mesmo, quantas vezes assumes o papel de recordares o passadocomo de mim se tratasse, e naturalmente, naquelas alturascomo a que acabaste de recordar, eras mais tu que lá estavasque eu. Já quase passaram quarenta anos, será que mudámosmuito? No essencial acho que não! Estamos velhos, as minhasdúvidas permanecem, qual o sentido da nossa vida, é sófazermos o possível para não morrermos? Ainda continuo ainterrogar-te; sei que ao fim de sessenta e cinco anos, já tudosabemos um do outro, será que ainda fazem sentido asinquietações que hoje sinto, esperando a resposta que jáconheço, e vai verificar que tudo é como eu pensava, que estetudo é o nada com que vivo ou convivo, até chegar a hora doaDeus? J – Então António, não sejas tão pessimista, pensa que oagora não existe, já é passado; o agora é o estarmos vivos, nóssó temos passado e futuro e é acreditando neste, que ainda nospode dar muitos momentos de felicidade, que nós devemoslutar! A – Tens razão, José, deixa o rio correr, ele sabe que vaimorrer no mar e para lá corre, isto é como a nossa vida, umdia chegaremos ao nosso mar. Ainda te lembras das nossasconversas, quando em 1973 resolvemos ir trabalhar paraAngola? A refinaria estava a funcionar, tínhamos a viver emLuanda o nosso melhor amigo, havia a oportunidade deassumir uma posição de topo na refinaria da Petrangol, ondealiás estagiei quando acabei o curso, a minha mulher estava adar-se mal com o clima do Porto, as expectativas em relação aum futuro promissor eram muitas, a guerra em África estavanum estado que não seria obstáculo ir para lá viver. África erauma oportunidade, fizemos as malas, embrulhámos a trouxa,metemos tudo no barco, tomámos o avião e lá nos encon-trámos todos em Luanda. J – Ainda sinto aquele calor tórrido, quando desem-barcámos em Luanda; foi uma sensação estranha aquela deestarmos tão longe das nossas famílias, a interrogação sobre o 99
nosso futuro, a educação dos nossos filhos, a sensação deestarmos completamente sozinhos, entregues a nós próprios. A – É bom recordarmos tudo isso, pois a nossa grandedúvida era a incerteza quanto ao futuro, como seríamos re-cebidos no ambiente profissional, se a educação dos nossosfilhos seria a melhor, porque em relação à terra em si, nós jálá tínhamos estado, e conhecíamos relativamente bem oambiente social, o quão agradável era poder desfrutar da com-panhia dos nossos amigos, e o apoio que eles nos deram nosprimeiros tempos. J – Os primeiros dias que lá passámos, dormimos nacasa deles num género de camarata improvisada, pois apesar dejá termos uma vivenda alugada pela Petrangol, tivemos queesperar pela chegada das nossas coisas. Se recordar é viver, égratificante recordar os momentos difíceis mas felizes, e comoo ser-se novo é uma dádiva, que a juventude quantas vezes nãoaproveita, e que nós soubemos aproveitar, com um espírito deaventura, mas ao mesmo tempo de missão, ponderando os próse contras, e como ela acabou, sem que nós alguma vez tivés-semos imaginado. A – Hoje, com a idade que temos, temos muito maispassado que futuro, mas se quisermos viver não devemos sórecordar o passado, por muito gratificante que tenha sido, poisisso nada acrescenta ao passado já vivido, e se nós somos agoragrande parte do nosso passado, a ele devemos acrescentar umprojecto de futuro, projecto esse que possivelmente não passado curto prazo, e com certeza baseado naquilo que fomos,sendo por isso importante recordar os nossos momentos bonse os menos bons. Lembra-te, José, do arranque da refinaria doPorto, os momentos alegres e difíceis que passámos, pois omesmo destino estava traçado na refinaria de Luanda, com achamada 7.ª fase de expansão, e o meu trabalho foi o decoordenar as diversas fases de trabalho até ao arranque da“nova refinaria”. Com a experiência que tinha não me foidifícil, e tudo correu como estava previsto e planeado. Acabado 100
