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O Último Adeus

Published by D'Almeida ©, 2017-07-01 06:03:51

Description: Editor: Edição de Autor * Autor: António José Veiga Henriques © * Capa: Raquel Henriques © Tipografia de capa: D'Almeida Ateliê * Paginação, arte final, impressão e acabamento: D'Almeida Ateliê

Keywords: autores portugueses,livros ciência,edição de autor,artistas plásticos,antónio henriques,d'almeida studio

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·2. O dinamismo da alteração.·3. O dinamismo da mesmidade.·4. O dinamismo da autopertença.·5. O dinamismo da convivência. 49

O “SER” (REFLEXÕES) A questão de saber o que significa “o ser” é uma dasquestões mais importantes sob o ponto de vista filosófico, ele ésempre algo que é ou não é. Sempre que temos oportunidadede reflectir, pode invadir-nos a questão: porque existe o ser enão o não ser? O que significa a palavra é? Porém, para po-dermos colocar questões sobre alguma coisa, temos de já aconhecer ou possuir parcialmente. O ser humano pode colocarquestões relativas ao ser porque participa nele, estando so-mente limitado pelo tempo e pela morte. Expresso nas palavrasde Paul Tillich, ser humano significa colocar questões relativasao próprio ser e viver sob a impressão da resposta que é dada a estaquestão. O ser é algo com que nos relacionamos em cadamomento e que o compreendemos em cada acção, sem ter de odefinir. No entanto, o ser só pode ser interpretado e com-preendido do ponto de vista da existência vivida no tempo. Naexperiência do medo de que o ser escape, revela-se o nada,surge a ameaça do vazio absoluto. O ser e o nada são expe-riências fundamentais da existência humana no tempo. O teólogo Paul Tillich escreve: O ser de Deus não podeser compreendido como a existência de um existente ao lado ouacima de outros existentes. Se Deus fosse um existente, estariasubmetido às categorias da finidade, sobretudo ao espaço e ao tempo.Por esta razão, em rigor, também não se pode dizer: “Deus existe”,porque, assim, Deus seria transformado numa coisa ao lado deoutras coisas. Ele é aquilo que torna as coisas possíveis, isto é, o serdas coisas. Por conseguinte, tanto a afirmação da existência deDeus como a sua negação são ateísmo. Deus é o próprio ser,não um existente. Sendo assim, como não existe nenhumobjecto sem sujeito, nem nenhum sujeito sem objecto, Deusassume-se como aquilo que engloba o “englobante”. O en-globante permanece incompreensível para a minha consciência,pelo que o mundo dos objectos e sujeitos é a capa com a qual 50

o divino se encobre. Deus permanece o Deus oculto. Não épossível conhecê-lo como objecto no nosso mundo, mas existeum conhecimento acerca de Ele. À luz do pensamento cristão,o ser e o englobante são idênticos, eles estão unidos no últimouno, do qual e no qual tudo existe. A alma também encontra apaz no uno que engloba tudo, portanto, também a morte doser humano pelo que a existência depois da morte tem aqui oseu lugar lógico. No entanto o pensamento cristão rejeita aideia da imortalidade da alma. Primeiro, esta ideia não ébíblica, segundo, o dualismo entre corpo e alma não é de-fensável e, terceiro, as provas apresentadas não são suficientes.Isto porque, primeiro, a Bíblia fala da ressurreição do serhumano como um todo, segundo, a continuação da vida deuma alma sem cérebro e sem percepção sensorial é impensávele, terceiro, as provas foram refutadas com suficiente frequênciaao longo da história da filosofia. O que ensina, então, a religião cristã? Visto a partir da perspectiva quotidiana do mundo, amorte é um fim absoluto. Qualquer razão fracassa ao serconfrontada com ela. Na morte abre-se um abismo para aexistência humana. Aquilo que resta é a biomassa que algunstambém designam por lixo biológico. Para Ernst Block para que serve o esforço da nossaexistência se perecemos completamente, vamos para a cova e, no fim,tal esforço não serve para nada? Para Adorno, a ideia do nada absoluto põe igualmenteem questão o pensamento da filosofia: Se a morte fosse oabsoluto que a filosofia invocou em vão, tudo seria nada, e qualquerideia seria pensada no vazio e ninguém poderia pensar a verdade,porque o facto de a verdade durar constitui um momento da própriaverdade, incluindo o seu núcleo temporal; sem durabilidade, nãoexistiria qualquer verdade, a morte absoluta engoliria o seu últimovestígio. Assim, se não resta nada, a ideia da verdade tambémdesaparece no absurdo; a vida do ser humano paira de modomisterioso, sobre o abismo do absurdo. É necessário abandonar 51

a esperança de encontrar algum sentido na morte, A MORTEÉ TÃO ABSURDA COMO A VIDA. A angústia da morte é a angústia perante o nada. No entanto, o cristão confia na força transformadora doser. O cristão tem esperança de que a força do ser seja maiordo que a força do nada. Ele tem esperança de que a força queo sustenta no ser em cada momento da vida, não o abandoneno momento da morte. A fé é a suposição teórica de algo que é duvidoso do ponto devista do conhecimento, mas é a resposta existencial afirmativa a algoque transcende toda a experiência objectiva. A fé não é umaopinião, mas sim um estado. A fé é o estado do ser arrebatado pelopoder do próprio ser, que transcende tudo e no qual tudo participa.Quem é arrebatado por este poder pode aceitar-se a si próprio porquesabe que é aceite. Dado que o cristão procura uma relação pessoal comDeus, tem esperança de que Ele seja fiel para além da morte.A vida eterna não deve ser entendida como uma vida semlimitação temporal. A vida eterna é antes um conceito sim-bólico para um modo de ser que, dentro do “englobante”,participa no “englobante”. A morte complementa a vida, talcomo o último som completa uma canção. A vida conquista namorte a sua unidade, torna-se uma totalidade e remete para atotalidade a que chamamos Deus. Só é possível interpretarcorrectamente o que foi dito recorrendo à teologia. A filosofiaprocura explicar as estruturas do mundo e da existênciahumana. A teologia dá-lhes sentido e objectivo, iluminando aorigem da qual surge todo o ser, através de imagens e símbolosreligiosos. É frequente acusar o discurso religioso de se apoiarem desejos humanos; naturalmente, seria bonito que amorte não tivesse a última palavra; mas os desejos econceitos são formas de ilusões produzidas pelo ser hu-mano; não se pode confiar neles; talvez sejamos apenascorpos estranhos carregados de ilusões num universo banal. 52

Por isso, a religião não pode fugir à responsabilidade intelec-tual da fé na eternidade. A Bíblia associa a interpretação da morte à ressurreiçãode Jesus de Nazaré. A “boa nova” da ressurreição da pessoa deJesus Cristo não significa que Cristo ressuscitou, mas antesque o ser humano Jesus, na sua totalidade, na unidade do seucorpo, espírito e alma, ressuscitou dos mortos pela acção deDeus. E esta acção de Deus é o suporte da esperança que oscristãos possuem de que a morte não tem a última palavra.Como se deve entender isto? 53

A RELIGIÃO E O “EU” (REFLEXÕES) Na capacidade de explicação de uma religião não têmnecessariamente de ser apresentados argumentos filosóficos oucientíficos. A sua verdade deve abranger o domínio sobre oqual não podemos saber nada. A sua resposta não é umaespécie de cosmovisão, mas uma resposta em símbolos. Talcomo na física quântica, onde, através de números e de fór-mulas, tornamos “compreensíveis” processos incompreensíveis,assim também na religião, recorrendo a imagens e símbolos,interpretamos dimensões do nosso mundo que ultrapassam anossa capacidade de conhecimento. No símbolo de Adão eEva, o ser humano pelo facto de se ter desenvolvido, na suaevolução, abandonou o estado de inocência, quando o seucérebro se desenvolveu para além do nível do animal. Mascom isso, começou também o drama da existência humana:medo, dúvidas, culpa e o conhecimento da caducidade. Naidade moderna, a religião está confrontada com a tarefa detornar os seus símbolos acessíveis aos contemporâneos mo-dernos, orientados para a ciência. Na sociedade moderna, estamos confrontados com umnúmero crescente de pessoas que vivem ao lado da religião; asquestões que resultam da finitude do ser humano são excluídasconscientemente. Visto que a morte é a maior catástrofe, ela érecalcada. O filósofo Nagel representa este pensamento mo-derno: De que me serve reconhecer que a importância da minhavida excede aquilo que conhecemos ao longo de alguns anos? Paranada. Portanto, isso não me interessa. A nossa vida não temimportância, e nós fazemos bem em enfrentar, a partir de agora, anossa vida absurda com ironia. Pôncio Pilatos mandou crucificar Jesus por o considerarum agitador político. Os discípulos de Jesus que o acom-panharam até Jerusalém abandonaram-no antes ou no mo-mento da sua prisão. Depois da crucificação, o cadáver foi 54

tirado da cruz e sepultado num túmulo, mas não se sabe bemquem realizou o funeral. Duas mulheres descobriram que otúmulo estava vazio. O Cristo ressuscitado dos mortos apa-receu ao discípulo Pedro, mais tarde, apareceu aos outrosdiscípulos e, além disso, a 500 irmãos. Antes de Jesus ter morrido, percorreu a Palestina du-rante anos e fez-se notar como Mestre espiritual e comoalguém que realizava curas. Jesus aplicou outros critérios aomundo. O seu padrão era o amor, Ele demonstrou o seu podertransformador. Para Ele o amor era todo o fundamento detodo o ser, por isso falou de Deus como um pai que ama. Aexistência num mundo duvidoso foi superada. Por isso aspessoas chamaram-lhe Messias, o Cristo, o enviado de Deus.Por esta razão, tanto maior foi a catástrofe para eles, quandoEle foi executado juntamente com grandes criminosos. Para seacreditar na ressurreição de Jesus tem que se querer que oamor a Deus e aos seres humanos possa mudar completamenteo cerne de uma vida humana. Porém, a mensagem do acon-tecimento pascal contém a experiência de que a vida é umesforço. O “princípio de Adão” significa ser humano como parteda evolução natural, portanto, mortalidade. O “princípioCristo” significa a superação da morte através da ressurreiçãodos mortos como acto divino, portanto, eternidade. Trata-se daaplicação da primeira lei termodinâmica da física à existênciaindividual do ser humano: nada e ninguém se perde. O túmulo estava ocupado ou vazio? Ele ressuscitou defacto? Se se aceitar esta maneira de colocar a questão, então, oproblema agrava-se devido ao facto desconcertante de osrelatos da ressurreição fornecidos pelos Evangelhos não seremidênticos. Basta ler os Evangelhos segundo São Mateus, SãoMarcos e São João. Tudo isto se complica ainda mais devido ao facto de, naAntiguidade, terem existido nada mais nada menos do queuma dúzia de divindades da natureza, heróis, filósofos e im- 55

