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REVISTA AL HAKIM SETEMBRO 2021

Published by alhakimrevista, 2021-09-13 03:52:25

Description: REVISTA AL HAKIM SETEMBRO 2021
Revista sobre espiritualidade islâmica, sufismo e cultura.

Keywords: Sufismo,Rumi,Slamismo,cultura islamica,espiritualidade,poesia sufi,musica sufi

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/moc.xmifarg.www//:sptth /ıcnatoK amleS :otoFAl Hakim REVISTA SOBRE ESPIRITUALIDADE iSLÂMICA EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021 Rumi New Age ou Islã? Seus poemas, versos e frases estão na boca de celebridades do mundo pop como a banda Coldplay ou a cantora Madonna, assim como circulam pelas redes sociais... Daniel Rodrigues Placido traz uma reflexão sobre a aceitação de Rumi na cultura ocidental ao mesmo tempo em que se procura desvincula-lo do Islã, sua fonte de inspiração e razão de existir.

Foto: Canva.com AL HAKIM EDIÇÃO Nº 01 - SET - DEZ/2021

serenadevi.wordpress.com AL HAKIM 04 Apresentação 05 O que é o Sufismo? 09 A primavera de Rumi 11 Rumi, New Age ou Islã? 16 Silenciar a mente, ouvir o Mistério 24 A importância do sufismo para a psicologia 27 Simurg, o pássaro solitário 31 Aprendendo Islã on line 33 Mil anos de textos sufis 35 A muralha do mistério 36 A sopa do Dervishe 37 Bata nesse lugar 38 Poema de Jalaluddin Rumi 39 As alegrias da união com o Amado espiritual 41 Oração Anônima 42 Ordens Sufis no Islã 43 \"The Seeker Of Orient\" EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM Apresentação O sufismo é um assunto que desperta grande interesse na mídia e meio new age, mas nem sempre é apresentado de forma adequada e cuidadosa. O sufismo é uma tradição espiritual vinculada ao Islã, e não pode ser compreendida fora desse contexto. O Islã também é um tema que hoje em dia causa enorme incompreensão, seja pela má vontade e ignorância da mídia, seja, de fato, pelo crescimento infeliz de correntes minoritárias, literalistas e unilaterais, que não condizem com a grandeza, tolerância e beleza do verdadeiro islamismo. Diante disso, decidimos criar esta revista para divulgar para o público brasileiro, de forma embrionária, tanto o sufismo quanto o Islã tradicionais, a partir de artigos, resenhas e traduções de materiais clássicos e contemporâneos. Editores Daniel Placido Sandra Benato Vinícius Rosa Cácia Cortez Sergio Rizek Contato: [email protected] 0 4 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM O que é o Sufismo? ten.setouqcimalsi Entenda o que é o sufismo através da perspectiva da luta contra o ego e de outros aspectos. O sufismo é muito mais do que isso. Vamos abordar, in Shaa Allah, o que é o sufismo através de outras perspectivas futuramente. Você pode estar buscando saber sobre o sufismo, sobre porquê o sufi é um muçulmano Sunita Tradicional e porquê o sufismo é superior ao salafismo. Onde está um dos principais erros do salafismo? Qual é um dos principais acertos do sufismo? Podemos estudar o sufismo (tasawwuf) a partir de diversas perspectivas. Este texto exporá a perspectiva do sufismo relacionada à luta que cada ser humano deve empreender contra seu ego. Por Abdul Qadir -naqshbandibrasil.org EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021 05

AL HAKIM O Serviço No assunto abordado por Sheikh Nazim, sobre um dos 99 Divino Nomes ou Atributos de Allah (swt) [Deus Glorioso e Exaltado], mais precisamente sobre o atributo AL-MA'JID: O TONI ESCOBAR https://www.periodicodeibiza.es Glorioso, ele diz: \"Ele é o Mais Glorioso que mostra infinita generosidade e munificência para com aqueles que estão perto dEle.\" E continua: “Na medida em que você acredita no seu Sheikh, você pode entregar as rédeas às mãos dele, e assim encontrar descanso e satisfação em seu coração. Enquanto você estiver tentando pegar as rédeas com suas próprias mãos, estará carregando um grande fardo nos ombros. Os Sheikhs [Masheikh] são os herdeiros dos profetas e estão se oferecendo para carregar seus fardos, e você deve dar seus fardos a eles. Basta colocar seus desejos em sintonia com os do Sheikh; esse é o caminho para abrir seu coração ao Poder Celestial. Então, você poderá ver, ouvir ou saber algo que não pode saber agora. Muitos murids [discípulos] têm grande aspiração espiritual, Himmah e dizem: ‘Oh, meu Sheikh, estou pedindo por Himmah para que minha alma seja ativada.’ O Sheikh responde: ‘Oh, meu murid, estou pedindo serviço de você, Khidma. Você deve ser como eu. Quando você for como eu, meus poderes espirituais podem chegar até você; mas se não somos do mesmo tipo de metal, a corrente não pode passar por você. Eu sou cobre e você não deve permanecer pedra.” Esta citação é de Sheikh Nazim Al-Haqqani Ar-Rabbani. Extraída do livro: “99 Gotas dos Infinitos Oceanos de Misericórdia”. Está na página 214. A partir desta citação, nós podemos entender um pouco a função de um Sheikh no sufismo. Lembrando que Sheikh no sufismo se refere a mestre. Termos um mestre é uma excelente maneira de empreendermos a Jihad al-akbar (A Grande Guerra Santa), que é aniquilar a influência do ego sobre nós. Aquele discípulo que quer ter mais força nesta jihad, pode se dedicar a Himmah, isto é, ao Serviço Divino. Se nos colocarmos a meta de sermos os mais parecidos possíveis ao Profeta Muhammad (saas), seguindo a Sunnah [a maneira como era o Profeta (saas)], um mestre sufi irá nos indicar de maneira precisa, através de seu próprio exemplo, como nos adequarmos, em cada área de nossa vida, à Sunnah. Assim, nós sairemos, in Shaa Allah (se Deus quiser) vitoriosos na jihad al-akbar, isto é, venceremos a luta contra nosso ego. O Alcorão diz: “A aqueles que se esforçaram por nossa causa, nós os guiamos aos nossos caminhos” (29:96). Isto indica que, aquele que está buscando a Verdade, com sinceridade, será guiado a um caminho que lhe possibilite encontrar esta Verdade Última, que é Allah (swt). Aquele que quer mitigar a influência do ego sobre si, para se submeter plenamente a Allah (swt), Ele (swt) o guiará para mais próximo dEle (swt). Quanto mais estivermos seguindo a Vontade de Allah (swt), menos estaremos seguindo a vontade de nosso ego. 0 6 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM Para entendermos melhor, por outra perspectiva, tomemos Seguindo um Hadith [um dito, um ensinamento]. O Profeta (saas) disse: a vontade O mujahid é aquele que faz a jihad contra si mesmo (jahada nafsah) para obedecer a Deus. Este Hadith é encontrado em de Allah Tirmidhi, Ahmad, Tabarani, Ibn Majah, al-Hakim e Quda`i (4.862). Vários relatores de Hadith mostram que o Profeta hasancikardede.com (saas) diz que o verdadeiro guerreiro é aquele que empreende uma luta contra si mesmo. Outro Hadith, relatado por Al-Haythami [muhaddith e teólogo do Islã, especializado em Jurisprudência Islâmica da escola Shâfi'î. Viveu no séc XVI], no capítulo sobre Jihad al-nafs em seu Majma` al-zawa'id, diz: “O forte não é quem vence as pessoas, o forte é quem vence o seu ego” (Ghalaba Nafsah). Sheikh Nazim enfatiza, no texto base acima que estamos estudando, que não adianta a pessoa querer tomar por si só as rédeas de seu próprio ego, sozinho. Segundo o conceito de Ijtihad [esforço de reflexão que os ulemas ou muftis e os juristas muçulmanos empreendem para interpretar os textos fundadores do Islãm e deles deduzir o direito islâmico ou informar o fiel sobre a natureza de uma ação], nós, muçulmanos comuns, não podemos derivar por conta própria passagens do Alcorão ou algum Hadith para interpretá-los de acordo com nosso ego. O muçulmano que age assim dirá, a partir de seus caprichos, o que é o Islam e o que é o certo ou errado segundo o Islam. Só que isso não é Islam. Isso é a religião do ego. Por isso os wahabis e salafis estão fora do Sunismo Tradicional, de acordo com os principais Muftis do Sunismo Tradicional, pois eles fazem Ijtihad a partir deles mesmos, isto é, a partir dos seus próprios egos. Isso não é permitido a um muçulmano ortodoxo, ou em outras palavras, a um muçulmano Sunita Tradicional. As três primeiras gerações de muçulmanos são chamadas de as-Salafu Salihin. Os wahabis e salafis, erroneamente e de maneira hipócrita, advogam um retorno a estas três primeiras gerações. Isso é uma falácia, porque nós temos o Imam Abu Hanifa, Imam Sha'fi, Imam Malik e Imam Hanbali que eram dessas gerações ou foram ensinados por Imames destas gerações e transmitiram exatamente quais regras se deve extrair do Sagrado Qur'an [Alcorão]. O sábio muçulmano [Ulema] que é capaz de extrair uma regra sozinho do Qur’an, do Hadith, ou através da analogia (Qiyas), é chamado Mujtahid Mutlaq. Os últimos Mujtahids Mutlaqs viveram nessas três primeiras gerações ou foram ensinados diretamente por alguém destas gerações. Estes tinham o direito de extrair regras diretamente do Alcorão. Então, vejam o erro dos salafis e wahabis, eles, agora, depois de mais de mil e quatrocentos anos, extraem regras diretamente do Alcorão. Contrariam as orientações dos as-Salafu Salihin, que afirmam ser um erro fazer isso, mas se dizem continuadores deles. É uma grande contradição. Estes grandes Imames citados, fundadores das quatro Escolas de Fiqh Sunita Tradicional eram Mujtahids Mutlaqs. Eles tinham esta autorização. EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021 07

AL HAKIM Não tomar desejos por divindade Os wahabis e salafis não podem fazer isso, não têm https://br.pinterest.com/ahaschi/_saved/ esta autorização, mas fazem. Eles dizem que determinadas coisas são Haram [proibidas] com base na derivação direta do Alcorão, não encontrando base para tais afirmações nas quatro Escolas de Fiqh. Derivam do Alcorão sem autorização e sem habilidade para isso. O nome disso é Bidah [inovação]. Esse é um desvio grave para o Islam, que o salafismo comete e acusa as demais linhas do Islam de cometerem. O salafismo está modificando o Islam, eles são os reformistas do Islam. E sequer este nome: salafi, é correto se aplicar para eles, pois eles não seguem a geração as-Salafu Salihin. Então, Shaykh Nazim aponta neste texto base de O Alcorão nos diz, na (25:43) “Não tens reparado em hoje, que Allah al-MA'JID, Deus O Glorioso, mostra quem toma por divindade os seus desejos?” Nesta infinita generosidade e munificência para com passagem Allah (swt) alerta para não seguirmos aqueles que estão perto dEle (swt). Um Sheikh sufi aqueles que tomam seus desejos como divindades. É [mestre sufi] está mais próximo dEle (swt), por o que faz o salafi. Ele toma seu desejo como verdadeiramente seguir as orientações dos as-Salafu divindade, quando modifica a palavra de Allah (swt) Salihin, se submeterem a uma das 4 Escolas de Fiqh no Alcorão a partir de seu ego, de seus caprichos. Faz [Jurisprudência] do Sunismo Tradicional. Logo, um esta derivação direta do Alcorão porque seu ego diz Sheikh sufi não sai derivando regras do Alcorão para ele que ele pode fazer. Não tendo nenhuma diretamente, ao bel prazer de seu ego, como os autorização para isso. Ele, o salafi, toma como Deus salafis e wahabis. Logo, o Sheikh sufi está mais seu próprio desejo. E isso é reprovável de acordo próximo à Verdade, à palavra de Allah (swt), à Sua com o Alcorão. Ainda no Alcorão (79:40-41), diz: “Mas Vontade. É para perto dEle (swt) que um verdadeiro quanto àquele que temia a posição diante de seu Sheikh sufi encaminha o muçulmano. Temos um Senhor e restringia a alma do desejo, então de fato o estudo sobre a perspectiva da amizade no Islam, que paraíso será o seu refúgio.” Logo, Allah (swt) nos mostra que as pessoas que estão próximas de nós nos deixa claro aqui que Ele (swt) quer que nós temamos influenciam muito, segundo o Profeta (saas). Então, a Ele (swt), que nós O obedeçamos. Tenhamos a Sua quando estamos próximos de um Sheikh, mestre Lei como a Lei Absoluta. E restrinjamos os impulsos sufi, este nos mostrará e nos influenciará para os do ego para alterar esta Lei. Quem não altera esta Lei, bons exemplos dos Imames Mujtahid Mutlaq. O a Lei de Allah (swt), como fazem os salafis e wahabis, mestre sufi nos apontará para a verdadeira Sunnah terá o Paraíso garantido, in Shaa Allah (se Deus do Profeta (saas). Assim o muçulmano estará se quiser) aproximando mais de Allah (swt). Um mestre sufi encaminhará o muçulmano para a Aqidah Ash’ari ou para a Aqidah Maturidi [escolas de crença islâmica]. Um mestre sufi encaminhará o muçulmano para a Aqidah Ash’ari ou para a Aqidah Maturidi [escolas de crença islâmica]. E encaminhará o muçulmano para uma das quatro escolas de jurisprudência islâmica, encaminhado assim este muçulmano para o Sunismo Tradicional. Se a pessoa não está seguindo uma escola de Aqidah e uma de Fiqh [jurisprudência], então, esta pessoa não é um muçulmano tradicional. Por isso Sheikh Nazim, que cumpre esta função de encaminhar o muçulmano para uma escola de Aqidah e uma de Fiqh, ressalta que é assim que se aproxima de Allah Al-Ma’jid. Por isso, o Alcorão nos ensina que: “A aqueles que se esforçaram por nossa causa, nós os guiamos aos nossos caminhos” (29:96). Assim seremos mais obedientes a Allah (swt). 0 8 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM A primRuamveira de Henrique Cabral e Abdul Qadir Há dois anos, aconteceu em Curitiba, o encontro “Primavera de Rumi”, primeiro evento no Brasil em homenagem ao poeta Sufi Rumi - Muhammad Balkhī (1207-1273) o Jalal ad-Din (“Esplendor da Fé”) que nasceu em 30 de setembro de 1207, em Balkh no atual Afeganistão. A Revista Al Hakim está sendo lançada em setembro, na Primavera de Rumi, homenageando esse grande Sufi, com reflexões sobre sua Obra. - Abdul Qadir – Ordem Naqshbandi do Brasil. EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021 09

