ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI CRISE HUMANITÁRIA, BOLSONARISMO E (DES)PROTEÇÃO SOCIAL NO BRASIL DO PRESENTE: PARTICULARIDADES DA POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EMENTA A presente Mesa temática Coordenada intitulada CRISE HUMANITÁRIA, BOLSONARISMO E (DES)PROTEÇÃO SOCIAL NO BRASIL DO PRESENTE: particularidades da Política Nacional de Assistência Social, apresenta reflexões advindas de estudos e pesquisas realizados por um grupo de professoras da Universidade Federal do Ceará e Universidade Federal do Maranhão. Analisa as configurações da crise humanitária, no contexto da pandemia da Covid 19. Avalia criticamente as expressões do bolsonarismo como ápice do Golpe 2016. Aborda a história da Proteção Social no país, com ênfase nas particularidades da Assistência Social. Contextualiza as mudanças ocorridas, em nível de financiamento, gestão e oferta dos serviços e benefícios socioassistenciais e do controle social no âmbito do Sistema Único de Assistência Socia, no período 2016/2020, com destaque para a Renda Básica Emergencial no contexto da pandemia da Covid 19. Palavras-chave: Crise humanitária. bolsonarismo. Proteção Social. Política de Assistência Social COORDENAÇÃO DA MESA INTEGRANTES DA MTC: ALBA MARIA PINHO DE CARVALHO. Assistente Social. Doutora em Sociologia, com pós-doutoramento em Sociologia Política na Universidade de Coimbra. Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, do Mestrado Acadêmico e do Mestrado Profissional em Avaliação de Políticas Públicas da Universidade Federal do Ceará. CLEONICE CORREIA ARAÚJO. Assistente Social. Doutora em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão. Professora Associada na Universidade Federal do Maranhão. Pesquisadora do Grupo de Avaliação e Estudo da Pobreza e de Políticas Direcionadas à Pobreza (GAEPP). MARGARETE CUTRIM VIEIRA. Mestre em Políticas Públicas/UFMA. Atualmente exerce o cargo de Secretária Adjunta de Assistência Social da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social /SEDES/MA Pesquisadora do Grupo de Avaliação e Estudo da Pobreza e de Políticas Direcionadas à Pobreza (GAEPP). MARIA DO SOCORRO SOUSA DE ARAÚJO (Coordenadora da MTC). Pós doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia na Universidade Federal do Ceará. Doutora em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão. Professora Associada na Universidade Federal do Maranhão, com exercício na graduação em Serviço Social e no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas /UFMA. Pesquisadora do Grupo de Avaliação e Estudo da Pobreza e de Políticas Direcionadas à Pobreza (GAEPP). 4810
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MESA COORDENADA EIXO 4 CRISE HUMANITÁRIA, BOLSONARISMO E (DES)PROTEÇÃO SOCIAL NO BRASIL DO PRESENTE: particularidades da Política Nacional de Assistência Social CORONAVIRUS E BOLSONARISMO: uma dupla pandemia no Brasil do presente1 Alba Maria Pinho de Carvalho2 Maria do Socorro Sousa de Araújo3 RESUMO O presente artigo compõe a Mesa Temática Coordenada intitulada CRISE HUMANITÁRIA, BOLSONARISMO E (DES)PROTEÇÃO SOCIAL NO BRASIL DO PRESENTE: particularidades da Política Nacional de Assistência Social, a ser apresentada no III Simpósio Internacional de Políticas Públicas (III SINESPP), cujo propósito é circunscrever análises fundadas em estudos e pesquisas, desenvolvidos por um grupo de professoras pesquisadoras, acerca das particularidades da Política de Assistência Social, no âmbito da Proteção Social no Brasil contemporâneo, no contexto do bolsonarismo e em meio à crise humanitária decorrente da pandemia da Covid-19. Assim, o texto em referência, elaborado a partir de pesquisa bibliográfica e seminários de discussão, visa analisar as particularidades do contexto histórico, econômico, social e político no Brasil do presente, com destaque para a crise humanitária provocada pela pandemia da Covid-19, o bolsonarismo e o desmantelamento do Sistema de Proteção Social. Palavras-chave: Crise humanitária. Pandemia da Covid 19. Bolsonarismo. Proteção social. ABSTRACT This article is part of the Coordinated Thematic Table entitled HUMANITARIAN CRISIS, BOLSONARISM AND SOCIAL (DES) PROTECTION IN BRAZIL OF THE PRESENT: particularities of the National Social Assistance Policy, to be presented at the III International Symposium on Public Policies (III SINESPP), whose purpose is circumscribing analyzes 1 Essa Mesa coordenada integra o Eixo Temático 4: Seguridade Social: Assistência Social, Saúde e Previdência, realizada durante o III Simpósio Internacional sobre Estado, Sociedade e Políticas Públicas- SINESPP/UFPI. 2 Assistente Social. Doutora em Sociologia, com pós-doutoramento em Sociologia Política na Universidade de Coimbra. Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, do Mestrado Acadêmico e do Mestrado Profissional em Avaliação de Políticas Públicas da Universidade Federal do Ceará. 3 Doutora em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão (2007). Professora da Universidade Federal do Maranhão, lotada no Departamento de Serviço Social, integrante do quadro de professores permanentes do Programa de Pós-Graduação em Políticas/ UFMA; e do curso de Graduação em Serviço Social/UFMA. Vice coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas/UFMA (2015-2017). Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas (2015-2017). 4812
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI based on studies and research, developed by a group of teaching researchers, about the particularities of Social Assistance Policy, within the scope of Social Protection in contemporary Brazil, in the context of Bolsonarism and in the midst of the humanitarian crisis resulting from the Covid 19 pandemic. Thus, the reference text, elaborated from bibliographic research and discussion seminars, aims to analyze the particularities of the historical, economic, social and political context in Brazil today, with emphasis on the humanitarian crisis caused by the Covid-19 pandemic, Bolsonarism and the dismantling of the Social Protection System. Keywords: Humanitarian crisis. Covid 19 Pandemic. Bolsonarism. Social protection. À GUISA DE INTRODUÇÃO: algumas demarcações básicas O presente artigo integra a Mesa Temática Coordenada intitulada CRISE HUMANITÁRIA, BOLSONARISMO E (DES)PROTEÇÃO SOCIAL NO BRASIL DO PRESENTE: particularidades da Política Nacional de Assistência Social, apresentada no III Simpósio Internacional de Políticas Públicas (III SINESPP), cujo propósito é circunscrever reflexões e análises fundadas em estudos e investigações, desenvolvidos por um grupo de professoras pesquisadoras da UFMA e da UFCE, acerca das particularidades da Política de Assistência Social, no âmbito da Proteção Social no Brasil contemporâneo enfocando, de forma particular, o período 2016-2020, no contexto do bolsonarismo e em meio à crise humanitária decorrente da pandemia da Covid-19. Especificamente, este ensaio, foi formulado no âmbito da proposta de pesquisa Reconfigurações da Política de Assistência Social no contexto contemporâneo ante o desmonte da Seguridade Social no Brasil (2016-2020): expressões peculiares em São Luís do Maranhão4, que vem sendo realizada em nível de pós-doutoramento, junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, na Universidade Federal do Ceará, sob a supervisão da Profa. Dra. Alba Maria Pinho de Carvalho. 4 A proposta investigativa, ora citada, constitui-se num desdobramento de uma pesquisa realizada no contexto do projeto: Avaliando a implementação do Sistema Único de Assistência Social na Região Norte e Nordeste: significado do SUAS para o enfrentamento à pobreza nas regiões mais pobres do Brasil, realizada mediante cooperação acadêmica entre pesquisadores integrantes dos seguintes programas de pós-graduação: Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão; Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará e Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Pará. 4813
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Assim, o presente texto, elaborado a partir de pesquisa bibliográfica e seminários de discussão, visa analisar as particularidades do contexto histórico, econômico, social e político no Brasil contemporâneo, com destaque para a crise humanitária provocada pela pandemia da Covid-19, o bolsonarismo e o desmantelamento do Sistema de Proteção Social. 2 PANDEMIA DO CORONAVÍRUS: uma crise global nos circuitos da vida brasileira A pandemia da Covid-19 deflagrou uma crise sanitária e humanitária em âmbito global configurada como expressão do capitalismo contemporâneo, agudizando questões de classe, gênero e etnia. Os dados estatísticos revelam que os efeitos e consequências de tal crise, em nível mundial, incidem, de forma mais grave, sobre os segmentos mais vulneráveis na dinâmica contraditória da civilização do capital. Particularmente, no Brasil, esta crise humanitária, de caráter sanitário, atinge, de modo perverso, os segmentos que habitam às margens da vida social, atingindo trabalhadores e trabalhadoras pobres, comunidades das periferias, mulheres e negros. Merece especial destaque as severas repercussões no universo dos trabalhadores desempregados, ou, então, submetidos aos trabalhos autônomos, precários, informais, exaustivos, sem garantia de direitos trabalhistas e que (sobre)vivem, grande parte das vezes, em condições insalubres, doentias, sem acesso à água potável e demais condições necessárias para a efetivação das medidas minimamente preventivas. Assim, Carvalho (2020) sustenta que a pandemia da Covid-19 é resultante de uma junção, de uma amálgama de determinantes sanitários e sociais, vinculados ao próprio contexto de reprodução social, engendrado em meio às desigualdades e apartações provocadas pelo capitalismo. No dizer de Davis (2020) a crise do novo coronavírus é um monstro alimentado pelo capitalismo. Carvalho (2020a) enfatiza que a deflagração dessa crise humanitária, efetiva-se, em meio a um cruzamento de crises, que homens e mulheres, nativos desta civilização do mercado teimavam em não levar em conta, pela própria cegueira em que a humanidade mergulhou: crise ambiental, crise civilizatória, crise sanitária, crise ética, crise social, crise da democracia e crise do capital. No que concerne à crise do capital, a autora ressalta que, precisamente, no século XXI, em meados da sua primeira década – 2007/2008 – o capitalismo, envolto nos circuitos do capital financeiro, vivencia a explosão desta crise estrutural, a deslocar-se, 4814
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI permanentemente, de setores e de países, sem que se encontre uma saída. De fato, ao longo dos últimos doze anos, esta crise do capital não foi superada. Contrariando às falácias neoliberais, o Estado - elemento decisivo na acumulação do capital - é chamado, pelas elites neoliberais e seus mentores, a intervir para salvar instituições financeiras. E, como enfatiza Fontes (2020), governos salvaram os capitais para que eles avançassem, com ainda maior ferocidade, sobre os trabalhadores no mundo inteiro, extraindo mais- valor, de maneira brutal, pela generalização da uberização, continuando a expropriar direitos, apropriando-se dos fundos públicos. Assim sendo, a crise estrutural do capital permanece e seu pesado ônus recai sobre os trabalhadores e trabalhadoras. Nesse contexto, como bem destacam Carvalho (2020b), Fontes (2020) e Santos (2020), um elemento decisivo na compreensão dessa crise permanente é o próprio modo de funcionamento do capitalismo contemporâneo, a acirrar contradições e vulnerabilidades. De fato, esse modelo da economia capitalista está fincado em uma espiral de expansão (Harvey,2020) e crescimento sem fim, com contradições internas de acumulação e circulação, com fluxos crescentes de capital rentista, a procurar valorização, sempre em busca de lucro. A esse respeito, o autor destaca que este modelo de uma espiral de expansão ilimitada do capital: torna-se bastante complicado à medida que é elaborado através, por exemplo, das lentes das rivalidades geopolíticas, dos desenvolvimentos geográficos desiguais, das instituições financeiras, das políticas estatais, das reconfigurações tecnológicas e da teia em constante mudança das divisões do trabalho e das relações sociais. (Harvey,2020:13) Assim, essa dinâmica global de acumulação do capital, em uma expansão sem limites, com base na extrema tecnologização, mantém-se a partir de uma relação crescente de expropriação da natureza e da força de trabalho, com graves consequências ambientais/ecológicas e com uma precarização extrema da chamada “nova classe trabalhadora”, sem empregos e sem direitos, lançada em formas brutais de informalidade, em nível de uma sobrevivência consumista. (Carvalho,2020b). E, nessa dinâmica, a crise estrutural do capital vem se reproduzindo, neste século XXI, comprometendo a vida social e a própria sobrevivência do planeta no capitalismo contemporâneo. É, portanto, neste cenário que irrompe a pandemia do novo coronavírus, a ceifar milhões de vidas. 4815
