiar a obra de grandes mestres e também a esboçar minhaspróprias ideias. Fascinado pela obra de Rafael, Da Vinci, Miguel
Angelo, ao mesmo tempo em que me atraem os desenhos góticos quese repetiam com frequência em túmulos e estatuária da Abadia deWestminster. Essa combinação de milagres da criação definiram asminúcias essenciais do que realizei em toda a minha vida. Em 1779 fui admitido como gravador da Royal Academy School,onde se realizou minha primeira exposição, aos 23 anos. Nestamesma academia fiz cinco outras individuais. E graças a ela eu metornei um gravador com atuação no mercado de anúncios, embora acrítica jamais tenha reconhecido o valor de meu trabalho. Estes foram os anos em que tive o meu único desencanto amoroso,algo que por sorte foi definitivamente apagado de minha memória aoconhecer Catherine, com quem acabei me casando em 1782. Apesarde ter o mesmo nome de minha mãe, o que nela me tocou com a forçade um pressentimento foi a certeza de uma predestinação. Catherineera filha de um modesto jardineiro, não tinha instrução alguma, e meconheceu em um momento doloroso de desventura amorosa e solidãomoral. Eu a ensinei a ler e escrever, assim como a arte da gravura e acolorir meus desenhos. Estes primeiros anos de vida com Catherine coincidem com a mortede meu irmão mais novo, Robert, com quem montamos um atelier em
um bairro popular. Nós três juntos levamos uma vida bem fértilcombinando criação, afinidades e alegria de viver. Quando se vaiRobert, em 1787, é imenso o vazio que sua morte escava em minhaalma. Menos de um ano depois, sou visitado por seu espírito que meensina a técnica de mesclar poema e imagem em uma mesma pranchade metal. Eu não seria nada sem a morte de meu irmão e sem apresença física de minha mulher. Eu sou filho de ambos. Os primeiros experimentos seguindo as orientações de meu irmãose contrastam entre si como as duas faces de uma mesma moeda. Ascanções da Inocência estão ambientadas em minhas visões angelicais,com sua crença na natureza humana, presságios, imagens oníricas.Cinco anos depois, quando publico As canções da Experiência, arevolução francesa havia ensurdecido aquele jovem que escutava oinocente chamado do cordeiro. Tudo o que eu via diante de mim eraum mundo de terror, a visão de uma terra devastada pela descrença,de uma noite destroçada por disfarces agônicos. Meus anjos setornaram tigres. Ao escrever o último poema deste livro eu já haviaperdido a minha inocência.
A crueldade tem Coração Humano e a Inveja um Humano Rosto; o Terror a Humana Forma Divina e o Segredo as Vestes Humanas. Tal era o fruto atual de minhas visões. O horizonte caótico dasexpectativas sociais se alimentando do preconceito religioso e damiséria filosófica. Não era possível observar o mundo senão pelalente de uma alegoria, ao mesmo tempo em que esta jamais salvaria ohomem dos destroços de seus equívocos. O que eventualmente nosdistancia do restante reino animal é que não podemos viver somentepara nós mesmos, para a fabulosa soberania da espécie humanasobre as demais. E tanto levamos esta sobeja a sério que nostornamos superiores a nós mesmos, ao estabelecer uma classe devalores que dignificam uns e subordinam outros. O homem é umaespécie rara de contradição na natureza. E seu pecado mais grave foihaver inventado a religião como uma forma de dissuadir ahumanidade de sua essência comum incondicional. Por vinte anos pude realizar meus trabalhos graças a interesses depatrocinadores que confiaram em minha dedicação também a
algumas sugestões suas. Todos os seguidores de uma seita são tãoescravos quanto soldados em campos de batalha ou cidadãos emregimes militares. Fui acusado como sedicioso e lunático por pensarassim. Político ou religioso, o poder jamais aceitará ser contestado.Não sou profeta de nada. A humanidade perdura em suas trevas,sempre dedicada às facilidades do caos. Eu disse muitas vezes que o homem somente se comunica com oParaíso através da poesia, da pintura e da música. Eu creio que ohomem se fez a si mesmo na condição de um criador, cujo destino émarcado pela percepção e não pela razão. O homem existe apenaspara criar. Este é seu único evangelho. Na natureza existem tantasformas quanto as que eu posso conceber, tangíveis ou não. O que meaproximou de Jó ou Dante foi o entendimento de que a fraquezaespiritual do homem o leva a inventar tanto uma divinizaçãoautoritária de si mesmo quanto uma horda de seguidores. A vidahumana é natural e sua incondicionalidade radica exclusivamente nafluidez dessa naturalidade. Quando rascunhei os quatro Zoas imaginei um mundo em quepudéssemos recuperar a identidade original. Somos a obra labirínticade todas as nossas ilusões e alusões, o que nos toca ver e desejar,
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