ridaQ ludbA e larbaC euqirneH AL HAKIM O Primeiro Encontro Primavera de Rumi, ocorrido em setembro de 2019, foi um evento ímpar. Com dezenas de participantes, e pela primeira vez no Brasil, com tamanha envergadura, Rumi teve um evento em sua homenagem que aglutinou ordens sufis, acadêmicos, artistas e apreciadores de seus escritos. O evento foi um sucesso, com palestras muito interessantes e com muita Baraka [bênçãos]. A organização do evento pretendia repeti-lo em 2020, 2021 e assim por diante, mas devido à Pandemia ele não foi possível. Rumi foi um grande sufi, seus contos e poemas estão no topo do ranking dos livros mais lidos no Ocidente. Tamanho à profundidade do que ele escreveu, mais de 700 anos depois de sua morte, ainda ecoa no coração dos seres humanos dos dias de hoje. Rumi disse: \"Eu sou servo do Alcorão enquanto tiver vida. Eu sou a poeira no caminho de Muhammad, o Escolhido. Se alguém cita alguma coisa, exceto isso, de minhas palavras, eu me afasto dele, indignado com estas palavras” [LIVRO FIHI- MA-FIHI]. Se Deus permitir, em 2022, teremos o “2º Primavera de Rumi”, para dar voz e espaço para este grande personagem que difundiu como ninguém o sufismo em todo o planeta Terra. Música sufi e cerimônia do Sama O grupo de música da Ordem Naqshbandi de Curitiba ensaiou especialmente para o evento Primavera de Rumi. Era a segunda vez que o grupo se apresentava em público. Com instrumentos adaptados para a realização do Maqam [escala musical], conseguiu criar o tecido musical para a Cerimônia do Sama ( o Giro Sufi), e logo após, a execução de alguns Nasheeds. O grupo se fortalecera anteriormente, num Workshop em 2017, em Curitiba também, oferecido pelo músico Oscar Osman, de São Paulo, que é um profundo conhecedor da música clássica turca. Na ocasião do Primavera de Rumi, o grupo ainda contou com músicos de apoio especialmente para o evento. No futuro, Insh'Allah, o grupo terá a oportunidade de adquirir instrumentos originais para poder, então, melhor propagar a música sufi - Abdul Karim Pozzo. 1 0 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM Rumi, New Age ou Islã? Por Daniel Rodrigues Placido O poeta Muhammad Balkhī (1207-1273) foi chamado de Jalal ad-Din (“Esplendor da Fé”) e apelidado tekgnostics.com de “Rumi”, ou seja, oriundo da região de Rum ou “Roma”, nome usado pelos muçulmanos da época para designar a parte da Turquia na qual ele nasceu. Sua obra literária e mística começou a ganhar maior interesse nos círculos literários do Ocidente, junto com outras obras clássicas da cultura islâmica, possivelmente a partir de obras como Divan Ocidental e Oriental de J. W. von Goethe, no começo do século XIX (1819, depois 1827), e projetada por traduções posteriores como as de Arberry e Nicholson, entre outros. EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021 11

AL HAKIM moc.daorbasnoitisnart .. .o poeta devotado a Deus refugia-se no ser impessoal que tudo permeou por toda a eternidade Diz Goethe no seu Divan Ocidental-Oriental:... Em certo sentido, Rumi é um autor cujas Aqui devemos notar o seguinte: o verdadeiro poeta é peculiaridades permitem tamanho alcance. Alguns de chamado a apreender o esplendor do mundo e, seus poemas, mesmo que profundos em sua elevação portanto, estará sempre mais inclinado a elogiar do mística e com referências teológicas sutis, não que a culpar. Consequentemente, ele [Rumi] procura demandam a princípio uma grande erudição ou encontrar o tema mais digno e, depois de ter esgotado conhecimento especializado para serem apreciados e, tudo, finalmente prefere usar seu talento para louvar e com certeza, falam ao coração de todos que estiveram glorificar a Deus. Este impulso é mais adequado ao abertos a isso. Rumi não exalta reis e príncipes, como oriental, pois ele tende sempre à exuberância e era comum nos panegíricos da época, mas a Deus acredita que a vislumbra em plenitude ao contemplar como Rei e Senhor, em uma relação de proximidade a Divindade, de modo que em cada uma de suas amorosa com Ele, em uma orientação para os desafios realizações poéticas ninguém pode culpá-lo por cotidianos, talvez como os Salmos atribuídos ao excessos. O chamado rosário islâmico, no qual o nome profeta Davi, também populares e acessíveis. de Alá é exaltado com noventa e nove qualidades, exemplifica essa ladainha de louvor e glória... o poeta Até aqui, nada problemático nem surpreendente. devotado a Deus refugia-se no ser impessoal que tudo Todavia, uma coisa que alguém como Goethe sabia permeou por toda a eternidade. Assim Attar se retirou muito bem, além de ser evidente a qualquer um que para a contemplação, e Jalaluddin [Rumi], um jovem conheça um pouco sobre o Islã: Rumi é um puro, que também acabara de se afastar do príncipe e muçulmano no mais pleno sentido da palavra, tanto da capital, estava ainda mais pronto para ser em sua vida quanto em sua obra, e parece um tanto despertado para estudos mais profundos. (...) Suas estranho sua imagem na cultura popular ser obras parecem um tanto heterogêneas: ele usa distanciada do Islã. Existe um Rumi new age, o qual pequenas histórias, contos de fadas, parábolas, lendas, pouco ou nada tem ver com a mensagem do Profeta anedotas... Instrução e edificação são seu objetivo, mas Muhammad legada à humanidade, no século VII EC. no geral ele busca, por meio da doutrina da unidade... resolver todos os anseios e indicar que no Ser Divino A chamada Nova Era (New Age em inglês), cuja origem tudo será finalmente submerso e transfigurado. pode ser rastreada tanto no ocultismo teosófico (GOETHE, 2010, 200-201) europeu do começo do século XX quanto na contracultura orientalizante dos anos 60-70 nos EUA, Contudo, nada disso oferecia pistas sobre a situação tem como pressuposto uma leitura secular dos autores atual de Rumi: a de virar um fenômeno da indústria religiosos, uma herança curiosa do Iluminismo do cultural. Seus poemas, versos e frases estão na boca de século XVIII, segundo o pesquisador W. Hanegraaff. celebridades do mundo pop como a banda Coldplay Trata-se de um espiritualismo sem religião, contra as ou a cantora Madonna, assim como circulam pelas instituições e mediações. Nesse sentido, é parte da redes sociais. Hollywood, diziam os rumores, ia fazer lógica novaerista tomar um autor ou um texto clássico um filme com o ator Leonardo Di Caprio no papel de sem uma preocupação maior com o sentido e contexto Rumi. Pessoas com camisetas escritas I Love Rumi são religioso de sua obra, como é o caso de Rumi. vistas circulando por aí. A biografia de Rumi é reproduzida na TV e reside no topo da lista de best- Mas existem outros aspectos ainda nesta questão, sellers; aparece até em maços de cigarros ou muito além da Nova Era e de suas apropriações livres campanhas de publicidade! [ 1] de autores e fontes clássicas. 1 2 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM awin1.com Se toda tradução é traição, contudo, ela precisa respeitar o contexto da obra original Antes de mais nada, a questão da autenticidade de and say, Like this.”, “Caso alguém pergunte a você como se certos versos e poemas. Como sustenta o Dr. Ibrahim parece a satisfação perfeita de nossos sexuais todos, levante Gamard, tradutor de Rumi, as traduções populares sua face e diga ‘Assim’”. As Houris, virgens prometidas deste último citam versões dos versos que não no Paraíso no Islã, somem da tradução de Barks, ocorrem nas suas obras, como esta de Nicholson, tirando dos versos o seu contexto religioso claro. Se “What is to be done, O Moslems? for I do not toda tradução é traição, contudo, ela precisa respeitar recognise myself. I am neither Christian nor Jew, nor o contexto da obra original: seria como traduzir John Gabr, nor Moslem”, traduzindo: “O que fazer, Ó Milton ignorando o cristianismo, Bashô ignorando o muçulmanos? Pois não reconheço a mim mesmo. Eu budismo ou traduzir Tagore ignorando o hinduísmo. não sou cristão, nem judeu, nem Gabr, nem muçulmano”. Essas versões dão a impressão de um Diante disso, gostaríamos de fazer algumas Rumi que despreza a religião formal, inclusive o Islã, considerações gerais sobre a questão de Rumi e o o que não condiz com sua condição de especialista e Islã. seguidor da Lei islâmica. Primeiramente, o Corão é considerado uma Por outro lado, existe o problema de revelação divina no Islã, a Palavra de Allah colocada traduções/adaptações demasiado livres e de segunda na forma de livro. Indicia a presença divina no meio mão, como as de Coleman Barks, doutor em literatura humano, descida ao coração dos crentes. É essencial inglesa e responsável por popularizar Rumî no Islã a recitação, rememoração e meditação sobre especialmente nos EUA. Ou outras adaptações, como as frases e palavras corânicas, além de ser um ideal as do médico e escritor Deepak Chopra, de vida diária. Ora, nas obras de Rumi, o Corão deliberadamente formulador de reinvenções, e não (assim como a sunna) aparece em citações expressas, versões, as quais ele diz que, não obstante, captam a ou com termos técnicos nascidos dele, claro que essência do original. sempre à procura de sentidos novos e diversos, algo distante, portanto, do literalismo. O próprio Masnavi Coleman não é tradutor nem intérprete de Rumi, pois de Rumi, muitas vezes chamado de “Corão em não lê e tampouco escreve em persa. Por volta dos persa”, afirma que “as raízes das raízes das raízes da anos 70, ele tomou contato com a obra de Rumi Religião é o Islã, no que diz respeito a revelar os segredos através de um poeta que lhe mostrou as traduções da união com Deus e certeza espiritual (da Verdade) … é o consagradas de Arberry e sugeriu que as colocasse em remédio para os corações, o polimento para as dores, o versos livres americanos. Depois de ter encontrado revelador dos significados do Alcorão… “(Livro I, um líder de uma ordem sufi com o qual sonhara, Prefácio). Coleman reformulou as traduções vitorianas de Rumi, E a quem o Corão e seus significados foram de forma livre, e minimizou a presença do Islã. Um revelados em sua descida a este mundo? Ao Profeta exemplo concreto dado pela pesquisadora Rozina Ali: Muhammad, pelo arcanjo Gabriel. O Corão sustenta John Arberry traduz com fidelidade os versos que a prova de amar a Deus é seguir o Profeta; “Whoever asks you about the Houris, show (your) face (and seguindo-o, Deus também nos amará (3, 31). Além say) ‘Like this’”, “Seja quem quer que pergunte sobre as disso, no Islã, a unicidade incomparável de Deus Houris, mostre sua face e diga ‘assim’”; já Barks traduz os (tawhid) é expressa no início da fórmula da Shahada: mesmos versos como “If anyone asks you how the perfect La ilaha Ilallah, isto é, “Não há divindade além de Allah”, satisfaction of all our sexual wanting will look, lift your face por sua vez eco da sura 112 do Corão: EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021 13