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Segundo Fontes (2020), antes da pandemia do novo coronavírus, o sistema do capital já estava ingressando em uma nova crise capitalista, de novo por superprodução de capitais. Conforme explicita a autora: Antes de falar da crise sanitária, é preciso lembrar que já estávamos ingressando numa nova crise capitalista, de novo por superprodução de capitais, pois o enorme volume de capitais, sob forma de títulos ou de dinheiro, que precisam se valorizar, já estavam implodindo a vida social. Longe da falaciosa versão de que “vínhamos crescendo e o vírus pode atrapalhar”, apresentada por Trump e por Bolsonaro, a crise já estava em curso, e era anunciada pelos próprios economistas burgueses. Ora, se o capital promove crises quase permanentes, uma verdadeira “crise do capital” ocorre quando as massas irrompem na história e bloqueiam sua capacidade de recompor-se. Revolucionam a existência. Dão um basta a essa forma de economia e a esse modo de ser bárbaro e truculento. (FONTES,2020: 2) E mais, como enfatiza a autora, a própria expansão do capital, em sua desordenada e devastadora relação com a natureza, vem agudizando, permanentemente, a possibilidade de pandemias, gestadas pelo próprio modo de funcionamento do capitalismo contemporâneo. Sustenta a tese de que esta pandemia do novo coronavírus está totalmente acoplada à crise da vida social em tempos contemporâneos, provocada pela expansão ilimitada e predatória do capital e do capitalismo. Soma-se, ainda, questão de que a crise sanitária e humanitária da Covid-19, encontra o capitalismo contemporâneo a buscar saídas em processos de ajustes, em meio ao agravamento de políticas neoliberais a desmontarem os sistemas públicos de Seguridade Social e, especificamente, os sistemas públicos de Saúde, contribuiu para que a peste do século XXI dissemine-se em uma escalada exponencial, em um sistema do capital mundializado, com intensos circuitos globais de movimentação de mercadorias e de pessoas. Consequentemente, nesse mundo altamente conectado, em que o deslocamento de pessoas ocorre de forma rápida e global, em que se constituem redes humanas vastas e abertas, faz-se quase impossível deter uma acelerada expansão internacional de novas doenças. E, conforme, destaca Harvey (2020), essa pandemia, global e globalizada, encontra um Estado desmontado, sucateado, na esfera do público, sendo que governos e sistemas de saúde, em quase todos os lugares do mundo, foram apanhados com déficit de funcionamento e com incapacidade de atender à população, enquanto decorrência de quarenta anos de neoliberalismo na América do Norte, na Europa e na América Central, 4816
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI de implementação de políticas de austeridade, voltadas para cortes drásticos nos sistemas de Proteção Social, de privilegiamento dos interesses do mercado e atendimento das exigentes demandas do capital, especialmente do capital financeiro, em sua ilimitada expansão. Assim, como parte dessa conjuntura, a pandemia depara-se com uma poderosa indústria farmacêutica dominada pelo mercado, com pouco ou nenhum interesse na educação pública e na pesquisa sem fins lucrativos sobre doenças infecciosas, possuindo raro investimento em prevenção. Neste mundo, radicalmente neoliberal, regido pela lógica da mercantilização universal, a expressar-se fortemente na mercantilização da saúde, a pandemia do novo coronavírus toma a proporção de catástrofe. E, por mais que governos invistam nas necessárias ações emergenciais, buscando criar leitos de enfermaria e de UTI, construir hospitais de campanha, comprar respiradores e equipamentos de proteção individual, o sucateamento da saúde pública é fator decisivo na tragédia que se repete nos diferentes países do globo, especificamente, países centrais e periféricos que assumiram, de forma intensiva e sem controles, o neoliberalismo (CARVALHO, 2020b). No Brasil, a pandemia assume a dimensão de uma tragédia, com perversas configurações a revelarem exorbitantes números de infectados e mortos, colocando o Brasil como um dos principais centros de disseminação do coronavírus, num ranking macabro dos países do mundo. Indiscutivelmente, o bolsonarismo, na contramão do posicionamento da quase totalidade das nações, não enfrenta a pandemia, encarnando uma postura genocida de desconsideração da grave crise, querendo negar ou maquiar as evidências, na defesa da priorização do mercado, em detrimento de milhares de vidas da população trabalhadora. Toda a luta para conter a disseminação acelerada da covid 19, em um Brasil de dimensões continentais, tem ficado à cargo dos governadores do Estados e dos prefeitos municipais, a tentarem alternativas extremas, sem a necessária coordenação nacional. 3 BOLSONARISMO: uma pandemia decorrente do golpe 2016 Na trágica conjuntura da crise humanitária, o Brasil vivencia o bolsonarismo e suas mazelas. Conforme explicita Carvalho (2019:4), o bolsonarismo constitui-se: Um fenômeno sociopolítico resultante desta convergência de forças constitutivas da extrema-direita no Brasil, ao final da segunda década do século XXI. A rigor, bolsonarismo, é uma articulação sociopolítica de extrema-direita, que articula ultraneoliberalismo dependente, militarismo patriótico e 4817
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI autoritário, mesclado com justicialismo da violência e reacionarismo político- cultural, eivado de um moralismo religioso. A autora enfatiza que a eleição de Jair Messias Bolsonaro e a consequente constituição do bolsonarismo, como fenômeno sociopolítico, expressam o ápice do Golpe 2016, marcado pelo avanço da direita no contexto brasileiro. De fato, no cenário da crise brasileira contemporânea, nos circuitos do Golpe 16, avança a organização da direita/extrema-direita, com estratégias definidas e distintas expressões. É importante atentar para as diferentes configurações da direita no Brasil do presente. Trata-se de direitas no plural que se entrecruzam na cena brasileira, nos últimos cinco anos, em uma peculiar e complexa composição: direita militante, urdida, ideologicamente, com base em versões do neoliberalismo, inclusive, a produção doutrinária de Olavo de Carvalho com sus discursos reacionários de ódio e de desqualificação da esquerda, denominadas por eles de “comunistas”, a disserminar-se, sobremaneira, nos espaços virtuais: direita religiosa, forjada no fundamentalismo de igrejas pentecostais, a pregarem uma pretensa moral e bons costumes, em meio à práticas intolerantes e conservadoras, a justificarem o discurso do ódio e a adoção da violência, numa batalha ideológica para salvaguardar o Brasil de práticas mundanas, na defesa cega da família dita tradicional e seus respectivos valores; direita militarista, a agregar grupos de militares, com fortes vinculações ao ideário da Ditadura Militar, que instaurada com o Golpe de 64, vigorou, no país, por mais de 20 anos; direita gestada na cruzada ideológica do combate conservador à corrupção. (CARVALHO, 2019b) Na análise de Carvalho (2019), uma chave analítica, para o desvendamento do bolsonarismo, é a reconstrução de um recuo histórico na contemporaneidade brasileira, considerando a existência da confluência complexa e contraditória de processos, que, de forma estrutural definem a vida brasileira, quais sejam: - a democratização, a atingir seu ápice na década de 1980, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, ampliando o Estado Brasileiro pela via da Política, constituindo o Estado Democrático de Direito, com reconhecimento e afirmação dos direitos sociais, como fundamento de Políticas Públicas de caráter universal, com destaques para a Políticas de Proteção Social; - a experiência brasileira de ajuste estrutural, ou seja, o ingresso do país no capitalismo financeirizado, a partir da década de 1990, a configurar a submissão do Estado 4818
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI aos ditames do capital, a limitar, de diferentes formas, a força da Política e a restringir o domínio da Democracia, mediante o desenvolvimento de políticas macroeconômicas de ajuste, provocando a precarização e desmonte das políticas públicas. Destaca que, durante o período dessa confluência contraditória, ao longo de quase trinta anos, há predominância das práticas voltadas ao ajuste ao capitalismo financeiro, em meio aos embates pela democracia, ocorridos com maior ou menor intensidade, no decorrer das diversas conjunturas do Brasil do Ajuste. Ao longo dos diferentes ciclos da experiência brasileira de ajuste, percorrendo distintos governos, desde 1990 a 2020, o Brasil encarna o modelo rentista-neoextrativista, configurado a partir da centralidade na financeirização dependente e no extrativismo intensivo de riquezas – denominadas commodities. Trata-se de uma composição entre o rentismo, ou seja, o capital financeiro e suas altas taxas de lucratividade via juros e o capital vinculado ao neoextrativismo, com acumulação de riquezas por meio do agronegócio e da mineração. Enfatiza a autora, que no decorrer das últimas décadas, merece especial atenção analítica, o período de 2003 a 2015, referente aos ciclos de governo do Partido dos Trabalhadores, que, com distintas configurações, assumem a condução do ajuste ao modelo rentista neoextrativista pela via da denominada conciliação de classes, na perspectiva de regulação dos conflitos entre as elites do capital e as massas e segmentos assalariados dos trabalhadores. Alicerçado em diferentes estratégias, o modelo de ajuste petista caracteriza-se, de modo geral, pelo privilegiamento dos interesses do capital, vinculados ao rentismo e ao neoextrativismo e pelo atendimento pontual de demandas de segmentos empobrecidos da classe trabalhadora e de setores assalariados, mediante políticas de enfrentamento da pobreza. Ademais, nesta perspectiva de conciliação de classes, governos petistas incorporam na máquina estatal, setores da burocracia sindical e da direção de movimentos sociais, fragilizando as lutas na sociedade civil. (CARVALHO,2019:7) Conforme avalia, esse pacto de classes do modelo de ajuste petista passa a ser ameaçado a partir de um contexto internacional desfavorável, com deslocamento da crise estrutural do capital para a China, para a América Latina e, de modo particular, para o Brasil. Nesse contexto de crise, as elites brasileiras, visando manter sua alta lucratividade, decidem romper o pacto construído pelo social-liberalismo petista, criando, assim, as 4819
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI condições para a emergência e expansão da crise contemporânea brasileira e do Golpe 16. Sinaliza a autora, que, ao longo da segunda metade dos anos 2000, durante o processo de constituição da crise brasileira, explicita-se no país, a exemplo do que ocorreu em grande parte do mundo, a emergência da nova direita, em sua composição complexa e peculiar, como base de sustentação do próprio Golpe de 2016 e do consequente bolsonarismo. O golpe de 2016, em sua pesada arquitetura de desmonte, no âmbito do governo ilegítimo de Michel Temer, inaugura, um novo ciclo de ajuste, qual seja, uma versão do modelo rentista-neoextrativista, de cunho ultraneoliberal, de privilegiamento do capital estrangeiro, de superexploração da força de trabalho, de espoliação das riquezas nacionais e do fundo público, do processo de desmontes dos direitos sociais e trabalhistas. É justamente, nesse cenário intercruzamento de direitas, de crise, de conservadorismo, de marcha autoritária, de adoção de políticas ultraneoliberais e contrarreformas, de inseguranças e instabilidades, que se constitui a emergência de um governo de extrema-direita, a partir de 2019, configurando o fenômeno do bolsonarismo. E, nessa perspectiva, Carvalho (2019:6;) sustenta a tese de que o bolsonarismo constitui- se, na vida brasileira contemporânea, como “uma perigosa composição do ultraneoliberalismo, do militarismo e do reacionarismo político-cultura”. O ultraneoliberalismo, de caráter dependente e subordinado, consubstancia um agravamento da agenda de ajuste do Governo Temer, a efetivar as chamadas “políticas de ajuste fiscal” e de austeridade, significando, na prática, privatizações, cortes de gastos públicos e contrarreformas para suposta desoneração da economia, num linguajar típico dos agentes do mercado. Tem como figura emblemática Paulo Guedes e, como projetos estratégicos, as privatizações do que resta das empresas estatais brasileiras e a Contrarreforma da Previdência, a constituir a “joia da coroa” do insaciável mercado financeiro, no sentido da extinção do modelo público e solidário de Previdência Social e a implementação do modelo de capitalização de previdência privada (FATTORELLI, 2019). É a total submissão ao capital financeiro, numa posição de extrema dependência, comprometendo a soberania nacional. 4820
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI O militarismo autoritário, mobilizado na cruzada da anticorrupção, em busca da garantia dos chamados interesses da Pátria, tem como lideranças o Vice-Presidente General Hamilton Mourão e um segmento crescente de militares, no interior do governo, incluindo o atual ministro interino da saúde (junho/2018) Eduardo Pazuello e a figura destacada do General Augusto Heleno. Tal militarismo articula-se, inicialmente, com o judicialismo pela via da violência, tendo como figura-chave, durante o primeiro ano do governo, o ex-juiz Sérgio Moro que em 24 de abril de 2020, deixa o governo, rompendo com Jair Bolsonaro e desencadeando uma crise interna, com ataques frontais de denúncia de interferências do governo na Polícia Federal, numa postura de ocultamento de práticas de corrupção, cometidas pelo filhos do Presidente, a constituírem um gabinete informal do governo. Por fim, o reacionarismo político-cultural, a beirar um fascismo sociocultural, tendo, como liderança a pastora Damares Alves a operar a metamorfose do Ministério, do qual é titular, em uma extensão da sua Igreja fundamentalista, empreendendo uma guerra cultura de retomada de valores tradicionais, religiosos e pré-democráticos, com a cega convicção de que os grandes problemas do país são problemas de ordem moral. (Carvalho,2020c) O “bolsonarismo”, como a convergência de distintas matrizes e tendências, sustentadas por “composição de direitas intercruzadas”, vem inserindo o Brasil em um novo colonialismo, retomando a condição de subordinação aos interesses dos países centrais, nesta ordem do capitalismo financeirizado, sobretudo dos EUA. Ao mesmo tempo, lança o país no obscurantismo, prisioneiro de amarras reacionárias e desmonta quaisquer controles democráticos, ao retomar a marcha autoritária, querendo impor, de volta, práticas fascistas em diferentes níveis e distintos espaços. Indiscutivelmente, o bolsonarismo instaura um desgoverno no país, que se expressa das mais diferentes formas e práticas. E, no contexto da pandemia do novo coronavírus, ao assumir uma postura irresponsável de descaso e de desqualificação da crise, agrava contradições e o quadro de desigualdades abissais, intensificadas com a pesada arquitetura do desmonte do Golpe de 2016. Nos marcos políticos e ideológicos do ultraneoliberalismo, aprofundando a institucionalização da desproteção social, mediante o descaso com a saúde pública, com as vidas humanas e com a necessidades dos 4821
