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Universo Mágico e Simbólico de Portugal (excerto)

Published by D'Almeida ©, 2017-07-02 05:05:51

Description: Editor: Apeiron Edições © * Autor: Eduardo Amarante © * Paginação e arte final: D'Almeida Ateliê * Técnica de capa: D'Almeida Ateliê

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TítuloUniverso Mágico e Simbólico de PortugalAutorEduardo AmaranteDirector EditorialEduardo AmaranteCoordenação EditorialDulce Leal AbaladaRevisãoIsabel NunesGrafismo, Paginação e Arte finalDiv'Almeida Atelier Gráficowww.divalmeida.com/atelierTécnica da capaDiv'Almeida Atelier GráficoImpressão e AcabamentoEspaço Gráfico, Lda.www.espacografico.ptDistribuiçãoProjecto Apeiron, [email protected]ª edição – Janeiro 2012ISBN 978-989-8447-19-7Depósito Legal nº 338450/12©Apeiron EdiçõesReservados todos os direitos de reprodução, total ou parcial,por qualquer meio, seja mecânico, electrónico ou fotográficosem a prévia autorização do editor.Projecto Apeiron, Lda.www.projectoapeiron.blogspot.comprojecto.apeiron@gmail.comPortimão – Algarve

Eduardo Amarante apeiron edições



Universo Mágico e Simbólico de PortugalÍNDICEPreâmbulo à obra 9Prefácio 10Introdução 12Capítulo I 15Das origens do pensamento mítico ao novo espírito antropológico 16 18 1. O sagrado e o mito 19 1.1. O mito e o símbolo 19 1.2. O mito e o rito 21 1.3. Tempo sagrado e tempo profano 1.4. A arte e o sagrado 23 24Capítulo II 28O novo espírito antropológico 29 29 1. A antropologia religiosa 31 2. O mito cosmogónico 32 3. O antes e o depois: o caos e o cosmos 4. Guerra do cosmos contra o caos 36 5. Como é em cima é em baixo (imago mundi) 37 6. O mito da Atlântida e dos Atlantes 39 41Capítulo III 41A origem secreta do nome “Lusitânia” e os Lusitanos 44 48 1. O que narram as fontes históricas da Lusitânia 51 2. As origens sagradas dos Lusitanos 53 55 2.1. Iberos e Celtiberos 58 2.2. Celtas e Druidas no contexto ibérico 62 3. Os Lusitanos e as suas características etnogénicas 64 3.1. A romanização da Lusitânia 4. O ritual cosmogónico da guerra e a ética do guerreiro 67 4.1. Costumes bélicos e cavaleirescos 70 5. A tradição heróica e o sentido simbólico da realeza 5.1. Os Reis divinos e a sagração do rei. A realeza na Ibéria 5.2. Túbal-Caim, primeiro Rei da Ibéria 6. A lenda da corçaCapítulo IVO sentido da religião nos cultos e nas tradições 1. O Centro do Mundo. Os promontórios e santuários sagrados 7Apeiron Edições |

Eduardo Amarante2. A cultura megalítica 753. A noção de imortalidade da Alma entre o povo lusitano 763.1. A incineração e a inumação 783.2. As oferendas fúnebres 803.3. O culto dos antepassados e a função ritual da porta fúnebre 824. A verdade dos Mistérios e da Iniciação 864.1. A hermenêutica como método de interpretação simbólica 884.1.1. O símbolo da serpente 914.1.2. O “bode expiatório” 914.1.3. O significado da espiral 92a) A simbólica da espiral e o jogo do ganso 934.1.4. A simbologia do caduceu como elo da ligação homem/universo 944.1.5. O ceptro como selo de autoridade 944.1.6. A suástica como símbolo do universo em mutação 944.1.7. O símbolo universal da cruz 954.1.8. O círculo, símbolo da perfeição e do espírito 954.1.9. Os mistérios dionisíacos 954.1.10. O carácter simbólico da Lua 964.1.11. A função da ferradura e do crescente lunar 984.1.12. Sintra, a Serra da Lua 994.1.13. A corça, a vaca e os cornos lunares 1004.1.14. A “Porca de Murça” 1004.1.15. O simbolismo do falo no ritual agrário 1014.1.16. A simbologia da água e o rio do esquecimento 1014.2. A abolição dos Mistérios 1035. O simbolismo mágico-religioso dos bétilos e daspedras oraculares 1045.1. Dos sinais insculpidos em pedras 1075.2. Ao simbolismo genésico dos aerólitos 108Capítulo V 111A activação dos lugares mágicos de Portugal 115 1. A relação mágica e mítica do deus Lug ao Lugar: 116 o mito do Dilúvio em terras peninsulares 2. A alma humana no lug(ar) sagradoConclusão 1188 | Apeiron Edições

