2020 ALDEIA DE GRALHAS TERRA DE GENTE DURA GERAÇÕES|MEMÓRIAS DE UMA VIDA O Autor Domingos Vaz Chaves 1.ª EDIÇÃO 2020
Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida Domings Vaz Chaves
Domingos Vaz Chaves
Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida NOTA INTRODUTÓRIA… A aldeia de Gralhas situa-se no sopé da Serra do Larouco, onde nasce o Rio Cávado e a sua história é milenar!... Segundo alguns autores, por aqui cruzaram estradas romanas, passando pelo \"opidum\" romano, hoje relembrado pelo lugar de Castelo Romão (castro romano). Nesta terra, aparece com alguma frequência, cerâmica com fortes sinais de romanização. Para além desta referência arqueológica, outra merece idêntico destaque. Falamos da \"villa de Caladunum\". São vários os textos que a ela se referem, informando ter existido no local, um edifício quadrangular abobadado em pedra, muita dela reutilizada na construção da actual igreja paroquial. Gralhas foi um Curato da Sé de Braga, tendo mais tarde passado a Vigararia, tendo-lhe sido concedido um foral em 20 de Setembro de 1310 pelo rei D. Dinis. As principais actividades económicas situam-se nas áreas da agricultura e pecuária, mormente na criação de bovinos, caprinos e ovinos. O artesanato nunca foi rico, tendo-se produzido em tempos artefactos de carpintaria, ferraria e linho. O que individualizou Gralhas noutros tempos, foi o facto de ter sido uma das seis honras de Barroso a saber; Gralhas, Meixedo, Padornelos, Padroso, Tourém e Vilar de Perdizes. Todas estas honras eram terras sob protecção senhorial, que detinham identidade e jurisdição própria sobre o seu território, 4organizando-se com um governo próprio e autónomo desde o início da nacionalidade. Por volta dos finais do século XII estas honras de Barroso aparecem associadas às alcaidarias dos castelos de Portelo e Piconha, castelos que dão nome e são apontadas como cabeça de circunscrições concelhias onde se inserem as referidas honras. 4
Domingos Vaz Chaves Em 1530 Gralhas aparece referenciada com 44 moradores o que daria uma população aproximada de 180 pessoas e a sua Câmara era composta por um Juiz ordinário, que presidia à Câmara, 2 vereadores e 1 procurador. Era eleita de três em três anos e a eleição era presidida pelo corregedor da Comarca de Bragança, que vinha à terra para presidir. Para auxiliar o governo da Honra de Gralhas havia um almotaçé que tinha competência sobre o controlo do comércio de bens, o tabelamento de preços, o licenciamento das vendas, fiscalizava o sossego da gentes para além de haver o tabelião de notas. Gralhas era território do Duque de Bragança que tinha jurisdição plena sobre o seu território, estando vedada a entrada dos oficiais régios. Com o Terramoto de Lisboa de 1755 a maior parte do cartório da Casa de Bragança ficou destruído e para reorganizar o registo dos bens do Ducado foi enviado um magistrado da Casa de Bragança às terras de Barroso para tomar posse e fazer o registo dos bens que à Casa pertenciam. REGISTO DO AUTO DE POSSE: Ano de mil setecentos e cinquenta e seis: aos 9 dias do mês de Junho em esta honra e julgado de Gralhas que é termo da vila de Montalegre e casas da câmara e órfãos veio o doutor António Paes Teixeira … e sendo ai na assistência do juiz ordinário e mais oficiais da câmara desta honra em virtude de uma ordem, tomou posse desta honra e julgado de Gralhas e ofícios do tabelião do público judicial e notas órfãos, câmara, almotaçaria que são de todas as honras e julgados deste concelho de Barroso e de tudo o mais (…) que na dita honra e julgado havia, um casal que pagava à Sereníssima Casa de Bragança doze alqueires de pão centeio como melhor há de constar do tombo do almoxarifado da vila de Chaves5. Actualmente o seu património cultural reduz-se,à Igreja matriz, Capela de Santa Rufina, edifícios da antiga Casa do Povo, Escola Primária, Fonte Fria, Fonte do Bárrio, Forno do Povo, Moinhos de Àgua muito deteriorados e aos seus Cruzeiros Seculares. Outros locais de interesse turístico: Adro e zona da igreja e lugar do Castelo do Romão. 5
Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida ALDEIA DE GRALHAS GERAÇÕES “Todos os povos civilizados investigam as suas origens e amam a sua história. Há uma força instintiva que atrai o homem à terra natal, seja ela uma simples aldeia perdida nos vales profundos, nas serras majestosas e altaneiras, ou nas grandes cidades embaladas pelas ondas do mar, onde os requintes do conforto seduzem os ricos e poderosos do mundo”. 6
Domingos Vaz Chaves O AUTOR DOMINGOS VAZ CHAVES, nasceu a 3 de Agosto e foi registado a 16 do mesmo mês, do ano de 1954, na freguesia de Gralhas, concelho de Montalegre, onde foi baptizado, pelo Padre Avelino da Mota. Viveu com os seus avós maternos até aos 7 anos de idade. É filho de José Fernandes Chaves e de Teresa Vaz Chaves, neto paterno de José Fernandes Chaves e de Maria Dias e materno, de Domingos Vaz e de Maria da Glória Gonçalves Carneiro, todos naturais da dita freguesia de Gralhas, do concelho de Montalegre. Na sua aldeia, iniciou a instrução primária, tendo rumado a Lisboa, onde actualmente vive, quando frequentava a 2.ª classe e se juntou a seus pais que aí residiam e trabalhavam. Em 1965, após concluir a 4.ª classe e efectuado o então necessário e obrigatório exame de admissão para acesso ao ensino secundário, inicía os seus estudos no extinto Liceu Nacional de Gil Vicente, também em Lisboa. Sempre apegado às suas origens e inadaptado ao ambiente da capital, em 1969 regressa à sua terra e aí passa a frequentar o Externato Liceal de Montalegre. Após reprovação no então chamado exame do 2.º ciclo (5.º ano), é-lhe imposto o retorno a Lisboa, facto que o leva à recusa de continuar os estudos. Começa então a trabalhar num escritório sediado na Avenida do Brasil, auferindo um vencimento de novecentos escudos mensais. Anos mais tarde, trabalhando e estudando alternadamente, veio a concluir o Curso Geral dos Liceus em Julho de 1974, no Liceu D. Dinis. Tinha então 19 anos de idade. Em termos profissionais, ingressou na Policia de Segurança Pública no ano de 1981, a qual surgiu no seu percurso, através de um concurso público. Após a respectiva candidatura e a prestação das necessárias provas, deu entrada na Escola Prática de Policia, em Outubro desse mesmo ano, tendo frequentado o Curso de Formação de Agentes na cidade de Torres Novas. 7
Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida Concluído o mesmo, é colocado em Lisboa, local onde permanece até Outubro de 1985, data em que regressa à Escola Prática de Policia, para frequentar um curso de promoção a chefe. Após frequência do mesmo com aproveitamento, regressa de novo a Lisboa, onde volta a ser colocado. A partir daí reíniciou os seus estudos e após conclusão do 12º. Ano no Liceu D. Pedro V, no ano de 1989 entra na Faculdade de Direito de Lisboa, onde frequentou o respectivo curso. Sindicalista desde os tempos do Estado Novo, foi um dos principais activistas da causa sindical na PSP, e enquanto co-fundador ainda na clandestinidade, da primeira Associação na Instituição – a Associação Sócio Profissional da Policia-, foi um dos principais intérpretes e impulsionadores da chamada “Batalha de Lisboa”, revolta ocorrida em 21 de Abril de 1989, que colocou Policias contra Policias no Terreiro do Paço em Lisboa e que levou à demissão do então Ministro da Administração Interna, Silveira Godinho, do Governo de Cavaco Silva. Em finais de 1994, deixa a actividade operacional da Policia e passa a desempenhar funções na área da formação e em Novembro de 1996, através de sufrágio directo, é eleito para vogal do Conselho Superior de Justiça. Em 1999, na cidade de Bruxelas, faz a denúncia no Parmento Europeu, junto da Comissão Parlamentar de Direitos Liberdades e Garantias, da violação de direitos 88
Domingos Vaz Chaves spuimrnodaciecvsaasilosendetiseccoirnpeslpitnritiaumrc,eioonqnduaaiaspl vopirorripaaparatsreeterdaodroqMuGiinovivasedtrrono. odpaoArtdumguinêiss,trfaaçcãtoo qInuteerlhnea veaulemu Paralelamente à sua actividade profissional, leccionou durante dois anos lectivos en5sa0cUrAintnaivo, edsrasdiqeduaHadliesstLeóudrseiiaastda1ac9,at5me4n-pd2ao0r0na4oas;léúHmlitsidmtóeosrstiaaapndeoaqsuPdeoenldaiiccoiaabdroeamaulmgPuaomrAtduuotgoasBle;iuoGtgreramalfhpiaaos–à- Minha Terra Minha Gente; Terras de Barroso-Origem e Caracteristicas de uSPaomgvaroasRdePogrnioãomoI;ímsAcauDgoeisns;áeRrritaoifioiBcsaaçrerãooCsonãroaiss; cDToiesrr;eriHatosusmdFebueBnradtroarmoDseeonl;gtOaaidÚsoleti–mdoUosmECniCdfroairdmcãaeodsso;e;OmOs Castigo; Mário Soares- O Combate de Uma Vida; A Guerra Colonial; História da Policia para Crianças e Motes de Gralhas. ... 9