AL HAKIM br.pinterest.com/malakbaguthian/ A tolerância ou diversidade para qual a obra de Rumi alude e sinaliza não existe apesar do Islã, mas por causa dele. Dize: Ele é Deus, o Único! diversidade de suas manifestações. (BENEITO, 2007, Deus! O Absoluto! 15). Cosmos esse que só existe pois é mantido pela Jamais gerou ou foi gerado! presença oculta de Deus e que, dessa forma, também é E ninguém é comparável a Ele. Ele. Mas sem panteísmo, pois o mundo é e não é Deus: tudo é semelhante tanto quanto incomparável a Ele, Como reitera Faustino Teixeira (2007, 5-6), toda a simultaneamente. obra poético-espiritual de Rumi gira ao redor desta questão da Unidade, como uma dança ou dialética. O Colocadas essas observações de modo prévio, é tawhid, a unicidade divina, como aponta William anacrônico fazer de Rumi uma espécie de ecumenista Chittick (2007: 25), não é uma simples fórmula turco-persa do século XIII, posto que o ecumenismo é dogmática ou uma imposição do que deve ser, mas uma criação moderna. Tampouco um “perenialista”, uma orientação para o pensamento sobre Deus e de ideia que é uma invenção da filosofia europeia como estabelecer nossa relação com Ele. Sobre esta renascentista, antesala da modernidade, de Pleton e questão da Unidade divina, escreve também Rumi no Ficino a Steuco, e reinterpretada por ocultistas e Masnavi: A alegria e a mágoa dos amantes é Ele, Seu esoteristas dos séculos XIX e XX. Contudo, não é ordenado e salário pelo serviço é Ele. Se eles contemplarem errôneo dizer isto: dentro do contexto islâmico algo diverso do Amado, Isso não seria amor, mas inútil daquela época, a obra de Rumi apontou para um paixão. O amor é a chama que, quando se incendeia, Queima horizonte de diálogo e tolerância entre as diferentes tudo, exceto o Eterno Amado. Ele usa a espada do ‘não deus’ religiões, e por uma série de motivos. Quais? para tudo eliminar, a não ser Deus. Olha cuidadosamente: após o ‘não deus’, o que resta? Permanece o ‘porém Deus’, o Em primeiro lugar, Rumi viveu (WERNECK, 2007, resto se foi. Bravo, ó grande Amor, incinerador de ídolos” 20), boa parte de sua vida em Konya, que era um (Masnavi, V 586-590) (apud CHITTICK, 2007, 26). ambiente cosmopolita, com o trânsito de pessoas de várias religiões e culturas; inclusive muitas delas iam A busca apaixonada pelo Um (BARBOZA, 2007, 10-14) ouvir os ensinamentos dele, que, por sua vez, falava é em Rumi feita mediante o polimento do espelho do em sua obra com imensa reverência de outros coração (através da oração, do dhikr, da vida íntegra profetas, especialmente Jesus, modelo de pobreza e etc.). Assim como a mariposa é atraída pela chama santidade (SACCONE, 2007, 31). luminosa e ardente, imagem amiúde usada por Rumi, nossa alma é atraída irremediavelmente para Afora isso, o próprio Islã reconhece manifestamente o aniquilação em Deus. caráter sagrado de outras religiões fundadas por profetas e que têm uma escritura sagrada, a formar o Mas buscar o Uno absoluto não faz da multiplicidade “povo do Livro”: conforme o Corão, judeus, cristãos e do mundo uma mera ilusão, pois, em última análise, o sabeus – às vezes, zoroastristas são acrescentados. A múltiplo igualmente deriva de Deus e tem seu sentido tolerância ou diversidade para qual a obra de Rumi último Nele. A pluralidade cósmica expressa as alude e sinaliza não existe apesar do Islã, mas por diversas facetas do Real, que, mesmo único, tem 99 causa dele (CHITTICK, 2007, 28-29). nomes (atributos). O cosmos é uma manifestação de Deus, e também, após limpo, é capaz de espelhá-Lo, E, por último, é preciso notar as sutilezas com que ou seja, expressar o Real em sua diversidade e riqueza. Rumi interpreta ou discute certas concepções e Amar a Deus é amá-Lo em sua unidade e na questões religiosas, ainda mais nestes tempos em que o próprio Islã parece contaminado pelo fantasma do literalismo e sectarismo. O trecho a seguir do Fihi ma Fihi é emblemático a respeito, e com ele encerro este nosso pequeno texto: 1 4 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM https://www.canva.com/ Ao fim e ao cabo, todo o mundo reconhece a Unidade de Deus Estava falando um dia a um grupo de pessoas, entre as quais havia um certo número de 15 não muçulmanos. No meio de minha exposição, começaram a chorar e manifestar emoção e êxtase. Somente um muçulmano entre mil compreende este tipo de conversação. Que entenderam, que lhes faz chorar? O mestre respondeu: Não é necessário que compreendam o espírito interno destas palavras. A raiz do assunto são as palavras mesmas, e isto vocês compreendem. Ao fim e ao cabo, todo o mundo reconhece a Unidade de Deus, que Ele é o Criador e o Provedor, que Ele tudo controla, que a Ele tudo retornará e que Ele é quem castiga e perdoa. Quando alguém ouve estas palavras, que são uma descrição e uma recordação de Deus, sobrevêm uma comoção universal e uma paixão extática, pois destas palavras emana o aroma de seu Amado e sua busca. Ainda que os caminhos são diversos, a meta é única. Não vês que são muitas as vias até a Kaaba? Para alguns o caminho parte de Rum, para outros de Síria, para outros de Pérsia, para outros de China, para outros, por mar, desde la Índia e Iêmen. Assim, pois, se considerais os caminhos, a variedade é muito grande, e a divergência indefinida; porém, quando considerais a meta, todos eles estão de acordo e são um. Os corações de todos se voltam até a Kaaba. Os corações têm um apreço, um ardor e um grande amor pela Kaaba, e nisso não há lugar para desacordo. Esse apreço não é infidelidade nem fé; quer dizer, este apreço não se confunde com os diversos caminhos que temos mencionado. Uma vez que hão chegado ali, todas essas disputas, lutas e divergências acerca dos caminhos - um homem que a diz a outro, 'eres um falso, eres um infiel', e outro que contesta de modo igual- uma vez que hão chegado à Kaaba, se vê que a contenda só se refere aos caminhos, que sua meta era una... Para resumir: agora todos os homens amam a Deus no mais profundo de seus corações, e O buscam, rezam para Ele e põem em todas as coisas sua esperança Nele, não reconhecendo a nada além Dele como onipotente e mandatário de todos os seus assuntos. Tal percepção não é infidelidade nem fé. Interiormente não têm nenhum nome... Agora bem, os literalistas entendem que a Sagrada Mesquita é aquela Kaaba à qual as pessoas se dirigem. Entretanto, os amantes e os eleitos de Deus entendem que a Sagrada Mesquita significa a união com Deus... (apud NASR, 1985, pp. 189-190) . NOTAS [1] Ver: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/581274-a-moda-da-rumi-terapia-entrevista-com-elif-shafak? fbclid=IwAR1eRouZm-ih1Ppe2APAwy-cJdMwLfmVFLQIq-g0Oos2nr2Q6k01O6aMlVg [2] Ver: https://historyofislam.com/contents/the-classical-period/maulana-rumi/ [3] Ver: https://www.newyorker.com/books/page-turner/the-erasure-of-islam-from-the-poetry-of-rumi BIBLIOGRAFIA GOETHE, Johann Wolfgang von. West-East Divan: The Poems, with \"Notes and Essays\": Goethe's Intercultural Dialogues. Trad. Martin Bidney. Nova York: Global Academic Publishing, 2010. BENEITO, Pablo; BARBOZA, Carlos Frederico; CHITTICK, William; SACCONE, Carlo;TEIXEIRA, Faustino et alli. Rumi. O poeta místico da dança do Amor e da Unidade, In: IHU Online: revista do Instituto Humanitas Unisinos. São Leopoldo, 04 de junho de 2007, edição 222, pp. 3-38. Disponível In: http://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao222.pdf NASR, Seyyed H. Sufismo vivo: ensayos sobre la dimensión esotérica del islam. Barcelona: Herder editorial, 1985. ESPOSITO, John. The Oxford Dictionary of Islam. Oxford: Oxford University Press, 2003. RUMI, Jalâl ad-Din. Poemas Místicos: Divan de Shams de Tabriz. São Paulo: Attar Editorial, 1996. EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

renukamidda.blogspot.com AL HAKIM Silenciar a mente, ouvir o mistério Por Sandra Benato ([email protected]) Pesquisas recentes no campo da física quântica abrem espaço para que experiências da tradição espiritual comecem a ser referendadas cientificamente. Se, para muitas pessoas isto amplia a compreensão do sagrado, por outro lado também nos distancia de um núcleo essencial chamado mistério, pois referendar cientificamente significa usar o raciocínio para justificar um fenômeno de uma ordem distinta do racional. 1 6 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM Para o Šayḫ, o si mesmo é um aspecto da Presença divina, o Senhor que se desvela conforme a receptividade inerente ao preparo ou à disposição original de cada um de nós. )tsuodnarI niessoH onainari atsitra od arutniP( moc.nihtiwnwadeht De modo bastante resumido, algumas pesquisas enfatizam o fato de que a consciência é o aspecto mais básico da natureza e permeia todo nível de realidade, incluindo o cérebro humano. Nesse caso, consciência é entendida como um mecanismo conectivo não-local que permite que a informação seja compartilhada instantaneamente, independente das distâncias espaço-tempo. A mente humana, nessas teorias, faria parte deste campo. Outras pesquisas atribuem esta mesma habilidade ao coração, com a vantagem de que o coração é o primeiro órgão a se formar no feto. Aos vinte e dois dias já é possível ser visualizado em ultrassonografia, onde aparece como um tubo - a “corda” de que nos fala Ibn ‘Arabī? Sua pulsação coloca-se em correspondência com os ritmos terrestres, em especial as ondas gravitacionais que começam a ser estudadas. Estas, apesar de forças super fracas, foram detectadas no colapso de grandes objetos cósmicos, como estrelas de nêutrons e buracos negros. Seu aparecimento vincula-se ao movimento dos corpos, independentemente do tamanho que estes possuam e alteram o tecido espaço-tempo-energia. Formam-se, então, ondas gravitacionais fractais multidimensionais que contribuem para a função de onda integral do universo, de tal modo que tanto o universo nos modela quanto nós modelamos o universo. Ainda que não sejam diretamente percebidas, podem ser “sentidas” de modo subjetivo, especialmente em nossa própria relação com a noção de “tempo”. Se buscarmos o que nos ensina Ibn ‘Arabī, o coração é o próprio centro do mistério, o “ponto escuro” que abriga os nomes de nossa identidade essencial, a presença da ipseidade que responde pelo sentido tanto de “ser” quanto de “consciência” e que resume aquilo que chamamos de si mesmo. Para o Šayḫ, o si mesmo é um aspecto da Presença divina, o Senhor que se desvela conforme a receptividade inerente ao preparo ou à disposição original de cada um de nós. É este Senhor que concede luz, vida e consciência ao sentido de “eu”. Esse “eu” é, por um lado, o vazio que porta o Senhor ao mundo, mas também uma “sombra” da luz divina que sustenta o si mesmo. Temos então uma polarização ambivalente, uma correlação entre as duas faces do eu: uma voltada para o Senhor, outra para o mundo e suas sombras, que correspondem a Huwa/la-huwa, o ele/não-ele, o Real e o mundo. 1 4 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021 17