peradores, que sofreram, morreram e ressuscitaram ao terceirodia, antes de Jesus (por exemplo, Isíris, Herálclito, Pitágoras,Alexandre o Grande, etc.). Não há testemunhas oculares daressurreição. Aquilo que é relatado são sempre apenas asconsequências, mas alguma coisa teria acontecido para que osimbolismo da ressurreição tivesse sido associado a Jesus. Estaexperiência pascal constitui o conteúdo central da mensagemcristã. A questão se o túmulo estava vazio ou não, é insi-gnificante para tal. No fundo, um túmulo vazio diz apenas: ocadáver não está aqui. É necessário acrescentar expressamenteaquilo que não é evidente: ele ressuscitou. Para se compreender melhor o acontecimento da Páscoa,temos de relacionar com a física que é a ciência fundamentalde todos os fenómenos no espaço e no tempo. Se entendermosa ressurreição como um fenómeno concreto dentro do espaço edo tempo, a opinião habitual que se trata de um milagre, quesó pode ser visto com os olhos da fé é hoje, para muita gente,insatisfatória, pois faz lembrar as placas ao longo do lago LochNess: Basta acreditares firmemente nisso e verás mesmo o Nessie. Em termos da ciência da natureza, a religião tem deprovar alguma coisa na linguagem destes conceitos. Naantiguidade, a física de Aristóteles teve a tarefa de salientar averdade da fé em Deus. Na idade moderna, a ciência e areligião seguiram cada uma o seu caminho. No entanto, paraque seja possível formular leis a partir das observaçõescientíficas, é necessário simplificar e criar modelos que cons-tituam uma abstracção da complexidade da realidade, sãoaproximações à verdade do fenómeno, sem chegar muitas vezesa compreendê-lo completamente, mas essa verdade constitui oobjectivo de muitas investigações científicas. Esta verdade,independente do cientista e que este tem de encontrar, cons-titui o objectivo de todas as investigações científicas. Porém, ofísico não é o criador do mundo, mas sim aquele que descobrea verdade física que lhe é imanente. Esta verdade tem umapropriedade particular: está acima do espaço-tempo concreto, é 56

intemporal. A lei da gravidade, por exemplo, vale sempre, esob uma forma adaptada, em qualquer lugar do universo. Afórmula desta lei entrou na categoria de uma verdade in-temporal. A componente religiosa das nossas reflexões apresenta-seda seguinte forma: por motivos relacionados com a teoria doconhecimento, temos de entender o universo como um objectoque está perante nós quando reflectimos sobre ele, mas quetambém nos contém como uma quantidade parcial na suagrande, embora limitada, dimensão. Porém, o universo não é atotalidade, porque a totalidade é aquilo que engloba sujeito eobjecto, portanto, também o universo, e da qual os objectosrepresentam apenas uma manifestação. Chamamos Deus a este“englobante”. Por outras palavras: as operações lógicas quenós, como uma parte da totalidade, não podemos realizar, “apartir de baixo”, por motivos relacionados com a teoria doconhecimento finitística, podem ser realizadas pela totalidadeou por Deus “a partir de cima”, porque Deus não está sujeitoa qualquer limitação. O que acontece quando um ser humano morre? A suafórmula do eu completa-se. A sua vida é preservada nestafórmula. Porém, esta situação ideal só é possível se a fórmulado eu for vista a partir da totalidade, portanto, a partir deDeus. No fim, diz a mensagem da religião cristã, o amor deDeus secará todas as lágrimas e oferecerá ao ser humano umaexistência em identidade com o divino, no qual todos serãoum só. Esta será tão insondável como tudo no mundo: onosso nascimento, a nossa vida, a nossa razão, o nossoamor, a nossa morte. Voltemos à fórmula do eu e à resposta à questão seexiste para o ser humano uma vida depois da morte. Caso seentenda por isso uma existência biológica num tempodiferente – a palavra “depois” sugere esta ideia – a respostatem que ser negativa. Mas caso se entenda por isso que a 57

realidade da vida concreta de um ser humano é preservada nadimensão da intemporalidade, sob a forma de uma verdadeque é possível formalizar e formular, na sua fórmula do eu,nesse caso, a resposta a esta questão pode ser afirmativa, noentanto só pode ser “lida” a partir da transcendência. Este resultado corresponde à mensagem da religiãocristã (expressa nos símbolos) e que tentámos descrever numareflexão filosófica. Para os cristãos, Deus lê a fórmula do eu eeleva-a à eternidade. O cristão tem a esperança de que o amorde Deus elimine os défices adquiridos durante a vida. Em 1997, é conhecido o primeiro mamífero clonado, aovelha Dolly, parecendo estar aberto o caminho para areprodução de duplos incluindo os seres humanos, que jámorreram, pelo que a realidade parece contradizer a religião.Sendo assim, o que nos impede de entender o espírito, a almae a autoconsciência do ser humano como uma obra da evo-lução? Se entendermos esta obra na qual o insondável seapresenta na dimensão do espaço e do tempo, então aafirmação de que o espírito, a alma e a razão são produtos daevolução, não representa qualquer problema para o cristão.Porém, se essa evolução for entendida em termos materialistas,o acesso ao domínio das verdades perenes rebenta o quadroevolucionário. O filósofo Kant considera que a autoconsciência e asoperações espirituais do ser humano são dependentes da es-trutura e organização do cérebro deste. Isto contradiz a ideiada independência do espírito. O qual, vindo do Além, utiliza océrebro como uma ave que se instala num ninho para chocarqualquer coisa. Mas, se segundo Kant, é dependente docérebro, sendo talvez um produto seu, nesse caso, depois damorte, não pode continuar a existir sem ele. Hoje em dia, a investigação do cérebro constitui umramo da biologia moderna, o qual altera a autocompreensão doser humano. A humanidade tem de se preparar para compre- 58

ender a autocompreensão, visto que, depois de Copérnico terabandonado o centro do universo, e de ter sido inserida noprocesso da natureza, graças a Darwin, os neurobiológicosatacam o seu último bastião. A alma do ser humano é um pro-cesso bioquímico e nada mais. Temos de abandonar a ideia de sermos alguém? Somosapenas resultado da química que se processa na nossa cabeça?A percepção de ser alguém é apenas um truque biológico daprogramação da evolução do nosso cérebro e, portanto, somosum ninguém? Estas questões poderão pôr em causa tudo emque nos apoiámos durante milhares de anos. A neurobiologia éuma agressão à essência do ser humano? Quando, então, determinados neurónios “disparam” nocérebro, surge aquilo que chamamos o eu, portanto a cons-ciência de ser alguém. Produzimos, assim, decisões da vontade,sentimentos, ideias e a consciência do presente, portanto acapacidade de resumir num “agora” acontecimentos ocorridosno espaço de segundos. Porém, onde ficaria a responsabilidadedos meus actos? O criminoso em tribunal poderia argumentar:“Estou inocente, os meus neurónios produziram a vontade dematar”. Como se transformam processos físicos e químicos nocérebro, em conteúdos da minha consciência, nos quais eu mereconheço? Como se pode transformar algo impessoal em algopessoal? Como se transformam processos físicos objectivosnuma experiência subjectiva? Tudo isto se relaciona com a questão: O espírito é ape-nas um produto do cérebro ou possui uma qualidade adici-onal? Num simpósio realizado em 1854, um fisiológico decla-rou “como a urina é uma secreção dos rins, assim também asideias não são mais do que secreções do cérebro”. A ideia de um acontecimento espiritual não passar deum processo físico é defendida hoje por muitos investiga-dores americanos dos processos cerebrais. Esta ideia de- 59

signa-se por teoria da identidade. O espírito não possui aquiqualquer realidade própria, sendo apenas o reflexo de umprocesso neural. Sendo assim, aquilo que é primário são osprocessos químicos e físicos nos neurónios; eles decidem o quefaço, o que penso, quem sou. A minha vida psíquica e es-piritual é apenas secundária. É difícil defender a afirmação de que seria possívelreduzir o espírito humano e o eu à química e física, tal comopretende a teoria da identidade. O ser humano tem certezassem prova, a ciência tem provas sem certezas. O prémio Nobel Eccles defende precisamente a teseoposta. Para ele, o espírito é uma substância independente docérebro e proveniente directamente de Deus. Expresso emtermos teológicos: cada alma é uma criação divina. ParaEccles, o cérebro é a condição necessária, mas não suficiente,da consciência. Para ele a relação entre espírito e o cérebropoderia ser imaginada à semelhança da relação entre o pianistae o piano. Embora o pianista precise do piano para tocar, podesubsistir sem ele. Em sentido figurado, é possível compararesta situação com a imortalidade da alma. Esta versão doproblema do cérebro é designada como dualismo. A objecçãoessencial contra o dualismo foi sempre a de saber como é queo espírito entendido como imaterial actuaria sobre a matériado cérebro. Se o espírito quiser actuar sobre a matéria docérebro a partir do exterior, tem de desrespeitar a lei dapreservação da energia num sistema físico, sendo incompatívelcom as leis da ciência da natureza, visto que a energia douniverso tem de permanecer sempre constante. Através de cálculos exaustivos, foram elaborados mo-delos de teoria quântica que pretendem explicar como épossível compreender a influência do espírito, entendido comoalgo imaterial, sobre a matéria do cérebro, sem perturbação doestado energético deste. Esta posição é marginal no quadro daneurobiologia, o que não põe em causa o facto de poder serverdadeira. 60