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Domingos Vaz Chaves PARA QUE SE SAIBA... Será difícil, a quem demanda hoje esta aldeia, imaginar com alguma profundidade, aquilo que a mesma foi desde os primórdios, ou mesmo, até à época em que o Camilio, o Sete, o Batalha e tantos outros, rumaram à «Companhia do Bacalhau» em Lisboa, ou o António Pistão, iniciou o processo de emigração para França. Só os mais antigos, aqueles que contam para além dos 50 e que calcorrearam abaixo e acima, as ruas desta terra, as íngremes ladeiras do Larouco e da Lagoa, poderão ter uma ideia sui-generis, daquilo que Gralhas foi no passado «recente», já que quanto aos tempos mais longínquos, muitas dúvidas subsistem. No que diz respeito ao primeiro mote, posso afirmar com toda a clareza, que a diferença é uma coisa impensável!... Naqueles tempos, não havia jornais que ali chegassem, não havia rádio, não havia televisão. Noticias, era uma nulidade e Gralhas um «mundo» fechado, envolvido pelas suas casas de colmo, por uma civilização pré-industrial e comercial, tão edénico e bucólico, que a medida da fortuna, não se fazia pelas cifras da lotaria, mas pelos alqueires de pão «colhidos», pelas quilos de batatas arrancados à terra, ou pela unidade «cabeça de gado», que cada um tinha e por quem se jurava: «nem que me desses uma vaca cum bezerro». Mas esse mundo morreu!... Só vive, como disse, nos microcosmos dos filhos da terra, que contam para além do tal meio século, e com eles desaparecerá para sempre... a não ser, que alguém, dedique algum do seu ócio, a registar tanto quanto possível, vivências passadas, velhos monumentos, costumes e tradições. 11
Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida Alguém, bastante inserido nessa sociedade de antanho, pela paixão das pessoas e coisas da sua criação e ao mesmo tempo com capacidade de confronto dessa realidade, da realidade civilizacional de então com a de hoje. Os nossos filhos, os nossos netos, as gerações vindouras, têm o direito de conhecer, aquilo que foi a vida dos seus progenitores, da sua terra, dos seus costumes, e das suas tradições. Até aos 7 anos de idade, fui criado – com meus avós -, num ambiente familiar de puro regime patriarcal, auferindo como qualquer outra criança, da «riqueza» da vida comunitária produzida na aldeia. O comunitarismo, era o expoente máximo desse viver eminentemente social. Comunidades de «patrões» e «empregados», partilhavam o trabalho árduo, a mesma mesa, o mesmo respeito e a mesma prece ao fim do dia, após a ceia. À volta da lareira, poderosa de calor e aconchego, que conjuntamente com a candeia, iluminava as amplas casas, desprovidas que eram de luz eléctrica, brotava a alegria reinante dos serões, que antecediam as longas noites de inverno. A desoras que fosse, se alguém batesse à porta, lá tinha a sua tijela, o seu copo de vinho, o seu naco de conforto. Cumpriam-se assim as leis da hospitalidade, que a tradição mandava. Generosamente. Simplesmente. Durante aqueles sete anos - e com o decorrer do tempo, durante os periodos de férias -, aprendi a gostar do meu torrão natal, que nunca esqueci. Vivi os trabalhos e os dias na translação anual do labor agrícola, desde o «meter» dos fenos, às segadas, desde as carradas, às malhadas, desde a matança dos porcos, que constituíam autênticas festas de familia, até ao «carrar» do estrume, desde a sementeira do centeio, até ao quotidiano cuidado com as «fazendas» (terrenos), desde a alegria de quem ama a vida e por ela é amado, até aos «motes» (quadras de escárnio e mal dizer), tudo numa sociabilidade intensa quase sem privacidade. Era uma riqueza imensa de experiências de vida, em contacto com a natureza!... E para que não ocorressem falhas, não faltavam sequer os mestres assistentes, como o João Alves ou o Lino Lourenço, os familiares de sangue, que ensinavam por obrigação, ou até mesmo os «homens bons» da terra que serviam como referência aos mais novos. Através desta pequena obra, recorrendo a fontes, a inform1a2ção prestada pelos mais idosos e a todos os meios documentais de que possa dispôr, procurarei relatar aquilo que foi, e é minha terra. Fá-lo-ei com a paixão natural de quem aí nasceu, sem pretensiosismos, e apenas com um objectivo: Dar a conhecer às gerações vindouras, aquilo que foi e que é a ALDEIA DE GRALHAS, A TERRA DE TODOS NÓS. 12 O AUTOR
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Domingos Vaz Chaves OS TEMPOS, QUE O TEMPO APAGOU... Visto nos dias de hoje, parecer-nos-íam coisas do “outro mundo”!... Porém, no tempo dos nossos antepassados, a vida era assim mesmo. Era o tempo em que bem cedo as crianças despertavam para a vida. No único aposento das casas da época, cobertas que eram de colmo, de rudes paredes de pedra sobreposta, por cujas fendas muitas vezes entrava o frio e o vento, nasciam essas crianças, nesta e noutras aldeias remotas e “perdidas no tempo. Nasciam sem assistência médica, e só raras vezes com o auxilio de uma parteira improvisada, no mesmo leito tosco e bárbaro do noivado. O ritual era sempre o mesmo!... Momentos antes de dar á luz, a futura mãe colocava junto ao fogo do lar o pote de ferro com água para o banho. O “home”, esse andava pelos campos a sachar, a lavrar ou a arrancar ervas. Acontecia por vezes uma vizinha chamá-lo para ver o filho que havia nascido. Quatro ou cinco dias depois, a mãe aparecia pela primeira vez após o parto na rua com o filho ao colo, e após uma semana já o levava para o monte. Neste “meio-tempo”, tinha também lugar o baptizado. Durante dois anos – ás vezes mais – a criança alimentava-se do leite materno!... Por vezes já comia pão e ainda mamava. Exposta ás intempéries da vida, ao calor e ao frio, ao sol e á chuva, como um “animalzinho bravio” nascido no monte sob uma lapa, a criança ou sucumbe ou fortalece. Eram as agruras do tempo e da época. A maioria das vezes criava-se bem resistente e forte nesse severo regime de selecção natural. Apartada do leite, é então invariavelmente abandonada á educação do próprio instinto. Aos cinco anos ensinam-lhe a rezar, e aos sete já lhe confiam a guarda das vacas e das ovelhas. Até eu sei como era!... Muitas vezes, a criança passa já os dias no monte, solitária, pastoreando o gado. O monte é a sua primeira escola e quase sempre a única. Aos dez anos, começa a preparar-se para a comunhão, \"indo á doutrina\". Era assim que o “senhor padre” queria e determinava. Quem não seguisse a regra, entrava em “pecado”. Aos doze anos comunga. E a vida de trabalho ininterrupto principia. Rapaz ou rapariga e de comunhão feita, é já uma criatura emancipada. Se os pais são pobres, vão “servir”. Se são filhos de um lavrador remediado, fazem em casa o tirocínio árduo da lavoura. 15
Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida No caso do “criado de servir”, começa então por ganhar o que come e bebe, bem como os “usos da casa”. Raros são aqueles que têm direito a “jorna”. Mais tarde - dos dezoito aos vinte anos - os mais diligentes e ao serviço de lavradores mais abastados, chegam a ganhar três escudos mensais, salário que nos idos anos 30 e 40 era um fenómeno por estas bandas. Os usos variam também com a idade dos “criados”!... Uma a três camisas de estopa, um ou dois pares de calças de cotim ou saias de riscado, um colete e um par de sócos, era também o prémio pelo seu trabalho. Aos rapazes, as patroas remendam-lhes e lavam-lhes a roupa. As raparigas fazem-no por conta própria e as relações entre estes “servos pobres” e estes amos tão pobres como eles, são quase familiares mas sempre com a noção inata da hierarquia. Por volta dos vinte e dois, vinte e três anos, o moço de lavoura, tendo concluído a sua aprendizagem e livre de “ser soldado”, casa-se. É tão raro ficar um lavrador sem casar, como haver moço que não lute tenazmente para se furtar ao tributo do sangue. O casamento funcionava por estas terras como base essencial á independência. Moço ou moça que não casasse ficava condenado a servir toda a vida ou a trabalhar para os “bezinhos”.O casamento era pois a aspiração unânime, o fim para que tendem todos os esforços e o prémio conquistado com as canseiras mais indescritíveis. O idilio, meio sensual e meio lírico, iniciado nas segadas, nas malhadas, no arranque das batatas, ou até no adro da Igreja, termina com a boda para se converter numa obstinada refrega pelo pão. Ordinariamente, a noiva leva para o casal um cordão e umas argolas de ouro e o noivo as alfaias indispensáveis para o granjeio das terras. Os parentes e os amigos oferecem aos esposados, alguns duas galinhas, outros uma raza de centeio, outros dois pedaços de pano de linho, um pote, meia dúzia de tigelas ou de pratos de barro, meio alqueire de pão, a pá para o forno ou um carro de lenha. Se um deles é filho de lavrador “abastado”, este abona-lhes o gado!... Uma junta de “bacas” medianas para principiar e raras vezes um bezerro para a engorda. Algumas vezes, também raras, levam ainda em dote uma “céba” de porcos e um “odre” de vinho. 16