Universo Mágico e Simbólico de Portugal Preâmbulo à obra _____ Quando nos inícios dos anos 90 veio a lume um pequeno livro Portugal eos seus Lugares Mágicos, mais tarde, em 2003, exaustivamente ampliado em 3volumes(*), o autor Eduardo Amarante desbravava terreno ignoto, masprenhe de manancial de conhecimento que, dando frutos, contribuiu paraque o simbolismo fosse aceite como uma das muitas interpretações da histo-riografia portuguesa. Os leitores, pouco acostumados, no tempo, a estestemas, reagiam ora agradavelmente surpreendidos, ou com uma desconfia-da estranheza. Na verdade, a forma arrojada como o autor analisava a tradi-ção portuguesa, à luz do simbolismo universal, da filosofia e da nova antro-pologia, suscitava nas pessoas um vivo interesse, visto que pouco de falavadela no país e, muito em particular, da sua cultura popular. Poucos falaram,mas dos que o fizeram, destacam-se as obras magistrais de J. Leite de Vas-concelos, Teófilo Braga, Abade de Baçal e António Quadros. Com o tempo, as mentalidades transformaram-se e, actualmente, o cená-rio é bem diferente daquele que se vivia nos anos 80 e 90, período em que oautor desenvolveu a sua actividade. O Universo Mágico e Simbólico de Portugal recupera e amplia ideias quenortearam as obras que a precederam. A magia e os símbolos, a ela associa-dos, resultam de uma linguagem ancestral de conhecimento, que nos remetepara um saber tão antigo quanto a humanidade: o despertar para o estudoda Natureza e do Homem. Dulce Leal Abalada Dir. Projecto Apeiron (*) Lugares Mágicos e Megalitismo - A Geografia Sagrada da Terra e as Energias Cósmicas eTelúricas; Lugares Mágicos e Tradições - Magia, Cultos e Ritos associados ao Céu e à Terra e,por último, Roteiro Megalítico - Percurso Mágico em terras Portuguesas. 9Apeiron Edições |

Eduardo Amarante Prefácio _____ O final da era de PIXIS aproxima-se como um gigantesco redemoinhoque engole a superfície do mar, arrastando consigo tudo o que encontra noseu caminho. Grandes barcas construídas de lógica e materialismo e carre-gadas de certezas e convicções consideradas inabaláveis, acabam por serpuxadas por uma corrente que as arrasta para um túnel rotativo, esmagan-do-se trituradas pelas trevas. Muito do que se tem considerado “impossível” ou “pouco provável” temcaído de forma inesperada à nossa volta, nos últimos tempos. Muito maisainda se vai modificar. Já não há certezas nem garantias e o homem pergun-ta-se que rumo há-de tomar. Como e com quê?! Será isto um pesadelo ou uma visão apocalíptica do que nos espera?Talvez nada disso, mas apenas um relembrar da necessidade de nos consci-encializarmos da nossa pequenez e da pesagem das nossas prioridades. A civilização babilónica autodestruiu-se na tentativa ousada de constru-ção de uma torre até ao céu. Desentenderam-se entre si e viram que nãofalavam a mesma língua. Podiam até usar as mesmas palavras, mas como oseu significado era outro, acabou tudo por ruir. Que chave de acesso ao entendimento ficou então ao homem para per-ceber as indicações que Iniciados haviam deixado de eras anteriores? No seudesespero restou-lhe a esperança de poder compreender uma linguagemúnica e igual para os homens, inacessível porém aos animais. A linguagemdos símbolos. Esta não necessita de vocabulário, nem gramática. Pode sertransmitida sem receio do tempo ou do espaço. A sua compreensão dependerá em primeiro lugar do querer ver e, só emsegundo, do saber ver. Mas quem não souber elevar-se acima da sua condiçãoanimal não a compreenderá. Os grandes mestres da Humanidade, filósofos, arquitectos, artistas, poe-tas e líderes religiosos, souberam transmitir parte do seu saber pela lingua-gem dos símbolos. Deixaram uma longa estrada sem fronteiras, nem deespaço, nem de tempo, auxiliando gerações e reencontrarem-se após longascaminhadas cegas pelos desertos de lutas em vão. Se Portugal existisse apenas por razões de raciocínio lógico e de conve-niência material, seria compreensível o seu desaparecimento, como o detantas outras nações que hoje não passam de meros nomes de locais emmapas da antiguidade.10 | Apeiron Edições