Resumindo: O espírito, a consciência e o eu do ser humano podemser descritos como função do cérebro. O espírito, a consciência e o eu devem-se às proprie-dades materiais do cérebro, mas constituem um nível superioremergente em relação à natureza física do cérebro que assuporta. Por princípio, a actividade do cérebro pode ser descritacom exactidão e conservada numa fórmula. Que para tal sejanecessário exceder a capacidade humana do conhecimento e oseu limite finista revela apenas que a alma do ser humanotranscende o seu pensamento. Deste modo, a unidade do corpo, espírito e alma podeser preservada na fórmula do eu de um ser humano. Dado que o espírito, a alma e a fórmula do eu excedemo horizonte humano, a morte significa uma passagem de umnível incompreensível do ser para um outro nível igualmenteincompreensível. Não é necessário insistir na velha ideia de um espírito-alma, directamente proveniente da mão de Deus, para tornarcompreensível a mensagem da religião cristã sobre a ressur-reição dos mortos. De qualquer modo, a verdade de Deus estápara além de toda a capacidade humana do conhecimento. A física de hoje não é materialista, chegando ao pontode afirmar: o espiritual é fundamental para mim; vou mesmo aoponto de afirmar que não existe matéria, mas apenas espírito. 61

COSMOS, DINAMISMO Para Zubiri, a realidade do cosmos consiste radical-mente em ser “dinamismo”, como para o homem – a sua vida– é a realidade radical, o termo no qual, em última análise, seencontram enraizadas todas as suas certezas, dúvidas, crenças edecisões. Afinal em que consiste a realidade do universo? Preva-lecem hoje duas linhas de resposta: o monismo materialista eo dualismo antropológico, um e outro diversificados em di-ferentes modos de entendê-los e exprimi-los. O teórico domonismo materialista pensa que na realidade do universo,incluindo nela o homem, independentemente do universo tersido ou não criado por um Deus espiritual e omnipotente, nãohá nada essencialmente diferente à sua condição material; emsuma, nada que seja “alma” ou “espírito”, só há matéria re-sultante dessa criação. É óbvio que tal afirmação tem carácterde convicção e de modo algum carácter de evidência. Conseguem fazê-lo as teses do dualismo antromomór-fico? De modo algum, ante a forma tópica de empregar ostermos “alma” e “espírito” essencialmente constitutivos darealidade dual do homem, contrapostos a “corpo” e “matéria”e complementar dele. Para nomear a subestrutura psíquica darealidade dual do homem, Zubiri prefere o termo metafisica-mente neutro de “psique”. Por outro lado, como se pode entender como o serhumano individual pode perdurar desde a morte biológica atéà ressurreição da carne? Já noutra ordem de coisas, se o pen-sador cristão se sente obrigado a acreditar com o “Génesis”,que o homem foi criado por Deus à sua imagem e semelhança,terá necessariamente de admitir que Deus infunde misteriosa esobrenaturalmente numa alma espiritual recém criada no ge-noma de cada um dos mutantes australopitecinos nos quais o“Homo Habilis” teve a sua origem, e depois na célula resul- 62

tante da fusão de um óvulo e de um espermatozóide humano. CONCLUSÃO – nem o monismo materialista, nem odualismo antropológico, outorgam à inteligência actual umabase científica e filosófica satisfatória para entender, de modorazoável, a iniludível realidade de criatura cósmica que o serhumano possui. Talvez não seja inoportuna a comparação entre os doismodos de conceber e definir a realidade de Deus. Antes de tersurgido a necessidade de entender teologicamente essa rea-lidade, São João escreveu “Deus é amor”. Mais tarde, talvezsem se aperceberem da questão metafísica dessa definição doquarto evangelista, os teólogos começaram a dizer que Deus éo Ser Supremo e a defini-lo escolarmente como ser espiritualinfinitamente bom, sábio e poderoso. O contraste entre estasduas formulações pode ser mais evidente. Zubiri escreve que o psiquismo é um produto do Todo,afirmação que levanta objecções. De qualquer modo, seja qualfor a solução que se dê a estas objecções, será sempre verdadeque esse Todo é que produz o psiquismo humano. Quemlevanta essas objecções são os teólogos tradicionais para osquais uma cosmologia, ainda que explicitamente intramun-dana, não é cristãmente legítima sem uma referência tambémexplícita ao Criador desse Todo. No texto de “Estrutura dinâmica de la realidad”, deZubiri, o termo “inter-relacionalidade” pode ser reduzido àsseguintes teses: 1.ª – A inter-relacionalidade no Todo do universo afectatanto um cristal de sal comum como um ser vivo, como afectaas discerníveis nas dos corpos que compõem esse Todo: umastro, uma galáxia ou a chamada “matéria escura”. 2.ª – A relação mútua dos entes do universo faz comque este seja cosmos, em consequência, só um homem vive aomesmo tempo num cosmos e num mundo. Enquanto rea-lidade, toda a realidade é em si mesma inter-relacionada comtodas as outras. 63

3.ª – O conjunto “em inter-relacionalidade” de todas ascoisas reais é o que constitui a unidade do universo – naturanaturans – produtor de realidades “naturatas”. 4.ª – O dinamismo tem a sua formalidade essencial nainter-relacionalidade ao mesmo tempo interna e externa a queelas, as substantividades cósmicas, estão essencialmente su-jeitas. 5.ª – A actividade das substantividades cósmicas é “darde si”, existir comunicando é “estar dirigido para” sendo esta aexpressão primária dessa essencial e universal inter-relaciona-lidade do real-cósmico. 6.ª – O que fica dito indica com toda a clareza que ainter-relacionalidade tem modos e graus, em todos os casos,porém, simples ou complexa, ela é accional e activa por simesma, não dependendo de algo externo a si mesma. 64

ATÉ AO CASAMENTO (DIÁLOGO) António – Olá, José, ainda bem que te encontro, precisode falar contigo. José – Mas António, não precisas de me encontrar parafalares comigo, pois eu ando sempre contigo. A – Tens razão, é uma maneira de dizer. Como sabes,quando acabei o curso, consegui uma bolsa de estudo dadapelo Ministério do Ultramar, nome que se dava na altura aoMinistério que tinha a responsabilidade do Ultramar. Estagieina refinaria de petróleo da Petrangol e na fábrica de cervejasCuca, e comparando ambos os estágios, pensei cá com os meusbotões, que não gostaria nada de trabalhar numa refinaria, poisé uma fábrica muito barulhenta, poluente, de muita responsa-bilidade pela natureza de produtos, todos eles combustíveis,com muito pessoal distribuído pelos departamentos de pro-dução, manutenção, engenharia, gestão de materiais e de stocks,utilidades, laboratórios, etc.. Mal sabia eu que ia passar toda aminha vida profissional em fábricas de petróleos. J – Esses estágios foram feitos em Angola, mais pre-cisamente em Luanda, e foi a primeira vez que andámos deavião. Lembro-me de ver a tua preocupação com a ida para tãolonge, deixando os nossos pais, a tua namorada, e os nossosamigos. A – É verdade, fui muito preocupado, mas era umapossibilidade de conseguir um estagio remunerado, não so-brecarregando mais o nosso Pai com despesas. Pagaram-nos asviagens, para cá viemos de barco em primeira classe, a estadiae todas as despesas, e ainda deu para trazer algum. Lembras-te, José, conversámos muito, sobretudo sobre o nosso futuro,se devíamos começar a trabalhar por lá, ou regressar a Por-tugal. J – Se me lembro, mas acabou por ser gratificante poisrecebias quase diariamente uma carta da tua namorada, e a teu 65

pedido te aconselhei a regressarmos, o que sucedeu quase nasvésperas dos anos da tua namorada e passados cerca de quatromeses, o nosso Pai morria no hospital com um cancro nopulmão. Foi em Agosto, foi o primeiro mês de trabalho naSacor, uma refinaria de petróleos que tu tanto desejavas nãotrabalhar, e foi o mês em que o nosso Pai morreu. Às vezesparece que é a mão de Deus que nos guia. A – Era bom que assim fosse, mas em certas alturas danossa vida parece que Ele ou está a dormir ou se esqueceu denós. É verdade que tive uma vida familiar feliz, uma vidaprofissional repleta de sucessos, mas tudo isso resultado deuma maneira responsável de encarar a vida, suportando osmomentos difíceis, regozijando-me com os momentos alegres,sobretudo assumindo sempre o estar presente com bastanterealismo. J – Pois é verdade que a vida é feita desses momentos,mas a vida não é feita daquilo que queremos, parece haveruma mão invisível que nos guia. Quantas lágrimas temos agoravertido, e eu receio que me faças alguma pergunta que eu nãosaiba responder. A – Está descansado, meu querido irmão, minha cons-ciência presente. Eu não tenho que pensar se merecia umavelhice melhor, se é que chego a saber o que é “velhice”. Nãoatribuo o meu padecimento actual a nenhuma entidade divina,mas sim ao destino, ao produto que somos da natureza e comotal nascemos para morrer, pelo que há que encarar a nossasorte com resignação. Mas vamos recordar coisas mais alegres. J – Estávamos a recordar o nosso regresso a Portugal.Chegámos em Abril e em Agosto estávamos empregados, emDezembro casavas, Deus assim o quis. A – Qual Deus qual carapuça, também não digo quetudo foi fruto do acaso, ou do que quer que seja, mas oemprego, na melhor Companhia, na altura, foi devido aoempenhamento do meu pai e do meu padrinho, e o casamentofoi decisão minha e da minha mulher. É a vida. 66