AL HAKIM O que mantém a correlação é a força atrativa da paridade que, no Kitāb inšā’ ad-dawā’ir o Šayḫ chama de terceira coisa, um existente/não existente. Para exemplificar ele usa a imagem do ferro e da limalha de ferro: entre esses há uma força atrativa que os aproxima. O ferro pode ser comparado a wujūd, o ser, ou ao Real, al-Ḥaqq, enquanto a limalha simboliza a multiplicidade de suas possibilidades de expressão. A ipseidade em ambos é a ipseidade do ferro, enquanto cada fragmento da limalha é intrinsicamente um aspecto da identidade daquilo chamado ferro. Entre essas múltiplas identidades e a identidade una há uma força ou um campo que as atrai e vincula. Temos aqui, portanto, um processo lógico do terceiro incluído: a limalha não é o ferro, nem o ferro a limalha, mas, por outro lado, em função da força atrativa entre eles, a limalha é ferro e o ferro, limalha, reciprocamente, de modo que podemos dizer que a identidade de cada fragmento de limalha é um aspecto da ipseidade do ferro. Esse processo do terceiro incluído é válido tanto para aquilo que a ciência hoje começa a entender quanto para quando questionamos aquilo que somos: entre o eu e o si mesmo tanto há uma força atrativa de identidade como também um distanciamento enquanto distinção intermediária, o barzaḫ, que, a exemplo da linha divisória entre a luz do sol e a sombra, possui infinitos níveis ou gradações. Estes graus são experienciados tanto como estados subjetivos quanto estações ou instâncias distintas entre o eu e o si mesmo, o que também se aplica aos diversos planos da constituição do mundo. O barzaḫ, com suas gradações de imagens, produz-se no processo de atração da terceira coisa, mas a terceira coisa só existe enquanto força atrativa e, portanto, não possui uma imagem nem uma realidade em si. Para Ibn ‘Arabī, o sentido imediato de identidade é o Esse “eu” é, por um lado, o vazio que sentido de “eu”. O eu com o qual a maioria das porta o Senhor ao mundo, mas também pessoas se identifica é o sentido de eu bašarī, ou eu- uma “sombra” da luz divina que mortal, que chamamos comumente de “ego” e que sustenta o si mesmo. desaparece com a morte do corpo físico. O eu “real” é a presença luminosa da Identidade essencial correspondente ao Senhor. O eu-bašarī é sua sombra, constituída a partir da projeção dos diversos Nomes divinos que se desvelam na receptividade de cada criatura. Assim como cada Nome divino nomina uma realidade determinada, o eu mortal se configura a partir da vivência biográfica destas realidades sem o sentido luminoso da Presença. O resultado é falso eu, uma crença, um ídolo, tal como quando o Šayḫ fala do deus criado nas crenças. Assim, o eu-bašarī é constituído por múltiplas moc.ededrakicnasah sombras que absorvem a luz dos diversos aspectos da identidade essencial, encobrindo-as com máscaras. Por sua vez, essas máscaras são deformações da luz, mas ainda assim absorvem desta uma certa autonomia de expressão. 1 8 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM Em outras palavras é como se disséssemos: o si mesmo é uma presença divina qualificada por um atributo e nomeada segundo um Nome divino. O eu, inconsciente desta realidade, apropria-se desta presença condensando-a em sombras que acredita serem ele mesmo. As máscaras são, portanto, as diversas roupagens com que o eu mortal veste a luz da identidade, matrizes autônomas com ordens de densidade diferentes que se relacionam entre si, alimentam-se mutuamente e, como são inconscientes de si, apresentam-se de modo compulsivo. Isto nos leva a um anestesiamento ainda maior do ser, pois a identificação com a sombra implica no desconhecimento do Senhor, na falta de consciência do si mesmo. No entanto, assim como para o Šayḫ o ídolo aponta para o real, as compulsões das sombras também podem apontar para o si mesmo, de tal modo que quem conhece a si mesmo conhece seu Senhor. O auto-conhecimento é, portanto, uma incumbência básica. Para isso Ibn ‘Arabī aconselha um método muito simples, o da auto-observação. Ele conta que costumava anotar todos os seus atos e até mesmo seus pensamentos e confrontá-los com o adab, ou a cortesia fundamental para com o Senhor. Temos aqui o princípio do que ele chama de murāqaba, auto-exame, a observação da alteração dos estados do coração que conduz à meditação e contemplação. Convém lembrarmos que há uma diferença entre O autoconhecimento é, portanto, pensamentos e consciência. Pensamentos são uma incumbência básica. derivações da palavra eu, dos estados reativos associados ao eu bašarī, e surgem de associações entre Para isso Ibn ‘Arabī aconselha um as imagens vivenciadas. Mesmo a imaginação mais método muito simples, criativa depende do registro de imagens já o da auto-observação. experiências e estas imagens são carregadas de percepções e sentimentos reprimidos que formam as sombras. A consciência, por outro lado, é um estado integrativo que caracteriza uma Presença, uma realidade ontológica que funda o ser e que trás consigo um modo de conhecimento ou de apreensão da realidade. Em outras palavras, a consciência depende da presença do nome predominante na identidade essencial, segundo os atributos regentes em um determinado instante, enquanto os pensamentos derivam do eu mortal. A murāqaba a partir do estado de atenção ao coração, www.flickr.com/photos/trooster/ amplia a consciência pois a presença ontológica fundamental tem seu vórtice na profundidade do coração. O grande desafio é aprender a diferenciar entre a compulsão da sombra e a luz da presença. Se o sentido de consciência se apresentar polarizado provavelmente é apenas o fluxo do eu idealizado em sua pretensão de senhorio. A consciência, por ser consciência de, é um fenômeno transjetivo, inclui a transitividade entre sujeito e objeto. EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021 19

AL HAKIM sensação, uma lembrança, um afeto, um som, uma cor, etc. sensação, uma lembrança, um afeto, um som, uma cor, etc. A princípio isso provoca um alinhamento energético entre o coração, a mente e as emoções, chamado de “coerência psicofisiológica”, a nível de ṣabr, peito. Se aprofundarmos a atenção chegamos ao que está por detrás do sentimento, pensamento ou da imagem que se apresentou e assim sucessivamente. @saidBouchelaleg Segundo Tirmiḏī*, a profundidade do coração admite quatro níveis simbólicos: ṣadr, o peito, associado ao aspecto exterior e a todas as vivências do eu-mortal; qalb, o coração, propriamente dito, onde circulam as luzes da identidade essencial, em sua rotação contínua, o que nos leva à oscilação dos estados qualitativos da presença e à diversidade de nossos momentos, fazendo de nossas vidas aquilo que podemos chamar de vivência teofânica; fu’ād, o interior do coração, onde essas luzes mantém-se por si mesmas, conduzindo-nos às estações do coração; e lubb, ou o núcleo, o segredo do senhor contemplando em si mesmo seu próprio mistério. No Livro do Nome Allāh Ibn ‘Arabī escreve que essa observação como quando vemos nossa imagem no espelho: se observamos a partir de um angulo inadequado podemos ver a imagem de algo estranho ou de outra pessoa refletindo-se no espelho e Assim, para ampliar a consciência é necessário deixar corremos o risco de aceitar aquela imagem como se de nos identificarmos com nossos pensamentos, pois fosse a nossa própria. “Modifique sua posição diante eles são apenas estados residuais associados à do espelho”, diz ele, “e verá nele sua própria imagem” reatividade da sombra. Os pensamentos negativos (p. 73). Olhar para a sombra e não se identificar com fazem surgir emoções negativas e alimentam essas ela faz surgir a face verdadeira. emoções de acordo com a imagem que retemos na A princípio, a dificuldade em manter-se em memória. Isso reforça a sombra, que atinge um modo contemplação, é justamente a dificuldade em autônomo de funcionamento. Por outro lado, um estabelecer silêncio interior. pensamento que vem da Presença é completamente isento de conteúdo negativo ou de racionalização, explicativas, críticas, justificativas ou julgamentos. No entanto, o sentido de silêncio é exatamente o Possui uma condição lumínica ou luminosa, simbólica, sentido do mistério do amor, pois é a atração da apresenta- se como um desvelamento e não como consciência amorosa do real que proporciona o uma produção de crenças. desvelamento. Se as imagens surgem e evitamos a Um modo de não nos identificarmos com os racionalização, ela é experienciada como uma pensamentos é simplesmente focar a atenção em outro presença em função do Nome que carrega e não como processo, como no alento, que não é apenas a um raciocínio. Quando o Šayḫ expõe sobre a prática respiração, mas o fluxo da presença que conecta as espiritual enquanto exercícios de polimento ou de duas faces do eu a partir daquela terceira coisa da qual receptividade do coração, escreve: nos fala Ibn ‘Arabī. E esta terceira coisa é o fluxo da Esvaziamos nossos corações do pensamento reflexivo e atração amorosa. Escreve Ibn ‘Arabī: sentamos com al-Ḥaqq no tapete do adab, da atenção A raiz do alento é a propriedade do amor. O amor possui um espiritual (murāqaba) e da presença, prontos para receber o movimento (ḥaraka) dentro do amante, e o “alento” é o que quer que nos chegue Dele… Assim, quando os corações e a movimento do suspirar, do anelo pelo objeto do amor, e nesse aspiração espiritual (himma) estão focados Nele e realmente movimento de suspirar experiencia-se o gozo. E, conforme o Nele se refugiaram - abandonando qualquer traço de Real afirmou: “Eu era um tesouro, mas desconhecido, e reflexão ou investigação intelectual - (os corações) são amei/amo me fazer conhecer”. Através desse amor o alento purificados e abertos. E quando alcançam essa receptividade surgiu e se tornou manifesto” (SPK, p. 126). interior, Deus se manifesta a eles, ensinando-os, informando-os em um único instante, por visão direta ( os Esse alento apresenta uma qualidade que pode ser significados internos daquelas passagens obscuras das p2 e0rcebida como uma imagem, uma emoção, uma escrituras) **. EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM Pois o renunciante abandona o mundo para ser recompensado; aquele que confia, para atingir o objeto de seu desejo; o aspirante procura o êxtase para aliviar sua angústia; o adorador se esforça pela proximidade; e o gnóstico, pela sua força espiritual almeja a união. No entanto, o Real somente se revela àquele que já não é mais descrito por nome algum. (Trad. Stephen Hirstenstein, The Four Pillars of Spiritual Transformation, p. 30). F.cap. 53. Perder o próprio nome significa retornar à condição de pura receptividade e esvaziamento das sombras, o vazio do servo sem sinal algum de senhorio, sem outra motivação senão a atração amorosa a seu Senhor. Aqui podemos aprofundar uma outra possibilidade moc.rlbmut.natawenaatsad do que nos ensina o Šayḫ: ele não fala apenas em focar sobre o coração, mas no processo da terceira coisa, já que, inúmeras vezes também afirma que huwa, huwa, la-huwa, la-huwa: Ele permanece Ele, e o servo permanece o servo: o coração é tanto o local do encontro quanto o encontro ele mesmo, portanto, um canal vazio feito de alento, do desejo atrativo que aproxima, a terceira coisa. Se é o Senhor que se senta no trono, focar na terceira coisa é partir em perplexidade, sendo perplexidade um dos nomes tanto para identidade essencial - pois a ipseidade é o A orientação de Ibn ‘Arabī, portanto, segue uma “vórtice” que se apresenta no vazio e carrega consigo metodologia distinta da maioria dos processos o maravilhamento de uma potência infinita - quanto meditativos: o foco não é controlar a mente, mas esvaziar um nome da terceira coisa, um nome do amor. o coração dos conteúdos gerados pelos pensamentos, Essa prática pode se estender igualmente para o pois, escreve ele, o coração não é vasto o suficiente para conversação e dikr simultâneos, e a invocação e a cotidiano, diante das circunstâncias da vida que lembrança só são verdadeiras quando partem do coração. acionam o coração, que provocam um impacto ou Nele está o ponto escuro, o ponto da presença da uma ignição interior. Esse impacto é um sinal do ipseidade. Essa é sua própria experiência, quando em chamado do Senhor, seja através de nossa própria uma de suas Circumbulações à Caaba, tem a visão de um necessidade ou através daquilo que o mundo ou as ovem, Fatā. Em um determinado momento esse Jovem pessoas exigem de nós. Assim como na contemplação toca um ponto em seu peito, que ele chama de o ponto a mente interfere com pensamentos residuais, na escuro do coração, o ponto do mistério e do segredo, e vivência centrada no coração - a vivência teofânica - Ibn ‘Arabī conhece todos os seus Nomes, isto é, todos os o eu-bašarī, o ego, também interfere e atributos do Real que nele habitam. Em alguns momentos necessariamente oscilamos em extremos, ora Ibn ‘Arabī escreve de modo mais específico sobre a positivos ora negativos. Quando tentamos nos disciplina espiritual, como por exemplo, no Ḥilyat al- posicionar no caminho da terceira coisa, da atração abdāl, onde menciona quatro práticas fundamentais: o que a circunstância propicia, imediatamente surge o silêncio, o retiro, o jejum e a vigília. modo ou a qualidade com que o amor/desejo se No entanto, o principal é saber “quem” se dedica a essas apresenta (ou seu oposto). Isto significa que perceber práticas, pois “o quem” denota o porquê, o onde, o como, através da terceira coisa é como ver por um modo de o quanto e o quando. Escreve ele: suspensão da consciência ordinária em que sujeito e O renunciante zelosamente abandona sua vida no mundo e objeto se apresentam distintos, através de uma aquele que confia em Deus entrega seus negócios a seu Mestre; o receptividade, uma percepção direta, isenta da aspirante é tomado pela audição e pelo êxtase e o adorador história do indivíduo ou de seus conteúdos passados. adora ferventemente em atos de devoção; o gnóstico se enamora Essa isenção propicia o esvaziamento onde o Senhor de sua firmeza espiritual e de sua resolução. E, no entanto, se mostra e, ainda que essa presença apareça em uma aqueles que possuem verdadeiro conhecimento e domínio forma imaginal (sentimento, intuição, sensação, espiritual se ocultam no Mundo do Invisível, de modo que necessidade, tensão, ideia, etc.), ela não possui um permanecem desconhecidos ao gnóstico, ao aspirante e ao vínculo histórico e, portanto, é indefinível em termos adorador e são invisíveis àqueles que confiam seus negócios a de forma ou substância, mas ainda assim podemos Deus e àqueles que renunciam ao mundo. perceber sua qualidade. O que se desvela é uma presença, uma ignição viva. EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021 21