Universo Mágico e Simbólico de Portugal Mas Portugal possui uma luz própria, revelada pela sua tradição esotéri-ca, que não deixa dúvidas do muito que ainda se espera dos CIDADÃOSDA LUZ. Não é por acaso que a sua LUZ-CITÂNIA sobreviveu como chama es-condida nos corações dos seus habitantes, quando sua nação se viu anexa-da pelo Império Romano, renascendo séculos depois como Portugal Tem-plário. Também não é sem razões profundas que cavaleiros e navegadoreslusos plantaram a linguagem dos símbolos por todo o planeta terrestre,oferecendo-nos pistas preciosas para nos guiar de forma limpa, pura, a fimde enfrentarmos a passagem para a época de Aquário que ansiosamentenos espera. Entender o significado dos símbolos, interpretá-los de forma correcta eoferecer acesso aos conhecimentos e às convicções assim obtidos, é tarefaprioritária de todos os que desejam manter viva a chama interior da suaancestral identidade e transmiti-la às gerações vindouras. Rainer Daehnhardt 11Apeiron Edições |

Eduardo Amarante Introdução _____ Se no final do milénio passado já havia sinais fortes de crescente interes-se pela Tradição, Magia e Lugares Mágicos, hoje esse interesse exponenciou-se. E sobre esse aspecto podemos perguntar-nos o motivo de tal aceitação. Digamos que a História roda e o “conhecimento”, que até aí era tabu,passou a ser acessível a todos sem excepção. A novidade é aliada do “conhe-cimento”. Paralelamente a esta situação havia uma História oficial quepouco dizia às pessoas. E isto muito por culpa do seu estatismo ao analisaros fenómenos históricos sob uma forma linear e vazia de conteúdo religioso,espiritual. Essa história baliza-se em preceitos materialistas dos séculos XIXe XX, em determinadas formas de interpretar o mundo. Os historiadores quea defendiam, enredados que estavam nessa filosofia materialista e linear,tinham muitas dificuldades em romper com estes velhos dogmas e aceitar asnovas ideias, também elas válidas, que começavam a fervilhar e a ter ecoentre as gentes. Com o seu impulso, a História passou a ser vista, não comoum processo linear, mas curvo (em forma de espiral), à semelhança douniverso, e imbuída de elementos religiosos e espirituais. Porém, algunsestudiosos da História ainda resistentes teimavam em assentar os seuspostulados numa visão linear, horizontal – mimetando os seus antecessores–, que os impedia, assim, de analisar os acontecimentos históricos em pro-fundidade, na vertical, indo ao encontro das “primeiras” causas. Continua-se a estudar muito, a escrever muito e a ensinar muito, mas com uma grandecarga de preconceitos. Aliás, a fenomenologia histórica não é exequível sema componente psíquica e, diria mesmo, sem a componente espiritual. No dobrar do milénio, um novo impulso é dado pela História. Novosdesafios e novas oportunidades são postos ao homem. O conhecimento éhoje acessível a todos e cada qual dispõe dele como bem quer. O verdadeiroesoterismo, que então era votado ao esquecimento, passa a ser motivo dasconversas mais variadas, caindo o seu ensinamento numa perigosa banaliza-ção, deturpado e manipulado por interesses comerciais. O racionalismo exacerbado, sem rosto e sem espírito, é um travão quebarra o caminho ao verdadeiro ensinamento. Não basta saber, é precisoviver, experienciar, para conhecer. É necessário utilizar a Razão, mas sempreque isso não impeça a intuição de falar, de expressar-se e, sobretudo, deviver com o coração e pôr mãos à obra. Este é o lugar mágico por excelência. O Universo Mágico como “co-habita” com o homem no mundo e é a ex-pressão de uma reminiscência de um lugar, mágico por excelência, que seplasmou num determinado tempo e fez-se presente e, imbuído de uma12 | Apeiron Edições