J – Agora só precisamos que Deus nos ajude. A – Que assim seja, mas Ele deve estar preocupado comoutras coisas. O casamento foi no dia dos meus anos, a datafoi por decisão mútua, mas foi bom para mim pois assimnunca a esqueço. J – Lembro-me que foste passar a lua de mel ao Porto,que não tiveste boda, o teu pai e a avó da tua mulher tinhammorrido há muito pouco tempo. A – E nem por isso deixámos de ser felizes; é verdadeque, como todos os casais, tivemos momentos difíceis, mas issofaz parte da vida, tanto mais que somos dois temperamentos edois carácteres completamente diferentes, eu, por natureza,tento resolver os problemas pelo lado da razão e ela pelo ladoda emoção. Eu tenho tendência a esquecer o que de mau meacontece, enquanto ela, apesar de ser uma pessoa muito maisextrovertida do que eu, dificilmente esquece aquilo que demau lhe acontece. J – Tu sempre foste uma pessoa muito calada, muitasvezes foste mal compreendido, e sem razão, mas a verdade épara se dizer, se bem que cada um é mau julgador em causaprópria, e eu faço parte de ti. A – É verdade, José, cada um é como é, nem sempre osnossos olhos vêem o mundo tal e qual ele é, quanto mais osolhos de duas pessoas tão diferentes, mas tu bem sabes que eusempre quis ser feliz fazendo os que me são mais queridosfelizes, mas muitas vezes isso era e é mal compreendido. J – Voltemos ao teu casamento e ao nascimento doprimeiro filho, por sinal uma menina, passavam precisamentenove meses do teu casamento e precisamente um ano depois,veio, agora, sim, um rapaz. A – Entretanto, fomos para o Porto, melhor, fomos viverpara Matosinhos, pois, como estava determinado aquando daminha admissão na Sacor, o meu destino era esse, e sópassados dois anos é que fomos morar para o Porto. Passavamdois anos após o nascimento do rapaz, quando veio uma 67

menina. A nossa estadia no Norte foi até 1973. colaborei noarranque da refinaria de Matosinhos da Sacor; vivemos diasmuito felizes ajudando os nossos filhos a serem gente, e comou sem a graça de Deus, temos connosco três almas de eleição,cada um diferente do outros, mas é assim, nem nós mesmossomos sempre iguais a nós próprios. 68

A TEOLOGIA DA HOMINIZAÇÃO DE KARL RAHNER Xavier Zubiri, filósofo e teólogo, para escrever “Estru-tura dinâmica de la realidad” e “La génesis humana” pres-cindiu metodicamente da teologia. Por seu turno, Karl Rahner,teólogo e filósofo, propôs-se elaborar uma concepção daantropogénese de acordo com o que a ciência diz hoje e com oque o texto do “Génesis” e o magistério da Igreja afirmamquanto à criação e à realidade do homem. No cumprimento das suas tarefas, o teólogo e o cientistacatólicos têm, sem dúvida, a autonomia pessoal e a conse-quente independência intelectual que os seus temas e os seusmétodos de trabalho exigem; têm, pois, os direitos inerentes aoexercício correcto da sua profissão. Mas têm também gravesdeveres. O do teólogo: apurar o rigor dos seus raciocínios paradiscutir ou matizar nalgum ponto concreto a doutrina do ma-gistério eclesiástico e compreender sem reservas de ofício ovalor das afirmações da ciência, quando realmente o possuam.O do cientista: não esquecer que, por mais racionais quepareçam ser, as suas certezas não correspondem à dimensãoúltima da realidade a que directamente se referem, quer dizer,PARA A INTELIGÊNCIA HUMANA O CERTO, O RACIO-NALMENTE CERTO, SERÁ SEMPRE PENÚLTIMO, E OÚLTIMO, O QUE SE REFERE AO MAIS PROFUNDO DAREALIDADE DAS COISAS, SERÁ SEMPRE INCERTO,AINDA QUE O QUE SE DIGA COM ESSA PRETENSÃOPOSSA SER RAZOÁVEL E CRÍVEL. Cumpridas responsavelmente estas duas ordens de de-veres intelectuais e éticos, poderá existir um conflito in-superável entre as conclusões do teólogo e as teses do ci-entista? Rahner responde: no domínio dos princípios, não,porque no conhecimento perfeito do real não há nem podehaver duas verdades contrapostas, e porque, na referência auma verdade só têm que coincidir a revelação, se for bem 69

entendida, e o saber racional, se for procurado correctamente;no entanto, no domínio dos factos, o teólogo e o cientista,inclusive com boa vontade, podem nem sempre coincidir. Foieste por exemplo o caso da polémica sobre o evolucionismobiológico de Darwin. Tanto no seio da Igreja Católica como nodas Igrejas protestantes produziram-se vivas rejeições e umapolémica azeda contra ele. No entanto, com o decorrer dostempos foram aumentando em número e em força os ar-gumentos de facto para demonstrar a razoabilidade científica efilosófica do evolucionismo, e a atitude dos teólogos tornou-semais razoável. Levanta-se uma pergunta: Desde que se admitao mais essencial da antropologia cristã – que Deus criou ohomem à sua imagem e semelhança, que para o homem hádepois da morte uma vida perdurável, poder-se-á ir um poucomais além. O homem ser corpóreo-material, está em conexãocasual com o universo: o homem foi feito da terra, assimensina a Bíblia. A própria doutrina da fé impõe a necessidadede uma antropologia baseada no conhecimento científico danatureza e conciliável com a revelação. O cristão e o teólogode hoje devem reflectir mais intensamente sobre essa “co-naturalidade” da fé, pois ainda não chegaram à compreensãodo alcance metafísico e teológico que encerra a afirmação deque “o homem foi formado da terra”. A alma humana não éum ente independente em si, que pode existir ou ser con-cebido como desvinculado da matéria, é um nome que designaum momento da diferenciação interna de um único ente. Domesmo modo, uma verdadeira antropologia não pode ser pura“somatologia”. Donde sabe o autor do “Génesis” o que narra? A teo-logia católica do século XX afirmou que o que na realidadeexprime a narração do “Génesis”, para lá da letra, é umahistória que aconteceu em determinadas circunstâncias detempo e lugar, ficando assim aberta a possibilidade de in-terpretar as narrações Bíblicas como “etiologia histórica”. Espírito e matéria na realidade do homem? Se se admite 70

que na realidade do homem há matéria (corpo) e algo que nãoé matéria (espírito) este terá um significado distinto quando serefere a Deus. A “espiritualidade” de Deus é qualitativamentedistinta da “espiritualidade” de qualquer ente criado. Sendodistinta da matéria, esta supõe a materialidade, mas não a cria;aquela, ao contrário, é a causa primeira do espírito e damatéria do mundo. O homem é, por um lado, uno, inderivável e original epor outro, um momento na história do mundo proveniente douniverso. Espírito e matéria são realidades distintas, mas nãodíspares. Desde o momento em que o espírito e matéria sãoobjecto de um mesmo e único conhecimento, não podem serabsolutamente díspares entre si. Muitos teólogos dedicaram-secom afinco a sublinhar a diferença entre o espiritual e omaterial do homem. A materialidade aperfeiçoada deve ser ummomento na perfeição do próprio espírito. O espírito humanoprocura-se e encontra-se a si mesmo SÓ através do aper-feiçoamento na matéria, e SÓ por esta via pode ser bem en-tendida teológica e metafisicamente a “encarnação do Verbo”. É preciso admitir a criação imediata e divina de umaalma espiritual, tanto nos mutantes animais nos quais seproduziu a transformação do hominídeo não humano emhominídeo humano, como na concepção biológica de todos oshomens posteriores ao aparecimento da nossa espécie nabiosfera. O teólogo cristão deverá ter em conta, ao mesmotempo, que a relação entre a alma espiritual e a matériaevolutiva é de unidade e não meramente de dualidade. A almae o corpo não são dois entes criados que se unem funcio-nalmente entre si. A criação da alma Segundo a doutrina eclesiástica oficial, cada alma espi-ritual particular é criada imediatamente por Deus. E dado que 71

é inadmissível religiosa e filosoficamente a preexistência daalma, deve afirmar-se que a criação imediata das almas estáessencialmente vinculada ao devir biológico do homem, em-bora – sublinha Rahner – o magistério eclesiástico se nãotenha pronunciado sobre o instante preciso de tal criação nodecurso do desenvolvimento do embrião, embora no caso daalma humana possa e deva dizer-se que a sua criação imediatapor Deus possui um carácter ao mesmo tempo milagroso(superior à ordem natural do universo) e categorial (portantoexcluindo toda a acção causal distinta da divina). Segundo Rahner, na criação da alma humana, intervémtambém uma causa intramundana, a auto-superação evolutivada matéria; por conseguinte não deve haver receio em afirmarque os progenitores são a causa do homem todo, também dasua alma. Afirmar que Deus cria imediatamente a alma dohomem, não é negar que os pais geram um homem, mastornar precisa a realidade deste acontecimento, fazer ver queessa geração manifesta um tipo de causalidade na qual o enteoperativo supera os seus próprios limites em virtude da cau-salidade divina. A Bíblia e a ciência Rahner reitera o seu juízo: não se pode esperar a com-posição de um quadro no qual o testemunho bíblico e otestemunho científico acerca da vida dos primeiros homens seajustem um ao outro. Mas tão pouco se pode falar de umacontradição irrevogável entre eles. Em todo o caso, o homemque hoje conhecemos, o homem da metafísica e do pensarlógico, o homem das três dimensões – a animal, a espiritual ea sobrenatural – existia já quando começou a viver como tal. Oque agora aparece objectivado na história era então possibi-lidade real e tarefa incipiente. E se é difícil para nós imaginarque essas três dimensões da condição humana existiam, uni- 72

tariamente reunidas, num homem recém-aparecido na biosfera,não se deve esquecer que o nosso presente nos coloca o mesmoproblema. Entender responsavelmente o facto da hominizaçãoexige, com efeito, considerar o homem segundo a inabarcávelamplidão e inesgotável riqueza da sua essência, da sua históriae do seu destino. Cosmos Seria aqui despropositada a pretensão de apresentar asvisões do universo ao longo da história. Antes do século XX,face ao problema que coloca a origem do cosmos, só havia quedecidir entre duas crenças: a que o universo foi criado donada por acção divina ou a de que existiu sempre. No séculoXX, surgiu o empenho de dar uma resposta científica aoproblema da origem do universo com as “ConsideraçõesCosmológicas para a teoria geral da relatividade” de Einstein(1971) e a do astrónomo Hubble (1929) segundo a qual asgaláxias se afastam umas das outras com velocidade crescente,dando origem à tese puramente teórica da expansão douniverso e à hipótese cosmogénica de uma explosão originária(o big bang) como ponto de partida do processo evolutivo douniverso que passou por cinco etapas consecutivas: A Quântica (magma que rebentava) A Hadrónica (descida da temperatura, produção deprotões, neutrões e mesões) A Leptónica (formação de electrões e positrões) A Radiante (formação de fotões) A Galáctica (formação de galáxias, situação presente) Antes da radiação originária, o que houve? Um nadaabsoluto? E qual será o fim do universo? A aniquilação outransfiguração? Sei lá, quem viver vê-lo-á. 73