AL HAKIM canal ou um espelho da Presença da Generosidade. Se o eu-bašarī tomar para si essa tarefa, certamente entra em colapso, pois nele mesmo não possui a habilidade de ser generoso. Por outro lado, se assumir a Generosidade como seu próprio atributo, sua expressão será perversa, corrompida, comparável ao demoníaco, pois a força do nome é infinita e, quando distorcida pelos interesses do eu mortal, ocorre uma usurpação da Presença da luz em direção a uma sombra ampliada que certamente provoca sofrimento tanto para o indivíduo quanto para os demais. TONI ESCOBAR https://www.periodicodeibiza.es Por outro lado, esse mesmo indivíduo, em algum momento de sua história, vai necessariamente sentir a força atrativa do Real. Então começa sua caminhada em direção a si mesmo, o voltar a face ao Real, como escreve Ibn ‘Arabī. Nesse processo a purificação é longa e dolorosa. Serão incontáveis estados e estações até o encontro com o Generoso. A qualidade de suas experiências vai depender da sua abertura à Presença e do quanto a Presença realmente se manifesta nele. De qualquer modo, ele não tem outro caminho a não ser o si Como a presença é a presença da ipseidade, se a mesmo. revestirmos com os conteúdos das experiências históricas a corrompemos com a sensação de que há em nós um movimento compulsivo e recorrente onde A vida cotidiana está repleta de circunstâncias que as circunstâncias se repetem. No entanto, a presença se impactam o coração, trazendo um sentido de uma atualiza em um novo alento, em correspondência com “ignição” interior. Esse impacto é um sinal do um novo momento e através da relação com um outro chamado do Senhor, seja através de nossa própria Nome da realidade que se apresenta na relação com necessidade ou através daquilo que o mundo ou as uma pessoa ou circunstância diferente. Quem repete a pessoas exigem de nós. Assim como na contemplação experiência como história é o eu mortal que se julga a mente interfere com pensamentos residuais, na autor da experiência. vivência teofânica o eu-bašarī também interfere e necessariamente oscilamos em extremos, ora positivos Nesse sentido, a prática espiritual da murāqaba, tanto ora negativos. Quando tentamos nos posicionar no pode ser entendida como um conjunto de disciplinas caminho da terceira coisa, da atração que a destinadas a polir o espelho, quanto a vivência circunstância propicia, imediatamente surge o modo cotidiana que nos obriga igualmente a aperfeiçoarmos ou a qualidade com que o amor/desejo se apresenta. nosso caráter. De fato, como não existe ato sem um atributo que o qualifique, não existe uma prática Isto significa que perceber através da terceira coisa é espiritual ou um modo de consciência sem um como ver por um modo de suspensão dos atributo que a direcione. Assim, as luzes dos Nomes pensamentos em que sujeito e objeto se apresentam que nos entificam ou o modo como o Senhor, a distintos, ver através de uma percepção direta livre da Ipseidade Real - que chamo de Identidade Essencial - história do indivíduo ou de seus conteúdos passados. se apresenta, determina a qualidade da experiência, tanto da vida cotidiana quanto da prática espiritual. Essa isenção propicia o esvaziamento onde o Senhor se mostra e, ainda que essa presença apareça em uma Se, por exemplo, o Senhor é O Generoso, a forma imaginal (sentimento, intuição, sensação, experiência será relacionada à Generosidade em sua necessidade, tensão, ideia, etc.), ela não possui um infinita potencialidade criativa; o servo, ou o eu-bašarī, vínculo histórico e, portanto, é indefinível em termos experiencia em sua vida confrontos com a de forma ou substância, mas ainda assim podemos Generosidade, onde este atributo exige manifestação. perceber sua qualidade. O que se desvela é uma A experiência recorrente destes confrontos aperfeiçoa presença, um influxo vivo. tanto a expressão do Generoso naquele indivíduo quanto a habilidade do indivíduo em se fazer um 2 2 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM Se o esvaziamento do ego é uma necessidade para a !Por la verdad de la manifestação plena da presença e isto nos é praticamente pasión proclamo impossível enquanto vivemos na dimensão física, prestar que el deseo es la atenção no movimento da terceira coisa nos coloca em silêncio causa del deseo! diante do mistério. Si el corazón no lo A presença do Nome não tem forma, não tem ponto e llevara dentro, traço onde a mente possa se restringir - para entender, definir, julgar, compartimentalizar - mas uma abertura no sería el deseo así que recebe um saber latente vindo da profundidade do adorado. coração. Um bom começo é exatamente perceber a enimsaysotohP@sombra que restringe, define, julga, nega, exige. A murāqaba, portanto, parte do afrouxamento das estruturas do eu mortal para dar passagem mais ampla à presença. A dissolução dessas barreiras não conduz ao caos ou a impulsos descontrolados pois esse espaço vazio tem seu próprio modo de inteligência. No entanto, é preciso entender que a abertura ao Nome divino que se apresenta no momento é a presença de um desejo imensamente maior do que o eu pode suportar. A insanidade advém justamente quando o eu-bašarī senta-se no trono do coração pois este é o espaço do mistério cujo único canal é o amor. Se todo manifesto advém do desejo divino em se fazer conhecido, o coração não é senão a passagem da Sua paixão, como Ibn ‘Arabī afirma em um de seus versos: (Trad. Pablo Beneito, La Taberna de las Luces: 23 Poesía Sufí de al-Andalus y el Magreb, 2004, p. 11). *Le Profondità del Cuore -Trattato sufi - (Bayān al-farq bayna al- Ṣadr wa l-Qalb wa l-Fu’ād wa l-Lubb).Trad. de Demetrio Giordani, Ed. Jouvence, 2015, p. ** Trad. de James Morris em Listening for God: Prayer and the Heart in the Futūhāt, parte 2. Disponível em: tp://www.ibnarabisociety.org/articles/morris2.html. EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM A importância do sufismo para a psicologia Por: Helio Laureano.* É importante salientar no início desse artigo que No cotidiano talvez nem nos lembremos que temos não tenho a ilusória pretensão de ampliar essa esse dedo e o quanto é importante para as tarefas narrativa para toda a forma com que a Psicologia diárias. Awareness é perceber que houve um se manifesta, mas, situar nas vertentes que machucado, uma alteração, em uma parte do meu compõem o chamado Humanismo, especialmente corpo, o dedo, e que agora estou vendo tudo isso. a Fenomenologia-Existencial. Se puder ainda ser mais criterioso, pretendo dar voz especificamente Apesar de ser uma ideia um tanto complexa para o à importância do Sufismo para a Gestalt Terapia. pensamento, a falta de Awareness no cotidiano nos leva a ir despercebendo os acontecimentos ao longo É muito conhecida entre os gestalt-terapeutas a de nossas vidas e torná-los comuns, apesar de não o relação que existe entre essa forma de terapia e o serem. Muitas vezes, quando estamos irritados com Zen budismo. Mas, ainda pouco explorada uma algo ou alguém, não tomamos consciência de como possível relação com o Sufismo. Porém, entre as nossos braços, por exemplo, podem ficar temáticas essenciais da prática gestáltica teremos o tensionados. A não atenção a esse fato pode levar, ao conceito de Awareness. E é aqui o lugar onde longo dos anos, a sensação de dores, sem perceber, proponho realizar esse encontro. no entanto, sua origem. Então, as doenças se tornam mero resultado da idade ou de questões biológicas. Awareness é uma palavra da língua inglesa de Isso significa que o homem, sobretudo, o ocidental, origem alemã com tradução incerta para o tem a característica de dualizar as coisas, ou seja, português, mas, traz o conceito de “estar separar corpo e mente, e não se dar conta de que presente” no momento em que se encontra; mente e corpo são a mesma coisa. Somos nossos atenção plena (e não atenção simples); estar corpos. Somos nossos pensamentos. Não “tenho” consciente da própria consciência. Como um corpo, porque “sou” esse corpo. Não “tenho” poderíamos compreender isso na prática? Por pensamentos, porque “sou” os pensamentos. exemplo, quando machucamos um dedo, nossa atenção se volta para esse dedo. Em Gestalt acreditamos que o homem, ao aprender a desenvolver a awareness, ou self-awareness, terá https://www.canva.com/ condições de perceber a si próprio, enquanto um ser singular, e a estar naturalmente atento à sua interação com o meio. Um conceito importante em Fenomenologia explica que, tudo aquilo que não sou eu, ou seja, que não se refere a minha pessoa, é estranho e me causa angústia. Ao passo em que não consigo propor a mim mesmo soluções para esses estranhamentos, e a não sentir a realização de ter conseguido algo, passo a diminuir meus “ajustamentos criativos” e a estar fechado para novas interações. Acreditamos que os problemas modernos conhecidos como depressão, síndrome do pânico, entre outros, sejam frutos da aparente “impotência” ao lidar com aquilo que não é próprio do indivíduo, diminuindo a self-awareness, e criando atenção exagerada na tentativa de encontrar soluções para a sobrevivência em um mundo que parece tão hostil. Mas, como desenvolvemos awareness para uma vida mais atenta e que nos permita melhores ajustamentos criativos? Nesse ponto, apresento a importância do Sufismo. 2 4 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM Para o sufi não há impedimentos É preciso salientar que não acredito que a Psicologia O sufi é alguém que vive sua prática. É um modo possa abarcar a grandeza dos ensinamentos sufis de vida. Sua existência é permeada de awareness, como uma prática clínica, mas, ao menos perceber o pois tudo o que faz, fala e pensa, é sagrado. Isso que é tão evidente para o sufi: a importância de não se refere ao conceito de sacralização, mas, de viver o tempo presente. Para iniciar essa parte importância. gostaria de trazer um verso de Rumi onde mostra alguém que abandona a dualidade e vive a unidade: Não há vida espiritual sem experiência, sem o mergulho. Rumi disse que não podemos conhecer \"Não sou corpo, não sou alma. ou realmente saber sobre a pérola que existe no A alma do Amado possui o que é meu. mar sem mergulhar nele. Não há existência verdadeira (consciente) sem um mergulho, quando Deixei de lado a dualidade, abrimos mão do controle sobre os aparentes Vejo os mundos num só. resultados. Procuro o Um, conheço o Um, Para o Sufi não há impedimentos. Não há um Vejo o Um, invoco o Um. corpo, uma alma, mesmo sabendo que existem; pois, nesse mergulho na experiência espiritual, o Ele é o Primeiro e o Último, fim de uma noção dual da existência se abre para O exterior e o interior. uma vida plena, uma percepção ampla, onde -Nada existe senão Ele.” realmente se faz parte do Todo. /moc.avnac.www//:sptth Há uma entrega, um “deixar de lado”, que conduz a uma abertura ao novo, àquilo que minha consciência, sem awareness, impediu de conhecer e sentir: uma ligação que permite um constante ajustamento no mundo das coisas. Esse é outro detalhe importante: o mestre sufi, mesmo retirando-se da vida cotidiana muitas vezes, não se ausenta dela realmente; vive no mundo, cria e cuida de sua família, participa em sua comunidade, trabalha e se “ajusta criativamente”, sem perder sua singularidade. Essa possibilidade de um “ajustamento criativo” tão importante à prática da Gestalt Terapia só é possível com uma vida consciente, uma vida com awareness. Não se trata de buscar por algo, como a felicidade, prosperidade, saúde, amor e conquistas. Trata-se de um viver onde a atenção é desfocada de uma solução e amplia-se para a experiência: como sou eu? O que tenho feito? Como esse assunto mexe comigo? O que aconteceu com o corpo no momento dessa conversa? Quando estou com medo, o que há com meu corpo? Onde sinto no corpo o medo, a raiva, a felicidade, as experiências? O que espero dessa situação? Como sinto quando estou pensando nisso? Ao perguntar-se, o indivíduo está contando sua própria história, narrando sua vida, participando dela. É o que esperamos como resultado final da terapia da Gestalt, e é o que o Sufismo também incentiva. EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021 25

AL HAKIM tanyushenka.tumblr.com Para finalizar, gostaria de deixar uma história Sufi para reflexão: “(...) O lenhador levantou-se e caminhou na direção de onde vinha a voz. Andou, andou e andou, mas não encontrou nada. Então sentiu mais cansaço, frio e fome do que antes e, além do mais, estava perdido. Tivera muitas esperanças, mas isso não parecia tê-lo ajudado. Ficou triste, com vontade de chorar, mas percebeu que chorar também não o ajudaria. Assim, deitou-se e adormeceu. Logo depois acordou novamente. Sentia frio e fome demais para dormir. Foi então que lhe ocorreu narrar a si mesmo, como se fosse um conto, tudo o que tinha acontecido desde que a filha lhe pedira um tipo de comida diferente. Mal terminou sua história, pareceu-lhe ouvir outra voz, vinda de algum lugar no alto, como se saísse do amanhecer, que dizia: - Velho homem, que fazes sentado aí? - Estou me contando minha própria história - respondeu o lenhador.” *Gestalt-terapeuta, especialista em Psicoterapia Fenomenológica-Existencial, diretor do Instituto Bashô, membro da Sociedade Brasileira de Etnopsiquiatria e Sociedade Internacional de Psicologia da Religião. 2 6 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM Simurg o pássaro solitário Por Sonia Lyra, PhD Na mística, o poeta persa ‘Attar utilizou no século XII esta enigmática ave mística. Em sua Conferência dos pássaros conta como “centenas de pássaros de brilhante plumagem decidem ir em busca do Simurg o Pássaro Rei. Atravessam geografias escarpadas e mares traiçoeiros ao longo de centenas de anos de voos penosíssimos, até que sobram apenas trinta aves. Por fim os trinta pássaros maltratados têm acesso à antessala do palácio de Simurg. E, no mesmo instante em que vai acontecer o prodigioso encontro, descobrem a maravilha: eles mesmos eram o Simurg que com tanta paixão haviam buscado: em persa, Simurg significa “Pássaro Rey”, porém também “trinta pássaros” (LOPEZ- BARALT, 1998: 29). Estas e outras intuições unitivas custaram a vida de muitos místicos, porém encontram-se respaldadas pela teologia islâmica. EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021 27