este trabalho, fui nomeado sub-director da refinaria e as mi-nhas expectativas quanto ao futuro eram grandes. Passadospoucos meses, como eu tinha previsto, a Administração daCompanhia dispensou os trabalhos de um italiano que exerciaas funções de director, e nomeou-me a mim director, tinha eu36 anos. J – É verdade, ser director aos 36 anos é uma dádiva,mas as nossas esperanças de um futuro de paz e harmoniadurou pouco tempo. Nós tínhamos chegado a África em Ja-neiro de 1973 e em Abril de 1974 tinha rebentado a revoluçãoem Portugal, e com ela veio toda a incerteza quanto ao futuro. A – Lembro-me como era agradável, ao fim do dia oudepois do jantar, irmos a uma esplanada na avenida marginalou na restinga beber um café ou uma cerveja, encontrarmo-noscom um ou outro amigo que por ventura aparecesse, e go-zarmos da brisa nocturna tão agradável, depois de um diamuito quente, aquele calor tropical muito húmido. Só esti-vemos em África dois anos e meio mas foi o suficiente para,agora, sentirmos a nostalgia daqueles tempos. Depois do vintecinco de Abril, a refinaria ainda continuou a trabalhar quaseque normalmente, e só em 1975 é que começaram os pro-blemas, quando o MPLA a FNLA e a UNITA se instalaramem Luanda e se começaram a bombardear uns aos outros. J – Lembro-me de ter caído um rocket num reservatóriode fuel e ter provocado um incêndio, tivemos que parar arefinaria de emergência, mas mesmo assim, mesmo debaixo defogo, voltámos a arrancar a fábrica, e como era perigosocircular nas estradas próximas da refinaria, o pessoal eraabastecido por helicóptero, pela Coplad, o equivalente naMetrópole ao Copcon. A – Da nossa vivenda, durante a noite, víamos as balastracejantes cruzarem o céu, pois a nossa casa, se bem que es-tivesse localizada no melhor bairro da cidade, tinha de umlado um aquartelamento da FNLA e do outro lado um doMPLA. 101
J – Lembro que uma noite, eram para aí umas novehoras, íamos a sair de casa, para nos recolhermos em casa dosnossos amigos, que entretanto tinham alugado um pequenoapartamento, mesmo no centro, havia sobre a nossa casa umtiroteio enorme, e escondido no nosso jardim, ouvimos umavoz dizendo “Oh camaradas tomem cuidado, vão agachados atéao carro, e arranquem, mas não acendam os faróis.” A – Outra vez, quando vinha da refinaria para casa,eram aí umas seis da tarde, fui mandado parar por umapatrulha do MPLA, quase tudo miúdos de 12 aos 16 anos,armados com metralhadoras, que queriam à força que eumostrasse o cartão do partido, e eu como não tinha nenhumcartão, com a metralhadora apontada à minha cabeça, mandou-me abrir o capot do carro que era um vx carocha, e como nãovisse nenhum motor, ficou danado e mandou-me abrir a partede trás do carro, e sempre com a arma apontada à minhacabeça, chamou os outros camaradas para virem ver o motorque eu tinha roubado e levava no porta bagagens. O que mevaleu é que apareceu um mais velho, que me mandou seguirrapidamente, antes que apanhasse um tiro, pois a rapaziadatinha-se metido nos copos e estavam todos bêbados. J – A partir daí, verificámos não haver mais condiçõesde segurança para permanecermos em África, pelo que agar-rámos nos miúdos e viemos trazê-los para a metrópole, tendoficado em casa dos meus sogros, em Lisboa, inscritos numcolégio particular, em Campo de Ourique, para acabarem o anolectivo pois estávamos em Abril. Nós regressámos a Luandacom o intuito de despacharmos a pouca tralha que tínhamos everificarmos como as coisas iam evoluir. A – Mas afinal as coisas foram piorando e acabei porpedir a minha demissão da Companhia; o nosso Director Ge-ral pediu para nos reunirmos numa rotunda que dava acesso àfábrica, para avaliarmos a situação e decidirmos se devíamosou não seguir para a fábrica. A situação era de fogo cerrado,com inúmeros cadáveres ao longo da estrada, mas mesmo 102