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI trabalhadores nessa saga de enfrentamento da covid 19, com destaque para a estratégia do isolamento social, frontalmente atacado pelo ocupante do cargo da Presidência. E ainda, como bem pondera Carvalho (2020b), a pandemia do coronavírus deparou-se, fortemente, com a lógica genocida do lucro acima de tudo, na versão genuína do sistema do capital. O governo Bolsonaro, assim como os governos de outros países, relutou em parar os fluxos da economia, em um retardamento de medidas de isolamento social, com gravíssimas consequências na difusão acelerada da doença e das mortes. Assim, a falsa disjuntiva entre defesa da saúde pública em contraposição à economia, ou seja, defesa da vida versus preservação do mercado, é a expressão mais direta da luta de classes, em tempos de pandemia. Configura a preservação dos interesses do mercado, objetivando, a todo custo, preservar a dinâmica da economia às custas da infecção e morte de milhões de trabalhadores. (Carvalho, 2020b). 4 DESPROTEÇÃO SOCIAL NOS CIRCUITOS DA DUPLA PANDEMIA BRASILEIRA Inegavelmente, o Brasil vivencia duas pandemias que se intercruzam, numa perversa confluência: a da covid 19 e a do governo Bolsonaro. A peste da covid 19 ocorre num contexto de desfinanciamento das políticas públicas, particularmente de saúde, previdência e assistência social. De fato, a vida social brasileira revela fortes nuances da privatização da saúde mediante a utilização do fundo público, com parcos investimentos na manutenção da infraestrutura do Sistema Único de Saúde (SUS), provocando deficiências de hospitais e de unidades de atendimento, de recursos humanos, de equipamentos e de insumos básicos para manutenção dos serviços. Estruturas deficitárias de saúde no Brasil do presente, revelam, duramente, sua carência, face ao crescimento exponencial de demandas no contexto da pandemia. Esta grave crise sanitária da covid 19 se dá em um contexto de sucateamento da previdência social, a apresentar diminuição gradativa na concessão dos benefícios e um enorme déficit na manutenção dos prédios e na infraestrutura necessária para oferta dos serviços, incluindo retração drástica na quantidade de recursos humanos, em todo o país. Nos governos de ajuste, particularmente nos governos Temer e Bolsonaro, a previdência social pública vem sendo submetida a sucessivas contrarreformas. E a última e mais radical contrarreforma, ocorrida em 2019, dentre outras medidas e estratégias, 4822
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI aumentou a idade mínima para aposentadoria de homens e mulheres, e a redução da pensão por morte, o que agravou a precarização de vida da população trabalhadora. A Política de Assistência Social, por sua vez, também vem sendo submetida a um processo de desmonte, a partir do Golpe 16. Conforme pontuam Carneiro; Araújo; Araújo (2019), a Política de Assistência Social sofre profunda inflexão, sendo que o Governo Temer implementou uma agenda, reforçada no governo Bolsonaro a impactar nos avanços então alcançados pela Política, com aceleração de drásticos cortes orçamentários, comprometendo todo o funcionamento das estruturas do SUAS. Verifica-se um lamentável reforço do projeto conservador a reafirmar a transmutação do direito em favor, com todas as históricas mazelas institucionais daí decorrentes. Assim, no contexto da pandemia, a Política de Assistência Social, face ao processo de desfinanciamento público e de desmonte a que vem sendo submetida no período 2016/2020, não dispõe de condições efetivas, em grande parte dos municípios brasileiros, para dar continuidade aos serviços e atendimentos no âmbito dos equipamentos sociais. De fato, essa política, reconhecida como prioritária no contexto da aceleração da pobreza, não apresenta condições de garantir as medidas de segurança para os trabalhadores e usuários e nem dispõe de capacidade de incorporação das demandas de proteção social dos novos usuários, atingidos pelo processo de precarização estrutural do mundo do trabalho. Ademais, a reforma trabalhista de 2017, aprovada a partir do discurso de modernização da legislação e com promessa de maior empregabilidade e de maior formalização das relações de trabalho, provocou profundas alterações na proteção de direitos assegurados ao trabalhador, agravando ainda mais a situação. Inegavelmente, nesse contexto de profunda desproteção social, a pandemia recai, de forma trágica e cruel, sobre as “novas classes trabalhadoras”, precarizadas e terceirizadas, desempregadas, envoltas na perversa informalidade da sobrevivência, sendo que, muitos trabalhadores e trabalhadoras, mesmo de serviços não essenciais, precisam continuar trabalhando para não serem demitidos, expondo seus corpos ao vírus, colocando em risco a própria vida. (Carvalho, 2020b) 4823
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI CONSIDERAÇÕES FINAIS A peste da Covid 19 deflagra uma crise sanitária humanitária sem precedentes na história do Século XXI, a ceifar milhares de vidas ao redor do mundo, mediante a impossibilidade de oferta de serviço de saúde à todos que necessitam de tratamento intensivo para ter preservadas suas vidas, tendo em vista que o sistema público de saúde vem sendo desmontado ao longo dos últimos quarentas anos em grande parte dos países do mundo, dada a adoção do neoliberalismo, e em alguns casos, no contexto mais recente, da adesão ao ultraneoliberalismo. Como bem avalia Alba Carvalho(2020b:11) “no Brasil, país continental, marcado por desigualdades e assimetrias regionais, entre estados e dentro dos próprios estados, a pandemia do novo coronavírus disseminou-se a partir do epicentro de São Paulo e, rapidamente, configurou-se como multicêntrica, com estados, de diferentes regiões, a concentrar altíssimos níveis de infecção e de mortes. É a tragédia do novo coronavírus, com determinantes sanitários e sociais a reproduzir cenários vivenciados em todo o mundo”. Inegavelmente, a pandemia sanitária do coronavírus mescla-se com a pandemia sócio-político-cultural do “bolsonarismo”. O contexto mais grave é a falta de condução política do governo nacional no enfrentamento da crise da Covid-19. O próprio presidente desqualifica as autoridades sanitárias, fazendo questão de desrespeitar publicamente as regras do isolamento social, única alternativa mundialmente comprovada de enfrentar a pandemia. Ademais, o presidente acirra tensões, não libera recursos necessários e deslegitima os seus ministros quando ousam contrariar seu posicionamento genocida, a exemplo do Ministério da Saúde, já com a saída de dois ministros em plena pandemia. Nesse contexto, a crise política acirra-se; e o país, dividido, conta hoje com um segmento de apoiadores de Bolsonaro vindo a público, a conclamar o fim do isolamento, o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e a volta da ditadura militar. Em meio a este caos, neste trágico cenário da pandemia, o Brasil apresenta a especificidade de viver a crise sanitária em meio a uma grave crise política. Assim, nos resta a salvaguarda da política de Estado dos governadores e dos municípios, em heróicas tentativas de estruturar serviços de saúde para atendimento da população e disciplinar medidas de contenção da propagação do vírus, mediante o isolamento social. 4824
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI De fato, o Brasil, hoje, exporta para o mundo um modelo genocida no contexto da pandemia, encarnado no “bolsonarismo”. Inegavelmente, como proclama Boaventura de Sousa Santos, em entrevistas e lives, no contexto da Covid 19, o Brasil enfrenta uma dupla pandemia, que nos fragiliza como nação, ameaçando a vida no território brasileiro. O momento é de profunda insegurança e apreensão, a exigir posicionamentos políticos na defesa do sistema de proteção social, da democracia e da vida. REFERÊNCIAS CARNEIRO, Annova Míriam Ferreira; ARAUJO, Cleonice Correia; ARAUJO, Maria do Socorro Sousa de. Política de Assistência Social no período 1988-2018: construção e desmonte. Ser Social, Brasília, UNB, v. 21, p. 29-47, 2019. CARVALHO, Alba Maria Pinho de. Desmonte dos direitos da classe trabalhadora: assistentes sociais no combate ao conservadorismo. Conferência de abertura. Encontro de Assistentes Sociais no Maranhão, 40, Maio de 2019. _______ . ULTRANEOLIBERALISMO, MILITARISMO E REACIONARISMO NO BRASIL DO PRESENTE: uma composição de risco, um desafio à luta política. In: COUTINHO, J. et al. A CRISE CAPITALISTA, O AVANÇO DA DIREITA NO CONTINENTE LATINO-AMERICANO E OS DESAFIOS PARA A RESISTÊNCIA. Anais da IX Jornada Internacional de Políticas Públicas, realizada em São Luis/MA, em agosto de 2019. _______ . Pandemia do Coronavírus: estamos todos no mesmo barco? Texto elaborado para live realizada em 08 de abril de 2020. 2020 a.Mimeografado _______ . O sistema do capital em crise nos tempos de pandemia no século XXI: dilemas e desafios para o serviço social. Texto elaborado para live da posse da diretoria do Conselho Regional de Serviço Social do Serviço Social do Ceará, realizada em 15 de maio de 2020. 2020ba. Mimeografado. _______ . Bolsonarismo como fenômeno político no Brasil do presente: uma composição de risco, um desafio à luta política. Texto elaborado para o Seminário Virtual PAPIIT de 15 de abril de 2020. 2020c. Mimeografado. DAVIS, Mike. A crise do coronavírus é um monstro alimentado pelo capitalismo.In: HARVEY, David et al.(orgs.). Coronavírus e a luta de classes. Editora Terra sem amos: Brasil 2020. p. 5-18. E-book. FATORELLI, Maria Lúcia. Reforma da Previdência de Bolsonaro é “interesse do insaciável mercado financeiro”. Entrevista concedida em março de 2019. Disponível em https://auditoriacidada.org.br/conteudo/revista-forum-maria-lucia-fattorelli-reforma- 4825
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI da-previdencia-de-bolsonaro-e-interesse-do-insaciavel-mercado-financeiro/. Acesso em: 13 jun. 2020. FONTES, Virgínia. Coronavírus e a crise do capital. Entrevista concedida à ADUFES. Publicada em 28 de abril de 2020. Disponível em: https://adufes.org.br/portal/noticias/28-andes/3425-entrevista-coronavirus-e-a-crise- do-capital.html. Acesso em: 16 jun. 2020. HARVEY, David. Política anticapitalista em tempos de covid 19. In: HARVEY, David et al. (Orgs) Coronavírus e a luta de classes. Editora erra sem amos: Brasil 2020. p.13-24. E- book. SANTOS, Boaventura de Sousa. A Cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Edições Almedina, 2020. 32p. E-book. 4826
MESA COORDENADA EIXO 4 CRISE HUMANITÁRIA, BOLSONARISMO E (DES)PROTEÇÃO SOCIAL NO BRASIL DO PRESENTE: particularidades da Política Nacional de Assistência Social A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO PERÍODO 2016/2020: financiamento, gestão e oferta dos serviços e benefícios socioassistenciais e do controle social no âmbito do Sistema Único de Assistência Social no Brasil, no Nordeste e no Maranhão1 Cleonice Correia Araujo2 Margarete Cutrim Vieira3 RESUMO Nesta abordagem, busca-se apresentar a configuração do Sistema Único de Assistência Social no contexto de ajuste estrutural do capitalismo, no Brasil e no Maranhão, com recorte temporal a partir do golpe de 2016 e os desmontes de direitos da classe trabalhadora, que retornam à agenda governamental alimentadas pela ideologia ultraliberal, autoritária e reacionária em curso, impondo instabilidades e inseguranças para todos os sujeitos que fazem a gestão e execução de políticas de proteção social, mas, sobretudo, para as populações mais vulneráveis, submetidas aos impactos de um contexto de imbricadas crises sanitária, econômica, política e institucional, vivenciadas no país na atualidade. Palavras-chave: Assistência social, SUAS, proteção social, desmonte ABSTRACT In this approach presente configurationa the Sistema Único de Assistência Social in the contexto of structural adjustment of capitalismo, in Brasil and Maranhão, with a time frame from 2016 coup in the dismantling of worker class rigths, which return government agenda ultraliberal, authoritarian, and reactionary ideology, imposing instabilities and insecurities for all subjects who manages and implement social protection policies, but, above all, for the vulnerable 1 Mesa coordenada do Eixo Temático 4: Seguridade Social: Assistência Social, Saúde e Previdência, realizada durante o III Simpósio Internacional sobre Estado, Sociedade e Políticas Públicas- SINESPP/UFPI. 2 Doutora em Políticas Públicas pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão e Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Maranhão. 3 Mestre em Políticas Públicas/UFMA. Atualmente exerce o cargo de Secretária Adjunta de Assistência Social da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social /SEDES/MA Pesquisadora do Grupo de Avaliação e Estudo da Pobreza e de Políticas Direcionadas à Pobreza (GAEPP). 4827