Universo Mágico e Simbólico de Portugalprofunda carga simbólica, aguarda retornar à consciência do homem. Esseslugares mágicos, num todo, formam o Universo e estão espalhados por todoo mundo; não são lugares físicos na verdadeira acepção do termo, uma vezque revelam, antes de mais, estados de consciência. Quando nos aproxima-mos, com alguma devoção, de um desses lugares, sentimos algo que provocaum tremor em nosso ser, uma espécie de energia invisível aos olhos queperpassa o nosso corpo; algo atravessa o físico e toca o nosso interior, provo-cando inevitavelmente uma influência positiva na consciência, um bomsentimento que acalma e nos faz receptivos. Esta “energia” ajuda-nos a abrira nossa consciência, a despertar a nossa alma e a escutar a “voz divina” que“fala” nesse lugar. Dirigir-se frequentemente a determinados lugares que tenham uma car-ga sagrada, ou, pelo menos, de vez em quando, e banhar-se um pouconaquele ambiente é algo que alimenta a nossa alma. Naturalmente, umaconsciência sujeita a este estado tem necessariamente de sofrer algumaalteração, uma transmutação tanto mais forte quanto o impacto sofrido pelacompreensão do que lhe foi “revelado”. Algo a tocou e a despertou para umestado superior de “compreensão”, de uma experiência vivida. Estádiosdestes são muito similares àqueles que nos são relatados pelos grandesmísticos da humanidade como, por exemplo, S. João da Cruz e Santa Teresade Ávila. A aquisição de tais experiências, vividas nesse momento de “reve-lação”, é o fruto de profundos estados de êxtase que, necessariamente, sedeverão reflectir nas acções. Se a nossa consciência despertou para algo queé bom para todos, por ser elevado, esse conhecimento deverá ser “transmiti-do” aos demais, como rezam os velhos ensinamentos da sabedoria. A toma-da de consciência implica o não egoísmo e, acima de tudo, implica umsentimento de unidade fraternal para com todos os outros seres. O homemtorna-se cidadão do mundo e a sua casa é o próprio mundo. No entanto, estadádiva que o homem faz de si não deverá ser feita por vulgares palavras eprédicas, mas por atitudes conformes a uma profunda serenidade, fé ehumildade que perpassa em todos os actos do seu quotidiano. É esse o seumaior testemunho e é também esse o exemplo que os demais homens vãotomar para si. Essa é a força da magia luminosa que opera “milagres” emtodo aquele que se aproxima reverente e humildemente desses lugaressagrados, a fim de beber da fonte da vida, de um universo mágico quedespertou e rompeu os véus que toldavam e aprisionavam a compreensãoque o homem detinha do Todo. Este torna-se num ser consciente de si e doseu lugar no Mundo e no Cosmos. Essa é a Magia: a da transmutação. Assim, o Universo Mágico e Simbólico de Portugal tem como intuito tornaracessível o conhecimento deste fenómeno, que é comum a vários países domundo e fundamental na sedimentação de várias religiões e tradições que, 13Apeiron Edições |