assim ele decidiu dar-me a ordem para eu me meter no carro eseguir. Perante a situação, respondi-lhe para ir ele, e eu segui--lo-ia. Respondeu-me que eu era o director da refinaria, e queportanto deveria dar o exemplo, pelo que lhe respondi que apartir desse momento estava demissionário, não tinha que lheobedecer, e portanto desse ele o exemplo. É evidente que todosregressaram à cidade, eu pedi uma audiência ao administradore logo ali formalizei o meu pedido de demissão. A partir dessemomento, tratei de arrumar as poucas coisas que mereciam apena trazer, arranjei um estratagema para meter a minhamulher num avião que vinha para Lisboa via Zaire, e fiquei láeu e a nossa cadela, um pastor alemão, por quem me fartei dechorar quando a tive de dar, antes de me vir também embora.Estávamos em Agosto de 1975, e foi assim que o nosso sonhoafricano, tornado um pesadelo, acordou em Lisboa para re-começar novamente do nada. 103
OS MILAGRES E A VERDADE (REFLEXÕES) A totalidade sendo mais que o universo ou mais quetodos os universos possíveis, ela ultrapassa a nossa capacidadede compreensão, sendo mais que o subjectivo e o objectivo,englobando-os. É o uno em oposição ao múltiplo. Isto passa-senão só no pensamento como na realidade, pelo que na tradiçãoocidental cristã se designa por Deus. Isto torna-se numadefinição difícil de entender, e quanto mais longa for a vida deum ser humano, mais longa será a lista das suas questões semresposta. Será que a tarefa de um ser humano é transformar ofuturo ainda não existente no passado já não existente? E qualé a natureza do presente? Será que ele não existe? Afinal,fazemos a experiência de que qualquer agora é sempre jápassado. Mesmo que pensemos o agora com uma rapidezsuficiente, este já se transformou em passado morto. Será quetudo é efémero? Será que a morte tem sempre a últimapalavra? Haverá algo que resista à morte? A consciência dadestruição de qualquer significado pela morte não destrói todoe qualquer significado já no presente? O que restará quando osol explodir e o universo implodir? O que restará do meu si-gnificado quando eu for transformado em terra? Não é possívelcompreender nem decompor o núcleo da nossa vida. Porém, onosso caminho acaba sempre no silêncio, o qual já se encon-trava na profundidade da nossa existência durante a nossavida. Para melhor podermos entender podemos recorrer àreligião que deu conteúdo à nossa cultura. A religião significa uma ligação à totalidade; significaescutar, no silêncio da profundidade da nossa vida, a voz doinsondável, uma voz que toca o coração, mas que, no entanto,não é possível entender muito claramente. Os resultados da ciência e da filosofia levam a que a 104
realidade a que temos acesso só pode ser, necessariamente, umaparte da totalidade, pelo que o pensamento e a investigaçãodos seres humanos são sempre limitados pelos limites da suarazão, que viajam consigo até à sua finitude. O sagrado é omistério do qual o nosso mundo provém em cada segundo.Não é só o início do mundo que é um modo ordinário domistério, mas também cada momento. A ideia cristã da criação a partir do nada é um acto deliberdade divina. No entanto, um físico desenvolve a ideia: Afísica quântica diz que a criação não acontece apenas noinício, mas pelo contrário, toda a evolução do mundoconsiste em actos de criação contínua. Por esta razão, umfísico quântico encara o acto da criação e destruiçãoininterruptos… Os electrões, por exemplo, não surgem donada, mas sim de alguma coisa. Esta “alguma coisa” nãoexprime, contudo, algo material. A potencialidade, portanto,o possível, transforma-se, então, em realidade. “Não existe qualquer motivo forçoso em termos teóricos,quer científicos, quer filosóficos, para rejeitar os elementosmíticos (míticos distingue-se de místicos, pois nesta pers-pectiva, o acesso à totalidade do ser deve compreender-se apartir da construção científico-tecnológica do mundo, enquantoa construção mítica do mundo trabalha com imagens enarrativa de milagres. O mito transmite estas experiências como sagrado, portanto, com o mistério do mundo, numa lin-guagem metafórica),” pois não existe qualquer motivo for-çoso quer em teóricos, quer científico, quer filosófico, pararejeitar os elementos míticos fundamentais da fé cristã,dado que a ciência e a filosofia representam apenas umadada interpretação da realidade, transmitida historicamente,que não pode reivindicar ser a única possível. Para se entender literalmente os resultados bíblicos dosmilagres, não precisa defender-se uma concepção irracional darealidade, pois tal como na ciência também aqui se aplica,como admissível e desejável, a diversidade de teorias ou de 105