AL HAKIM Todos aqueles que estiveram ou estão profunda e A ascensão da alma através das chadelimadapersia.blogspot.com autenticamente enamorados sabem que o anseio etapas percorridas por último daquele que ama, é a fusão total com o amado, sendo o amor humano uma réplica do amor divino. Mohammad em seu Mi’râj Porém, como falar de tal enamoramento senão (viagem noturna para a busca através de símbolos? Portanto, o que aqui será feito, é abordar alguns aspectos da tradução espanhola, de da gnosis, não sendo esta de um texto de Avicena já traduzido do persa que, entre ordem física, nem corporal) outros, tem por título a língua dos pássaros, a língua do Verdadeiro Real e o Relato do pássaro (CORBIN, pode também ser 1995) o que não deixa dúvidas de que o tema é sutil e experimentada pelo sufi.. complexo, cabendo à autora talvez, não mais que uma interpretação, ao modo de um comentador. É dessa forma que ocorrerá o relato de Avicena, Também, dada a profundidade e sutileza do tema, através do pássaro que se eleva de “Céu em Céu até o não será possível, dentro de algumas poucas linhas, santuário do Rei de beleza incomparável” (CORBIN, traçar as transformações da personalidade que 1995: 174), sendo então ao sufi, dado o privilégio de ocorrem no processo da transformação. reproduzir e imitar o Profeta, tornando-se um autêntico adepto, cujo término revela a plena Mais que uma busca das causalidades históricas dos “consciência mística do encontro, o alcance desse Si- relatos místicos, o que se quer é apreender a presença mesmo ao qual se diz “Tu” (CORBIN, 1995: 175). de um arquétipo e sua atuação na alma humana. Como em todos os tratados espirituais, o Como se sabe, o percurso até o cume da montanha, desenvolvimento apresenta o itinerário da mente atravessa dolorosos percalços e indizíveis para Deus, ou “o plano clássico do itinerário celeste dificuldades no período iniciático da purificação, da alma em sua ascensão à sua pátria de origem” tornando-se cada vez menos conflitante no período (CORBIN, 1995: 172), seguindo o itinerário aviceniano da iluminação e, chegando por fim ao júbilo do pássaro, pertença ele ou não à Avicena. experimentado pelo místico no período unitivo . Para tal apreensão pressupõe-se uma aproximação crescente a este valor arquetípico, ao preço de esvanecer-se a visão, ela mesma, em seus aspectos plásticos e aos pressentimentos mais secretos da alma que a acompanham, com a possibilidade de tornar-se o símbolo uma mera alegoria. Em todo caso, “para que o autor do relato da “ascensão celestial” possa proclamar ao final: “Sou eu quem está neste relato” - ou como o fez Avicena, no final do “Relato do pássaro”, rodear-se por pudor de um certo humor - é preciso que o caso do Profeta em seu Mi’râj nos seja proposto não apenas como um simples fato histórico, seja qual for a sua historicidade, mas sim como um caso exemplar ao qual o místico deve reproduzir” (CORBIN, 1995: 173). O símbolo traz em si uma intuição poética profunda que pode tomar por imagens, realidades do mundo externo, ainda que não traduza e não permita tradução ao emitir suas imagens. A alegoria, porém, é tradutível e corresponde às realidades conhecidas. A ascensão da alma através das etapas percorridas por Mohammad em seu Mi’râj (viagem noturna para a busca da gnosis, não sendo esta de ordem física, nem corporal) pode também ser experimentada pelo sufi ou o ‘ârif (o adepto, o gnóstico) o qual converter-se-á em herói espiritual, podendo ascender aos cumes da vida contemplativa e da felicidade da experiência visionária. 2 8 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ 2021

AALL HHAAKKIMIM AL HAKIM ...E assim o espírito nesta contemplação está na solidão de todas as coisas, desnudo de todas elas, nem permite em sí outra coisa que a solidão em Deus. chadelimadapersia.blogspot.com A quinta é que não é de alguma cor determinada; e assim é o espírito perfeito, que não só neste excesso não tem nenhuma cor de afeto sensual e amor próprio, mas nem ainda particular consideração entre o superior e o inferior, nem poderá dizer do modo, nem da maneira, porque é abismo de notícia de Deus a que possui, segundo se diz” (LOPEZ-BARALT, VO, 670). Tais estados, ou estadios, ou estágios são Tal síntese, porém, oculta o “lugar” do chamado: a mencionados aqui apenas para manter a memória de angústia. O percurso e seu chamado, estão à mão, a que, o Relato do pássaro, será compreendido de todo instante, ali onde a dor e a doença afligem o diferentes maneiras, de acordo com a perspectiva do coração do homem. “Os homens se diferenciam entre buscador, de onde ele se encontra ao longo desta via. si, nos momentos da prova” (AL-‘ARABI AD- Cabe observar que no Relato do pássaro, o Profeta DARQAWI, 1989: 85) e, a angústia (fâqah) oculta em si está presente como o arquétipo do sufi fazendo com a intensidade do desejo de união. que, ao ser transposto para a primeira pessoa, torne- Nesse tempo de provas e angústias, “a alma perdeu se o ta’wil da alma” (CORBIN, 1995: 175), sendo que, o suas asas e é arrastada até que se agarra às coisas que se aspira não é senão uma elevada edificação sólidas” (CORBIN, 1995: 1840). Hoje, a psicologia espiritual, sendo este ta’wil uma espécie de término, analítica conhece esse estado da alma (psique) como finalização do processo de ascenção mental aos projeção de conteúdos inconscientes em pessoas, itinerários celestiais. coisas e/ou situações. É também aqui que essa mesma Para López-Baralt, o conhecimento que surge na vertente da psicologia oferece uma nova busca da divina luz, é semelhante ao pássaro solitário possibilidade de trabalho para a purificação da alma no telhado que está agora, acima de todas as coisas. É que os alquimistas antigos (e os sufis entendem muito um modo de falar dos estados contemplativos bem de alquimia) chamavam propostos pela mística sufi, e também pela mística de imaginatio vera, isto é, um método dialético que cristã, através de São João da Cruz. Sugere-se que tal consiste inicialmente em encontrar as imagens estado traz consigo algumas propriedades. Entre elas: ocultas nas emoções que, ao interagirem com a “A primeira, que ordinariamente se põe no mais alto; consciência, geram um processo de transformação e assim o espírito neste lugar se põe em altíssima nos nós emocionais do coração. contemplação. A segunda, que sempre tem o bico voltado para o lugar de onde vem o ar; e assim o No universo aviceniano do Relato do Pássaro, não se espírito vira aqui o bico do afeto para onde vem o pode avançar para as alturas onde se encontra o espírito do amor, que é Deus. A terceira, é que pássaro solitário sem o símbolo, sem seu doloroso ordinariamente está só e não permite nenhuma outra canto inicial, sem a nostalgia do seu chamado para ave junto a sí, a menos que, pousando alguma junto, que a alma desperte, trabalhe e triunfe. É aqui que a logo se vá; e assim o espírito nesta contemplação está simbologia das asas “se impõe espontaneamente na solidão de todas as coisas, desnudo de todas elas, como um arquétipo” (CORBIN, 1995: 186) o qual pode nem permite em sí outra coisa que a solidão em ser retomado na apreensão de suas diferentes Deus. A quarta propriedade é que canta muito intensidades, até que “a visualização possa ser tão suavemente; e o mesmo faz a Deus o espírito nesse intensa e a alma pode transformar-se tão tempo, porque os louvores que faz a Deus são de integramente em visão, que o símbolo se desvanece suavíssimo amor, saborosíssimas para sí e no brilho da transparência: é então sua própria preciosíssimas para Deus. imagem” (CORBIN, 1995: 186). EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021 29

AL HAKIM Notas [1] LYRA, Sonia Regina, Ph.D. Pós- Doutorado/Filosofia: Kierkegaard: Obras Pseudonímicas e Obras Edificantes/UFPR; Doutorado/Ciências da Religião: Nicolau de Cusa: Visão de Deus e Teoria do Conhecimento/PUCSP; Mestrado/Filosofia: Jung leitor de Nietzsche: acerca da “morte de Deus”/PUCPR; Analista Junguiana: O Monge como Arquétipo Universal/IJUSP/AJB/IAAP; Graduação: Psicologia/PUCPR. Diretora do ICHTHYS Instituto: www.sonialyra.com.br. Autora de vários livros. Professora. Analista e Supervisora Clínica em Consultório Particular. Pesquisadora em Imaginação Ativa. [1] Todas as traduções do espanhol para o português, são traduções livres desta autora. REFERÊNCIAS AL- ‘ARABI AD-DARQAWI. (1989). Lettere di un Maestro Sufi. Tradotte Dall’Arabo e Annotate da Titus Burckhardt. Milano: Archè. CORBIN, HENRY. (1995). Avicena y el relato visionario. Barcelona: Ediciones Paidós. LÓPEZ-BARALT, LUCE. Para la génesis del “pájaro solitario”de San Juan de la Cruz. Universidad de Puerto Rico y Harvard University. 3 0 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM Aprendendo Islã on line Esse rostinho lindo e alegre é de Rabiatu Lá eu encontrei as diretrizes para desenvolver Nuhu, fotografada por sua mãe Neusa Job parte de minha personalidade e segurança para dos Santos (Jamila), mostrando uma das lidar com situações adversar em minha vida. tarefas realizadas que recebeu da professora Desenvolvi a fé em Deus para resolver os Elaine kaussar. Ela e outras crianças sufis problemas que eu não dava conta. Aprendi que fazem parte de uma escola virtual sobre o milagres acontecem quando suplicamos de coração Islã que iniciou em junho com um pequeno a Deus e que existem perdão e misericórdia, bases grupo de crianças de três a cinco anos, para eu crescer positiva aos desafios mundanos. assessoradas pelas mães. Hoje se reúnem Durante minha jornada ao Islã tive exemplos duas vezes por semana, mesmo tendo as dentro da comunidade muçulmana de ensinamento presenciais retornado. O encontro com as islâmico aos menores pelos pais, escolas, madrassas crianças fortalece também a relação entre e mesquitas. as mães criando laços entre elas, que Meus filhos tiveram um pouco de oportunidade de moram em cidades e regiões diferentes. viver tudo isso, mas o desafio de passar o islã para A professora Elaine Storti conta o que a eles foi árduo, pois com um mundo cada vez mais levou a propor a formação da sala de cheio de tecnologias, fica complicado manter os estudos on line sobre o Islam para as pequenos longe de celulares, tablets e outros criança: aparelhos. Com isso, a tendência é que as crianças e \"Inicialmente, sempre valorizei o ensino adolescentes se tornem adultos extremamente religioso para crianças e adolescentes individualistas e até mesmo egoístas\". porque passei minha infância e parte de minha adolescência na igreja cristã. EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021 31

AL HAKIM \"Eu acho o Islã um caminho lindo\". A professora Eleine conta que quando percebeu que a Meu nome é Nuria Tondo. Tenho 8 anos. Sou Ordem Naqshibandi do Brasil não oferecia aulas gerais muçulmana quase desde que nasci. Estou do islã para crianças e adolescentes, \"fiquei um tanto participando das aulas de Islã do grupo Crianças preocupada com o futuro de nossas crianças, por isso Naqshbandis. Gosto muito de nossas aulas, são muito pedi autorização para abrir um grupo de encontro divertidas e muito boas também. Nas aulas pelo zoom a fim de passar a história dos profetas no aprendemos muitas coisas importantes do islã, gosto islã e o ABC do islã para as crianças interessadas, pois muito de todos os colegas e também da professora. vi que os adultos estão amparados com encontros virtuais e aulas diárias postadas em nossos grupos. Daí Amo as aulas, já tivemos aulas sobre o profeta Abraão iniciamos o grupo de crianças da ordem naqsh e senti (as) e de Moises (as). As aulas são importantes para que em cada encontro o vínculo no grupo foi tudo no Islã e também nelas já tivemos sorteios de aumentando, o respeito entre os participantes prêmios muito legais. Já ganhamos véu para as predominando e a vontade de estarmos todos juntos meninas e taqia para os meninos, coisas que são muito nascendo\". importantes para os muçulmanos. Para Elaine, esse trabalho com as crianças ajuda a Eu acho o Islã um caminho lindo. Eu faço as orações, construir a formação das crianças, \"espero que essas faço o Dhikr e Du’a. Acho a professora Kawthar muito sementes sejam os próximos professores no futuro gentil, muito amorosa e muito legal. para formar grupos sobre a maior fortuna que Allah deixou para nós, que é o ensinamento de nossa Aprendi uma música de cumprimentos em árabe religião\". super legal. Na aula teve uma gincana super legal, teve uma gincana super legal também, tinha prêmio Pois para ela, o ensino religioso vai de encontro com surpresa! Muito bonito o prêmio que ganhei. essas questões, procura ensinar valores que podem mudar este paradigma, pois tem como foco formar Mas, o que eu mais gostei foi a história do profeta um cidadão que saiba viver em sociedade, que saiba Abraão (as). Acho muito bonito que Allah deu o dom colaborar, que conheça o significado das ações para Abraão (as) para que ele não gostasse de outros empáticas e que saiba não apenas sobre seus direitos, deuses e para que sempre ele buscasse a verdade. mas, também, o direito do próximo. Queria muito que mais irmãozinhos e irmãzinhas entrassem para o nosso grupo\". \"Estou certa de que a formação religiosa para as crianças e adolescentes aliadas às matérias voltadas ao processo natural escolar, como matemática, português, inglês, entre outras trazem valores essenciais que uma sociedade precisa para se desenvolver de forma saudável e equilibrada, constata. Nuria, uma das alunas enviou uma mensagem sobre a experiência de aprender o Islã on line: @Meralmeri 3 2 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM Mil anos de textos sufis I. AL-SARRĀJ E O ARREPENDIMENTO Compêndio sobre o Sufismo, de ‘Alī as-Sarrāj aṭ-Ṭūsī (Ed. de R.A.Nicholson. Al-luma‘ fi at-taṣawwuf, Leyden - London, 1914). Segue extratos da tradução feita por Richard Gramlich e que aparece em sua obra La Mística del Islã. Editorial Sal Terrae. 1992, p. 61: rceliamendonca.wordpress.com Sobre as estações e suas realidades [41] O shayḫ Sarrāj (f. 378/998) dizia: quando se pergunta o que se quer dizer por “estações”, pode-se responder assim: por “estações” se quer dizer o lugar no qual o ser humano está colocado diante de Deus, e que consiste nos atos de culto, nas lutas espirituais, exercícios ascéticos e concentração em Deus. Disse Deus: Isto vale para os que temem minha estação e temem minha ameaça (A. 14:14). E disse: Não há nem um dentre nós que não tenha uma estação determinada (A.37:164). Dizia ainda o shayḫ: Perguntaram a Abū Bakr sobre a palavra do Profeta “Os espíritos são como tropas agrupadas”. E respondeu: “Agrupadas segundo suas estações”. Estações são, por exemplo, o arrependimento, a meticulosidade, a renúncia, a pobreza, a paciência, o contentamento, a confiança em Deus, entre outras. EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021 33