Domingos Vaz Chaves O primeiro dia de casados é para os noivos pobres o primeiro dia de trabalho árduo. Vão tratar os dois umas terras a “mêas” que tomam a algum “bezinho”. Desde o nascer do dia até noite fechada, trabalham ambos no campo ou na eira. À noite, até altas horas, a mulher fia junto da lareira a teia com que há-de fazer as primeiras meias e os primeiros cobertores. O homem descansa da labuta do dia, ajudando a mulher a dobar o fiado. Feitas as sementeiras e antes das colheitas, quando a lavoura abranda, o homem vai ás feiras, vende os bezerros e ás vezes as “bacas”, compra outras mais baratas e vai ganhando alguns favores em carretos de pedra, de lenha ou de estrume. A mulher, no entanto, cora a teia, lança ninhadas de frangos e galinhas e engorda os porcos para sustento no ano que se segue. Mas esses pobres têm uma riqueza: São independentes!... Enquanto pagarem com o que a terra lhes dá, essa terra que eles lavram cavam e semeiam pertence-lhes. É dessa terra, adubada com o seu suor, que lhes vem com o sustento, o orgulho de um domínio que se lhes afigura sem partilha. São deles as águas, os campos, as árvores, os montes, as eiras e as casas. Não existe para eles, como para o operário citadino, um patrão dominador e imperativo. Só eles mandam na “sua fabrica”. No ínicio do século passado, o alimento destes casais, reduz-se a pouco mais do que a caldo e pão. O homem que trabalha de manhã até á noite, a mulher que o acompanha na sua lida incessante, comem menos do que hoje as crianças da cidade. Mas se a gravidez a não deformou, é uma mocetona corada e jovial de larga bacia, de grandes seios e de roliços braços de trabalhadora. O homem é musculoso e rijo. Ambos cantam enquanto sacham. Nenhuma tristeza perturbam esses casais pacificos e laboriosos, que não conhecem o dinheiro. Gozam amplamente os dois saúdes humanas: a moral e a física, de cuja união resultam as felicidades perfeitas. O trabalho é o seu regime moral. O caldo destes trabalhadores infatigáveis reduz-se a algumas couves galegas, apanhadas na horta, a alguns feijões e a um magro fio de azeite, ou um “bocado de unto” como adubo. O pão é de centeio, cozido em grandes fornadas no forno do povo para durar uma ou duas semanas. O cozer pão a miúdo é prejudicial á economia. 17
Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida É prejudicial, porque come-se mais enquanto é fresco e quantas mais vezes se acende o forno mais lenha se consome. Raras, muito raras vezes, há sardinhas ao jantar ou à ceia. Petiscos como este só de longe a longe. Quando o sardinheiro as vende a mais de 5 ao vintém, a mulher aventura-se a gastar dois centavos nesse luxo supérfluo. Um quartilho de azeite, podia custar seis ou sete vinténs e durava a um casal pobre, de 15 dias a um mês. Anos há, em que o pão (centeio) escasseia e a caixa (arca) se esgota. Aí surgem de Montalegre os compradores, oferecendo oito tostões por alqueire. Á salgadeira – os que a têm – vão apenas pelas festas do ano: no Entrudo, na Pascoa e no Natal, ou em dias de trabalho extraordinário, quando não podem de todo, sozinhos, granjear as terras, e rogam o auxílio dos vizinhos que vêm ajudar, sem direito a “jorna” e só pelo favor e pela mantença. Nestes tempos, uma família de lavradores, que não satisfeita com as dádivas generosas da terra - pão, batatas, hortaliça, feijão e lenha, gasta em alimentação, vestuário e demais necessidades da vida para cima de dez tostões por mês, ou é rica ou está perdida. Parecendo á primeira vista impossível que tão insignificante quantia possa chegar ao orçamento de uma casa, verifica-se, que ele é suficiente e não é mesmo atingido na maior parte das das vezes. O exíguo \"orçamento\" de um casal de lavradores no inicio do século passado por terras de Barroso para as primeiras necessidades, assentava fundamentalmente em quatro modestísimas verbas: 24 tostões para o azeite, 10 para as sardinhas, 2 para sal e 6 para sabão. Fora do \"orçamento\", ficam as despesas de vestuário, cujas “andanças” de roupa para homem pode durar até 5 anos. Quase sempre usando “sócos”, o lavrador não chega a romper um par por ano. A boina, que custa de seis a dez tostões, serve apenas para usar nos dias de feira ou nas festas. No trabalho diário, o lavrador usa uma capucha de burel no Inverno e um lenço da mão no verão. As mulheres gastam ainda menos do que os homens!... Uma saia de chita, um avental com barras a enfeitar e um lenço para a cabeça, são as peças essenciais e que duram “uma vida”. 18
Domingos Vaz Chaves Roupa branca, lençóis, toalhas e ainda as calças de uso dos homens saem do linho, da estopa ou dos tomentos – da teia fiada em casa. O gado, é considerado fortuna comum. A própria doença, parece respeitar todo este culto sagrado da economia dos lavradores de barroso. Só a velhice mata esta gente. Quando entram na agonia, a família manda chamar o padre para os confessar e ungir. Depois do padre, vem então o médico - se o houver - que raro receita e as mais das vezes chega a tempo de verificar o óbito. E assim morreu economicamente todo este mundo e toda esta gente, exactamente da mesma maneira como economicamente nasceram e viveram. Só a emigração a partir da década 60, mudaria os hábitos e o \"bem- estar\" destas gentes... 19
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Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida A LOCALIZAÇÃO E A ESTRUTURA SOCIAL DA ALDEIA Gralhas dista 9 Kms da sede do concelho Terra de montanha, muito gado caprino e ovino e de gente dura, a aldeia de GRALHAS, está situada no norte de Portugal, na base sul da Serra do Larouco e ocupa uma área calculada em cerca de 1082 ha. Dista 9 Kms da vila de Montalegre, sede do concelho, 5 Kms da fronteira com a Galiza e 25 Kms da cidade de Chaves. O seu povoamento é concentrado. A aldeia encontra-se rodeada de nabais, hortas e lameiros de rega. Neste perimetro, é propriedade exclusivamente privada. Depois segue-se-lhe todo um conjunto de terrenos, também privados, mas misturados com outros de dominio público. Esses terrenos, são chamados de duas folhas (a de baixo e a de cima), uma de batata, outra de centeio, com cultivo alternado. A partir dos anos sessenta, muitos jovens descontentes e ambiciosos, largaram tudo, e meteram os pés a caminho, deslocando-se para as grandes cidades do litoral e mais tarde em muito maior número, para outros países da Europa, designadamente para França. Quatro décadas depois, muitos regressaram e continuaram com a mesma vida. Envelhecidos pelo tempo e pela vida, atravessam ainda hoje a aldeia, atrás das suas vacas, revivendo o passado. A estrutura social, o papel da propriedade da terra, as casas, as ruas, as fachadas, o modo de vida, o sistema de entreajuda, a noção de tempo, os ritmos da vida, os mitos e os ritos, tudo parece pertencer já a um paraíso perdido. 22