interpretações. A teologia tem de saber distinguir quais os milagres quesão descrição de factos e aqueles que podem transmitir outroconteúdo. “A Bíblia vive de imagens e só pode preservar a suafé quem compreender a linguagem destas imagens. O túmulovazio também é uma imagem para uma verdade da fé… Só épossível entender a Ascensão como uma capacidade de ele-vação acima do medo humano, da caducidade e da destruição.Quem vê outra coisa, não ensina fé, mas superstição”. Quem acredita em Deus, não tem medo do caos. A fétorna o ser humano inatacável, porque nem a morte podesepará-lo do amor de Deus. Este é o tema principal doEvangelho de Jesus Cristo que apesar de ter muitos símbolos,os principais da religião cristã são a cruz e a ressurreição:Deus tornou-se ser humano. Jesus Cristo, como filho deDeus, morreu na cruz e, três dias depois, ressuscitou dosmortos. Estas são as afirmações fundamentais da fé cristã. A morte de Jesus na cruz é a mais infame que existiuno mundo romano. A vida neste mundo pode ser tão absurdaque o filho de Deus grita: Meu Deus, porque me aban-donaste? Deus não reage com vingança à crueldade do serhumano, mas com um amor que perdoa. Jesus diz: Perdoa--lhes, Senhor, porque eles não sabem o que fazem. Osímbolo da ressurreição é a resposta ao absurdo da situaçãohumana. Quem inclui o factor Deus no seu cálculo de vida,obtém um resultado positivo. A verdade existirá mesmo? Isto significa duas coisas: eusei que ela existe e eu não sei se existe. Estas duas afirmaçõesnão podem ser válidas ao mesmo tempo e sob o mesmoaspecto. Portanto, a contradição tem de ser inerente à própriaquestão. O filosofo Kierkegaard insistiu em afirmar que averdade é sempre uma verdade pessoal. Cada ser humanoencontra a sua verdade absolutamente pessoal. E para que meserviria se descobrisse uma verdade objectiva, na qual, então, 106
não viveria, mas que apenas exibiria para os outros? A palavrade Jesus vem ao encontro desta concepção moderna daverdade: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Graças à relaçãopessoal com Deus, consegue-se deixar para trás o mar dasquestões e ancorar num porto. Deus existe? Hoje em dia esta questão está arrumada. Olugar das questões metafísicas foi absorvido pelas questões doquotidiano. Se Deus é visto como um “Ser superior” ou umasuper-coisa, é-Lhe, então, o conceito de criador, pois Ele crioutodas as coisas. Se eu substituir a palavra “coisa” pela palavra“objecto”, aproximo-me mais da problemática, porque ocorrespondente ao objecto é o sujeito. Os objectos só existempara nós se existe um sujeito em face deles que os percepciona.Se houver um ruído ele só existe se alguém se apercebe dele.Kant fez desta questão o objecto da sua crítica da razão pura. Aconclusão mais importante que Kant tira daqui é a seguinte: Arealidade não se mostra ao ser humano tal como ela é emsi mesma, mas apenas como lhe aparece graças ao tipoespecífico da sua capacidade de conhecimento. Aquilo queestá na base da aparência, a coisa em si, é totalmentediferente da sua aparência. Se transformarmos Deus numobjecto, portanto numa coisa, já afirmámos com isso que a Suaexistência também é causada por um sujeito, sendo deste modoo sentido do conceito de Deus, invertido. Demonstra-se, assim,que a questão se Deus existe ou não atrai aquele que interrogapara uma pista errada, ou como diz o teólogo Tillich: UmDeus que existe, não existe. No entanto, no passado, estemodelo de um Deus criador que existe como um “super--objecto” foi bem sucedido no anúncio cristão, sendo con-siderado como modelo teísta, sendo o trono do Olimpoocupado por um Deus que reina sobre todo o universo. Podepartir-se do princípio que a maioria das pessoas que sedesignam como ateus, na realidade, são apenas antiteístas. A questão de Deus pode ser colocada em qualquersituação. Quando o ser humano envelhece, o apelo a Deus 107