AL HAKIM rceliamendonca.wordpress.com Sobre os estados rceliamendonca.wordpress.com O shayḫ dizia: por “estados” denota-se uma lembrança Essa mesma ideia se encontra em Ruwaym ibn pura que desce no coração ou na qual o coração Aḥmad, que, quando lhe perguntaram o que era o mergulha. Contam que Junayd dizia: “Um estado é arrependimento, respondeu: um arrebatamento que desce sobre o coração e que “O arrependimento do arrependimento”. não perdura”. Também se diz que o estado é a Perguntaram também a Dun-nūn e ele respondeu: lembrança secreta de Deus, e conta-se que o Profeta “Os crentes ordinários se arrependem dos pecados; os disse: “A melhor lembrança de Deus é a secreta”. escolhidos se arrependem da indiferença”. O estado não é feito de lutas espirituais, atos cultuais e Essa mesma ideia se encontra em Ruwaym ibn exercícios ascéticos, tal como as estações que já Aḥmad, que, quando lhe perguntaram o que era o mencionamos. Estados são, por exemplo, ter Deus arrependimento, respondeu: “O arrependimento do sempre presente, a proximidade, o temor, a esperança, arrependimento”. Perguntaram também a Dun-nūn e a saudade, a familiaridade, a tranquilidade, a ele respondeu: “Os crentes ordinários se arrependem contemplação, a certeza, entre outros dos pecados; os escolhidos se arrependem da O estado não é feito de lutas espirituais, atos cultuais e indiferença”. exercícios ascéticos, tal como as estações que já Essa mesma ideia se encontra em Ruwaym ibn mencionamos. Estados são, por exemplo, ter Deus Aḥmad, que, quando lhe perguntaram o que era o sempre presente, a proximidade, o temor, a esperança, arrependimento, respondeu: “O arrependimento do a saudade, a familiaridade, a tranquilidade, a arrependimento”. Perguntaram também a Dun-nūn e contemplação, a certeza, entre outros… ele respondeu: “Os crentes ordinários se arrependem dos pecados; os escolhidos se arrependem da A estação do arrependimento indiferença”. Portanto, o que a elite da elite, os que possuem [43] Abū Ya‘qub Yūsuf ibn Ḥamdān as-Sūsī dizia: “A conhecimento e experiência interior têm a dizer sobre primeira estação dos que se dedicam completamente a o arrependimento, é o que Abu l-Ḥusayn an-Nūrī Deus é o arrependimento”. respondeu quando lhe perguntaram em que consistia Quando perguntamos a Sūsī sobre o arrependimento, o arrependimento: “O arrependimento consiste em ele disse: “É o movimento que afasta de tudo o que o que te afastes de tudo exceto de Deus”. É precisamente saber religioso reprova e aproxima de tudo o que o a isso que se referia Dun-nūn quando dizia: “Os saber religioso aprova”. Perguntaram a Sahl ibn pecados dos que estão próximos de Deus são as boas ‘Abdallāh o que era o arrependimento. Ele disse: “Que obras dos piedosos”; e: “O desejo de ser visto do não te esqueças de teus pecados”. Quando conhecedor é a retidão dos noviços”. Pois, se o perguntaram a Junayd , esse falou: “É esquecer de teus conhecedor está firme nas obras que aproximam de pecados”. Dizia o shayḫ: “A resposta de Sūsī sobre o Deus e nos atos de obediência através dos quais arrependimento informa sobre o arrependimento dos buscou a proximidade de Deus, no tempo em que noviços, dos que iniciam, buscam e se esforçam - esses considerava a meda e estava ainda no início, e colocou são os que ora atuam por seu bem e ora contra eles mãos à obra e a realizou; se as luzes da guiança correta mesmos; o mesmo vale para o que disse Sahl ibn o circundam e a solicitude de Deus toca em sua sorte; ‘Abdullāh. se a proteção divina o envolve e seu coração consegue A resposta de Junayd, que o ser humano esqueça seus ver a majestade de seu Senhor e medita sobre a obra pecados, informa, ao contrário, sobre o de seu criador e suas boas obras desde o princípio,ele arrependimento dos místicos, que não pensam em presta atenção a seus atos de obediência, nas seus pecados porque a majestade de Deus e a atividades religiosas e nas obras que o aproximam de rememoração contínua de Deus se apoderou de seu Deus, do mesmo modo que praticava nos tempos em coração. A resposta de Junayd, que o ser humano que era noviço, e apoiava-se neles e acreditava neles. esqueça seus pecados, informa, ao contrário, sobre o Que imensa é, no entanto, a diferença entre os que se arrependimento dos místicos, que não pensam em arrependem! Um se converte dos pecados e dos maus seus pecados porque a majestade de Deus e a atos, outro se converte dos deslizes e das indiferenças, rememoração contínua de Deus se apoderou de seu e outro ainda se converte de fixar-se em bons atos e coração. obras de obediência… Ao arrependimento segue a meticulosidade. 3 4 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM A Muralha do Mistério https://i.pinimg.com/originals/ec/ “No extremo Oriente existia uma muralha de mistério, da qual poucos se 35 aproximavam. Algumas vezes, alguns conseguiam não só chegar perto, como escalar a muralha. Apesar de ser imensamente difícil chegar ao topo, alguns continuavam até conseguir. Quem tinha sucesso nisso e olhava para o outro lado, era visto sorrindo, até atravessar a muralha e desaparecer para sempre. Com o tempo, os moradores daquele país repararam que os que estavam se aproximando da muralha tinham algumas características em comum: seus olhos como que atravessavam as coisas, mirando o infinito; mostravam-se absortas e autocentradas, como alheias ao exterior e meditando sobre questões que os homens a seu redor não conseguiam entender, e, além disso, não respondiam o que se lhes perguntava. O que havia além da muralha? Isso deixava as pessoas muito curiosas, mesmo que não quisessem correr o risco de tentar subi-la. Dessa forma, muitos traçaram uma estratégia. Quando notassem que uma pessoa de olhos compenetrados e visão interior estivesse se voltando para a muralha, trariam correntes e ficariam aguardando-a perto dela. Assim que perceberam que um jovem tinha se aproximado e começava a subir a muralha, acorrentaram os seus pés. Não obstante ele prosseguiu na escalada, subindo, subindo, até que chegou ao topo. Quando olhou para o outro lado, abriu um sorriso esplendoroso, como os outros antes dele. Os homens ao pé da muralha, imensamente curiosos, puxaram a corrente, trazendo o homem de volta. Repletos de ansiedade, começaram a perguntar-lhe muitas coisas, para saber como era o outro lado. Só que o jovem não respondeu nada, em absoluto. Quando ele pisou no chão novamente, ele tinha perdido o dom da fala”. *Adaptado por Daniel Plácido, com autorização do editor Sérgio Rizek. In: Jacob Nedlemann, Filosofia Viva. SP: Attar. EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

derdiderun.tumblr.com AL HAKIM A sopa do Dervishe O Šayḫ tinha um discípulo que era cozinheiro e vendia sopa no mercado. Sempre que ia ao mercado, parava na loja deste discípulo e tomava uma tigela de sopa em pé, ali mesmo. Um dia, quando estava com a tigela de sopa nas mãos, passou alguém com a pretensão de ser um dervishe, vestido com um manto sufi multi- colorido * que saudou-o com grande cerimônia. “Gostaria”, disse ele, “que me mostrasses o caminho para Deus. Por favor, diga-me o que eu teria que fazer para encontrar esse caminho e agirei conforme me instruas”. O Šayḫ entregou-lhe a tigela de sopa que tinha nas mãos e disse: “Parte fundamental do teu trabalho é tomar essa sopa”. O dervishe pegou a tigela e tomou a sopa; quando terminou de comer, o Šayḫ disse-lhe: “Agora limpe, no teu manto Sufi, esse resto de sopa que respingou nas tuas mãos, e faça isso sempre que comer algo”. “Mas Mestre”, respondeu o dervishe, “não posso fazer isso! Podes me sugerir alguma outra coisa?” “Se não consegues fazer nem menos isso”, disse o Šayḫ, “não conseguirias fazer qualquer outra coisa que te dissesse. Vá embora! Não serves para esse trabalho!” O Šayḫ em questão era Awhad al-dn Balyani (f. 1287), segundo relato de ‘Abd al- Rahmān Jāmī (f. 1492), escritor persa que escreveu sobre ele em um dicionário sobre a biografia dos santos, o Nafahat al-uns (O Hálito da Intimidade -Tehran, 1958, pp. 258-262). Através de Jami sabemos que Balyani descendia de uma linhagem de Sufis que remonta a Abu ‘Ali Daqqaq, cujo genro e herdeiro espiritual era Qushayri (f.1074) - autor de um importante tratado chamado Epistola sobre o Conhecimento Sufi** . Associado especialmente a Abu Najib al-Suhrawardi (f.1168), fundador da Ordem Suhrawardiyya, isolou-se por onze anos no Monte Lingām, e frequentou vários mestres, além do poeta místico Shustari (f.1269), tendo ele mesmo escrito poesia. Dentre seus versos: A Verdade: não se pode ver outro senão Deus, Pois, sem dúvida, os mundos não são outro senão Ele. Até que eu contemplasse Haqq (O Verdadeiro, O Real) com meus dois olhos nunca deixei, nem por um instante, de procurá-Lo a cada alento. Eles dizem que não O podemos ver com nossos dois olhos: Eles são assim, e eu, com meus dois olhos, O vejo a cada instante. (1862) * Em torno do século XIII, com a expansão das ordens sufis organizadas (tarīqa, plural turuq), desenvolveu-se o hábito de diferenciar as diversas ordens bem como o status de cada discípulo (noviços, avançados, etc.) através de mantos e vestimentas de formas e cores distintas, e outros aparatos como acessórios de cabeça; o kashkūl ou tigela de mendicantes; diferentes formatos e contas para os rosários de oração; o tabarzīn ou machadinha de duas cabeças; etc. ** Existe uma publicação desse texto - Risāla fī ‘Ilm al-Tasawwuf - com o título de La Scienza Iniziatica, em tradução de Giorgio Giurini. Turim: Il Leone Verde, 2003. 3 6 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM - Getty Images/ aventuras da história Bata nesse lugar Por Beatriz Del Picchia 37 “Dhun-Nun, o Egípcio, explicou graficamente numa parábola como extraíra os conhecimentos ocultos nas inscrições faraônicas. Havia uma estátua apontando com um dedo sob o qual se achava a inscrição: “Bata nesse lugar para obter um tesouro”. A origem dessa inscrição era desconhecida, mas gerações inteiras haviam golpeado o lugar indicado. Como era feito de pedra sólida demais, os golpes deixaram poucas marcas e o significado permaneceu oculto. Certo dia, ao contemplar absorto a estátua, Dhun-Num observou que exatamente ao meio-dia a sombra do dedo indicador, ignorada durante séculos, traçava uma linha no pavimento ao pé da estátua. Marcou o ponto exato, muniu-se de instrumentos necessários e com uma barra de ferro fez saltar uma lousa. Aconteceu ser essa uma espécie de alçapão no teto de uma caverna subterrânea. Esta continha estranhos objetos de tal feitura que permitiram a Dhun-Num deduzir a ciência de sua fabricação, há longo tempo esquecida, e assim pode adquirir os tesouros e aqueles outros de gênero mais convencional que os acompanhavam”. (1) Os sufis insistiram sempre na praticabilidade de seu ponto de vista, afirma Robert Graves na introdução do antológico livro Os sufis (2) E os contos fazem parte dessa praticabilidade como recursos técnicos operacionais que não poderiam expressar-se de outra forma. Neste ponto semelhante ao koan zen, sua sabedoria não pode ser alcançada exclusivamente pela parte racional e cognitiva de nossa mente, que rapidamente absorve conteúdos fixando-se em seus supostos significados, ideias e princípios sem deixá-los chegar às partes mais profundas da psique (3). Ao invés disso, por vias indiretas e sutis como uma linha de sombra, os contos sufis convidam para que acessemos tesouros de sabedoria ocultos sob um alçapão no teto de nossa caverna mais subterrânea. 1-SHAH, Idries: Histórias dos dervixes, Ed Nova Fronteira, 1976, pg 59 2-SHAH, Idries: Os Sufis, Ed Cultrix, 1992-93, pg 15 3-DOUGLAS-KLOTZ, Neil: The little book of Sufi Stories, Hampton Roads, 2018 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