DE QUE É FEITO O UNIVERSO? Todos os homens cultos respondem: de matéria e deenergia. No entanto, com a descoberta da radioactividade, parteda matéria de um corpo radioactivo converte-se por si mesmaem energia radiante, pelo que parte do átomo radioactivo deixade ser matéria e transforma-se em energia. A experimentaçãonos aceleradores de partículas permite transformar a energiaem partícula elementar, isto é, numa minúscula porção dematéria. Uma pergunta se impõe: o que é, em última instância, amatéria, em que consiste a realidade de uma partícula ele-mentar? Uma resposta adequada é essencial para a compre-ensão da física e cosmologias actuais (as que Planck e Einsteininiciaram nos começos do século XX). Não havendo uma resposta satisfatória, segundo Zubiri“a realidade do cosmos é, em si mesma, dinamismo. É falsodizer que o mundo está em dinamismo. O mundo não está emdinamismo, é dinamismo, sendo este algo frontalmente cons-titutivo do mundo e que consiste em dar de si. Este dar de sio que já se é, é justamente o dinamismo”. Dar de si é sempredar de si propriedades novas ou substantividades novas e a quechamarei de potencialidades; em última análise, matéria éaquela substantividade cujas notas são as chamadas qualidadessensíveis (percepção sensorial como a mesa que tenho aqui emfrente ou por interposição de recursos técnicos, como o con-tador Geiger, tornando perceptíveis as partículas elementares eoutras que a técnica ainda não conseguiu tornar evidentes. Em última análise, a realidade do cosmos é dar de si, édinamismo, criando inclusive, propriedades novas ou substan-tividades novas. A ideia da matéria que serve de base ao materialismoantropológico não nos serve nos finais do século XX e 74

princípios do século XXI; O Todo do universo, a unidade eminter-relacionalidade que todas as estruturas do cosmos cons-tituem, deve ser entendido como “natura naturans”. Desde opróprio instante do big bang há que referir ao dinamismo queo Todo é as diferentes formas nas quais se realiza e com asquais se nos mostra. Darwin, em “A origem das espécies”, referia-se ao apa-recimento do novo nos processos da morfogénese biológica,mas nos princípios do século XX tinham surgido no mundocientífico os termos evolução e evolucionismo que se nãolevassem consigo um adjectivo diferenciador, referiam-se ex-clusivamente à origem das espécies na biosfera terrestre.Porém, mal se descobriu a expansão do universo e se iniciou ainvestigação das suas consequências, o conceito de evoluçãoestendeu-se rapidamente à configuração sucessiva do cosmos apartir do big bang, sendo de início puramente biológico e sórelacionado com o período mais recente da existência do nossoplaneta, se tornou decididamente cosmológico e cosmogónico.Desde a formação das primeiras partículas elementares, e pormeio dos átomos, das moléculas e dos seres vivos, a histórianatural do universo tornou-se para o mundo culto um pro-cesso evolutivo caminhando para as estruturas cósmicas cadavez mais complexas, num dinamismo ascendente desde oprotão e o neutrão até às galáxias, e dentro de um dos sistemassolares da nossa galáxia, a Via Láctea, até ao aparecimento eulterior história do homem sobre a superfície da Terra. Com a molécula, a realidade cósmica adquire estabi-lidade individual e específica. Com o agrupamento sistemáticode certas moléculas apareceu no cosmos (só na Terra?) o modode ser a que chamamos VIDA. E sobre a superfície terrestredesde há pouco mais de três milhões de anos, da vida surgiu aespécie humana, o ente cósmico que chamamos HOMEM. Em qualquer caso, na estrutura do processo cósmico daevolução, seja anterior ou posterior ao aparecimento da vida,combinam-se o acaso e a necessidade. 75

OS VALORES. OS VALORES HUMANOS (REFLEXÕES) Os seres humanos são cada vez mais egoístas, perdendo-se os valores da solidariedade e da moral, então cada um temque se arranjar como puder. A decadência de valores e asmentalidades cada vez mais individualistas e a ameaça defutura decadência de toda a economia fazem vigorar a divisasalve-se quem puder. Do que precisamos é de uma culturamoral razoável e segura, estando cada cidadão disposto aassumir as suas responsabilidades. As estruturas tradicionaisestão em colapso; uma em cada duas crianças cresce numafamília onde não nasceu. É necessário criar uma nova fundamentação moral. Adecadência de valores tem de ser contrariada com um novoentusiasmo por valores morais. Como se isto fosse assim tãosimples. Chama-se ética à disciplina que deve fornecer a funda-mentação das normas. Portanto, quem quiser restabelecer osseus valores, tem de se submeter ao esforço de uma reflexãoética. Em primeiro lugar, os valores morais têm de possuiruma validade universal. Para que isso seja possível, deve tam-bém ser possível fundamentá-los racionalmente. Para que não sejapossível relativizá-los com quaisquer argumentos, os valoresmorais têm de possuir uma validade intemporal. O melhor seriase fosse possível demonstrar que estes valores, no que dizrespeito à sua validade, são comparáveis às leis da naturezaque existem e são sempre válidas, independentemente do serhumano. Assim sendo, podemos afirmar que os valores morais:deveriam ser passíveis de uma fundamentação racional; possuiruma validade universal e intemporal e serem identificáveis nassuas características principais. Na natureza, a sexualidade constitui um aspecto impor- 76

tante do acasalamento e não tem como único fim a procriação,como o mundo cristão defendeu durante séculos, pelo que obaixo ventre era considerado zona de pecado, impedindo, as-sim, o desenvolvimento de uma cultura sexual que valorizasseo prazer. Por conseguinte, se não queremos assumir uma opiniãologicamente indefensável, temos de concluir daqui que asciências da natureza têm que desempenhar um papel crítico nafundamentação das normas, mas não podem de modo algumfornecer a própria fundamentação. Se for o ser humano que cria ele próprio os valores,deverá utilizar o provérbio: não faças aos outros aquilo quenão queres que te façam a ti. Em resumo: as tentativas de fundamentar os valores eas normas para o comportamento moral, sendo estes cons-truídos, desejados ou inventados pelo ser humano, devem serclassificadas como deficitárias. Sobretudo, não são capazes deindicar ao indivíduo nenhuma razão plausível concludente emtodas as situações possíveis para que o princípio do interessepróprio não deva ser tão considerado como as normas oumesmo superior a elas. Se os valores existem independentemente do ser hu-mano, partimos do princípio que os valores morais estão pré-determinados objectivamente, e que o ser humano tem de osencontrar, mas como os seres humanos não conhecem todas asverdades da natureza, também não conhecem todos os valores.Para além disso, apenas resta ainda esclarecer qual a posiçãoque um valor ocupa na hierarquia de valores? Tenho de sabê-lo, para poder decidir-me por uma boa acção ou por umaacção má. Agora, só falta, no fundo, a resposta a esta última ques-tão: Como sei por que valor tenho de me decidir na hierarquiade valores para estar na posse de uma ética utilizável. Se os sentimentos participam na decisão, então estãoabertas as portas para a arbitrariedade, porque nem todos os 77

seres humanos têm os mesmos sentimentos. Alguns nemsequer são capazes de sentimentos empáticos. Portanto, aquestão permanece: continua a faltar-nos um processo quepossa esclarecer ao ser humano quais dos valores objecti-vamente existentes são superiores e quais os inferiores. Quem acredita em Deus, segue os dez mandamentos e omandamento: ama o teu próximo como a ti mesmo. Estescomportamentos surgem espontaneamente, quando se serve aDeus e quando se encontra Deus no próximo. Jesus disse:“Em verdade vos digo: cada vez que o fizeste a um dessesirmãos mais pequeninos, a mim o fizeste.” Deus não é só umDeus que julga, mas é também misericordioso. Este factoliberta o ser humano do medo de estar sempre fora da leiperante um poder absoluto. Quando a sociedade afasta Deus, ela deve fundamentar amoral, e se o não é capaz de fazer, então, a culpa é sua. Ocristão tem outras concepções. Ele permanece fiel ao seu Deuse procura agir em consonância com isso, mesmo que o restodo mundo se ria dele. O amor pode ser entendido como uma espécie de“combustível psicológico”, mas também é possível entendê-locomo uma força que mantém o cosmos. Por esta razão, oscristãos dizem que Deus é o próprio amor. O cristão ajusta em certa medida a sua bússola a esteamor de Deus. A famosa afirmação de Dostoievski diz: Se nãoexiste Deus, tudo é permitido. A fundamentação religiosa da mo-ral é ideal para sociedades nas quais a fé em Deus constituiparte evidente da sua cultura, sendo o reconhecimento de umadimensão religiosa incompreensível para os seres que não autilizam. O cristão coloca a sua esperança neste amor para omomento em que a morte se aproximar dele e disser“VAMOS”. Os críticos da religião cristã citam textos do AntigoTestamento que esboçam a imagem de um Deus vingativo.Sem dúvida nem tudo é sagrado na Sagrada Escritura. Tam- 78

bém se cometeram crimes ao longo de dois mil anos, em nomeda fé cristã. Sendo isto uma verdade, a teologia faz umadistinção entre a Igreja terrena e a Igreja Celeste. No seio da Igreja terrena foram cometidos atentadoscondenáveis contra os direitos humanos. A Igreja Celestepretende ser uma comunhão entre os seres humanos e Deus.Será que isto é mesmo assim? Eu duvido, até porque nãoentendo muito bem o que é a Igreja Celeste. 79