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI populations, subjected to impacts of contexto imbricated sanitary, economic, politic and institucional crisis. Keywords: Social assistance, SUAS, social protection, dismantling INTRODUÇÃO Desde o século XVIII, circulam concepções antagônicas sobre as condições de pobreza e desigualdades, construídas social e historicamente, que podem ser compreendidas como decorrentes da “incapacidade”, da “falta de disposição para o trabalho” ou mesmo da “acomodação” das pessoas; ou como consequência da forma de produção e distribuição das riquezas no âmbito da sociedade capitalista, que exaure as condições e as forças de trabalho da grande maioria da classe trabalhadora em benefício do lucro e da renda de alguns poucos, que acumulam riquezas desproporcionais. Dito isto, cabe destacar a efervescência das lutas dos trabalhadores por direitos sociais, realizadas durante o século XX, e a maior clareza, advinda desse movimento, sobre o fenômeno da pobreza como estrutural ao sistema capitalista, portanto não decorrente das capacidades ou fragilidades individuais e morais. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 (CF 1988) expressa o reconhecimento legal da responsabilidade do Estado com a proteção social mediante parâmetros jurídico- institucionais para a construção de um Estado Democrático de Direito, com direitos sociais assegurados por meio das políticas públicas de caráter universalizante. A instituição da Seguridade Social Brasileira, demarca um conjunto de direitos sociais, de políticas sociais para concretizá-los e também de importantes paradigmas, alicerçados em valores éticos e políticos, que possam materializá-los no cotidiano da vida de brasileiros e brasileiras. Conforme Vianna (2001, p. 173), “a seguridade social implica uma visão sistêmica da política social e com este sentido foi inscrita na Constituição Brasileira de 1988”. Consoante Bernardino (2019) os riscos a que, a princípio, estão submetidos os sujeitos de não conseguirem garantir as condições básicas de sobrevivência, passa a constituir-se responsabilidade social, pública. 4828
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Tem-se clareza de que as políticas sociais não eliminarão o capitalismo, contudo, como afirma Edward Heimann, citado por Esping-Andersen (1991, p. 95), “os direitos sociais podem fazer as fronteiras do poder capitalista retroceder”. Se traduzirmos essa afirmação em outras palavras, diremos que: as políticas sociais, ao efetivarem direitos sociais, reduzem os efeitos perversos do capitalismo e garantem relativa proteção social aos trabalhadores, inseridos ou não no mercado de trabalho formal. Num contexto de ofensiva neoliberal o financiamento das políticas públicas sociais esbarra em um conflito entre a garantia de direitos sociais e a liberalização da economia. Neste sentido, o investimento estatal, em contextos de crise econômica, é regido pela lógica da austeridade nas políticas públicas com consequente retrocesso expresso no desmonte dos sistemas públicos, em contrarreformas e perda de direitos sociais e trabalhistas historicamente conquistados na disputa entre o capital e o trabalho. A política social é submetida à política fiscal, conduzida pela articulação entre diferentes frações da burguesia nacional e internacional. Para a Assistência Social esse processo tem sido devastador, visto que atinge o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) nas suas bases estruturantes. O SUAS constitui um sistema complexo composto por processos de planejamento, gestão, financiamento e operacionalização que ainda estão sendo incorporados pelos usuários dos seus serviços, programas e benefícios e exigem aprimoramentos de caráter teórico-metodológico, técnico e político. Por isso, o atual contexto de redefinição e implementação do SUAS exige reflexões que pontuem as contradições e também as resistências ante um movimento de retrações constituído por ofensivas que operam no sentido da inviabilidade desse Sistema. A crise sanitária provocada pela pandemia da Covid-19 no mundo e no Brasil, expõe uma situação de emergência que tem demandado respostas em face da vulnerabilização de trabalhadores e trabalhadoras, agravada pela pobreza e pelo desemprego. A Assistência Social, a partir do Decreto Presidencial n. 10.282/2020 é considerada um serviço essencial em cumprimento ao previsto na Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, aprovada em 2009, que caracteriza os serviços da Proteção Social Especial como essenciais, em situações de calamidade pública. Neste 4829
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI sentido convém questionar a capacidade de resposta de uma política fragilizada, desfinanciada e desestruturada na sua institucionalidade? As análises apresentadas no presente artigo constituem produto de debates, estudos e pesquisas desenvolvidos no âmbito do Grupo de Estudos e Avaliação da Pobreza e de Políticas direcionadas â Pobreza (GAEPP), vinculado ao Departamento de Serviço Social (DESES) e ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas (PPGPP) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). 1. ASSISTÊNCIA SOCIAL, DO PÓS GOLPE 2016 À PANDEMIA DA COVID - 19 NO ÂMBITO DO BOLSONARISMO: tensão entre necessidades e capacidade protetiva do SUAS. A Seguridade Social brasileira está composta, de acordo com a CF 1988, pelas políticas de Previdência Social, Saúde e Assistência Social. Segundo Bernardino (2019), o seu percurso histórico, na sociedade brasileira, permite três constatações importantes: trata-se de conquista muito recente; é construção inacabada e conflitiva; e já se encontra em processo de desmonte. A Política de Assistência Social atravessa um período que podemos denominar de “crítico” na sua complexa trajetória na sociedade brasileira. Desde a sua regulamentação com a LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social, Lei n. 8.472 de 07 de dezembro de 1993), foi possível observar, sobretudo com a implantação e implementação do SUAS, avanços normativos, jurídicos, políticos e técnicos, construídos de forma coletiva na arena pública do Estado, mediante participação da sociedade. Essa trajetória de avanço sofre inflexões com o golpe parlamentar, jurídico, midiático e judiciário desferido no ano de 2016. Até o referido golpe, o SUAS, mesmo entre tensões e disputas, vinha alcançando estágios crescentes de aprimoramento institucional e político, de expansão qualificada e integrada dos serviços e benefícios socioassistenciais, construindo e expressando unidade e articulação com as demais políticas de proteção social, visando a proteção da vida e a prevenção de danos e riscos advindos da pobreza, dos ciclos de vida, dos preconceitos e discriminações relacionados às questões de gênero, etnias, raças e orientação sexual. Foram expressivos os avanços na construção da gestão democrática e da integralidade da proteção socioassistencial, com respeito às instancias de pactuação, 4830
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI deliberação e controle social da política, como as Comissões Intergestores Bipartite e Tripartite (CIB’s e CIT) e os Conselhos e Conferências de Assistência Social. O SUAS possibilitou significativa capilaridade, em todo o território nacional, nas ofertas e provisões de serviços continuados, de programas intersetoriais e de benefícios socioassistenciais, todos integrados a Programas de Transferência de Renda, com a finalidade de garantir as seguranças afiançadas pela Política de Assistência Social, a quem dela necessitar: a segurança de renda, de convivência familiar e comunitária, de acolhida, de sobrevivência (apoio e auxílio) e de autonomia. Após o golpe, em um contexto internacional desfavorável ao pacto federativo, instituído, o governo Temer (2016 – 2018), implementou um conjunto de medidas que impulsionou profundo processo de redução de direitos, com consequente aumento da pobreza e das desigualdades sociais, privatizações, superexploração da força de trabalho e, ao mesmo tempo, a desconstrução das políticas públicas. Destaca-se duas medidas, nesse período, determinantes para o processo de desmonte, em curso, do sistema de proteção social brasileiro: i) a Reforma Trabalhista, a Lei nº 13.467, de julho de 2017, que trouxe mudanças na lógica da relação trabalhista que impactam diretamente na vida do trabalhador, legalizando a superexploração da força de trabalho; e ii) a Emenda Constitucional nº 95/2016, aprovada em 13 de dezembro de 2016, que instituiu, de forma arbitrária, o Novo Regime Fiscal (NRF) para a União por um período de vinte anos, estabelecendo limites para as despesas primárias e, inviabilizando, portanto, a vinculação dos recursos para as políticas sociais conforme estabelecido na Constituição Federal de 1988. Além do NRF 2016 e da reforma tributária, destaca-se a reforma da previdência social (Emenda Constitucional 103/2019) implementada no atual governo Bolsonaro - governo eleito em 2018, caracterizado por um viés nazifascista - e que atinge diretamente o SUAS, seja pelas possibilidades da situação de miséria a atingir milhões de brasileiros com as novas regras propostas pelo governo federal para o Benefício de Prestação Continuada (BPC), ou pelas demais alterações no sistema previdenciário que inviabilizam a Seguridade Social solidária, democrática e universal. A Emenda Constitucional nº 95/16 (antes PEC 55/16) medida denominada, popularmente, como “PEC da Morte”, visou economizar recursos públicos a serem 4831
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI destinados para cumprir compromissos com os bancos, ou seja, pagamento de juros da dívida pública. Ao determinar o congelamento dos gastos sociais públicos, estabelece uma reorganização na utilização do fundo público, sem a qual o capital teria dificuldade no enfrentamento de suas crises. Como pontua Oliveira (1988), o fundo público é central no enfrentamento da crise do capital. A EC 95/16 expressa essa centralidade e, ao congelar o fundo público para as políticas sociais, altera todo o sistema de Seguridade Social (saúde, previdência social e a assistência social). As contrarreformas que retiram direitos sociais e trabalhistas indicam, claramente, uma disputa de projetos em que a proteção social não possui centralidade, denotando a desresponsabilização do Estado nessa área e, em decorrência, tem-se a cristalização do II Plano Decenal, desde o ano de 2016. Contraditoriamente, o contexto de acirramento da desigualdade e pobreza, agravado pela crise sanitária em 2020 produz um aumento da demanda por assistência social. A EC nº 95/2016 tem se traduzido em progressiva retirada do financiamento federal da Política de Assistência Social, para os entes subnacionais, com redução nas parcelas e atrasos nas transferências de recursos para os serviços continuados, da redução dos repasses do Índice de Gestão Descentralizada do SUAS - IGD SUAS4 à sua total retirada, no orçamento 2020 e, ainda, a redução de benefícios, que possibilitam a segurança de renda, no âmbito dos programas de transferência de renda como o Programa Bolsa Família (PBF) e do BPC. Claro está que se se trata de uma medida que inviabiliza o processo de consolidação do SUAS no país ao descumprir um dos pilares estruturantes desse sistema, que é o repasse automático fundo a fundo, comprometendo a oferta de serviços e o pagamento de pessoal, sobretudo nos municípios que, em geral, utilizam os recursos federais para assegurar o atendimento e o acompanhamento dos usuários e usuárias, ou seja, o funcionamento básico do SUAS. 4 O IGDSUAS busca avaliar a qualidade da gestão descentralizada dos serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais do SUAS. De acordo com os resultados alcançados pelos entes, a União apoia financeiramente a gestão municipal e estadual como forma de incentivo e indução ao alcance das metas pactuadas nacionalmente com a finalidade de aprimoramento da gestão do SUAS e da qualidade das ofertas à população. O IGDSUAS é, portanto, um índice que mede os resultados da gestão descentralizada do SUAS, considerando a atuação da gestão na implementação, execução e monitoramento dos serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais, bem como na articulação intersetorial. BRASIL 2012 4832
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Luciana Jaccoud (2019), ao analisar a trajetória do cofinanciamento federal na Política de Assistência Social, evidencia que o primeiro ano de vigência da EC nº 95 não apresentou queda com relação às despesas discricionárias (serviços socioassistenciais) de 2016, mas as transferências sofreram descontinuidade e apenas 45% dos recursos foram executados antes do mês de dezembro, concentrando 55% da execução orçamentária no mês de dezembro, o que desencadeou uma grave desorganização da gestão e das ofertas socioassistenciais nos estados e municípios brasileiros. Nos dois primeiros anos de vigência da EC n. 95, as transferências para os serviços, foram mais afetadas do que as despesas com os benefícios do BPC e do PBF, consideradas como obrigatórias no orçamento federal. A partir do segundo ano, segundo a mesma pesquisadora, a perda de recursos se tornou real. Os serviços socioassistenciais sofreram redução de 35% em relação a 2017, o que impacta nas condições de oferta dos serviços, que devem ser assegurados de forma continuados, expressando a contradição entre a retração da proteção social pública e o aumento da necessidade dessa proteção, no contexto de crise econômica, do aumento do desemprego e da redução na renda média das famílias. Como afirma Jaccoud (2019, p. 20), A dimensão da oferta socioassistencial e a limitação no atendimento às populações em situação de pobreza ou vulnerabilidade social comprometem o que o país já havia alcançado na garantia de direitos e proteção social e repercutem em piora das condições de vida. Para que se tenha uma ideia da magnitude do problema, segundo o IBGE, apenas entre 2016 e 2017, a extrema pobreza no Brasil aumentou 13%. A partir de 2019 com um governo de extrema direita com ideários nazifascistas, o processo de desmonte de um sistema já fragilizado no governo anterior se acentua, sobretudo no desfinanciamento. Informações do Conselho Nacional de Assistência Social (2019) dão conta de que o valor orçamentário aprovado por este Conselho para o ano de 2019 foi de R$ 2.739.858 bilhões, já o valor autorizado pelo governo federal foi de R$ 1,6 bilhões. Para o ano de 2020 o orçamento previsto para o Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS) foi de R$ 1,34 bilhões mostrando uma redução de 15% em relação ao exercício anterior. 4833