torna-se mais forte. A fugacidade e a inutilidade da vida nãosó se tornam mais nítidas, como também se mostra que abusca da felicidade e satisfação levou a que o centro da pessoatenha sido procurado fora dela. Isto pode comparar-se comuma viagem de comboio, onde as belas paisagens passamrapidamente, e o que fica, no fim da viagem, é o reconhe-cermos que ficámos vazios, ficando só a recordação. O que me resta, quando procuro o centro em mim? Aexperiência mais importante é que eu existo e que as coisasque existem estão sempre relacionadas comigo. Eu próprio soua única “coisa” que posso perceber a partir do interior. Se bemque não consiga descrever por palavras, quando penso naminha existência, sei o que significa existir, posso duvidar detudo no mundo, mas não de que existo. Também no domínio da ciência nos deparamos comlimites. Se a vida existiu por acaso, esta probabilidade écomparável a ter surgido um automóvel de um monte desucata que passa por nós varrida pelo vento. De acordo com oque podemos entender, a vida surgiu desta improbabilidade, ea nossa capacidade de conhecimento não nos permite dizermais nada. Na filosofia deparamo-nos constantemente com limites,e a muitas perguntas a maior parte das respostas são para-doxais em si, mas não é verdade dizer que tudo é relativo eque o ser humano não tem qualquer acesso à verdade, porquea tese segundo a qual “não existe qualquer verdade”, pretendeser ela própria uma verdade, acabando, assim, na autocon-tradição. Se o “sim” e o “não” se excluíssem mutuamente, emúltima análise, poderiam significar o mesmo, e cada absurdoseria admissível. Seja como for, o ser humano encontra-se numa situação--limite, quando pensa sobre o pensamento, tornando-se umajanela para um domínio do absoluto. No entanto, não podemosesquecer este absoluto, ele é experimentado como a noite donosso conhecimento, como a costa do insondável, na qual 108
encalha o pequeno barco do nosso conhecimento. Deus, como mistério, é o elemento de ligação que uneestas afirmações. Por fim, o mistério de Deus revela-se comoser que eu sou, que não compreendo, mas que receberiacom gratidão. 109
SERÁ POSSÍVEL UMA DEFINIÇÃO PARA DEUS? (REFLEXÕES) Existe um caminho para definir Deus a partir de Deus? Quem quiser conhecer Deus, fracassará, porque Deusnão cabe no pensamento. Mas definir Deus significa algodiferente. Se eu tiver uma jarra, designo-a de acordo com aquiloque ela transmite (cor, dureza, cheiro, etc.) e não com aquiloque ela preserva para si. Visto assim, e partindo da impressãosensorial imediata, posso fazer muitas afirmações sobre a jarra,mas não é possível dizer nada sobre as suas verdadeiraspropriedades, as quais existem, independentemente do facto deeu fazer da jarra o objecto da minha observação (q. d. elapermanece para mim como objecto não reconhecível), querdizer que a coisa em si marca um limite para além do qual seencontra insondável. Então podemos dizer que um sinónimode Deus é o insondável (o insondável ou o mistério domundo). O que se passa com o meu conhecimento definitivosobre a jarra? E o que se passa com aquilo que se encontraalém destes limites? Será este um domínio do ser que estáseparado de Deus? Isto levar-nos-ia à conclusão absoluta deque existem partes da realidade que estão fora de Deus, masfora de Deus não existe nada, Deus é uma outra palavra parao ser, quer dizer, Deus é o ser e fora do ser não há nada. Seexistisse algo que não fosse Deus, teria de ser tão absolutocomo Deus, mas absoluto só pode ser um. Para resolver esteproblema, partindo da definição provisória de Deus como oinsondável (ou o mistério do mundo) temos que continuar aperguntar – O que é a realidade como totalidade? A totalidade da realidade não pode ser sujeito nemobjecto, porque é só na relação de conhecimento humano queela se divide nestes dois pólos. A realidade tem de ser maior 110