OS VÁRIOS ESTÁDIOS DE DEUS Deus consegue o feito espantoso de, em simultâneo, seradorado e ser invisível. Assim começa o livro Deepak Chopra“CONHECER DEUS” e aqui transcrevemos algumas pas-sagens, pois para nós o conhecimento de Deus foi sendodiferente ao longo dos anos, o que nos leva a acreditar que ohomem tendo necessidade de criar um Deus, este foi passandopor vários estádios, como por vários estádios de desen-volvimento foi passando a mente humana. Embora muitas versões sejam contraditórias entre si, élegítimo toda a gente ter uma versão de Deus que surge comoverdadeira. Em todas as religiões, Deus é descrito como infinito esem limites, o que nos causa um enorme problema. Um Deusinfinito está simultaneamente em toda a parte e em partealguma. Transcende a natureza, pelo que tu não O podesencontrar. Tal como deixámos dito no início, Deus não deixaimpressões digitais no mundo material. Deus, de qualquer que seja a religião, é somente umfragmento de Deus. Esta afirmação é verdadeira, pois um serque não tem limites tem imagem, não desempenha papelalgum, não se situa dentro ou fora do cosmos, apesar de asreligiões nos oferecerem muitas imagens – pai, mãe, quem dáas leis, juiz, governante do Universo. Existem sete versões deDeus, que podem ser associadas a crenças organizadas. Cada uma é um fragmento, mas tão completa como sedestina a gerar um mundo único: Estádio primeiro – Deus o protector. Estádio segundo – Deus o todo-poderoso. Estádio terceiro – Deus da paz. Estádio quarto – Deus o redentor. Estádio quinto – Deus o criador. Estádio sexto – Deus miraculoso. 80

Estádio sétimo – Deus do ser puro – “Eu sou”. É absolutamente natural que cada estádio vá de en-contro a uma particular necessidade dos homens. Portanto,podes afirmar que continuamos a criar Deus à nossa imagempor uma razão que ultrapassa a vaidade; queremos que Eleesteja connosco, queremos gozar da Sua intimidade. Ainda quevejas Deus como um juiz todo-poderoso que castiga ou comouma fonte benigna de paz interior, Ele não é só isso. Para um ateu, todas as formas de divindade são sim-plesmente uma falsa projecção. Nós atribuímos a Deus qua-lidades humanas, tais como a misericórdia e o amor, as quaissão levadas ao altar, para então a elas orarmos. Logo, toda aimagem de Deus, incluindo as mais abstractas, é comple-tamente oca (por abstracto quero significar o Deus do Islão oudo Judaísmo ortodoxo, os quais não é permitido seremretratados com uma face humana). Em termos ateus, a religiãoé a última ilusão, visto estarmos a adorar-nos a nós própriospor interposta pessoa. Voltando novamente aos estádios, veremos como a res-posta de Deus se altera consoante as situações humanas: Deus protege aqueles que se consideram a si próprios emperigo. Deus é Todo-Poderoso para aqueles que querem alcançar opoder. Deus traz a paz para aqueles que descobriram o seu própriomundo interior. Deus redime aqueles que estão conscientes de terem cometidoum pecado. Deus é criador quando cogitamos de onde veio o mundo. Deus está por detrás dos milagres quando as leis da naturezasão subitamente revogadas sem aviso. Deus é a própria existência – “Eu Sou” – para aqueles quesentem o êxtase e um sentimento de ser puro. Na nossa procura de um único e só único Deus, per- 81

seguimos o impossível. A questão não é saber quantos deusesexistem, mas a forma como as nossas necessidades podem sercompletamente preenchidas. Quando alguém pergunta “Exis-tirá realmente um Deus?” A resposta mais apropriada é“Quem pergunta?” O cérebro é um dos instrumentos da mente, e uminstrumento bem convincente. Na verdade, tudo o que conhe-cemos acerca do cérebro é que ele gera as nossas percepções,os nossos pensamentos e a nossa actividade motora. No planomaterial, o cérebro é a única forma que dispomos para registara realidade, e o espírito deve ser filtrado através da biologia. Ao seleccionarmos uma divindade baseamo-nos na nossainterpretação da realidade, interpretação essa que está alicer-çada na biologia. Os antigos védicos diziam bastante cruel-mente “O mundo é o que formos”. Fazendo coincidir cada um dos estádios com a suaresposta, temos: Resposta do combate ou fuga. Resposta reactiva. Resposta do sereno entendimento. Resposta intuitiva. Resposta criativa. Resposta visionária. Resposta sagrada. Ao olharmos estas respostas temos um esboço precisodos estádios do crescimento humano. O mistério mais profundo centra-se na nossa capacidadede nos elevarmos de um instinto animal à santidade. Será istopossível a todos, ou este potencial existe unicamente para amais ínfima parte da humanidade? Só o saberemos ao exa-minarmos o significado de cada um dos estádios e a formacomo cada um sobe a escada que conduzirá ao crescimentointerior. Como atrás se disse, se aceitarmos que o mundo é o queformos, é lógico aceitar que Deus é o que formos. 82

O PRIMEIRO ESTÁDIO DE DEUS Há já muitos anos que os neurologistas classificaram océrebro em novo e antigo. O antigo cérebro é o reflexo de umDeus que parece não possuir muito do que podemos chamar àsmais altas funções. É primordial e largamente implacável.Conhece os seus inimigos; as suas origens não estão na escolado perdão e do esquecimento. Se descrevermos os seus atri-butos, que muitos fazem recuar até ao Antigo Testamento,estamos na presença do Deus do primeiro estádio. O homem primitivo sentiu inarráveis ameaças do meionatural. O cérebro antigo é teimoso, tal como o antigo Deus.A resposta favorita do cérebro antigo é sair da sua própriadefesa, razão pela qual a resposta de combate ou fuga é a suaarma mais importante, enquanto que a lógica do cérebro novose baseia na reflexão, na observação e na capacidade de verpara além da mera sobrevivência. No livro do Génesis, o primeiro homem e a primeiramulher foram os últimos maus filhos. O pecado que come-teram foi desobedecer ao mandamento de Deus, não foi tercomido da árvore do conhecimento. Deus é o único pai quenunca foi filho, e é isto que o torna pouco simpático, pela suacólera contra Adão e Eva e ser irracional na sua dureza. Quando se pergunta “Quem sou eu?”, os primeirosautores das Escrituras sabiam que eram seres mortais sujeitos àfome e à doença. Estas condições tinham uma razão de ser: orelacionamento familiar com Deus baseava-se no pecado, nadesobediência e na ignorância. Porque teria Deus querido impor tal desenvolvimentonatural aos seus filhos – porque não quis que eles adquirissemo conhecimento? Ele actuou como o pior dos pais tiranos,usando o medo e o terror para manter a Sua prole num estadoinfantil. No estádio primeiro, bem e mal surgem com nitidez. O 83

bem provém de nos sentirmos em segurança: o mal tem a suaorigem na presença do perigo. O velho cérebro tem umaprimordial necessidade de segurança, razão pela qual muitasmulheres vítimas de abusos defendem os maridos e voltampara eles. Bem e mal confundem-se sem remédio. O Deus doprimeiro estádio é bastante ambíguo; o limite é fixado pelascircunstâncias físicas. A autoridade divina pode ser bastantecruel mesmo para o povo eleito, mas os que se encontram forada lei (significa todos os que professem uma religião diferente)merecem ser castigados. Antigo Testamento é um mundo de heróis como Sansãoe David; as suas vitórias são a prova de que Deus está comeles. Qual a razão por que Deus teve de fazer um mundo tãoassustador? Teria sido somente uma tentação de nos tiranizar?A resposta não está em Deus, mas sim na interpretação quefazemos Dele. Para sair do estádio primeiro, tens de chegar auma nova interpretação de todas as questões até aqui levan-tadas – quem é Deus? Que espécie de mundo Ele criou? Quemsou eu? Como me poderei adaptar? No estádio segundo oproblema básico da sobrevivência já foi ultrapassado. 84

O SEGUNDO ESTÁDIO DE DEUS Se o primeiro estádio trata da sobrevivência, o segundoestádio refere-se ao poder. A espécie de Deus implícita nodesejo do poder é perigosa, mas é mais civilizada que o Deusdo primeiro estádio. Descrevendo este novo Deus, podemosdizer que Ele é: Soberano. Omnipotente. Justo. Responde às orações. Imparcial. Racional. Organizado segundo regras. Comparado com o primeiro estádio, esta versão é muitomais social. A máxima dominante da resposta reactiva é “Maispara mim”. Levada ao extremo conduz à corrupção. Mas emtermos biológicos, o impulso para obter mais é essencial. Não conseguimos descortinar quaisquer deuses altruístasno mundo mitológico. O Primeiro Mandamento dado a Moisésrezava: “Não terás outro Deus além de mim”. O Deus judaicoé um vencedor surpreendente que emerge de uma pequena edominada nação, em que dez das suas doze tribos foram va-rridas da face da terra por adversários poderosos, ainda que oshebreus subjugados fossem capazes de ver para além da si-tuação em que se encontravam. Eles idealizavam um Deusestável e inabalável que seria intocável por qualquer alteraçãodo poder terreno – o primeiro Deus poderoso a sobreviver aosadversários. No Génesis, Deus, depois de ter criado ao sexto dia oprimeiro homem e a primeira mulher, disse: Crescei multiplicai-vos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobreas aves dos céus e sobre todos os animais que se movam na terra. O tema do segundo estádio pode ser resumido a “vencer 85