Domingos Vaz Chaves CLIMA Em termos climáticos, poder-se-à dizer, que Gralhas, se situa na zona climática do nordeste ou terra fria. É uma aldeia de temperaturas extremas, que vão de vários graus negativos no Inverno a mais de 30 graus positivos no Verão, devido à sua localização continental. Os ventos, irregulares e variáveis, conforme a época do ano, constituem elemento muito influente no clima. Tem índices pluviométricos elevados com uma média de 100 dias de chuva por ano. A altitude oscila entre os 700 e os 1.525 metros, no topo da Serra do Larouco. AS ORIGENS DA ALDEIA… Quando se pretende elaborar a História de uma localidade, o primeiro assunto a tratar, é o da sua origem, data da fundação, local onde se levantaram as primeiras casas e fundamentalmente os motivos e circunstâncias, que determinaram o seu aparecimento. Tratando-se de povoações «perdidas no tempo», sobretudo se forem anteriores à fundação da nacionalidade, a falta de documentos que autorizem a historiar com precisão, aquilo que se pretende, é um facto, e a história de Gralhas não foge à regra. Existem documentos, que falam de diversas regiões de Barroso, designadamente desde a época da ocupação romana. Em meados do século VI, durante o domínio dos Suevos, um dos concilios de Lugo, fala de Salto, uma freguesia do concelho de Montalegre, ao qual Gralhas pertence. Seis séculos mais tarde, um manuscrito de 1145, dá noticia da existência do Arcediagado de Barroso. Por volta de 1147, um documento existente no Arquivo Provincial de Orense (Galiza), fala da fundação do Mosteiro de Santa Maria das Júnias, próximo de Pitões, outra aldeia, que integra o mesmo municipio. Em 1208, uma Bula do Papa Inocêncio III, refere-se a Vilar de Perdizes e ao Couto de Dornelas. Pela mesma data, Tourém recebeu foral do rei D. Sancho I. De 1248, existem dois documentos, referentes ao Mosteiro de Pitões e ao Couto de Vilaça. As Inquirições de 1258, falam de novo em Salto. A partir do século XIII, a documentação é mais abundante. 23
Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida Mas sobre Gralhas, para além de alguma informação dispersa e na maioria dos casos, proveniente da Galiza (Aula Galicia), o primeiro diploma legal que se conhece, é o foral concedido, pelo rei D. Dinis, em 20-09-1310, ano de epidemias e muita fome na região, através do qual se ordenava a partilha das terras, o seu cultivo, o pagamento do dízimo a Deus e a proibição de atentar na parte ou no todo contra os usos e costumes da povoação. Restos de um Castro Assim, com base na documentação disponível, em achados diversos, nas tradições, nos costumes locais e nos testemunhos dos mais antigos, procurarei na medida do possível, responder à pergunta: Como nasceu Gralhas?!... Não se conhece de fonte segura, a origem do nome que fez jus à terra. Não se conhecem igualmente, registos que retratem de forma fidedigna a sua origem. O que se sabe isso sim, é que o termo GRALHAS, deriva do latim -gracula-, ave conirrostra da familia dos corvos, que abundou na zona onde hoje se situa a aldeia. Segundo relatos de alguns estudiosos, as comunidades que viviam próximo do aglomerado, que é hoje, toda a àrea circundante da freguesia de GRALHAS, perdem-se na bruma dos tempos. Essas comunidades, parecem ter habitado, desde os longínquos tempos da pré-história, em zonas, como Soutelo (ou «Crasto» como ainda hoje é conhecido) e Ciada, pouco se sabendo dos seus primitivos habitantes, da sua cultura, dos seus hábitos, das suas actividades de caçadores e pastores, designadamente durante os periodos leptolítico e mesolítico. Há cerca de 3 000 anos, a cultura castreja, representada supostamente pelos Equésios, teve nessas regiões, larga difusão e grande prosperidade, supondo-se que como consequência de uma epidemia que terá grassado nos ditos CASTROS DE SOUTELO e da CIADA, o primeiro situado a nascente do lameiro do Artur Roscas e a poente do Rio das Forcadas, que ainda hoje apresenta vestigios de uma muralha de terra e pedra miúda, e de um fosso do lado nascente do mesmo rio, e o segundo na encosta a caminho de Solveira, pela estrada velha, numa zona próxima do actual campo da bola, as respectivas 24
Domingos Vaz Chaves populações, se tenham deslocado para zonas, que apelidaram de Cima de Villa, muito próxima da actual Calhelha do Lameiro e Bárrio, algures da Santa, as quais muito mais tarde e por influência da civilização romana, se viriam a unificar e dar origem à actual aldeia de GRALHAS. Por aqui passaram e deixaram igualmente marcas, diversas civilizações, entre as quais, a Ibero-Céltica - cujos vestigios nos são transmitidos, pelas suas preocupações com o que haverá para além da morte, e se traduziram na edificação de monumentos funerários, existentes na região - e a Romana, sendo aqui de salientar, a via romana Braga-Chaves, que há cerca de 2 000 anos, passava pela Ciada/Caladuno, o que prova inequivocamente, que os romanos, chegaram a esta zona, passaram e deixaram rasto. Desta via aliás, fala o itinerário romano do imperador Antonino, que a situa entre Braga e Chaves, a 30 000 passos da cidade de Praesidium ou Sabaraz, como era popularmente conhecida, e hoje, dá pelo nome de Vila da Ponte. Castelo do Romão em Gralhas Monumento Povoado fortificado da época pré-romana, localizado no sopé da vertente sudoeste da Serra do Larouco, entre o Corgo do Fojo e o Corgo do Cabreiro, a 1090 metros de altitude. Encontram-se por todo o monte vestígios de alinhamentos de estruturas, com maior incidência na plataforma superior, onde se encontra a maior concentração de materiais cerâmicos. Identificam-se também restos de muralhas. A Norte e Noroeste a defesa era natural. Já lá vão quase dois mil anos!... Fruto talvez e em grande parte, resultante dos condicionalismos impostos pela interioridade, pela aspereza da região e até pela fixação à terra de um povo saído do nomadismo pastoril, este é o retrato, ainda que um tanto ou quanto obscuro, e quase sem história, da aldeia de Gralhas. 25
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Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida OS NOSSOS MAIS LONGÍNQUOS ANTEPASSADOS Os documentos mais antigos que se conhecem dos habitantes destas terras datam da Idade da Pedra como o comprova a existência de dólmenes repartidos pela região Sabendo que os dólmenes são monumentos funerários depreendemos que os habitantes desta época eram um povo vinculado à sua terra, aos seus antepassados e às suas tradições religiosas, manifestando preocupações com o além morte, erguendo rudes monumentos funerários para prestar culto aos seus mortos. Estes vestígios juntam-se a tantos outros que provam que toda a área do Barroso já era povoada na época dos metais, a acreditar nos vestígios que nos chegam da pré-história, se bem que a Idade da Pedra deixou mais vestígios que a Era dos Metais, sendo a maior parte dos achados metalúrgicos pertencente à época do bronze. Há conhecimento de diversos machados de bronze encontrados no termo de Cervos, Fírvidas, Medeiros, Cambeses do Rio, Solveira e Montalegre; de duas pontas de lança e um instrumento com forma de garfo de dois dentes, descobertos a sul da povoação de Solveira. Estes achados encaminham-nos assim para a amostragem do povoamento neste planalto barrosão há cerca de 3000 anos, onde predominava a utilização do bronze no fabrico de instrumentos de trabalho e nas armas de guerra, e demonstram o progresso nesta região bem como do povo que aqui habitava. Por volta do ano mil antes de Cristo, toda esta região esta região foi habitada pelos Oestrímios, povo de origem ainda desconh28ecida, que ocupava o Nordeste Peninsular. Durante os cinco séculos que se seguiram, a região foi invadida por diversos povos indo-europeus, mais conhecidos pela nomenclatura de Celtas. A actual Galiza, dominaram-na os Sefes, povo de filiação celta, que deve ter aqui chegado pelos fins do século VII antes de Cristo, ou nos princípios do século seguinte. 28
Domingos Vaz Chaves Os Oestrímios viviam nesta região há muito tempo, possuíam uma tradição multissecular de usos e costumes, eram detentores de uma cultura e de um modo de viver que se projectaram para os dias tormentosos da invasão Sefe. Os Sefes, ainda que menos numerosos, eram portadores de um talento exímio a trabalhar com um novo tipo de metal, o ferro, metal esse que permitia a elaboração de novas formas de utensílios bélicos e de alfaias agrícolas. Dominaram o povo nativo, após longas lutas sangrentas, mas não aniquilaram os seus usos e costumes e os dois povos compreenderam que a melhor maneira de conviver seria interagindo e partilhando conhecimentos que levariam ao enriquecimento de ambas as partes. Esta colaboração e interacção de conhecimentos alteraram a atitude de todos os habitantes da região do Barroso, onde Gralhas se enquadrava, dando origem à cultura dos castros devido a factores extrínsecos. As frequentes invasões e lutas tribais causavam medo e inquietações permanentes, que levaram à construção de aldeias altamente fortificadas de forma a se protegeram das ameaças exteriores. Estas aldeias eram povoados fortes que ficaram na história com o nome de Castros, que eram normalmente erigidos no cimo de serras, que lhes facultavam a visão dos inimigos ao longe e dificultavam a sua conquista. Geralmente eram formados por um recinto protegido por muralhas, fossos ou por um dispositivo de defesa natura. Dentro dos muros construíam-se as casas que por norma, eram circulares e feitas em madeira, em pedra ou num material parecido com barro. Crê- se que a cobertura era feita com palha, tradição que se manteve ao longo dos séculos e que ainda hoje é possível observar em certas casas transmontanas, a que se dá o nome de colmo. A CULTURA CASTREJA A cultura castreja teve igualmente larga difusão nesta região e é extraordinariamente grande o número de castros por aqui encontrados. Braga Barreiros tentou inventariá-los 29
Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida e só no concelho de Montalegre registou cinquenta e três, mas sabe-se que esse número é muito maior, embora muitas destas memoráveis fortalezas tenham desaparecido, sendo só recordadas pelas toponímias que as evocam. Como já foi dito, Gralhas, sempre foi uma zona de temperaturas extremas, que se traduzem em muita chuva e neve no inverno e elevado calor no verão. Sabe-se hoje, que na época dos Castros e no periodo que se lhe seguiu, os habitantes das zonas, que hoje envolvem a freguesia, vestiam uma túnica de lã ou de linho, conforme a época de Verão ou Inverno, a qual descia do pescoço, até um pouco acima do joelho, ou ainda um saião curto, por alturas em que o calor apertava mais. Da chuva e da neve, protegiam-se com uma capa negra de lã, algo semelhante ao sagum celtibérico - sendo provável e pacífico, que mais tarde lhe fosse adaptado um capuz, da qual resultou a ainda existente «capa» ou «capucha» de borel, que todos nós conhecemos – e com vestimentas, feitas com jungos, a que mais tarde se veio dar o nome de «crossas» ou «crôssos». Em termos de alimentação e antes do centeio ter sido aqui introduzido pelos Celtas, os nossos antepassados consumiam, pão de landras (bolotas) dos carvalhos, que eram tostadas, moídas e posteriormente cozidas através de processos desconhecidos, leite, carne proveniente da caça e ainda a conseguida, através do abate de gado ovino ou caprino que possuíam, milho e peixe. As populações agrupavam-se em comunidades ligadas por laços sanguíneos, ou em tribos, quando as desavenças assim o determinavam. Viviam em regime comunitário, perfeitamente harmonizado e em perfeita sintonia com os direitos e obrigações, que a própria comunidade impunha a si mesma e que o respectivo chefe geria. 30
Domingos Vaz Chaves A PASSAGEM POR GRALHAS DOS ROMANOS|A CIDADE DE GROU Nas faldas do Larouco, entre a Ribeira de Regouço e a ribeira da Rega próximo da linha de fronteira localiza-se a cidade de Grou. É uma fortificação que se destaca pela morfologia, num pequeno planalto, que tendo em conta as características do terreno levou a que o sistema defensivo fosse constituído por fossos, do lado Sul, Oeste e Norte e por uma espessa muralha que os circunda. A muralha foi feita de terra e pedra e os blocos das faces exteriores da muralha bem aparelhadas. No interior verificam-se escassos vestígios de construções. Povoado fortificado de época pré-romana e romana. Será de colocar a hipótese de em época romana este local ter servido como ponto de controle da passagem de metais preciosos que eram explorados bem próximos - entre Gralhas, Solveira e Santo André - deste local. O caminho usado para o escoamento dos metais coincidia sensivelmente com o caminho da Xironda. A existência em tempos remotos desta cidade no local, é a prova de que a civilização romana passou por aqui. Como é sabido, quando a conquista romana da Peninsula Ibérica se inicia, em 218 a.C., com o desembarque das tropas de Cneu Cipião em Ampúrias, na actual região de Barcelona, já a Peninsula era habitada por diversos povos. E naquele que viria a ser território português, a norte do Rio Douro e nas imediações da zona, onde hoje se situa a freguesia de Gralhas, encontravam-se os Calécios, que haviam resultado da fusão de alguns nomadas que por ali passaram e se viriam a fixar, com as populações locais. 31
Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida Deve dizer-se inclusivé, que aquele território – ao tempo parte integrante da Callaecia -, conjuntamente com a Asturia e a Cantabria, foi a última zona do actual território português, a ser conquistado por Roma, nas campanhas de 26 e 25 A.C., isto é, cerca de duzentos anos após o inicio da ocupação romana da Peninsula Ibérica. A cultura Ibero-Céltica dos Castros, após cerca de um milénio de existência, cedia então lugar ao domínio romano. Todo o periodo que se seguiu, trouxe consigo, além das transformações politicas, administrativas e culturais, uma profunda modificação no regime de propriedade. De facto, com o deslocamento das populações castrejas, onde dominava a propriedade comunitária, para as terras mais férteis dos vales, ocorreu uma ocupação individualista do solo, bem típica aliás, da civilização romana, presumindo-se ser este o momento, que como consequência de tal, os aglomerados populacionais de Cimo de Villa e Bárrio, se tenham fundido, naquela que hoje é a Aldeia de Gralhas. Estes factos, tiveram como consequência, uma radical transformação na economia local, até então essencialmente pastoril, transformando-a numa numa espécie de economia predominantemente agrícola. A principal consequência desta transformação, resultou num progressivo enfraquecimento do regime comunitário, que até então vigorou, o qual apenas viria a ser restabelecido, a partir dos princípios do século V da nossa era, quando das invasões dos povos germanos, constituídos por Vândalos, Suevos e Alanos, no ano de 409. A língua, as letras e os costumes, foram outras das heranças que a civilização romana deixou por toda a região de barroso e consequentemente por Gralhas, aos quais se pode juntar, a actual estrutura paisagistica, assente numa economia de subsistência, designadamente no que diz respeito às culturas agricolas, em que o gado, é a principal fonte de riqueza da população residente. Para além do que já foi referido, da cidade romana de Grou, que constitui um verdadeiro cartão de visita desta zona, e se situa, algures entre a actual aldeia de Gralhas e de Santo André e da via romana de ligação entre Braga e Chaves, que saindo daquela cidade bracarense, passava por diversas povoações dos actuais concelhos de Vieira do Minho e Montalegre, designadamente, Codeçoso do Arco, 32
Domingos Vaz Chaves Porto dos Carros, Lama do Carvalhal, Currais, Subila, Breia Gia a sul de Ladrugães, Friães, Pisões, Cruz do Leiranco, Penedones, Travassos da Chã, S. Vicente, Peireses, Codeçoso, CIADA - ao tempo conhecida por Caladuno e actualmente situada na zona envolvente de GRALHAS, Solveira, Soutelinho da Raia, Castelões, Seara Velha, Pastoria, Casas dos Montes, até atingir a cidade flaviense, pouco mais se conhece da herança deixada pelos romanos, por estas paragens. Restam nas redondezas, alguns Marcos Miliários – os chamados monólitos cilindricos, que assinalavam de mil em mil metros, as respectivas distâncias, indicando alguns deles, os nomes, a filiação, os cargos exercidos e os títulos honoríficos dos imperadores de Roma. Sabe-se, que a introdução dos marcos miliários nas vias romanas, datam do ano de 183 antes da era Cristã, que são do tempo de Caio Graco e que em zonas próximas de Codeçoso do Arco, Pisões, Antigo de Arcos e Cervos, foram encontrados alguns exemplares, constando num dos existentes nesta última freguesia a inscrição: “Tibério César, filho do Divo Augusto, neto do Divo Júlio, Augusto, Sumo Pontífice, 8 anos imperador, 5 anos cônsul, 34 anos do poder tribunício. A Braga, 59 000 passos”, facto que prova de forma inequívoca e à distância de mais de 2000 anos, a forte presença da civilização romana, nesta zona. Refira-se que os ditos marcos quase todos desapareceram. Alguns, como os acima referidos, foram levados para Braga, onde se encontram, outros, foram destruídos pelo passar impiedoso do tempo, e outros ainda, foram até utilizados na construção de casas ou de muros de propriedades rurais, como é o caso de dois exemplares, do tempo do imperador César Augusto, já do ano 44 da era cristã, que “enfeitam” a parede do forno do povo de Sanguinhedo. 33
Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida OS SUEVOS E VISIGODOS A todas as acções levadas a efeito pela romanização, foi dada continuidade, pelos cenóbios cristãos, que cimentaram a cultura romana, com a influência germânica que se lhe seguiu, de Suevos e Godos. O reino Suevo, esteve implantado em toda a Galécia, durante 176 anos, isto é, no periodo compreendido entre 409 e 585, altura em que foi conquistado pelos visigodos. Acresce aqui referir, que as populações da região, passavam praticamente imunes a todas as transformações, relacionadas com problemas de identidade, a tal ponto que os próprios reis vencedores, se intitularam, Reis dos Visigodos e dos Suevos, até à conquista muçulmana, no sécul VIII, a que se sucedeu a reconquista cristã, que havia de conduzir, à criação do Reino de Portugal, no século XII. 34 É sob esta influência dos povos germanos na zona e em particular, no que aos Suevos diz respeito, que no século V, se presume ter sido introduzido na região da Gallecia e por consequência também, na zona que hoje é Gralhas, um tipo de arado, muito mais possante que o utilizado pelos indígenas, algo semelhante até, ao utilizado pelos lavradores da terra, já nos séculos XIX e XX e se inicia o gosto de montar nos «burricus», não de forma tão ele- 34
Domingos Vaz Chaves gante como faziam os cavaleiros romanos, nos seus cavalos, mas de uma forma, muito mais adaptada, quer à rudeza dos montes e montanhas, quer às próprias possibilidades dos residentes. Desse «burricus», ficou o hábito, até há relativamente poucos anos atrás, das deslocações da nossa gente, por montes e vales, feiras e romarias e até no transporte de todo o tipo de cargas, que íam desde o simples «molho» do milho, até ao transporte de carvão, ou dos «odres» com vinho, que muita gente da terra, adquiria nas proximidades de Chaves. Com a chegada dos Suevos e como já foi dito, radica-se de novo o comunitarismo na nossa terra. É que ao contrário dos romanos, exímios defensores da propriedade privada, os germanos valorizavam sobretudo a propriedade colectiva, donde resultou o sistema de vida comunitária, que ainda hoje mantém alguns dos seus traços característicos, na nossa comunidade. 35
Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida A CHEGADA DOS MOUROS À REGIÃO… Segundo os relatos de alguns entendidos, os Mouros terão entrado na Península em 710. No ano seguinte, vencendo os cristãos na batalha de Guadalete, deram o golpe final, na monarquia visigótica. A campanha de ocupação durou cerca de 7 anos e a região de Barroso, presume-se ter caído em seu poder, por volta do ano de 716. À semelhança do que aconteceu noutras localidades da região, os habitantes de Gralhas, sofreram o ódio e a perseguição mourisca. Uma vez submetidos aos invasores, julga-se terem vivido em relativa paz com eles, pese embora, tenham sido tratados quase como escravos. Todo o labor do seu trabalho revertia para o senhor da terra, a quem pagavam pesados tributos. Qualquer dos naturais, estava impedido do exercício de chefia de grupo e o lucro era proibido. Desconhece-se, se poderiam praticar livremente a sua religião. O que se sabe isso sim, é que determinados lugares da aldeia, como «Fental», «Queirogal», «Espinheiral» e tantos outros semelhantes, se encontram ligados à passagem dos Mouros, por Gralhas. A RECONQUISTA CRISTÃ Durante a reconquista cristã da península, Gralhas, tal como toda a região de Barroso, manteve-se integrada na Galécia. A Galécia, como já foi dito, fora uma provincia romana, situada na esquina norte-ocidental da Peninsula Ibérica, correspondendo nos dias que correm, à actual Galiza e norte de Portugal, e a sua cidade mais importante e capital histórica, era Bracara Augusta, a actual cidade dos arcebispos. A Galécia, dividia-se administrativamente em três «conventus»: Conventus asturiense, Conventus Lucense e Conventus bracarense, este último, onde o «povo» de Gralhas se integrava. 36
Domingos Vaz Chaves De 716, a 753, nada se sabe àcerca de Barroso e muito particularmente da Aldeia de Gralhas. O que reza a história, é que em 753, o rei Afonso I de Oviedo, genro de Pelágio, organiza uma grande expedição contra os Mouros e para além de outras cidades, toma- lhes Chaves e toda a região de Barroso. Após um cativeiro de 37 anos, os nossos antepassados do século VIII, respiravam de novo o ar da liberdade e dos seus hábitos, postos em causa pelos invasores muçulmanos. A Galécia tal como se apresentava dividida No meio de todas estas lutas, é bem provável, que mais uma vez, os nossos conterrâneos, tenham sofrido devastações e assaltos da moirama, designadamente durante o estranho regime de correrias e incursões mútuas entre cristãos e árabes. GRALHAS NA IDADE MÉDIA Depois de tudo quanto ficou escrito, é pacífico, que a aldeia de Gralhas, dentro do actual contexto e com a ressalva do Bairro das Cruzes (ou de São Sebastião), que é contemporâneo, já existia, quando do reconhecimento do Reino, em 1143. Sabe-se que administrativamente dependia do Alcaide de Montalegre, a quem pagava, tal como outras aldeias das redondezas, parte dos tributos da terra, que era pertença da corôa. Tais tributos, eram devidos, pelo facto, daquela que hoje é sede de concelho, ser ao tempo e no seguimento da organização administrativa, que vinha do Reino de Leão, aquilo a que se chamava «Cabeça da Terra de Barroso», onde funcionava e era organizada toda a administração civil, judicial e militar. A partir de 1273, as regras tributárias dos habitantes de Barroso e por consequência dos de Gralhas, foram significativamente alteradas. Através de uma carta de foral, datada de 9 de Junho de 1273, atribuída a Montalegre, como «Cabeça das Terras de Barroso», mas 37
Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida cuja motivação principal, era a intensificação do povoamento e desenvolvimento agricola da região, o Rei D. Afonso III, concedeu às populações «todos os direitos e rendas reais, com excepção dos direitos de hoste, moeda e padroado das igrejas, que reservava para a corôa». Impunha ao Alcaide, «...o tributo anual de 3.500 morabitinos», que este deveria cobrar, junto das populações das diversas aldeias que tutelava e pagar à corôa, em três prestações: 1 de Outubro, 1 de Fevereiro e 1 de Junho. A falta de pontualidade deste pagamento, seria penalizada com uma «multa» de 10 morabitinos, por cada dia de atraso. Com a dita carta de foral, foram ainda proíbidos todos os abusos que alguns fidalgos da «Cabeça», exerciam sobre os aldeões, designadamente, o uso da força que muitas vezes utilizavam para extorquir determinados bens de que necessitavam, bem como a sua aquisição sem a necessária contrapartida de pagamento. Só que tal «politica» não resultou!... A intensificação do povoamento e o desenvolvimento agrícola pretendidos, não tiveram sucesso; muita gente morreu, em consequência da fome e de uma grave epidemia que na época por ali passou; procurando fugir à doença e à fome, alguns povoadores saíram das suas terras e procuraram novas paragens, em busca de melhores meios de subsistência; outros ainda, fugiram às acções de violência e extorção de bens, de que eram vitimas, por parte de alguns fidalgos da «Cabeça»; a mão- de-obra era diminuta e o desenvolvimento agricola, regrediu de forma significativa. Mais tarde, após tomar conhecimento de todos estes factos, o rei D. Dinis, encarregou então, o clérigo Pedro Anes, de proceder ao estudo da situação e encontrar as necessárias soluções, que permitissem inverter os dados referidos. Assim e à semelhança de outras aldeias das «Terras de Barroso», foi Gralhas contemplada, com uma Carta de Foral, datada de 20-09-1310, a qual era dirigida aos moradores que se haviam mantido na povoação. Na dita Carta, se estabelecia uma nova divisão dos terrenos, para serem entregues aos povoadores, cada um dos quais, ficaria obrigado a pagar 1 maravedi de foro. Se para a divisão efectuada, não houvesse os necessários povoadores, cada um poderia adquirir mais de um terreno, pagando 1 maravedi, por cada unidade a mais que possuísse. 38