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Os recursos federais para a Política de Assistência Social vêm sendo reduzidos a cada ano, sendo recomposto em determinados momentos, por partes, com suplementações aprovadas pelo legislativo por força de amplas mobilizações de gestores e trabalhadores do SUAS. Para além da redução de recursos, os atrasos de parcelas e o não reconhecimento da dívida, de um ano para outro, tem submetido os gestores públicos a uma tensão permanente na medida em que essas inseguranças comprometem o planejamento dos estados e municípios, e os forçam a arcarem, com recursos próprios, a manutenção da rede de serviços, com seus equipamentos e suas equipes multidisciplinares, haja vista a rede de proteção social implantada no território brasileiro ser resultante de pactuações e deliberações pelas instancias do SUAS. Cabe ainda ressaltar os recursos extraordinários (Portaria n. 369, de 29 de abril de 2020) para incremento, temporário, na execução de ações socioassistenciais nos estados, Distrito Federal e municípios, devido à situação de emergência em saúde pública decorrente da Covid-19. Trata-se de recursos “carimbados”, na forma de sua utilização, marcados por demora nos repasses, a despeito do seu caráter emergencial. Consoante Silva (2020, p.63) as medidas do atual governo têm sido devastadoras para o SUAS. A autora aponta a Portaria 2.362, de 20 de dezembro de 2019, que (...) praticamente inviabiliza a manutenção de serviços em muitos municípios, principalmente os de porte 1, haja vista a profunda dependência do cofinanciamento federal. Visa promover a equalização dos repasses realizados pelo FNAS aos Fundos de Assistência Social municipais, estaduais e distrital, priorizando o repasse de recursos limitados ao exercício financeiro vigente, conforme a disponibilidade financeira. Ante o avanço dos desmontes e a crescente fragilização do SUAS, torna-se cada vez mais difícil afiançar as provisões e seguranças asseguradas pela Política de Assistência Social e, essa situação, se agrava no contexto da pandemia da Covid-19 que aprofunda uma crise, que se expressa sob várias dimensões: econômica, política, social, civilizatória, humanitária, sanitária. Trata-se de uma crise estrutural que revela as contradições do modo de produção na sociabilidade regida sob a lógica do capitalismo. Nos estados da região nordeste, o impacto do desfinanciamento do SUAS torna-se ainda mais grave considerando que estes territórios concentram o maior 4834
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI número de indivíduos e famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza. O Nordeste concentra proporcionalmente 50% dos beneficiários do Programa Bolsa Família, do Brasil, no entanto, no final de 2019 e início de 2020, observa-se, um cenário de reduções deste programa federal, bem como as desigualdades nas concessões para a população do Nordeste, enquanto as regiões mais ricas do país, Sudeste e Sul, ficaram, no período analisado, com 46% e 24% das concessões, respectivamente, enquanto a região Nordeste com 3%., conforme podemos constatar no gráfico abaixo, apresentado no Boletim 1 – Assistência Social no Consórcio Nordeste. Estas analises, realizadas pelo grupo de vigilância do Nordeste, e apresentadas no Boletim 1 – Assistência Social no Consórcio Nordeste, resultaram em denúncias e ações de secretários estaduais e governadores, que culminaram com a solicitação de explicação, pelo Ministério Público Federal, ao Ministério da Cidadania esclarecimentos sobre as disparidades nas concessões dos referidos benefícios. Fato que repercutiu na concessão, em abril de 2020, de 430.968 novas famílias para o Nordeste. Entretanto, destaca-se que esses números, comparados a maio de 2019, estão, ainda, aquém conforme observa-se no gráfico abaixo: Fonte: BOLETIM 1 – VIGILANCIA SOCIOASSISTENCIAL - ASSISTENCIA SOCIAL NO CONSÓRCIO NORDESTE (2020). Conforme levantamentos e análises realizadas pelo grupo de vigilância do Nordeste, além das reduções do Programa Bolsa Família, é importante destacar que o 4835
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI último reajuste anual da taxa de extrema pobreza e pobreza foi em 2018. Em 2019 não houve ajuste e a inflação chega a 6%. Tomando como referência o Banco mundial, a taxa de extrema pobreza deveria atingir pelo menos R$ 150,00 reais per capita. Valor que deveria ser, portanto, reajustado para parâmetros do benefício básico do Bolsa Família. O mês de abril iniciou-se a primeira parcela do auxílio emergencial para as famílias beneficiárias do programa bolsa família. No Nordeste, estima-se que 97% das famílias beneficiárias foram contempladas com o auxílio emergencial conforme destaca o quadro abaixo: Fonte: BOLETIM 1 – VIGILANCIA SOCIOASSISTENCIAL - ASSISTENCIA SOCIAL NO CONSÓRCIO NORDESTE (2020). O grupo de vigilância estima, entretanto, que 239.820 famílias beneficiárias do Programa Bolsa família não foram contempladas com o auxílio emergencial. Esta é uma aproximação a partir da folha de pagamento do Programa com as informações das famílias que tiveram seu benefício suspenso, quando migraram para o Auxilio Emergencial. Os números oficiais e os motivos pelos quais estas famílias não foram contempladas ainda não foram divulgados e isto tem causado demandas às equipes municipais para esclarecer as famílias que não foram contempladas, o real motivo da não elegibilidade ao auxílio emergencial, quando a Assistência Social não integra a gestão do AE, que ficou muito mais caracterizado como um auxílio financeiro, simplesmente, considerando todo o contexto de dificuldades decorrentes da sua gestão. 4836
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Este quadro, de desconstrução da proteção social brasileira, se agrava em decorrência das decisões tomadas de forma unilateral, pelo atual governo federal, com os espaços de participação e controle social, coordenação estratégica do SUAS desmobilizados pela ausência de interlocução para a tomada de decisões colegiadas. Considerando a distribuição de competências e responsabilidades, no qual o município é o principal executor da Política, a progressiva redução do cofinanciamento federal, o inexpressivo cofinanciamento estadual, pontual, associado à queda de arrecadação e redução dos Fundos de Participação Municipal e Estadual, apontam para um cenário urgente de mobilização em torno de medidas de recomposição do orçamento público do ano 2020, de cumprimento com os passivos de anos anteriores, de construção de novas bases tributárias, distributivamente justa entre os entes, e o reestabelecimento das pactuações federativas. No Maranhão, nos últimos anos, houve um significativo investimento na estruturação da rede SUAS, com construção de 159 unidades públicas estatais (CRAS e CREAS municipais), no período de 2015 a 2019, o que representou R$ 63.580.624,31 milhões, além do investimento na aquisição do mobiliário para todas as unidades. O Estado tem cofinanciado a oferta de serviços para pessoas com deficiência, crianças com microcefalia e adultos e famílias, em São Luís, a provisão de Benefícios Eventuais, em conjunto com os municípios elegíveis, que se habilitam para acessarem o recurso, anualmente, e executado diretamente um serviço de acolhimento institucional, estadual, para pessoas idosas, com capacidade para até 40 pessoas idosas, com um custo anual de R$ 1.800.000,00 (1 milhão e oitocentos mil reais) e tem como desafio a universalização dos serviços de média complexidade, na proteção social especial, com a implantação de CREAS Regionais, para atendimento à população nos municípios de pequeno porte, cuja demanda não justifica a instalação do serviço, possibilitando assim a cobertura desses serviços em todo o Estado. O desfinanciamento do SUAS, a ausência de discussão e definição conjunta dos entes federados, com a fragilização das instancias de pactuação e deliberação do SUAS, constituem elementos que traduzem os ataques mais graves à proteção social brasileira, contudo outras medidas dão conta de que a Assistência Social, como estratégia de enfrentamento à pobreza e às desigualdades sociais, não assume centralidade na 4837
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI agenda pública do Estado brasileiro, pelo contrário, a prioridade é a concentração de riqueza sob a égide do capital financeiro. CONCLUSÃO No período 2016 - 2020, a Assistência Social, como as demais políticas públicas de corte social, tem sido atingida com os ataques neoliberais e conservadores impostos por um projeto que valoriza a rentabilidade econômica em detrimento do social. A continuidade do SUAS, como construção histórica depende da alocação de recursos, de investimentos públicos, mas também da concepção e, sobretudo, do compromisso de romper com a lógica tradicional-conservadora na abordagem e enfrentamento das expressões da questão social. Essa lógica se traduz na prática histórica das relações clientelistas, orientadas pelo favor, pela caridade como formas de apropriação do público pelo privado. Neste sentido pode-se destacar a disputa entre duas diferentes perspectivas que contraditoriamente permeiam o SUAS: a política pública de Seguridade Social que afirma o direito social como responsabilidade do Estado e a que reforça a tradição conservadora, caracterizada, principalmente, pelo caráter emergencial, improvisado e precarizado das intervenções. O contexto da pandemia não só expõe como agrava uma barbárie que vem se acentuando após décadas de implementação do neoliberalismo. A atual crise sanitária, requer o fortalecimento da política pública, exige do Estado e da sociedade medidas de enfrentamento para os seus efeitos mais perversos. No Brasil, a Política de Assistência Social embora sucateada pelos ataques ultraliberais, assume funcionalidade no sentido de responder as demandas crescentes de uma classe trabalhadora cada vez mais empobrecida, desprotegida nos seus direitos básicos e submetida a níveis insuportáveis de exploração. Como política pública que responde às necessidades humanas, torna-se, portanto, fundamental no enfrentamento da pandemia e, sobretudo após esta, requisitando investimento público, valorização das equipes de referência e deferência às instâncias de participação e controle social. Daí a necessidade de fortalecimento do SUAS, afirmação do seu potencial ético- político, mediante ações coletivas, intensificação e unificação das lutas sociais em defesa da democracia e dos direitos, compreendidos em sua materialidade na perspectiva da construção de uma nova cultura. O momento exige que se fortaleçam os espaços de 4838
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI coordenação federativa e participação social na condução da política, de modo a enfrentar o movimento de retração da responsabilidade pública na área social. REFERÊNCIAS BRASIL, Constituição Federal 1988. Brasília, DF, 1988. ________. Lei nº 8742, 07 de dezembro de 1993 (LOAS), dispõe sobre a Lei Orgânica Assistência Social e dá outras providências, Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1993. ________. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Secretaria Nacional de Assistência Social. Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Norma Operacional Básica - NOB/SUAS. Brasília, 2005. ________. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Secretaria Nacional de Assistência Social. Caderno de Orientações sobre o Índice de Gestão Descentralizada do Sistema Único de Assistência Social – IGDSUAS. Brasília, 2012. BOLETIM nº 1 – ASSISTENCIA SOCIAL NO CONSÓRCIO NORDESTE. 2020. CAMPOS, Edval Bernardino. Mais Seguridade Social é menos Desigualdade Social. In: Revista CONGEMAS, 2019. ESPING-ANDERSEN, Gosta. As três Economias Políticas do Welfare state. In: Lua Nova. São Paulo, n. 24, p. 85-116, set./1991. JACCOUD, Luciana. Os desafios da proteção socioassistencial em contexto de restrição fiscal, In: Revista CONGEMAS, 2019. OLIVEIRA, Francisco de. O surgimento do antivalor, In: Novos estudos. Cebrap, 1988. SILVA, Mossicléa Mendes da. Sistema Único de Assistência Social: entre o desmonte e a condição de serviço essencial durante a pandemia, In: MOREIRA, Elaine et al (orgs,) Em tempos de pandemia, propostas para a defesa da vida e de direitos sociais. UFRJ, Rio de Janeiro, 2020. VIANNA, Maria Lúcia W. O silencioso desmonte da seguridade social no Brasil. In. BRAVO, M. Inês e Potyara A. PEREIRA. Política social e democracia. São Paulo: Cortez, 2001 4839
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI A PROTEÇÃO SOCIAL E O TRABALHO EM DEBATE NO CONTEXTO DA PANDEMIA DO COVID-19 NO BRASIL EMENTA A Mesa Coordenada abordará duas temáticas: Proteção Social e Trabalho. Propõe-se a situar as abordagens no debate e na dinâmica conjuntural vivenciada pela população brasileira na conjuntura de crise sanitária e política instalada com o avanço da pandemia do Covid-19, em desenvolvimento a partir de março de 2020. Para discutir as temáticas, são indicadas três abordagens: uma que se propõe a tratar da Política de Assistência Social e sua contribuição no contexto da pandemia; outra que visa a abordar o trabalho desenvolvido pelos trabalhadores (as) da Política de Assistência Social, situados (as) em relação com questões vivenciadas pelos trabalhadores informais e precarizados, em geral. A terceira proposta tem como foco a discussão e problematização das diferentes modalidades de programas de transferência de renda e a ampliação do debate e do surgimento de propostas no contexto de pandemia do Covid-19, procurando explicitar a funcionalidade desses programas para os beneficiários e para a economia dos países capitalistas. COORDENAÇÃO DA MESA MARIA OZANIRA DA SILVA E SILVA Assistente Social. Doutora em Serviço Social, Professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas (PPGPP) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Coordenadora do Grupo de Avaliação e Estudo da Pobreza e de Políticas direcionadas à Pobreza (GAEPP www.gaepp.ufma.br), da mesma Universidade, e pesquisadora, nível IA, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: [email protected]. 4840