do que aquilo que aparece como sujeito e/ou objecto; não hásujeito sem objecto nem objecto sem sujeito, pelo que arealidade tem de ser compreendida como algo que os englobae todas as coisas, tudo aquilo que existe no mundo são re-presentações do “englobante”, sem que este possa ser abarcadonelas. O teísmo sublinha a distinção entre Deus e o mundo.Deus está acima do mundo, preservando-o a partir do exterior.Ele é o criador do mundo, sem entrar nele. A Sua relação como mundo é semelhante à do artista com a obra de arte. Noentanto, o modelo pananteísta parte do princípio que o artistaestá presente na obra de arte, ultrapassando-a, simultane-amente. A distância aparentemente insuperável entre Deus e omundo é superada, o profano torna-as sagrado e vice-versa. Quanto maior for a capacidade da ciência para aplicarpor si mesma os fenómenos do mundo, tanto mais débil setorna o modelo teísta. Também é necessário fixar a ideia dacriação a um determinado modelo da criação do mundo, comoacontece hoje em dia, em alguns casos, ao invocar-se a históriada criação da Bíblia e a teoria científica do big bang. É maisrazoável entender a história da criação como um texto li-túrgico, cujo único objectivo é louvar a Deus. A teoria do bigbang é apenas uma das muitas teorias das ciências da naturezae já se trabalha no sentido de que o mundo existiu desdesempre. O pananteísmo e o modelo da emanação estão relacio-nados, tendo ambos de resolver o problema da miséria, dosofrimento como manifestações de Deus no mundo, pelo queDeus já não é o Deus bom, sendo também origem das coisasnegativas no mundo. O Deus bom também é Deus mau?Para resolver esta questão é necessária a interpretação de Deustrino, com Pai, Filho e Espírito Santo. No Antigo Testamento, por exemplo, Ele pode ser tantoo Senhor da guerra, como pode dizer a uma alma humana: euamo-te. 111
Todas as manifestações do mundo, uma hipótese defundo talvez não reflectida sobre o sentido da vida e sobre ovalor das coisas que são desejáveis. Cada ser humano vive apartir de uma determinada cosmovisão. Esta nunca é umresultado de reflexões racionais. A interpretação cristã daspropriedades do absoluto parte da questão se Deus se interessasequer pelo ser humano. A resposta cristã a esta pergunta é aTrindade de Deus. No caso do conceito de Deus, Deus só éDeus para a criação e em relação a esta. Deus não é Deus paraSi próprio. No Antigo Testamento, Deus revela-se semprecomo Deus daqueles aos quais se dá a conhecer. Ele nuncadiz: Eu sou o meu Deus, mas sempre: Eu sou o vosso Deus.Sem nós e fora da nossa relação com Ele, Deus não seriaDeus. Deus é o Pai de todo o ser (quem considera o símbolode Pai como demasiado patriarcal, pode, evidentemente, de-signar Deus como Mãe) do qual recebemos as nossas vidas emtodas as suas dimensões. Ele é Filho na pessoa de Jesus Cristo.Deus também é Espírito Santo, não significando isto comoaquele fantasma que é invocado pelo professor: Quem sujou oquadro? Talvez o Espírito Santo? O Espírito Santo deve compreender-se como o estado doespírito humano quando ele encontra o sagrado. 112
REGRESSO À METRÓPOLE (DIÁLOGOS) José – Então, António, já viste que ainda nem levan-támos voo e tu já estás a dormir. António – É o relaxe de me ver a salvo, de ter a minhafamília em segurança, e saber que daqui a pouco mais de seishoras, estarei também a salvo. Vou fazer um esforço, José, parame manter acordado e assim dizer adeus a Angola, que apesarde tudo, nos marcou com momentos de muito bem estar, nosdeixou a nostalgia daquelas tardes e noites tropicais, um bemestar difícil de explicar, e mais difícil ainda, se virmos que láestivemos tão pouco tempo, mas que é real. A mística da fé,talvez se possa explicar através da vivência continuada destesestados de espírito, desta