Domingos Vaz Chaves O periodo mínimo de aforamento era de 3 anos e ao fim deste tempo, o foreiro poderia continuar na posse das terras, aliená-las, dá-las ou vendê-las, mas sempre com a condição, de que o novo possuidor, pagasse o respectivo «imposto». Nos casos de venda, alienação ou doação das terras, os agricultores, só seriam obrigados a entregá-las aos novos proprietários, depois de efectuadas as colheitas, pagando-lhes no entanto as rendas, que os «homens bons» da povoação, julgassem ser justas. A partir daqui e tendo em conta o número de forais ou cartas reais de foro, referentes à região do Alto- Barroso, poder-se-à concluir, que como consequência das medidas levadas a cabo, pelo rei D. Dinis, ali tenha ocorrido um significativo desenvolvimento agricola. Os forais falam frequentemente em «casais» (bens), que se desdobram em dois, três ou mais, e terras incultas, transformadas em propriedades produtivas. A multiplicação de terras cultivadas, aumentando a rentabilidade agricola para as populações foreiras, constituía assim, apreciável fonte de receita para os Alcaides, que na ausência de moeda, viam mulitas vezes os seus tributos serem pagos em géneros. Gralhas não foi excepção à regra. No tempo em que reinou D. Dinis, existiam já, vinte e três das actuais trinta e cinco freguesias do concelho de Montalegre, entre as quais Gralhas. No âmbito eclesiástico, como no administrativo, estava esta região perfeitamente organizada. Os rendimentos dos povoados no século XIV, comparados com o estado actual das paróquias de Barroso, leva-nos a concluir, que algumas das actuais freguesias, progrediram com o tempo, enquanto que relativamente a outras, se deu precisamente o inverso. 39
Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida A título de exemplo veja-se o caso de Montalegre :Apesar de administrativa e militarmente ser «Cabeça da Terra de Barroso», no aspecto económico, era inferior a Mourilhe, Viade, Salto, Cervos e Mosteiro das Júnias, estando ao nível de Cabril, Cambeses e Ponteira. Neste âmbito, não se conhece qualquer referência à aldeia de Gralhas, sobre a qual aparecem novos dados, no reinado de D. João III, quando este monarca determina, através de carta datada de 17 de Julho de 1527 o recenseamento da freguesia. Tal recenseamento viria a ser feito três anos mais tarde, isto é, no ano de 1530, após nova insistência do rei, tendo estado a cargo, dos juízes de Montalegre, Pero Gil e João do Rego, dos tabeliães Lisuarte Gonçalves e Pero Álvares, do Alcaide João Pequeno e de 2 «homens bons» da aldeia, não identificados, os quais, antes de empreenderem tão importante tarefa, juraram aos Santos Evangelhos, que seriam diligentes e verdadeiros no desempenho daquela missão. O resultado do seu trabalho, cifrou-se no registo de 44 fogos. Após este, há apenas registo de novo censo na freguesia, já em pleno século XIX, mais concretamente no ano de 1836, constando do mesmo, o registo de 66 fogos, neles habitando 162 homens e 148 mulheres. GRALHAS, é hoje uma aldeia igual a tantas outras do interior. Embora com muito bons acessos, encontra-se marcada por uma forte depauperação económica e um quase abandono, das suas actividades tradicionais de outrora, designadamente no que diz respeito à agricultura e à criação de gado bovino, a que apenas vão resistindo alguns «teimosos» da terra. 40
Domingos Vaz Chaves O aglomerado populacional está concentrado e organizado em diversos arruamentos. Caracteriza-a ainda, o imponente relevo que a envolve. A paisagem à sua volta, merece especial atenção, em particular os imponentes picos rochosos, como o Castelo do Romão, o Cabreiro, o Caldeirão, as Barreiras Brancas, o Corisco, e mais a sul a não menos importante Serra da Lagoa, hoje recheada de caminhos pedonais, que em conjunto . . .formam autênticas barreiras naturais. 41
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Domingos Vaz Chaves A TERRA E A GENTE 43
Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida A TERRA E A GENTE Por cultura, entende-se o modo diferenciado de estar na vida, por parte de um determinado grupo de pessoas, num local e tempo próprio e traduz-se como é óbvio, nas influências que emanam, dos respectivos valores, normas e crenças, que caracteriza esse mesmo grupo. O «território» de Gralhas, está organizado numa pequena comunidade, onde prevalece uma economia de subsistência, fortemente baseada em valores, como o interesse colectivo a solidariedade e entreajuda, a propriedade individual, o trabalho, as relações familiares, a ética e a religião, a que se juntam, as reminiscências da cultura celta, nomeadamente no que diz respeito à defesa da família, da propriedade e do entendimento da aplicação da justiça. A pobreza do solo e a aspereza do clima não permitem uma cultura remuneradora dos cereais. Por outro lado, a abundância das precipitações explica a extensão de múltiplos pastos naturais (lameiros), que garantem o sustento do ainda numeroso gado, que teima em resistir, face às novas tecnologias. São as condições excepcionais do solo e do clima, que nesta área, fazem da região de Gralhas uma das mais propicias, para o desenvolvimento da pecuária. As pastagens ocupam os fundos e as vertentes dos vales, ou seja, as terras mais ricas, humedecidas pelas águas, que, conduzidas por um sistema de canais rudimentares escavados na terra, dão à erva, uma frescura constante. Mesmo nos meses mais quentes de Verão, os lameiros, conservam um tom verde e tenro que não se encontra em muitas outras terras de Barroso. Actualmente, a percentagem média de cabeças de gado bovino por hectare (15 por cada 100 hectares), não é elevada, mas mesmo assim, dá uma ideia exacta, da importância que ainda tem, para os habitantes em permanência, da aldeia. 44
Domingos Vaz Chaves A criação e manutenção do gado barrosão, muito em voga em tempos que já lá vão, dada a sua sobriedade e resistência, está de novo em fase de crescimento. As vacas, ao fim de dois ou três anos, servem hoje em dia e quase em exclusivo, para reprodução. Durante os meses de Verão, vagueiam em regime livre, pela serra, enquanto que no Inverno, são recolhidas e alimentadas nos lameiros próximos da aldeia, ou quando as condições atmosféricas assim o exigem nas cortes (currais) dos respectivos proprietários. Os lameiros irrigados de Gralhas, são um dos traços mais característicos da rude paisagem de planaltos, que envolve a aldeia. Separados quase sempre por biombos de carvalho e muros de pedras soltas, encontram- se em geral perto do povo, embora alguns se estendam até aos 2 ou 3 quilómetros de distância. Por estas paragens, não se conhecem as pastagens temporárias de semeadura, alternando com outras culturas. Deverá no entanto acrescentar-se, que a batata, os nabos e as sobras das culturas dos milhos, também servem para o sustento dos animais. Nos terrenos mais secos das encostas e dos planaltos, a vegetação pobre que aí se encontra, a custo pode servir para o sustento do gado bovino. Essas pastagens (que por aqui se apelida de monte) não servem, em regra, senão para as cabras e ovelhas, que ainda abundam nesta terra. A criação de gado caprino, encontra-se igualmente em fase de desenvolvimento e constitui importante fonte de receita, para os agricultores. 45
Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida Quanto às ovelhas, são de raça pequena ou meã e para além das crias, utilizadas para reprodução e venda, não dão, senão uma lã de fibra curta, grosseira e de má qualidade, que raramente é aproveitada. Em Gralhas, todas as vezeiras ou gádinhos (rebanhos) são comuns e guardados à vez, pelos agricultores, segundo o número de cabeças que cada um possui e da forma que mais adiante se explicará. Os seus habitantes, são normalmente, por questões hereditárias e por vocação, criadores de gado e agricultores, muito embora com o decorrer dos tempos, tenham ocorrido algumas excepções. O centeio, de afolhamento bienal, foi o cultivo quase exclusivo e típico dos agricultores da terra. Actualmente está em decadência. O povo, conserva ainda, embora de forma crescentemente esbatida, uma estrutura social comunitária, como mais à frente se poderá igualmente constatar, através de alguns exemplos. AS CASAS Até há cerca de 50/60 anos atrás, regra geral, as casas dos lavradores estavam perfeitamente adaptadas às actividades agrícolas e pastoris. Sobre o mesmo tecto, abrigavam-se muitas vezes, animais e os produtos que a terra dava. O rés-do-chão era reservado para a loija (adega), cortes dos porcos, tudo paredes meias com a corte da rês (ovelhas) e côrtes do gado. Os estábulos davam normalmente para um pátio, e se o recinto fosse adequado, podia até servir de eira, com o palheiro a fechar o círculo. Noutros casos porém, a eira, o palheiro e as cortes de gado eram um conjunto independente e até distante da casa de habitação. A escada exterior em pedra levava à cozinha e a varanda corria toda a fachada, dando acesso ao sobrado de limpo e compartimentos para dormir. 46