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MESA COORDENADA EIXO 4 A PROTEÇÃO SOCIAL E O TRABALHO EM DEBATE NO CONTEXTO DA PANDEMIA DO COVID-19 NO BRASIL A CONTRIBUIÇÃO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO MOMENTO ATUAL DA PANDEMIA DE COVID-191 THE CONTRIBUTION OF THE SOCIAL ASSISTANCE POLICY IN THE CURRENT TIME OF THE PANDEMIC OF COVID-19 Salviana de Maria Pastor Santos Sousa2 RESUMO O texto proposto, com fulcro em análise bibliográfica e documental e pesquisas empíricas desenvolvidas com a participação da autora, é referenciado nos conceitos de Estado, pobreza e proteção social. Tem como escopo refletir sobre a contribuição da Política de Assistência Social, em contexto marcado pela disseminação da pandemia de Covid 19, doença sistêmica provocada pelo coronavirus disease 2019, que se espraia no momento em que se efetiva sistemática destruição do arcabouço de Proteção Social no país para a instauração de projeto de configuração ultraliberal. Palavras-chave: Estado, Assistência Social, Pobreza. ABSTRACT The proposed text, based on bibliographic and documentary analysis and empirical research developed with the participation of the author, is referenced in the concepts of State, poverty and social protection. Its scope is to reflect on the contribution of the Social Assistance Policy, in a context marked by the spread of the Covid pandemic 19, a systemic disease caused by the coronavirus disease 2019 that spreads at the moment when takes place the systematic destruction of the Social Protection framework in the country for the establishment of an ultra-liberal configuration project. Keywords: State, Social Assistance, Poverty 1 Mesa coordenada do Eixo Temático 4: Seguridade Social: Assistência Social, Saúde e Previdência, realizada durante o III Simpósio Internacional sobre Estado, Sociedade e Políticas Públicas- SINESPP/UFPI. 2 Assistente Social. Doutora em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professora do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas (PPGPP) da UFMA. Membro do Grupo de Estudo e Avaliação da Pobreza e das Políticas Direcionadas à Pobreza (GAEPP). Pesquisadora A2 do CNPq. E-mail: [email protected] 4842
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI INTRODUÇÃO O presente artigo compõe a Mesa Temática Coordenada “A Proteção Social e o Trabalho em debate no contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil”. Referenciado nos conceitos de Estado, pobreza e proteção social, trata, de modo mais amplo, em um contexto de conflitos e dissensos, sobre os desafios e os dispositivos institucionais construídos pelo Governo brasileiro, particularmente, no âmbito da Política de Assistência Social, para responder aos efeitos da disseminação da enfermidade sistêmica causada pelo Coronavirus Disease 2019. O pano de fundo da reflexão desenvolvida é uma contraposição à afirmativa de que a pandemia iguala todas as pessoas, independentemente de nacionalidade, raça, etnia, classe social e geração, em razão da sua reconhecida capacidade de contágio, através de diferentes formas de contato interpessoal. De fato, com base em informações sistematizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em entrevista diárias, seguida por outras organizações científicas, dirigentes de diferentes países afetados pela pandemia, passaram a organizar seus sistemas de defesa ao vírus baseados no reconhecimento de três pontos centrais: a) há grupos constituídos por indivíduos que são mais sensíveis às implicações da doença; b) os efeitos da doença não se manifestam da mesma forma em países, regiões e áreas habitáveis; c) é fundamental construir-se uma nova racionalidade para a convivência social, subordinando interesses privados aos interesses da coletividade, sobretudo, mediante o isolamento social e a aceitação da redução de ganhos econômicos em favor da vida. Essa nova configuração societária passou a exigir dos governos e da sociedade, pensar a pandemia em um espaço interdisciplinar em que a saúde seja, de fato, entendida como um estado que se concretiza pela síntese de múltiplas determinações que incluem, entre outras, preservação do meio ambiente, garantia de segurança alimentar, acesso ao trabalho digno, à água potável, ao saneamento básico, à educação, ao lazer, ao transporte, aos serviços de assistência social e médico-hospitalar. Desse modo, no Brasil, ao se refletir sobre duas das principais recomendações básicas da OMS para prevenção da doença: lavar as mãos e praticar o distanciamento 4843
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI interpessoal, desnudam-se problemas estruturais do país que nunca conseguiu atuar no sentido de criar as condições para que os resultados do desenvolvimento econômico permitissem a satisfação das necessidades básicas do conjunto da população. Nesse sentido, imensas parcelas de brasileiros, situadas em amplo espectro que engloba, desde moradores das periferias urbanas até pessoas em situação de rua, não conseguem atender à recomendação de lavar as mãos sistematicamente, pois são penalizadas com a precariedade ou ausência de abastecimento de água, de esgotamento sanitário, de serviços de manejo e drenagem de resíduos sólidos e águas pluviais. Da mesma forma, embora haja grupos que não incorporam o isolamento social como condição limitadora da disseminação do vírus com vistas à redução da sobrecarga dos sistemas de saúde, há quem não adote a medida por não agregar as condições necessárias para assim permanecer. De fato, parte importante da população precisa viver em habitações que não permitem a privacidade de qualquer isolamento, padece situações de desemprego ou subemprego, o que se desdobra na impossibilidade de acessar as opções de compra pela forma on line. Nesse contexto, governos mundo afora, além do enfrentamento direto ao vírus, com as medidas médico-hospitalares disponíveis, vêm criando instituições em diferentes níveis da gestão pública, entre elas, intervenções no campo da assistência social destinadas às pessoas socialmente mais afetadas. Para refletir sobre esses aspectos, o presente texto busca analisar a contribuição da Política de Assistência Social no Brasil no contexto da pandemia de Covid 19. Constitui-se de dois itens, além da Introdução e da Conclusão. No primeiro reflete sobre a disseminação da enfermidade como um processo que favorece o reconhecimento do papel do Estado em contraposição ao avanço do ideário da ultradireita que defende a limitação cada vez maior de sua intervenção. No segundo, discute os instrumentos aprovados pelo Governo brasileiro, especificamente, os que situam no campo da Política de Assistência Social, suas estratégias operacionais, obstáculos e alternativas construídas no seu processo de implementação. 4844
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI 2 O ENFRENTAMENTO À COVID 19 EM CONTEXTO DA OFENSIVA ULTRALIBERAL A pandemia de Covid 19 trouxe à tona o debate sobre a estratégia ultraliberal de que se vem alimentando a ordem capitalista na atualidade para responder às suas frequentes crises. Para Mbembe (2016, p.1) trata-se do “principal choque da primeira metade do século XXI entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo”. Não só a defesa de uma ordem regulada pelo mercado, mas a contraposição à democracia, aos direitos sociais e à proteção social. Rancière (2014), entende que não se trata apenas de uma luta contra as instituições, mas contra os povos e seus costumes. Para os porta- vozes dessa rejeição, a democracia não é uma forma de governo corrompido, mas uma crise da civilização que afeta a sociedade e o Estado através dela. Conforme Santos (2020) seu escopo é legitimar a enorme concentração de riqueza e boicotar medidas eficazes para evitar a catástrofe ecológica que se anuncia iminente, em nível global. Na dinâmica das relações construídas para consolidação desse movimento, estimula-se, de um lado, o ódio de classes, fazendo com que, os conflitos sociais assumam a forma de “racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e religiosas, xenofobia, homofobia e outras paixões mortais” (MBEMBE, 2016, p.1)3. De outro, passa-se a utilizar, cada vez mais a função coercitiva do Estado para refrear as formas de contestação à ordem social de modo a manter o sentimento de pertença e de segurança aos historicamente privilegiados4, que anseiam pelo retorno a “certo sentimento de certeza – o sagrado, a hierarquia, a religião e a tradição” (MBEMBE, 2016, p.2). Para Santos, É certo que sobra sempre alguma insegurança, mas há meios e recursos para a minimizar, sejam eles os cuidados médicos, as apólices de seguro, os serviços de empresas de segurança, a terapia psicológica, as academias de ginástica. Este sentimento de segurança combina-se com o de arrogância e até de condenação para com todos aqueles que se sentem vitimizados pelas mesmas soluções sociais (SANTOS, 2020, p. 3). 3 Nas palavras de Löwy (2015), o discurso totalitário é um fenômeno que não encontra precedentes desde os anos 1930. São ideias que contaminam também a direita “clássica” e até parte da esquerda social neoliberal. 4 Sobre esse tema, consultar também Barroco (2015). 4845
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI A pandemia fragmenta este senso comum de segurança, exacerbando a periculosidade do vírus em contexto de tensão global, secundada por problemas nas economias nacionais. Nesse caso, porque uma das chaves fundamentais para a mobilização de uma demanda efetiva é o consumismo5 centrado em grandes equipamentos que definem circuitos e práticas urbanas, alteram escalas de distância e proximidade e operam como referências de tempos/espaços cotidianos (TELLES, 2006). Referido à criação artificial de necessidades como se fossem naturais, o consumo supérfluo de coisas e ideias, se tornou inoperante nas atuais condições. Carrega, assim, para a possibilidade de bancarrota, organizações de diferentes áreas, daquelas envolvidas com a produção e comercialização de produtos de beleza, alimentos sofisticados e medicamentos, até as de setores como o aéreo, o hoteleiro, o de transporte alternativo, o de eventos. Consequentemente, também, aumenta o desemprego, já que, sobretudo, aqueles envolvidos em formas de trabalho precário estão sendo despedidos sem nenhum meio real de apoio. No Brasil, mesmo antes da pandemia, essa insegurança já vinha sendo explicitada. De um lado, posta pelo incômodo da classe média tradicional em razão do esforço distributivo implementado pelos governos petistas para trazer alguma perspectiva, na ausência de possibilidades de trabalho, aos mais pobres, através de diferentes políticas, inclusive no campo da Assistência Social. De outro, pelo crescimento de organizações paralelas que fomentam ações como o tráfico de drogas e de armas, lavagem de dinheiro, corrupção, violências, sugerindo, em alguns espaços urbanos, a imagem de estágio pré-hobbesiano de vida social. Tal insegurança expressou-se violentamente no impulso antiinstitucional sintetizado nas manifestações de 2013 que, tal como outros ao redor do mundo, tinha suporte em queixas que variavam desde a corrupção, o autoritarismo, a fraude, a submissão aos poderes econômicos, até à deslealdade com o compromisso representativo. Para aqueles que não conseguiram minorar a situação de pobreza, a articulação entre a traição da promessa representativa também estava associada à dificuldade de 5 Consultar sobre o tema em Miranda (2016). 4846
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI inserção no mercado de trabalho, à falta de acesso a serviços sociais básicos, além de situações que afrontam códigos legais de direitos humanos, como o trabalho infantil, trabalhos análogos à escravidão, trabalho informal sem garantias, adensamento da violência urbana. De acordo com Telles (2007), embora a pobreza ocupe espaço politicamente construído e publicamente reconhecido no Brasil, mesmo no âmbito da Constituição de 1988, nomeada de Cidadã, o fenômeno tem sido deslocado para o lugar da não política, da administração técnica, da não-cidadania Sousa e Araújo (2018) compreendem que, nessa nova dinâmica, a pobreza reinscrita em preceitos morais e individuais, passa a ser dissociada de suas determinações estruturais, ao tempo em que as ações voltadas ao seu combate são transmutadas do lugar da política para o da benemerência. Situa-se no contexto de uma trama social que se foi urdindo historicamente expressa na gestão do cotidiano e nas formas de administração de urgências, como é o caso da pandemia de Covid 19. De acordo com Morin (2020), o vírus produz incertezas em diferentes níveis: não se sabe, de fato, sua origem; quais restrições, proibições e racionamentos ficaremos submetidos em função da sua disseminação e até quando; e quais as consequências políticas, econômicas, nacionais e planetárias das restrições provocadas pelos confinamentos. São incertezas que têm sido sintetizadas na indagação comum: “qual será o novo normal?” 3 O ENFRENTAMENTO À PANDEMIA E A CONTRIBUIÇÃO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL No Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, nomeada de Cidadã, reconheceu-se a relevância da criação de núcleos de Proteção Social, no contexto dos quais muitas áreas da política social tiveram mudanças normativas importantes. É o caso da saúde e da assistência social. A primeira está configurada no Sistema Único de Saúde (SUS) e tem caráter universal, equânime e participativo. A segunda, destinada a quem dela necessitar, é também operada no formato de sistema público, não contributivo, descentralizado e participativo, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Os limites históricos que sempre estiveram na base na configuração desses sistemas, bem como de toda o campo de Proteção Social no Brasil, se acentuaram com 4847