letargia que nos conduz a um estadode consciência, do qual não queremos regressar à realidade. Naverdade, a realidade não é assim, e leva-nos a ver a outra faceda mesma moeda, e obriga-nos a optar por uma delas. J – A realidade angolana obrigou-nos a arrumar ostrapos, a guardar os tarecos, a deixar por lá a maioria dos bensmateriais, a fugir para os braços dos que nos são maisqueridos, que são afinal os nossos, trazendo connosco asrecordações boas e más que são, afinal de contas, aquelas quenos ajudam a sermos como somos. Vou dizer-te uma coisa coma qual não estarás possivelmente de acordo, pois nestes mo-mentos de felicidade, pretendemos recriar Deus, pena é quesejam tão curtos. A – Não estou completamente em desacordo, mas detodo esse discurso, falta saber o que é Deus, se é que Este temdefinição. Se Deus é tudo o que de bom nos sucede, então,poderei vir a estar de acordo, mas se Deus também é o tudoque de mal nos sucede, então poderei perguntar, se é assim,será que Deus tem uma definição, ou será que nós queremosque ele seja? Esta passagem por África marcou-nos indis- 113
cutivelmente, razão pela qual agora nos leva a recordar aquiloque há tão pouco tempo era presente e agora não passa de umpassado, que pretendemos abandonar o mais rapidamentepossível, mas este abandono é só e só será físico, pois averdadeira memória faz dele o presente, e desta não mais noslivraremos, servindo como exemplo o presente caso, pois aindaem solo africano, com o Boeing a roncar fazendo-se à pista,para levantar voo, o nosso espírito passeia-se pelas ruas deLuanda, agora uma cidade triste e amargurada descartada donosso presente futuro. Adeus África! J – Já estamos a chegar a Lisboa, adormecemos, o quenos tornou a viagem mais rápida, o tempo é uma quartacoordenada importante nas nossas vidas, que de tal forma nosinfluencia, que mesmo parados num determinado lugar, nosestá constantemente a alterar o nosso posicionamento, poislembremo-nos que a Terra gira e nós giramos com ela, e nestepermanente posicionamento, como o sai daí, o tempo vaipassando e nós vamos registando, quer estejamos presentescomo ausentes, o que pelo mundo se vai passando e o que sepassa mais próximo de nós. Em Portugal, depois do 25 deAbril de 74, muita coisa se passou, o País que deixámos hácerca de dois anos e meio já não era o mesmo, o tempo traz eleva as coisas, quer estejamos presentes ou ausentes, como foio caso. O desejo de retornarmos para junto dos nossos superatudo o resto, as saudades que tínhamos dos nossos meninosfez-nos ver o nosso País tão bonito, o que na realidade não eraverdade, como fomos tomando consciência conforme o tempoia passando. Encontrámos um Portugal sem saber o quequeria. 114
Este livro inacabado, quem sabe porvirtude de Deus, que quis que meu paimorresse a 11 de Maio de 2003, vítima daagressividade do Linfoma não-Hodgking,perpetuará para sempre e, principalmente,para seu neto Tomás, que nunca conheceu eque tanto o desejou...
ÍndicePrefácio 11“O QUE É O HOMEM?” 13A CONCEPÇÃO (DIÁLOGO) 16A REALIDADE DA VIDA (REFLEXÕES) 19A EVOLUÇÃO (DIÁLOGO) 22DEUS, A REALIDADE E A MORTE (REFLEXÕES) 26O CRESCIMENTO E O ENTENDIMENTO (DIÁLOGO) 40A ESTRUTURA DINÂMICA DA REALIDADEO DINAMICISMO DE ZUBIRI 46O “SER” (REFLEXÕES) 50A RELIGIÃO E O “EU” (REFLEXÕES) 54COSMOS, DINAMISMO 62ATÉ AO CASAMENTO (DIÁLOGO) 65A TEOLOGIA DA HOMINIZAÇÃO DE KARL RAHNER 69 71 A criação da alma 72 A Bíblia e a ciência 73 Cosmos 74DE QUE É FEITO O UNIVERSO? 76OS VALORES. OS VALORES HUMANOS (REFLEXÕES) 80OS VÁRIOS ESTÁDIOS DE DEUS 83O PRIMEIRO ESTÁDIO DE DEUS 85O SEGUNDO ESTÁDIO DE DEUS 87O TERCEIRO ESTÁDIO DE DEUS 89O QUARTO ESTÁDIO DE DEUS 91O QUINTO ESTÁDIO DE DEUS 93O SEXTO ESTÁDIO DE DEUS 95O SÉTIMO ESTÁDIO DE DEUS 97E AGORA VAMOS AO TRABALHO (DIÁLOGO) 104OS MILAGRES E A VERDADE (REFLEXÕES) 110SERÁ POSSÍVEL UMA DEFINIÇÃO PARA DEUS? (REFLEXÕES) 113REGRESSO À METRÓPOLE (DIÁLOGOS)
ISBN 972-8670-60-5 2006
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