Domingos Vaz Chaves A par das casas dos lavradores existiam ainda e em determinadas situações, as casas dos cabaneiros (pessoas de poucas posses), estas muito mais modestas e apertadas, mas não raramente com mais família para abrigar. Nas casas, cabiam o lar, onde durante os meses frios era acesa a lareira, e à sua volta via-se normalmente, um escano, uma masseira, as camas, uma pequena mesa, uma toucinheira pendurada da trave, uma caixa de madeira de carvalho e vários molhos de lenha ao lado, que uma dúzia de galinhas usava como capoeira. A cobertura de colmo ajudava a conservar o calor noite dentro, o que era fundamental particularmente em noites de frio e neve. SERRA DO LAROUCO O ATESTADO AO PASSADO GALAICO QUE UNE GRALHAS À GALIZA… Situada na zona da raia correspondente ao concelho de Montalegre em Trás-os-Montes, a Serra do Larouco faz parte do complexo montanhoso da Peneda-Gerês e é a segunda maior elevação de Portugal, atingindo os 1527 metros de altitude no seu cume. Num planalto granítico que se estende por 10 quilómetros, a Serra do Larouco apresenta uma paisagem que nos oferece a atmosfera escarpada de Trás-os-Montes, pintada pela presença de matos, designadamente de carqueija, tojos, giesta e de urze, juntamente com zonas de pastagem e a presença de carvalhos, alguns pinheiros e vidoeiros. Esta pitoresca paisagem é habitada por aves de rapina, lobos, corços, raposas, javalis e por uma notável presença de répteis como lagartos e cobras. Nas zonas de maior concentração de matos de giesta e urze fica-se com a sensação de haver um chilrear permanente de serpentes escondidas por entre a vegetação, lembrando-nos que o território nacional em tempos ancestrais era apelidado de “Ofiussa”, a terra das serpentes. Há sítios que insistem em reavivar a nossa memória para o passado ancestral de Portugal. 47
Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida Logo no seu nome, a Serra do Larouco remete-nos para o deus galaico Larouco, um deus do trovão, da metalurgia e da fertilidade. De facto, quando subimos ao alto da Serra e contemplamos as paisagens correspondentes às terras Barrosãs, ao Gerês, Peneda, Ourigo, Soajo e Cabreira, todas elas parecem pontos mais baixos perante o deus Larouco, que todas vigia na sua imponência trovejante. A Serra do Larouco é além de uma bonita serra, um atestado ao passado galaico que une barrosões e galegos. Tradicionalmente, e até há pouco tempo, os jovens das zonas circundantes dos dois lados da raia, tanto de aldeias portuguesas como galegas, uniam- se no cimo da serra para a festa ao “Deus Larouco”, em celebração de uma cultura que em tempos ancestrais, nos quais não existiam fronteiras, pertencia a um mesmo povo. A FAUNA Quando se fala em fauna, tem obrigatoriamente de se falar da Serra do Larouco, dos montes e vales que a circundam e da própria Serra da Lagoa, situada na vertente sul da aldeia. Na realidade, devido ao relativo isolamento de parte importante da sua superfície, sabe-se hoje, que por aí se mantiveram até muito mais tarde ou ainda persistem, algumas das espécies que mais nos atraem, como é o caso da águia-real, do lobo e até de alguns corços. Sabe-se também, que a cabra-brava, passou por aqui. A última referência referente à mesma, data de 1892, época em que frequentava, a vasta zona para além do Picoto (Marco Geodésico) ao longo da raia com a Galiza. Porém, o já referido isolamento, que caracteriza toda a zona serrana e a protecção acrescida que deriva da própria natureza do terreno, permitiu a permanência de toda uma variedade de animais, com especial referência para as aves, destacando-se por estas paragens, para além da águia-real, os milhafres, a águia-de- asa-redonda, as corujas-do mato, os mochos, os gaios, os melros, as pegas, as perdizes e tantas outras. Quanto a répteis, é comum ver-se por aqui a víbora-negra, a cobra- d'água, o liscranço e o lagarto. 48
Domingos Vaz Chaves Na parte que diz respeito aos mamíferos, predominam ainda no Larouco, alguns lobos e corços, lontras, fuinhas, coelhos-bravos, texugos, lebres, e javalis com fartura. De entre as espécies referidas, existem algumas, que pela sua importância em termos estritamente conservacionistas - trata-se de espécies em perigo de extinção ou muito ameaçados -, pelas profundas relações que desde há muito mantêm com o quotidiano local e pelo modo como nós próprios as encaramos, merecem ser realçadas. Uma das dádivas de Larouco, é ainda a da medicina popular, justificando a sua ligação à serra, visto que nesta se dizem encontrar plantas terapêuticas nas suas zonas mais elevadas. Em diversas zonas e povoações em redor da Serra do Larouco, encontramos vestígios da antiga adoração ao deus e ao substrato cultural galaico do povo transmontano, como o Altar de Pena Escrita, dedicado a Larouco, em que este é comparado ao Júpiter romano, e povoações icónicas como Montalegre, Meixedo, Gralhas Santo André, Solveira e Vilar de Perdizes. Quantas histórias e quantas lendas se poderão contar, acerca do lobo, animal que desde logo se associa ao agreste da paisagem? Perseguido por todo lado e dado como extinto em grande parte do continente europeu, esta espécie, ainda vinga por estas paragens. Abatido como predador de gado, sobretudo ovino e caprino, sobrevivendo com dificuldade devido ao desaparecimento da caça maior, outra fonte importante da sua alimentação, e profundamente afectado pelas alterações ocorridas no seu habitat natural, o lobo é de facto uma espécie ameaçada. À fauna selvagem, há hoje também que acrescentar uma espécie doméstica de elevado valor e que já faz parte da paisagem do Larouco: trata-se do gado barrosão, galego, penato, mirandês e ultimamente alentejano, que ali se encontra, designadamente durante os meses de verão, em regime livre. A FLORA De natureza granítica e beneficiando de um clima agreste e húmido, as serras plenas de água, desde logo surpreendem pelo vigor e carácter da vegetação que as cobre. A Serra do Larouco, situada a norte da aldeia, forma gigantescos anfiteatros, destacando-se de entre os demais, o Caldeirão, o Castelo do Romão, o Corisco e as Barreiras Brancas. Estes cumes encontram-se muito escalvados, de tal forma, que acima dos 1400 m de altitude, subsistem apenas diversificados arbustos rasteiros, tais como, carquejas, sargaços, tojos, pequenas urzes e fetos. 49
Aldeia de Gralhas | Memórias de Uma Vida Entre os 1400 e os 1200 m verifica-se já a existência de alguns carvalhos de pequeno porte, alguns vidoeiros, giestas, urzes e mato das mais diversas origens. Até aos 1200 m a arborização é já mais densa, apresentando exemplares de grande porte, espécies arbóreas como o carvalho, o castanheiro, o vidoeiro e o salgueiro, entre muitas outras. Muito mais diverso e menos arborizado, é o revestimento vegetal da Serra da Lagoa, a qual junto ao Rio de Meixedo, nos apresenta uma extensa área de matagal - urze, tojos, giestas, sargaços, carquejas, muitos jungos e um carácter árido, que demonstra a ausência de povoamento humano. Finalmente, não se pode esquecer que a flora do Larouco, alberga espécies botânicas do maior interesse e que são objecto de acesa discussão, nos vários congressos de medicina popular, organizados na região, com particular realce, para o realizado anualmente no mês de Setembro, em Vilar de Perdizes. Aí se recomendam para o «tratamento» de diversas doenças, os chás de Alecrim, para o combate à asma, falta de apetite, gota, amigdalites e obstrução nasal, de Barba de Milho, para as inflamações e infecções da bexiga, da Flôr de Carqueja, para a tensão arterial alta, pedra nos rins, tosse, diabetes, rouquidão e bronquite, da Erva Cidreira, para os nervos, dores de cabeça e cólicas, do Fel da Terra, para os diabetes, das Folhas de Freixo, para o àcido úrico, colesterol, má circulação e reumatismo, da Flôr da Giesta- Branca, para os diabetes altos, ureia e Infecções da bexiga, das Malvas, para as inflamações da pele e mucosas, infecções e irritações de todo o tipo, da Tília, para o coração, sistema nervoso e insónias, da Flôr da Urze, para a próstata, bexiga e rins e da Uva-do-Monte, para o colesterol «sangue gordo», trigliceridos, diabetes e inflamação da bexiga, entre tantos outras. ... 50
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