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI a crise capitalista que se mostrou mais forte a partir de 2008, fazendo com que a Presidenta Dilma Rousseff (2011-2016) sucumbisse às pressões do mercado e criasse as condições para o exercício de um governo com maior austeridade fiscal. Porém, como advoga Teixeira e Pinho (2018, p. 1), com a “desaceleração do crescimento, a queda da arrecadação, a retração do Produto Interno Bruto (PIB) e o agravamento da crise fiscal, o governo ruiu, com o argumento de violação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) por cometer crime de responsabilidade, ao atrasar repasses de recursos do Tesouro aos bancos públicos para pagar programas sociais. Com a ocorrência do que se tem chamado de golpe parlamentar midiático, em 2016, criaram-se as condições para instauração do projeto de configuração ultraliberal hoje em curso, verificando-se, justamente, o esvaziamento do conteúdo social da Constituição. Como lembram Teixeira e Pinho (2018, p. 7), “o histórico dos golpes no Brasil assinala que as prioridades de governos usurpadores não têm sido o combate à corrupção, mas, isso sim, notável, a implementação de medidas refratárias às políticas favoráveis aos destituídos”. Nessa linha, o Vice Presidente, Michel Temer que assume a direção do Poder Executivo (2016-2018), passa a adotar as medidas de austeridade fiscal exigidas pelo mercado, justificadas em nome do saneamento das contas públicas, do seguimento de ações de combate à corrupção e do impulso ao crescimento econômico. Entre as medidas adotadas no Governo Temer, destacam-se a Reforma Trabalhista que flexibiliza e desmonta direitos, a Lei da Terceirização para atividades-fim (lei n.º 13.429/2017) e a Emenda Constitucional nº 95, de 2016 que congela por 20 anos os investimentos em áreas sociais. Já, nesse momento, entendia-se que os danos das políticas de austeridade para o país colocariam em risco direitos sociais e econômicos de milhões pessoas. Com Jair Bolsonaro, eleito em 2018, representante atual da extrema-direita no país, passa-se a disseminar o ideário ultraliberal e construir instituições que comportam uma sociabilidade regida pela violência social. Dá-se prosseguimento ao movimento iniciado no Governo Temer, com a Reforma da Previdência Social (Emenda Constitucional 103/2019) considerada condição fundamental para retomar a confiança dos investidores e minimizar a dívida pública. Teixeira e Pinho relembram que, “para além da agenda de 4848
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI reformas deletérias ao tecido social da democracia brasileira, programas sociais como Luz para Todos, Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Minha Casa, Minha Vida estão praticamente desaparecendo em meio à restrição fiscal” (TEIXEIRA; PINHO, 2018, p.9). Outras reformas, seguem no mesmo rumo de atendimento à austeridade fiscal, como a Tributária e a Administrativa, mas estão com debate paralisado em função da disseminação da pandemia. No momento atual, a posição do Governo brasileiro expressa-se contraposta à da grande maioria dos dirigentes em outros países afetados pela pandemia, mesmo os que situam no campo do conservadorismo liberal, em relação à administração da crise sanitária. Para a maioria, as medidas interventivas têm fulcro na transparência das informações, além da identificação, controle e aparelhamento de instituições compatíveis com a periculosidade do vírus. No Brasil, ao contrário, a pandemia, além de agravar a crise sanitária em curso que já se expressava pela limitação de recursos humanos, materiais e financeiros para o setor, seu combate tem a liderança formal de um dirigente que nega a capacidade de rápida disseminação do vírus e a relevância do esforço combinado para o tratamento da enfermidade. Desse modo, além da crise pandêmica e de uma economia em recessão, tem-se uma crise política adicional causada por dois processos contraditórios. O primeiro, liderado pela maioria dos Governadores e Prefeitos, com a aquiescência de especialistas de saúde, gira em torno de ações concretas ancoradas nas decisões da Organização Mundial de Saúde (OMS), com estímulo à imaginação e à criatividade. O segundo processo, com a direção do Presidente da República, se concentra: a) no incentivo explícito pelo retorno à estabilidade, que se daria combinando trabalho e isolamento vertical para os grupos de risco; b) no incitamento à ruptura com as regras de distanciamento interpessoal, de uso de máscaras de proteção e apelo ao regresso às atividades laborais com a justificativa de impedir-se o colapso da economia; c) pela difusão de formas de tratamento não garantidas pelos organismos de saúde competentes (medicamentos milagrosos e não testados adequadamente); d) pela campanha sistemática de imolação de culpados externos e internos (Governadores, Prefeitos, profissionais de saúde, dirigentes de instituições hospitalares, grande mídia, Ministros do 4849
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Supremo Tribunal Federal, Congressistas) e defesa de sua eliminação do cenário sociopolítico. Constituiu-se, assim, centralizado no processo de avanço da pandemia no país, uma forma de “dronização do poder”, conceito criado por Santos (2017) para designar o fenômeno em que A desigualdade entre as forças em confronto é tão grande que quem tem mais poder deixou de ter medo de quem tem menos poder. Não tem medo de represálias, não tem medo de resistências, não tem medo de ser atingido, portanto, é tal a desigualdade que, praticamente, fica impossível qualquer resistência (SANTOS, 2017, p.1) Concretamente, no meio dos conflitos e controvérsias criadas, com a demissão de dois Ministros de Saúde que não aprovavam o protocolo médico-hospitalar imposto pela Presidência da República e posterior composição de um Ministério nessa área formado por militares que não demonstram deter conhecimento adequado, algumas medidas emergenciais vêm sendo adotadas. A Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020 definiu medidas no campo da saúde (isolamento, quarentena, pesquisa científica, vigilância sanitária) seguindo as recomendações da OMS, algumas das quais, embora aprovadas pelo Presidente da República, foram por ele mesmo rechaçadas sistematicamente em falas e mensagens, particularmente, o isolamento. Outras medidas adotadas ou anunciadas são investimento em aparelhamento de Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs), com compras de respiradores e medicamentos, além da contratação de profissionais de saúde. Em relação à Economia, dada a agudização da situação de recessão, o Governo anunciou a intenção de repassar cerca de R$ 200 bilhões destinados a trabalhadores, empresas, estados e municípios no enfrentamento aos efeitos da pandemia. Em relação aos setores empresariais com a justificativa de evitar a falência e a demissão da força de trabalho empregada, seriam destinados R$ 51 bilhões para complementação salarial, em situação de redução de salário e de jornada de trabalho de funcionários, e R$ 40 bilhões (R$ 34 bilhões do Tesouro e R$ 6 bilhões dos bancos privados) de crédito para financiamento da folha de pagamento (AGÊNCIA BRASIL, 2020). No campo da Assistência Social, foi criada a Renda Básica Emergencial (RBE), aprovado pela Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020. Trata-se de auxílio financeiro que, 4850
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI inclusive pelo seu caráter de provisoriedade, agrega-se a outras formas de transferência de renda em curso, como o Bolsa Família. Desse modo, pelas normas desse projeto de auxílio emergencial, os potenciais beneficiários devem atender a critérios, como não ter emprego formal; não auferir benefício previdenciário ou assistencial, seguro-desemprego ou outro programa de transferência de renda federal, exceto o Bolsa Família; contar com renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo (R$ 522,50) ou renda familiar mensal total de, até, três salários mínimos (R$ 3.135,00); e não ter recebido rendimentos tributáveis, no ano de 2018, acima de R$ 28.559,70 (AGÊNCIA BRASIL, 2020). A RBE foi pensada para se concretizar mediante repasse de três parcelas mensais de R$600,00, sendo que a mulher provedora de família monoparental deve receber o equivalente a duas cotas do auxílio. De acordo com dados sistematizados por Carvalho (2020), com base em informações constantes em Portal da Transparência, os pedidos aprovados no país foram, 53.919.640. Desse total, 53.615.799 foram pagos, 6.138 devolvidos e 297.703 retidos. Os não atendimentos são justificados em função de erros cadastrais e problemas burocráticos na relação entre os órgãos avaliadores e os pagadores. E, recentemente, foi anunciado novo aporte que pretende abarcar outros 2,4 milhões de beneficiários. Enfim, embora se reconheça que os recursos repassados em forma de auxílio, nesse momento de disseminação da Covid 19, mesmo que fundamentais para os beneficiados, sejam irrelevantes em seu conjunto, trata-se de um espaço/tempo que permite refletir sobre as condições objetivas de grandes massas populacionais no Brasil que carecem de assistência e sobre seus direitos. As massas populacionais são constituídas de pessoas que precisam usar a criatividade para inventar formas de sobrevivência6. Passam despercebidas nos gabinetes em que são tomadas as grandes decisões e, parte delas, tendem a ficar invisíveis, no processo gestionário das políticas públicas. Nesse sentido, a ascensão de 6 Para refletir sobre o tema, consultar Raichelis, Silva, Couto e Yazbek, 2019. 4851
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI projeto político que se assenta em redução extrema do tamanho do Estado, como o que está em curso no país, é preocupante do ponto de vista da possibilidade de perda de direitos sociais que hoje estão configurados no núcleo da Seguridade Social, reconhecidos pela Constituição de 1988 e materializados nas políticas de Saúde, Previdência e Assistência Social. 4 CONCLUSÃO O propósito deste artigo foi situar a pandemia do Covid 19 como um fenômeno que desvela amplamente, no Brasil, um projeto de natureza ultraliberal em andamento com relações que afrontam a democracia representativa, favorecendo a “dronização” do poder constituído pela hipertrofia das reformas de mercado. E que permite, em nome da austeridade fiscal, sistemática destruição do arcabouço de Proteção Social que já era frágil do ponto de vista da sua capacidade de afetar, positiva e significativamente, os indicadores históricos de desigualdade e exclusão social no país. Em contexto de expressa disputa pelos fundos públicos e pela crescente mercantilização e desregulamentação das atividades privadas lucrativas no âmbito da proteção social, as reformas empreendidas no país, desde 2017, vem reduzindo gastos públicos e reorientando seus fundamentos em direção à privatização e à focalização das medidas de política social. Desse modo, coerente com o projeto ultraliberal do qual compartilha, no momento de emergência da pandemia, o principal representante do Poder Executivo Federal e grande parte dos seus aliados adotam posições de defesa da austeridade econômica ao tempo em que negam a virulência da enfermidade. Nesse sentido, além de lentas e pontuais, as intervenções que se efetivam, nesse momento, ocorrem apenas a partir de pressões de organizações da sociedade, de parte da mídia e de representantes de outros poderes constituídos. Destaca-se, entre essas medidas, no campo da Assistência Social, a aprovação do Auxilio Emergencial, programa destinado a reduzir impactos socioeconômicos da pandemia sobre pessoas empobrecidas. Trata-se de lenitivo para os beneficiados, em momento crucial de perda de emprego e disseminação ampla da enfermidade. 4852
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Do ponto de vista da sua natureza histórica, o auxílio serve para desvelar os níveis de pobreza e desigualdade como marcas da sociedade brasileira no presente e a própria natureza do Governo, sendo funcional ao projeto político-ideológico a que se vincula. Aponta, ainda, que a crise sanitária no país, acentuada pela pandemia da Covid 19 vem evoluindo para uma densa crise econômica e política com reflexos importantes no campo da Assistência Social que tende a um refluxo no sentido da assistencialização. REFERÊNCIAS AGENCIA BRASIL. Informações disponíveis em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2020-04/governo-anuncia-r-200- bilhoes-para-socorrer-trabalhadores-e-empresas. Acesso em 10 de junho de 2020. BARROCO, Maria Lúcia. Não passarão! Ofensiva neoconservadora e Serviço Social. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 124, p. 623-636, out./dez. 2015. CARVALHO, Talita de Sousa Nascimento. Dados apresentados no Seminário on line “Situação de vulnerabilidade social no Brasil e no Maranhão em meio à pandemia de Covid 19 e medidas de proteção social”. São Luís: UFMA. 18 de junho de 2020.. LEI Nº 13.982/2020. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019- 2022/2020/Lei/L13979.htm. Acesso em 16 de junho de 2020. LÖWY, Michael. Conservadorismo e extrema-direita na Europa e no Brasil. Serv. Soc. Soc. São Paulo, n. 124, p. 652-664, out. / dez. 2015. MBEMBE, Achille: A era do humanismo está terminando. 2016. Disponível em http://www.diariodocentrodomundo.com.br/achille-mbembe-a-era-do-humanismo- esta-terminando. Acesso em 12 de junho de 2019. MIRANDA, Maria Leidinalva. A reinvenção dos dias: ética e resistência emancipatória no Serviço Social contemporâneo. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Políticas. São Luís: UFMA, 2016. MORIN, Edgar. Um festival de incerteza. Extrato de Tracts de crise (Folders de Crise), 21 abril de 2020. Disponível em https://www.insurgencia.org/blog/edgar-morin-um- festival-de-incerteza. Acesso em 15 de junho de 2020. REDE BRASIL ATUAL. “PEC da Morte”: país já sente a devastação do congelamento”. Disponível em https://pt.org.br/pec-da-morte-pais-ja-sente-a-devastacao-do- congelamento/. Acesso em 10 de junho de 2020. 4853