Eduardo Amarantegradualmente, se assimilaram ao modus vivendi das gentes sob a forma de“mitos” e “lendas”. É importante reter a ideia de que o mundo presente,mais do que o passado recente, é a casa de todos os homens e, por isso,importa saber o que se passa dentro dela. A obra permite ao leitor “entrar” em contacto com um mundo que, a ca-da dia que passa, parece mais distante do Homem. É bem possível quemuitos de nós vejam esse mundo como mítico, lendário, até mesmo fantasio-so, mas é incontestável que ele está aí, presente nos nossos actos, nas nossastradições, nas nossas crenças religiosas, na nossa forma de ser... Por conseguinte, decidimos começar esta obra pelo princípio, isto é, ana-lisar a estrutura do mito, após o que nos debruçaremos sobre os antepassa-dos míticos e históricos dos então lusitanos. Por isso, a estrutura da obraassemelhar-se-á a um colar de pérolas em que o fio condutor serão os lusita-nos e cada pérola será um momento desde um passado remoto até umtempo que não existe. Cada momento com as suas vivências é digno damaior atenção, para que se obtenha um colar o mais perfeito e harmoni-oso possível.14 | Apeiron Edições

Universo Mágico e Simbólico de Portugal CAPÍTULO I _____ DAS ORIGENS DO PENSAMENTO MÍTICO AO NOVO ESPÍRITO ANTROPOLÓGICO Até há bem pouco tempo entendia-se por “pensamento mítico” o modode pensar – que se reflectia em práticas mágico-religiosas – das sociedadesarcaicas situadas nos últimos degraus da civilização. Pensava-se, então, queo mito não passava de uma fábula sem qualquer conteúdo real. O mito seriao modo pelo qual mentes infantis e supersticiosas procuravam explicar osfenómenos naturais que presenciavam a cada passo (como seja o relâmpago,o trovão, etc.) sem poderem descortinar as suas causas e, por isso, temiam-nos. Por outras palavras, o mito não seria mais do que o modo de expressãodo homem primitivo que via em tudo aquilo que não compreendia fenóme-nos produzidos por forças sobrenaturais que ele, temeroso, venerava ecultuava, fazendo libações e sacrifícios a fim de que esses poderes deificadoslhe manifestassem o seu agrado através de dádivas (chuva, fertilidade, etc.)ou, pelo menos, o não castigassem por meio de todo o tipo de calamidades. As chamadas “mitologias” exprimiriam esta maneira de pensar do ho-mem de mentalidade primitiva, se bem que de uma forma mais elaborada.Assim, por exemplo, as mitologias grega, ou suméria, etc., não passariam deuma espécie de “contos de fadas”, de inocentes mentiras em que acredita-ram piedosamente milhões de pessoas durante milhares de anos. O interesseda sua divulgação actual reduzir-se-ia à esfera meramente cultural, comcomentários bem explícitos sobre o grau de superstição dessas gentes, paraque não restasse a menor sombra de dúvida no espírito daquele que seiniciasse no estudo das antigas culturas. Curioso conceito de “cultura” é esteque se fundamenta em pressupostos e em dogmas. Para que serve saber,perguntamos, se a cultura que nos é fornecida, em vez de estimular a refle-xão é um meio de imposição de crenças tão efémeras como o nosso próprioséculo. A vaidade humana, que impede reconhecer que errámos, tem sido omaior obstáculo ao verdadeiro progresso da Humanidade. Começa a ser evidente o absurdo que é pensar que homens como Sócra-tes, Platão, Pachacutec, etc., estivessem imbuídos de mentalidade primitiva.Por outro lado, e paralelamente a isto, os avanços da Hermenêutica e daprópria Antropologia forçaram a uma revisão do conceito de mito, e osaturados estudos efectuados nas últimas décadas em torno do pensamentomítico no seio das sociedades primitivas por especialistas como Mircea 15Apeiron Edições |