é um passo para a santidade”. Um Deus guerreiro estava aolado de David quando este, contra todas as probabilidades,combatia os filisteus – de facto no Antigo Testamento asvitórias para serem alcançadas importam milagres ou a bênçãode Deus. Por outro lado, Jesus opunha-se ferreamente à guerrae, de uma forma geral, ao trabalho. Jesus tem uma visãocompletamente diferente sobre o dinheiro do que todos ao Seuredor. Ele queria que os lobos humanos convivessem com asovelhas. Pelo temor e obediência, aceitam as desgraças normaiscomo sejam uma doença, a bancarrota, a perda de um entequerido, e interpretamo-las como enviadas por Deus. Se nos voltarmos para o Antigo Testamento, não existedúvida de que o próprio Deus é manipulador. Após terdestruído o mundo através de um dilúvio, o Seu pacto comNoé proibiu-O de utilizar a força totalitária. Daí para a frenteage com mais subtileza – premeia os que actuam conforme alei, abstém-se de se mostrar irado, envia uma corrente sem fimde profetas destinados a atacarem o pecado, mediante pre-gações que estimulam a culpa. Neste estádio, o desafio da vida é alcançar o máximo.Mas ter cada vez mais não traz a felicidade a ninguém, desdeque o que se conseguiu tenha sido à custa de outrem. A maiorforça é a realização, e o maior obstáculo é a culpa, a viti-mização. Apesar das suas recompensas externas, o segundoestádio está associado ao nascimento da culpa, traz consigo oconforto de leis claramente definidas, mas armadilha o ca-minho ao atribuir um valor demasiado a regras e fronteiras,em detrimento do crescimento interior. Baseia-se igualmenteno poder, e este é notoriamente egoísta. O Deus do segundoestádio é cioso do poder que tem sobre nós, porque isso lheagrada. É viciado em controlar. E como qualquer paixãohumana implica que Deus nunca se dê por satisfeito, nãoimportando o controlo que exerce. 86

O TERCEIRO ESTÁDIO DE DEUS O terceiro estádio representa o Deus da paz cujaresposta é o sereno entendimento, e que pode assim serdescrito: Independente. Manso. Consolador. Não exigente. Conciliador. Silencioso. Meditativo. Terceiro estádio transcende o Deus obstinado e exigenteaté aqui dominante, tal como o novo cérebro transcende oantigo. A mente, na sua essência, volta-se para o interior afimde ela própria conhecer. Em todas as tradições religiosas esta éa base da contemplação e da meditação. Deus do terceiro estádio é um Deus de paz, pois indica-nos a maneira de sair da luta, deixou de ser perigoso por tercriado um mundo de solidão interior e de reflexão. Nesteestádio, a nova faceta é a centralidade. Se sentires a calma noseu íntimo, pelo menos para ti pessoalmente, a questão daviolência foi resolvida. Antigo Testamento afirma claramente que o caminhopara a paz é através da confiança em Deus como um poderexterior. Ele é sempre o centro das atenções. Não há dúvida de que as pessoas oferecem resistência àideia que toda a noção de Deus seja um fenómeno íntimo. Agrande maioria dos crentes do mundo está firmemente com-prometida com os estádios do primeiro e segundo, acreditandonum Deus “lá em cima”, ou que, sem dúvida, existe fora daspessoas. O problema torna-se mais complicado pelo facto de aodescermos ao nosso íntimo não encontrarmos qualquer re- 87

velação: é simplesmente um começo. A mente tranquila nãonos mostra repentinos lampejos do conhecimento de Deus.Deus não tem uma presença emocional ou intelectual. A nu-vem do desconhecido é só o que nos resta. A única solução é aperseverança. O valor do terceiro estádio reside mais na pro-messa que na satisfação, dado ser uma estrada deserta. O bemé medido pela capacidade de se estar centrado sobre si próprio,o que proporciona calma e claridade. O mal é medido pelaperturbação provocada a essa claridade; traz consigo confusão,caos e incapacidade para perceber a verdade. O facto de estaresmais vocacionado para uma vida interior não te torna obri-gatoriamente religioso, mas a religião de quem se sente viradopara dentro de si é o terceiro estádio. 88

O QUARTO ESTÁDIO DE DEUS O cérebro tanto sabe estar activo como sabe estar emrepouso. Qual a razão por que não é esse o seu objectivo? Paraonde poderá ir a mente uma vez ter encontrado a paz no seuinterior? Os mais altos estádios da espiritualidade parecemmisteriosos quando apresentados desta forma, pois não existeparte alguma onde ir para além do silêncio. Temos de aprenderaté onde pode ir o silêncio, o que é a sabedoria. No quartoestádio assiste-se ao nascimento de um Deus sábio. Destaforma a solidão do mundo interior começa a não ser tão dura.Os atributos de Deus o Redentor são todos positivos: Compreende. Tolera. Perdoa. Não julga. Inclui. Aceita. Neste estádio Deus tem preconceitos sobre a mulher.Intuição e inconsciência têm sido vistos como atributos femi-ninos por oposição aos masculinos poder e razão. A mesmaseparação é operada do ponto de vista biológico quando se falano domínio do lado direito do cérebro em relação ao esquerdo. O facto do lado direito do cérebro coordenar a música, aarte, a imaginação, a percepção espacial e talvez a intuição nãosignifica que Deus habite, embora a sugestão seja forte. Algunsantropologistas têm especulado que, exactamente como o ladodireito do cérebro tem capacidade de ultrapassar o esquerdo ereceber ensinamentos não verbais e não racionais, também osantigos humanos podiam ultrapassar as exigências da raciona-lidade e apercebem-se da existência de deuses, anjos, etc. eoutros seres cuja existência material é muito questionada pelolado esquerdo do cérebro. 89

Penso que os dois hemisférios cerebrais são ambos afonte das atenções, pois “dominante” não significa dominar.Todos nós podemos intuir e raciocinar ao mesmo tempo. To-dos os médicos já assistiram doentes que sabem antecipa-damente se sofrem ou não de cancro, ou que uma intervençãocirúrgica correu bem. Tu nunca confiarás na tua intuição amenos que te identifiques com ela. É aqui que surge a auto-estima. Quem alcançou o quarto estádio, os encantos daguerra, da competição, da bolsa de valores, da fama e dariqueza, desapareceram. Neste estádio, o mundo interior de-monstra que a calma e tranquilidade se transformam em algode muito mais útil. Começa-se a compreender como opera arealidade, e a natureza humana começa a revelar os seussegredos. Começa-se a averiguar a razão por que as coisasacontecem da forma que acontecem. A auto-aceitação torna-secaminho para Deus. No caso de Sócrates até a própria sentença que ocondenou à morte o deixou insensível. Ninguém conseguiaentender porque não receava a morte e então ele explicou-lhesque a morte era acontecimento inevitável. Era como ohomem que subiu calmamente cada degrau até à beira deum precipício, sabendo perfeitamente para onde se dirigia.Agora que tinha chegado ao ponto de queda, por que razãoo último passo causaria medo? O que quer que seja que esteja envolvido na auto-aceitação tem de ser encontrado, ou para dizer isto de outramaneira mais simples, todo o processo de seres verdadeirocontigo mesmo traz como sua máxima recompensa um nívelsuperior de consciência. 90

O QUINTO ESTÁDIO DE DEUS Surge quando a intuição à nossa volta se torna tãopoderosa, que explode. Os acontecimentos deixam de acontecer“lá fora”, antes são conduzidos pelas próprias intenções decada um. O estádio quinto une um indivíduo a Deus numaparceria de co-criação. Quando te sentires preparado para aaliança, o Deus que encontrarás terá os seguintes atributos: Potencial criativo ilimitado. Controlo sobre o tempo e o espaço. Abundante. Aberto. Generoso. Disposto a deixar-se conhecer. Inspirado. As pessoas no quinto estádio são normalmente intros-pectivas e discretas, mas todas sabem quanto importantes sãoas suas intenções. As coisas acontecem porque elas assim oquerem, não importando que os resultados sejam bons oumaus, independentemente de proporcionarem ou não qualquerbenefício óbvio. A pesquisa sobre o cérebro faz pouca luz sobre qual omecanismo que aqui se encontra envolvido. É possívelsupor que o córtex cerebral origine em primeiro lugar osereno conhecimento, quando as pessoas se encontram numprocesso de criatividade. Se confias inteiramente no pro-cesso interior, então és, com um mínimo de esforço, um co--criador da realidade. Se tiveres um lampejo de génio, ele permanecerá dentroda tua cabeça até se concretizar. Logo, a questão mais im-portante é como se materializa. Existem vias eficientes e outrasnão. A forma mais eficiente é-nos apresentada pela própriamente. Todos os acontecimentos ocorrem primeiro no campo 91

da mente e só depois exibem as suas manifestações exteriores.Nesta medida, a maior parte da vida espiritual sãopensamentos plenos de desejos. Este estágio não é um céu mágico, tem contrariedadesque são simplesmente temporárias. O ego esqueceu-se que estáenvolvido num processo de aprendizagem. Ser um co-criadorimplica passar por uma fase de aprendizagem. A sociedade emque vivemos não atribui uma credibilidade ao que temos vindoa expor. O teu sucesso depende do teu estado de conscienci-alização. Os gurus e os mestres não abundam. O quinto estádio, na realidade, não é mensurável peloque podes concretizar. Quem alcança a intimidade próxima deDeus pode optar por realizar muito pouco. Mas não im-portando o que foi alcançado, existe sempre a constantesensação de se ser abençoado, pelo que se torna no objecto detodo o desejo, não a sua manifestação exterior. 92