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI RAICHELIS, Raquel SILVA, Maria Ozanira, COUTO, Berenice Rojas e YAZBEK, Carmelita (Org.). O Sistema Único de Assistência Social no Brasil: disputas e resistências em movimento. São Paulo: Cortez. 2019. RANCIÈRE, Jacques. O ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Disponível em: https://jornalistaslivres.org/boaventura-de-sousa-santos-a-cruel-pedagogia-do-virus/. Acesso em 10 de junho de 2020.LEI Nº 13.979, DE 6 DE FEVEREIRO DE 2020. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Lei/L13979.htm. Acesso em 16 de junho de 2020. SANTOS, Boaventura. 'Estamos em uma transição da democracia para a ditadura?'’ Debate promovido pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Disponível em https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2017/06/boaventura-de-sousa-santos- estamos-em-uma-transicao-da-democracia-para-a-ditadura/. Acesso em 15 de junho de 2020. SOUSA, Salviana de Maria Pastor Santos e ARAÚJO, Cleonice Correia. Os desafios do enfrentamento a pobreza no contexto da ofensiva liberal conservadora. In: ARAÚJO, Maria do Socorro Sousa e PEREIRA, Maria Eunice Damasceno. Políticas Públicas: temas e questões afins. São Luís: Edufma. 2018. TEIXEIRA. Sonia Maria Fleury e PINHO, Carlos Eduardo Santos. Liquefação da rede de proteção social no Brasil autoritário. R. Katálisys. Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 14-28, jan./abr. 2018. TELLES, Vera. Transitando na linha de sombra, tecendo as tramas da cidade (anotações inconclusas de uma pesquisa). In: OLIVEIRA, Francisco e RIZEK, Cibele Saliba (Org.). A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo. 2007. ________ Debates: a cidade como questão. IN: TELLES, Vera e CABANES, Robert. Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. – São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006.p 35-68. 4854
MESA COORDENADA EIXO 4 A PROTEÇÃO SOCIAL E O TRABALHO EM DEBATE NO CONTEXTO DA PANDEMIA DO COVID-19 NO BRASIL O TRABALHO E OS TRABALHADORES DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID-191 LABOR AND WORKERS IN SOCIAL WELFARE POLICY IN THE CONTEXT OF COVID'S PANDEMIC - 19 Maria Eunice Ferreira Damascena Pereira2 RESUMO Artigo submetido ao III SINESPP como parte da mesa temática “A proteção social e o trabalho em debate no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil”. Discute o trabalho e a gestão do trabalho na Política de Assistência Social/SUAS no contexto da pandemia da Covid- 19. Resulta das reflexões e pesquisas desenvolvidas pela autora no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre a Pobreza e as Políticas Direcionadas à Pobreza - Gaepp/UFMA. Situa a crise da pandemia, o trabalho e a precarização dos trabalhadores do SUAS no bojo das determinações do atual modo de regulação capitalista. Conclui que embora a pandemia não seja responsável pela crise do capital ela coloca determinantes que acentuam ainda a crise capitalista assim como também aprofunda os processos de precarização da vida social, sobretudo, dos trabalhadores em geral e daqueles que se vinculam à Política de Assistência Social, em particular. Palavras-chave: Assistência Social. Trabalho. Trabalhadores. Capitalismo. Crise capitalista e pandemia de Covid-19. ABSTRACT Article submitted to III SINESPP as part of the debating table. “the social protection and the labor in debate in the context of the Covid- 19 pandemic in Brazil”. It discuss the labor and the management of the labor in Social Assistance policy/SUAS in the context of the Covid-19 pandemic in Brazil. It results from the reflexions and research developed by the author within the scope of the Study and Research Group on poverty and poverty-oriented policies - Gaepp/UFMA. It 1 Mesa coordenada do Eixo Temático 4: Seguridade Social: Assistência Social, Saúde e Previdência, realizada durante o III Simpósio Internacional sobre Estado, Sociedade e Políticas Públicas- SINESPP/UFPI. 2 Assistente Social. Doutora em Economia Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas, professora do Departamento de Serviço Social da UFMA e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão, membro do GAEPP (Grupo de Estudo e Avaliação da Pobreza e das Políticas Direcionadas à Pobreza). e-mail [email protected]. 4855
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI situates the pandemic crisis,the work and the precariousness of SUAS workers in the midst of the determinations of the current mode of capitalist regulation. It concludes that although the pandemic is not responsible for the capital crisis, it poses determinants that further accentuate the capitalist crisis, as well as deepening the precarious processes of social life, especially for workers in general and those linked to the Social Assistance Policy, in particular. Keywords: social assistance, labor, workers, capitalism, capitalist crisis and covid-19 pandemic INTRODUÇÃO O artigo aqui proposto e submetido a avaliação do III SINESPI é parte da mesa temática “A proteção social e o trabalho em debate no contexto da pandemia da covid- 19 no Brasil”. Discute a Política de Assistência Social, particularmente às condições laborais dos trabalhadores engajados no Sistema Único de Assistência Social (Suas), no Brasil no âmbito da pandemia da Covid-19. Resulta das reflexões e pesquisas desenvolvidas pela autora no Grupo de Estudos e Pesquisa sobre a Pobreza e as Políticas Direcionadas à Pobreza - Gaepp, na Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Considera que o sistema capitalista já vinha enfrentando, desde meados do século XX, uma crise sem precedentes com rebatimentos em todos âmbitos da vida social, inclusive, com a imposição de mudanças importantes, particularmente no mundo do trabalho e da produção. Entretanto, esse cenário de crise se aprofunda mais ainda quando se dissemina em todo o mundo a pandemia da Covid-19 decorrente da contaminação pelo novo Coronavírus. A partir de então temos que as autoridades sanitárias em todo o mundo passam a recomendar medidas de segurança que vão desde o reforço dos cuidados com a higiene pessoal e também de coisas e objetos até o isolamento social, sobretudo, daqueles grupos populacionais mais suscetíveis ou de risco tais como: idosos, pessoas com histórico de doenças crônicas (diabéticos, hipertensos, cardíacos, gestantes, etc.), no intuito de reduzir o número de infectados e, ao mesmo tempo, evitar a sobrecarga dos sistemas de saúde. 4856
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Evidentemente, que a crise sanitária e as medidas restritivas que ela requisita afeta e impacta os interesses dos investidores capitalistas cuja racionalidade está orientada pela busca da manutenção de seus lucros. Assim, como bem coloca Brettas (2020, p. 11) parece ficar claro que: “[...] no mundo de produção capitalista, a produção de riqueza gera incompatibilidades com a garantia de vida da maioria da população”. Na verdade, parece que a pandemia contribui para expor as contradições do modelo de produção capitalista, melhor dizendo, as tensões da relação capital trabalho que tem a força de trabalho como mercadoria e como tal reprodutora do valor, e que deve ser explorada, não importa em que condições. Por outro lado, também se mostra claro que, apesar dos avanços tecnológicos e dos maquinários, essa força de trabalho viva ainda é imprescindível para o processo produtivo, e, portanto, para a obtenção do lucro. Pois, com assinala Fresu (2020, p. 42): [...] essa crise tornou ainda mais evidente a contradição entre capital e trabalho. Para além das funções hegemônicas e demagógicas, o desespero do mundo dos negócios e a vontade avassaladora de reabrir fábricas e trazer os trabalhadores de volta à produção, confirmam uma verdade que, embora questionada desde o século XIX, não cessa de se manifestar: sem a exploração do trabalho não há lucro, sem lucro não há capital. É deste cenário de acirramento da crise em todas as suas expressões e tensões3, portanto, de crescentes incertezas que o texto trata, buscando situar e debater o trabalho em geral, e as condições de trabalho dos trabalhadores inseridos na Política de Assistência Social, em particular, que mesmo antes do contexto da pandemia da Covid- 19, já vivenciavam relações de trabalho precárias tanto nas formas de inserção quanto de alocação, mas quando se engajam nas ações de enfrentamento à pandemia, prestando atendimento à população mais empobrecida, veem acrescer à sua condição de precarização outras dificuldades que estão expressas desde a falta de equipamentos de segurança até a ausência de planejamento das ações, além da tensão com os riscos iminente de contaminação a que estão expostos, inclusive com casos de adoecimentos e óbitos. 3 Como bem assevera Gouvêa, 2020, p. 21 [...] Trata-se de uma crise orgânica de sobreacumulação e multidimensional (econômica – não apenas ‘financeira’ – política, geopolítica, hegemônica, ambiental, ‘civilizatória’ – e da própria noção de ‘civilização’, isto é, dos próprios valores da modernidade capitalista). 4857
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Conclui mostrando que, embora a pandemia não seja a causa da crise capitalista ela traz agravamentos a ela, seja pela necessidade do isolamento social, seja pela diminuição dos fluxos das trocas tanto das economias locais quanto daqueles segmentos de ponta que estão em movimentos financeiros transnacionalizados. Do ponto de vista do trabalho, ela também traz impactos significativos no tocante ao aprofundamento dos processos de precarização e flexibilização das relações de trabalho, acentuando mais ainda as estratégias perversas do modo de regulação capitalista contemporâneo que afetam a classe trabalhadora, em geral, e os trabalhadores da Política de Assistência Social, em particular. 2 O APROFUNDAMENTO DA CRISE CAPITALISTA, A PANDEMIA DA COVID-19 E OS REBATIMENTOS SOBRE O TRABALHO É fato que, anterior à pandemia da Covid - 19, já vivenciávamos uma conjuntura mundial que tanto do ponto de vista econômico quanto ideopolíticas e apresentava bastante difícil e tensa, sobretudo, com o avanço do ideário ultra neoliberal de cariz conservador com conotações até fascistas que vem ganhando governos e adeptos em vários países, inclusive no Brasil, e que ganha força com o isolamento social, haja vista que as redes sociais favorecem a circulação das ideias4. De acordo com Secco (2020, p. 71) O confinamento do século XXI coincide com a ascensão do fascismo em vários países e uma inédita experiência virtual. Da Hungria à Polônia; da Itália à Grã- Bretanha; dos Estados Unidos às Filipinas; e em grande parte da América Latina, governos são conquistados por bandos fascistas ou permitem tranquilamente o seu fortalecimento. Do ponto de vista do trabalho, a conjuntura mundial de crise capitalista já impunha para a classe trabalhadora processos que denotavam o esfacelamento da sociedade salarial através de estratégias de reestruturação e inovação que favoreciam o crescimento do desemprego, a incerteza quanto à possibilidade de reinserção em 4 De acordo com Secco, 2020, p. 72 [...] a popularização do WhatsApp, das redes sociais e o acesso massivo a comunicação pela internet expôs as pessoas à disseminação de ideias. Esse espaço é travejado pelos interesses mercantis, por informações e por desigualdades sociais (Santos, 1996 apud Secco, 2020). 4858
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI atividades produtivas com garantia de direitos, expressos na flexibilização e precarização das relações de trabalho e das formas de ocupação. Este quadro se acentua em países de economias periféricas e desenvolvimento tardio, como é o caso do Brasil, pois estas estratégias vão ser adotadas em um mercado de trabalho que originalmente ainda convivia setores econômicos arcaicos com formas precárias de emprego, crescente informalidade, baixos níveis de qualificação da força de trabalho e um frágil sistema de relações de trabalho. Associado a isso, tem-se um conjunto de medidas de caráter contra reformista que passam a ser perseguidas e adotadas em maior ou menor vigor desde os anos 19905, e que a partir do golpe de 20166 se intensificam, pois, como bem apontam Lima; Pereira, 2019, p. 5: Em 2016, o agravamento da crise político-institucional culminou com a aprovação pelo Congresso Nacional do impeachment da presidente Dilma Rousseff, tendo assumido o governo o Vice-Presidente da República, Michel Temer. Isso representou a vitória de um projeto conservador que passou a pôr em xeque importantes avanços experimentados pelo país, sobretudo na esfera social, ao longo da primeira década de 2000. Isto porque exatamente a esses avanços são atribuídas as principais causas do agravamento do déficit público, da aceleração da inflação e da queda significativa da taxa de crescimento do PIB, a qual regrediu de 2,7% para 0,1% entre 2013 e 2014, atingindo os índices negativos de 3,8% em 2015 e 3,6% em 2016. (IBGE, 2015; IMESC, 2017) Desde então passam a preconizar a necessidade de um novo modelo de ajustes7, impondo “[...] rigorosos cortes de recursos, especialmente na área social, e a aprovação de reformas nos campos trabalhista e previdenciário de cunho extremamente regressivo do ponto de vista da classe trabalhadora” (LIMA; PEREIRA, 2019, p.6). Nesse processo foram também aprovadas as Reformas Trabalhistas e da Previdência Social, além da Lei nº 13.429/2017, que ampliou o processo de flexibilização na medida em que criou novas regras que incrementam o leque de possibilidades para as terceirizações e para a contratação de trabalho temporário. Tais medidas têm 5 Considerando os limites deste texto, não iremos aqui debater todos os avanços e recuos presentes na conjuntura brasileira ao longo desse espaço temporal, mas não podemos ressalvar que temos clareza de que ela contém diferenças significativas. 6 Estamos nos referindo ao processo de impeachment deflagrado contra a Presidente eleita Dilma Rousseff sob a acusação de ter cometido crime de responsabilidade e que culminou na sua efetiva cassação no 17 de abril de 2016. Este Golpe Parlamentar radicalizou os compromissos com a agenda neoliberal, intensificando as medidas de contrarreformas, atacando e destruindo os direitos e conquistas históricas dos trabalhadores. 7 Trata-se na verdade, de um novo Regime Fiscal que passou a ser adotado a partir da aprovação da Proposta de Emenda à Constituição nº 55 de 2016, denominada de PEC do Teto dos Gastos Públicos. 4859
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