Eduardo AmaranteEliade, Malinowski ou Gilbert Durand, a par da valorização do pensamentosimbólico-analógico produziram, necessariamente, os seus efeitos positivos. Creio que se está a processar uma autêntica revolução de mentalidades,cujos resultados se verão num futuro não muito distante. Era necessário e inevitável que isto viesse a suceder. A nossa época per-deu as suas raízes. Sentimo-nos desenraizados e esse sentimento engendraangústia e loucura. Vive-se perigosamente num ambiente de instabilidadeem que tudo foi posto em causa: os sonhos, as ideias, as crenças e os costu-mes. Não se pode viver assim durante muito tempo. Por isso se fala tanto emevasão, em liberdade, em crise. Pressentimos que algo vai mudar e, emboraa maioria – como desde sempre todas as maiorias –, prefira não pensar e vávivendo com o que tem e como pode “à espera de melhores dias”, há os queacreditam num “Fim do Mundo” próximo e outros, mais optimistas, numapróxima “Idade de Ouro”. Surge de novo o interesse por velhas superstiçõese as outrora “ciências malditas”, como a Astrologia, têm cada vez maisadeptos e já são estudadas em algumas universidades. Aparece, renascidodas cinzas, o mito a impregnar o ambiente social. Na verdade, como de-monstra M. Eliade, o mito nunca deixou de existir, de impregnar o homem,nem mesmo nos tempos modernos; simplesmente caiu na esfera do profanono seio de uma sociedade dessacralizada. Agora renasce, purificado pelofogo, como um apelo atávico do Homem em busca das suas raízes. Uma época de crise é uma época de mudança, como indica a própriaetimologia da palavra. Cremos que muita coisa irá mudar, mas tudo serápara nosso bem, visto existir um arquétipo evolutivo, ou seja, um planocósmico que se vislumbra melhor precisamente nas charneiras da História. Nas raízes da História está a chave que abre as portas do futuro. Por issovamos dar ouvidos ao apelo que nos vem do mais fundo dos tempos emergulhar, livres de tabus e preconceitos, no ambiente acolhedor do mito. 1. O sagrado e o mito O mito contém na sua raiz etimológica a própria ideia de “mistério”.Com efeito, a presença do mito é uma constante nas sociedades de corteiniciático. Para Luc Benoist1 “o desenvolvimento de uma verdade doutrinalem mito não é uma fábula, visto que o vocábulo fábula provém de umaoutra raiz que significa palavra (fabula), enquanto o vocábulo mito provémde uma outra raiz que significa mudo e silencioso (mutus). Ora esta ideia desilêncio prende-se às coisas que, pela sua própria natureza, são inexprimí-veis a não ser por símbolos. Mito e mistério emanam pois da mesma ideolo-gia esotérica, cujo carácter provém da sua primordialidade e da sua necessi-1 Luc Benoist, Signes, symbols et mythes, Paris, 1975.16 | Apeiron Edições

Universo Mágico e Simbólico de Portugaldade”. O mito é, por conseguinte, o relato de uma história verdadeira,sagrada, que se situa fora dos limites espacio-temporais. Daí o seu caráctersubjectivo que actua nos domínios do inconsciente e que, portanto, éreversível. Na opinião de C. G. Jung o “inconsciente colectivo” precede apsique individual. Quer isto dizer que o mito é o móbil determinante docomportamento do homem. Viver um mito significa ter acesso à esfera doinconsciente que é um verdadeiro percurso iniciático. “Viver os mitos –escreve M. Eliade – implica uma experiência verdadeiramente ‘religiosa’,visto que se distingue da experiência vulgar da vida quotodiana”2. E, parao homem religioso o essencial precede sempre a existência. O mito designa uma “história verdadeira”, porque sagrada, quer dizerum acontecimento primordial que teve lugar no começo do tempo.“O homem é aquilo que é hoje porque uma série de acontecimentos ocorre-ram ab origine. Os mitos contam-lhe esses acontecimentos e, ao fazê-lo,explicam-lhe como e por que razão ele foi constituído desse modo. Para ohomem religioso, a existência real, autêntica, começa no momento em querecebe a comunicação dessa história primordial e assume as suas conse-quências. Há sempre história divina, pois as personagens são os SeresSobrenaturais e os Antepassados míticos.”3 Para B. Malinowski “o mito é um elemento essencial da civilização hu-mana; longe de ser uma vã fabulação, é, pelo contrário, uma realidade viva,à qual constantemente se recorre, não é uma teoria abstracta nem umaostentação de imagens, mas uma verdadeira codificação da religião primiti-va e da sabedoria prática.”4 Vemos, assim, que está definitivamente ultrapassada a ideia de que osmitos não passavam de meras fabulações, poéticas por vezes, mas desprovi-das de conteúdo real. Ora, é precisamente o contrário que sucede. Interpre-tar à letra um mito, objectivamente, equivale a destruir a possibilidade de oentender. É verdade que hoje predomina o “racional”, porém, convémrecordar que o acesso ao mito, em si eminentemente subjectivo, nunca sefará com esse instrumento. Por detrás do seu aspecto “fantasioso” o mitocontém uma verdade oculta, uma história verdadeira, porque se referesempre a realidades. Dizia o Imperador Juliano que “aquilo que nos mitos seapresenta inverosímil é precisamente o que nos abre o caminho para averdade. Na realidade, quanto mais paradoxal e extraordinário for o enigma,tanto mais parece avisar-nos que não devemos confiar na simples palavra,mas esforçarmo-nos em torno da verdade oculta.”52 Mircea Eliade, Aspectos do Mito.3 Ibidem.4 B. Malinowski, Myth in Primitive Psychology, Londres, 1926.5 Juliano Imp., Contr. Héracl. 217c. 17Apeiron Edições |