http://claudine.aquarelle.free.fr/ AL HAKIM Poema de Jalaluddin Rumi Somente a Ti te elegi, de todas as coisas do mundo; Poderás ver-me sentado cheio de dor? Meu coração é como uma caneta em Tua mão, Tu és a causa da minha alegria ou melancolia. Exceto Tua vontade, que vontade tenho eu? Salvo o que Tu mostras, o que vejo eu? Tu fazes brotar de mim ora um espinho ora uma rosa; Às vezes sinto o perfume de rosas e às vezes arranco espinhos. Se me mantém assim, assim estou. Se quiseres que eu seja assim, assim sou. No cálice onde da cor à alma Quem sou eu, o que são meu amor e meu ódio? Fostes primeiro e último serás; Fazes que meu último seja melhor que meu primeiro. Quando estás oculto, eu me conto entre os infiéis; Quando se manifestas, sou dos fiéis. Não tenho nada que não me outorgaste Tu; O que buscas de meu seio e de minha manga? Poema: XXX do Diwan de Tabriz - Poema extraído do livro: “Diwan de Shams de Tabriz” de Jalaluddin Rumi (sufi do séc. XIII), pg. 89. 3 8 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM As alegrias com o Amado Espiritual NÃO PODEM SER EXPRESSAS EM PALAVRAS www.flickr.com/photos/alberto_c/7177458109 Em resumo, o Rei o amava ternamente, E ele, como a lua, desvanecia-se naquele sol. O desvanecimento dos amantes faz com que cresçam mais 39 fortes, Assim como a lua cresce mais brilhante depois de diminuir. Os doentes comuns anseiam pelo remédio para sua enfermidade, Mas aquele que está doente de amor grita: \"Aumenta meu desvanecimento! Jamais provei vinho mais doce que este veneno, Não há saúde que possa ser mais doce que esta doença! Nenhuma devoção é melhor que este pecado (de amor), Anos são um momento comparados com este momento!” Por muito tempo ele viveu com o Rei dessa maneira, Com o coração ardendo, como um sacrifício vivo. Assim passou sua vida, e no entanto não alcançou a união que desejava. A espera paciente consumiu-o, sua alma não podia suportá-la; Ele arrastou-se pela vida em dor e ranger de dentes. Por fim, sua vida acabou antes que alcançasse seu desejo. A forma de seu Amado terreno ficou oculta para ele; Ele partiu e encontrou a união com seu Amado Espiritual. E então disse: \"Embora lhe faltem roupas de seda e de lã, É mais doce abraçá-la sem esses véus. Despi-me do corpo e de suas ilusões, E fui admitido na mais íntima união\". A história pode ser contada até este ponto, Mas o que se segue está oculto e não pode ser expresso em palavras. EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

moc.rlbmut.htronnredom AL HAKIM Mesmo que fales e tentes exprimi-lo de cem maneiras diferentes, É inútil; o mistério não fica mais claro. Podes cavalgar até a costa do mar, Mas então tens de usar um cavalo de pau (isto é, um barco). Um cavalo de pau é inútil em terra firme, É o veículo especial dos viajantes no mar. O silêncio é este cavalo de pau, O silêncio é o guia e suporte dos homens no mar. Este silêncio que te causa aborrecimento Esta lançando gritos de amor audíveis para o homem espiritual. Tu dizes: \"Como é estranho que o homem espiritual esteja calado!\" Ele responde: \"Como é estranho que não tenhas ouvidos! Embora eu dê gritos, tu não ouves; Os ouvidos sensuais, por mais apurados que sejam, são surdos [aos meus gritos\". O homem espiritual, por assim dizer, grita em seu sono, Pronunciando milhares de palavras de consolo, Enquanto o homem carnal a seu lado não ouve nada, Pois está adormecido e surdo à voz do outro. Mas o homem do espírito que quebrou seu barco Mergulha no mar como um peixe do mar (da Verdade). Então, ele não esta nem calado nem falando, mas é um mistério. Não há palavras para exprimir seu estado. Esse ser maravilhoso não está em nenhum desses estados; Seria irreverência explicar mais amplamente o seu estado. Essas ilustrações são fracas e inapropriadas, Mas não se pode conseguir mais adequadas dos objetos sensíveis. 4 0 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM Oração anônima Aquele que sabe e não sabe que sabe, Está dormindo. Que ele se torne um, inteiro! Que ele acorde! Aquele que soube, mas já não sabe, Que ele veja o princípio de tudo uma vez mais! Aquele que não deseja conhecer, e mesmo assim diz que quer conhecer: Que ele seja guiado à luz e à segurança! Aquele que não sabe, e sabe que não sabe, Que através desse conhecimento saiba! Aquele que não sabe, mas pensa que sabe, Que fique livre da confusão da ignorância! Aquele que sabe, e sabe que ele é: Esse é sábio. Que seja seguido! Por sua presença os homens podem ser transformados. Eu que sei, e não sei que sei: Que eu me torne completo, que eu acorde! Eu, que soube, mas já não sei, Que eu possa, uma vez mais, ver o princípio de tudo. Eu, que não desejo saber, mas que mesmo assim digo que quero saber: Que eu seja guiado para a luz e a segurança. Eu, que não sei, E sei que não sei: Que através desse conhecimento eu saiba! Eu, que não sei, mas penso que sei: Que eu me livre da confusão da ignorância! Aquele que sabe, e sabe que ele é, Esse é sábio. Que seja seguido! Por sua presença os homens podem ser transformados. Nós que sabemos, e não sabemos que sabemos, Essa antiga oração anônima é conhecida em todo o reihsaC·eeg_immo@ Que possamos ser um, inteiros! mundo islâmico. De acordo com a tradição, esta Que possamos ser transformados! composta de vários hadiths do Profeta Muhammad, Nós que soubemos, mas que não mais sabemos, interlaçados como pérolas em um colar. (The Inner Que possamos ver uma vez mais, Journey: Views from the Islamic Tradition. Ed. William O princípio de tudo! Chittick. Canadá: Morning Light Press, 20 Nós que não desejamos saber, Mas ainda assim dizemos que queremos saber, Que possamos ser guiados para a luz e a segurança! Nós, que não sabemos, e sabemos que não sabemos, Que através desse conhecimento possamos saber! Nós que não sabemos, mas pensamos que sabemos, Que sejamos livres da confusão da ignorância! Nós que sabemos, e sabemos que ele é, Ele é sábio. Que seja seguido! Por sua presença os homens possam ser transformados! Assim foi com nossos antepassados, Assim será com nossos descendentes E assim é conosco. Afirmamos esse compromisso. Que assim seja. EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021 41

Resenhas AL HAKIM Ordens Sufis no Islã Iniciação às Confrarias Esotéricas muçulmanas no Irã xiita e no mundo sunita O sufismo é um tema que tem despertado bastante o interesse nO sufismo é um tema que tem despertado bastante o interesse no Ocidente nos últimos anos, basta ver a popularidade nas redes sociais de autores sufis como Rumî e Hafis, contudo, nem sempre o sufismo é visualizado em sua vinculação histórica e espiritual com o Islã. Nesta obra, o autor, Mateus Soares de Azevedo, influenciado pelo perenialismo de F. Schuon e outros, apresenta o sufismo de forma introdutória, tanto em sua história quanto em suas práticas, métodos e principais ordens (turuk), como o esoterismo da tradição islâmica, derivado, em última análise, da linhagem do Profeta Muhammad. A perspectiva perenialista do autor enriquece a obra, pois permite comparações pertinentes do sufismo com outras tradições, como a cristã. Esta é mais uma obra preciosa da Polar Editora, a qual tem publicado há anos no Brasil, com qualidade e seriedade, obras clássicas sobre ou das tradições espirituais do Ocidente e Oriente próximo. Desde a sua criação, em 1996, a Polar Editorial tem por objetivo demonstrar que a Sabedoria que muitos tem buscado nas tradições orientais também está presente em grandes obras e autores das tradições ocidentais, ou seja, em nossas próprias raízes culturais, e que essa Sabedoria, apresentada com diferentes roupagens, conforme o lugar, a época e a cultura em que é veiculada, é essencialmente a mesma em todos os tempos e lugares. Por isso, a Polar tem uma linha editorial muito definida: publicar grandes obras e autores das tradições espirituais que fazem parte das raízes culturais brasileiras, mas que ainda são inéditas em nossa língua. 4 2 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

Resenhas AL HAKIM \"The Seeker Of Orient\" Documentário sobre o filósofo e orientalista francês Henry Corbin por Daniel Placido The Seeker Of Orient é um documentário a respeito Talvez o mais oriental dos ocidentais, ou mais do grande filósofo e orientalista francês Henry ocidental dos orientais, Corbin não perdeu, contudo, Corbin. Sob a brilhante direção do iraniano Masoud sua raiz protestante e ocidental, afinal, o Oriente não Taheri, alternam-se depoimentos de amigos, tem apenas uma conotação geográfica: encontra-se na discípulos e especialistas na obra de Corbin, mais alma de quem desvela dentro de si o conhecimento antigos ou mais recentes, como Seyed Hossein Nasr, espiritual, locus interno em que a aurora nascente de Hermann Albert Landolt, Christian Jambet, Boehme ou as luzes inteligíveis de Sohravardî, não Mohammad Ali Amir Moezzi, Pierre Lory, Dariush importa a terminologia usada, levantam-se de forma Shayegan, Yann Richard, Karim Mojtahedi, Michel gloriosa. Cassé, Daniel Proulx, Jean-Claude Carrière, Gholamhossein Ebrahimi Dinani, Seyed Abdollah Duração: 110 min Anvar, Nasrollah Pourjavady, Inshallah Rahmati, Jean- Direção: Masoud Taheri françois Perouse, Nahal Tajaddod, Hasan Seyed Arab, Origem: França, Suíça, Itália, Turquia, Iran, Japão, Shahram Pazouki, Bahman Zakipour, entre outros. EUA Além dos depoimentos e testemunhos, o filme faz um Legendas em inglês tour por lugares e instituições que marcaram sua Link: demanda pelo Oriente, tal como um cavaleiro https://vimeo.com/ondemand/222302? espiritual em busca do Graal. fbclid=IwAR2YPrrJ5AeZNmEouFZVXOQPz5- ktdpa7rwJ5qPvx8fWoxWzDV8uZeatUjk Acompanhamos o itinerário anímico e biográfico de Corbin, desde a infância, passando pela formação filosófica sob a tutela ou influência de nomes prestigiosos como E. Gilson, A. Kojève e outros, até o contato com a fenomenologia heideggeriana. Mas o encontro realmente providencial, com a ajuda de Massignon, foi aquele com a obra do sheik Ishraq, Sohravardî, por excelência o intermediário filosófico entre o mundo grego e o persa. Encontro que teve a força de uma transfiguração. Depois de uma temporada na Turquia, acompanhamos o filósofo, agora orientalista de renome, a tecer laços sociais e intelectuais duradouros com o Iran, ao mesmo tempo em que aprofunda seu conhecimento e paixão pelo xiismo, sem perder o vínculo com a Europa, seja através da universidade francesa, seja através das reuniões do Círculo de Eranos. Fundada em 1986, a ATTAR EDITORIAL dedica-se à publicação de clássicos da literatura das tradições religiosas do Oriente e do Ocidente, além de outros temas em sua maioria ligados à Antropologia, à Estética e à História das religiões. Rua Madre Mazzarelo, 336 CEP 05454-040 - São Paulo, SP tel / fax: (11) 3021 2199 [email protected] EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021 43

MINICURSO AL HAKIM Editora Garbha-Lux A Editora Garbha-Lux faz publicações sobre os temas centrais dos estudos e investigações do Instituto Garbha e do Núcleo Lux-Dzyu que são, prioritariamente, o budismo mahayana, o gnosticismo cristão e o gnosticismo islâmico. Sua equipe tem trabalhado duro para preservar ensinamentos profundos e, ao mesmo tempo trazer livros de qualidade espiritual para o idioma português. Publica estudos bem contextualizados, traduzidos, comentados e estruturados para o estudante que procura uma conexão com as verdadeiras tradições espirituais. O próximo lançamento da Editora Garbha-Lux será um livro do professor Alberto Brum: O Colégio Arcano e Filosófico dos Templários de Toledo. O livro faz uma investigação sobre a presença dos “cavaleiros do Graal” na liderança da escola dos tradutores, centro de um renascimento filosófico em Toledo na Espanha (séc. XII). A relação entre os primeiros templários (o núcleo dos fundadores) com os monges de Cister, com a tradição filosófica árabe e com o ismailismo. A Editora Garbha-Lux é uma instituição sem fins lucrativos. https://www.garbhalux.org.br 4 4 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021

AL HAKIM EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021 4 5 SEGAMIKOOBEVIHCRATENRETNI/SOTOHP/MOC.RKCILF.WWW//:SPTTH

moc.topsgolb.traifusyod AL HAKIM 4 6 EDIÇÃO Nº 01 . SET - DEZ/2021


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