Eduardo Amarante A importância dos mitos na história da humanidade, e não apenas nassociedades arcaicas é de tal ordem que, enquanto houver história haverámitos, independentemente de se ter ou não consciência deles. Daí que nãoseja exagero afirmar ser impossível compreender a História, qualquer queela seja, sem os motores ocultos que a impulsionam, isto é, os mitos. Mircea Eliade salienta que “os mitos são a forma mais geral e eficaz deperpetuar a consciência de um outro mundo, de um além, seja ela o mundodivino ou o mundo dos Antepassados”6. E Van der Leeuw não hesita emafirmar que é suficiente “conhecer o mito para compreender a vida.”7 1.1. O mito e o símbolo Se o mito é uma Ideia Primordial, a função do símbolo é de a tornar inte-ligível, de lhe servir de “linguagem”. Dizia Santo Isidoro que o símbolo é umsigno que dá acesso a um conhecimento, ou seja, é signo do invisível, doespiritual. E, neste contexto, Mircea Eliade escreve que “o símbolo revelauma realidade sagrada ou cosmológica que nenhuma outra ‘manifestação’poderia revelar.”8 Na sua etimologia – em grego sumbolon – a palavra símbolo anuncia aideia de continente e pode ser figurada por uma barca, receptáculo do sa-grado. O símbolo, na sua função mediadora, é o veículo de algo que, peloseu carácter atemporal deve ser preservado e intuído. Para M. M. Davy “afunção do símbolo é de despertar o homem e de conduzi-lo ao seu princípiooriginal, quer dizer, ao plano do sagrado no qual tudo é ordem, medida,proporção. Assim, o símbolo permite ao homem atingir um nível inacessívelà razão. Ele oferece um ensinamento duplo, o de recordar o sentido de umarealidade e de indicar uma via para chegar até ela”9. Acrescentamos quepara Platão conhecer significa recordar, isto é, conhecer e compreender overdadeiro, o belo e o bom é, sobretudo, recordar-se, ter reminiscênciasvivas de uma existência puramente espiritual, no outro mundo.10 O acesso à compreensão de um símbolo varia consoante o nível de cons-ciência daquele que o contempla. O símbolo em si é invariável, mas a leituraque dele se pode extraír é tão diversa quão diversos são os observadores.É por isso que os símbolos universais são uma constante em todas as épocase lugares geográficos, porque transmitem realidades eternas alheias aos6 Mircea Eliade, o.c.7 Van der Leeuw, L’Homme Primitif et la Religion, Paris, 1940.8 Mircea Eliade, Tratado de História das Religiões, Lisboa, 1977.9 M.M Davy, Initiation a la Symbolique Romane, Paris, 1977.10 Perante aqueles que negavam a ressurreição dos mortos, Teófilo de Antioquia apelava para os indícios(tekhméria) que Deus colocara ao alcance deles nos grandes ritmos cósmicos: as estações, os dias e asnoites. Escrevia: “Não há ressurreição para as sementes e para os frutos?”18 | Apeiron Edições


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