O SEXTO ESTÁDIO DE DEUS Deus o Criador permite o livre acesso à totalidade docosmos. Neste estádio os milagres são agora aceitáveis. O Deusdeste estágio tem os seguintes atributos: Transformador. Místico. Iluminado. Para além de todas as causas. Existente. Cura. Mágico. Alquimista. As palavras podem simplesmente veicular uma sugestãodo Ser de que estamos a falar, um Deus dos milagres, pro-fundamente místico. O mais místico dos evangelhos é o deJoão. Consideremos a sua descrição da criação. No princípio jáexistia o verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo eraDeus. A inteligência divina estava contida neste verbo equando chegou o tempo do universo nascer, o próprio verbotransformou-se em energia e matéria. Quando em 1917, a Virgem Maria apareceu perto deFátima, uma multidão de cerca de setenta mil pessoas juntou--se para observar a aparição que tinha sido prometida a trêscrianças da região. Os que estavam mais próximos das criançasrelataram que o sol girou no céu e mergulhou na terra numaradiação de arco íris, mas os que se encontravam mais dis-tantes só viram uma luminosidade intensa, e a uma distânciaainda maior nada foi observado. Quando a maravilha acaba, o observador abandona aesfera de influência daquele que fez o milagre. O campo deinfluência deixa de estar activo, pelo que toda a gente recuperao seu estado normal de consciência. O mundo milagroso 93

desaparece, dando lugar a um sentimento vago sobre o que narealidade aconteceu. Ao nível da vida comum, os acontecimen-tos permanecem desconcertantes, uma vez que está dissemi-nado o cepticismo sobre as sagradas aparições, os cirurgiõespsíquicos ou os curandeiros da floresta. Quem sou eu? Já nos acompanha há muito. Começamoscom o corpo físico, no primeiro estádio, para planos menosfísicos até chegarmos onde tudo é consciência. Jesus falou porparábolas, mas pode ser tomado à letra, quando diz para osdiscípulos “Vós sois a luz do mundo”. Da mesma formaqualquer milagre pode estar ao nosso alcance, sendo para issonecessário que comecemos a alterar a nossa concepção sobre aforma de operar das nossas mentes. A santidade é o que torna o milagre miraculoso; é ne-cessário algo mais do que simples desafios das leis da natureza.Os ilusionistas também o fazem quando de olhos vendadoslançam facas ou quando serram uma mulher ao meio. Desdeque não conheças o segredo a ilusão é um milagre. A maravilha de realizar milagres pode ser causa debastante felicidade; ter Deus dentro de si deve ser a maior dasalegrias. Ainda que não seja. A coisa mais ínfima importa umadistância a percorrer. Surpreendentemente, nessa fracção dedistância um mundo foi criado. É bonito se não for purafilosofia. 94

O SÉTIMO ESTÁDIO DE DEUS Existe um Deus que só pode ser sentido indo para além daexperiência. O Deus do sétimo estádio é holístico – Ele está presenteem tudo. Para O conhecer, a tua mente tem de estar pre-parada. O Deus deste estádio é tão inatingível que pode serdefinido pela ausência de atributos, no entanto consideramo--Lo como: Não nascido. Não morto. Imutável. Inamovível. Não se manifesta. Imensurável. Invisível. Intangível. Infinito. A única qualidade que podemos atribuir a este Deus é oser puro. Não importa quanto o vazio é grande mas dele nasceo universo. Para que o sétimo estádio seja real, tem de existiruma resposta equivalente a nível cerebral. Os investigadoresdo cérebro conseguiram captar ataques de epilepsia nosseus aparelhos, outro caso em que os pacientes relatamsensações não terrenas e perda de identidade. Tudo quanto nos rodeia é produto daquilo que nóssomos. No sétimo estádio tu já não projectas Deus; pro-jectas sim tudo, ou seja, é o mesmo que estares no filme,fora do filme ou ser o próprio filme. Já não criamos Deus ànossa imagem. Quem alcança este estágio está tão descomprometidoque se lhe perguntares “quem és tu?” a única resposta queobterás é “Eu sou”. Esta é a verdadeira resposta que Jeová deu 95

a Moisés no livro de Êxodos: Eu sou aquele que sou. Se conseguires fazer com que a tua mente cépticaacredite neste estádio (o que não é fácil), a questão que entãose coloca é: “e depois?”. O PROCESSO ASSEMELHA-SE ÀMORTE. O sétimo estádio conduz-te à origem; esta origem és tumesmo “Eu sou” renunciando à dor e ao prazer. O fim dailusão é o fim da experiência. O que receberás em troca? Só anua e crua realidade. O nosso tempo foi passado a projectarvisões da realidade, incluindo versões de Deus, que são ina-dequadas. Na sua origem o cosmos é simultaneamente real e irreal.A única forma que temos de saber alguma coisa é através dosdisparos dos neurónios no meu cérebro. Então, o observador eaquilo que ele procura observar fundem-se, que é a formacomo termina a perseguição, a deusa vida permanece maisfresca e preenche as necessidades de a cada momento se re-novar a si própria. Muitas religiões, sendo o cristianismo o principal exem-plo, declaram que Deus se encontra sentado no céu, unica-mente sendo acessível através da fé, da oração, após a morteou pela intervenção dos santos, ainda que este dualismo caiapor terra ao não considerarmos existir distinção entre corpo,mente e espírito. Dualidade significa separação, e num estadode separação, muitas ilusões ocorrem. O que quer que seja que eu possa imaginar é oproduto da experiência da minha vida adquirida até aopresente, e essa é o mais pequeno fragmento daquilo quepodemos saber. Serve para lembrar que o mundo material ésomente um produto do meu conhecimento, tal como o céu.Portanto, tenho todo o direito de tentar conhecer a mentede Deus. Uma viagem que começa em mistério e terminaem silêncio comigo mesmo. 96

E AGORA VAMOS AO TRABALHO (DIÁLOGO) António – Estava agora a olhar para ti e a notar quequanto mais velhos estamos, mais nos identificamos um com ooutro. José – Pois é mesmo assim, ainda no outro dia dizias“nem nós mesmos somos iguais a nós próprios”. Quandosomos novos estamos numa fase de aprendizagem, a confusãopor vezes é muita, estamos receptivos a tudo o que nos rodeia,os nossos juízos de valores não estão muitas vezes devidamenteconsolidados, e o que hoje nos parece errado no passado erauma certeza. A vida por vezes é como um rio, que corre para omar, na nascente a sua água é doce e na foz é salgada, e elenão deixa de se chamar rio, e até nome tem, e só perde essapropriedade quando a imensidão do mar o absorve, perdendo,então, todas as características que o identificavam, e até opróprio nome, e mais, até os peixes que o habitavam passarama ser diferentes. A – Assim é um pouco a vida. Quando passamos umavida inteira a conversarmos connosco mesmos, vamo-nos tor-nando mais iguais a nós próprios, as dúvidas que tínhamossobre os mistérios que nos rodeiam, a maior parte delaspermanece imóvel e morre connosco, nós só somos, ao longoda vida, diferentes nas pequenas coisas que a nossa sensibi-lidade vai apreendendo com o tempo, passamos a ser maissábios, mas a essência do nosso ser, essa, para a maioria, éimutável. J – Se bem me lembro, começámos a trabalhar em 1966,mais precisamente em Agosto, e foi na então designada Sacor,hoje Petrogal, que estivemos alguns meses, poucos, em Lisboa,no Beco dos Apóstolos, a ler assuntos sobre petróleos, até melembro que fizeste um resumo a que deste o nome de“Publicações V. H.”. Depois, fomos para Cabo Ruivo para a 97

então refinaria, onde ainda existe um memorial no agoraParque das Nações, era a torre de uma unidade de tratamento,T. C. C., muitas vezes subimos essa torre que tinha quase cemmetros de altura. Trabalhámos durante pouco mais de seismeses em turnos, talvez mais de um ano, pois quando fomospara o Porto, já existia uma menina e um rapaz, e isto foi emfins de 68 ou princípios de 69. A – Lembro-me perfeitamente dessa viagem, tínhamosum Ford a que chamávamos “ora porra” pois a frente do carroera muito bonita mas quando olhávamos para a parte traseiraera muito feia. Que bons tempos, estávamos a trabalhar naprimeira Empresa do País, tivemos que deixar Cascais e irviver para Matosinhos. Naquela época um engenheiro era umsenhor. Quando fomos admitidos na Sacor, corria aquela piadaque um funcionário da Sacor, era Dom por parte da mãe eDom por parte do pai, portanto tínhamos que ser bidom.Ainda vivemos em Matosinhos cerca de dois anos, tinha muitotrabalho, fizemos o arranque da refinaria e da fábrica de óleos;cheguei a estar 48 horas defronte do painel de controlo;quando regressava a casa, mal podia abrir os olhos, mas tinhasaúde, era feliz, não me lembro de alguma vez me ter queixadode cansaço. J – Quando estavas em Matosinhos foi quando nasceu onosso terceiro filho, por sinal uma menina; isto era assim:Quando chegava a altura de ter a criança, a minha mulhervinha para Lisboa para casa dos pais, e combinava comigo ecom o médico, o dia e a hora do nascimento. Era posta a soro,e na altura acordada a criança nascia. Eu chegava um poucoantes do nascimento, mas nunca quis assistir. Todos os nossosfilhos nasceram no Hospital Particular de Lisboa, era umhospital caro, e portanto o médico dizia ao pessoal: “Estasenhora deixa as malas à porta, fica cá o fim de semana e 2.ªfeira vai-se embora” e felizmente as coisas corriam bem e eraassim que sucedia. A – Embora te apresentes como o outro lado de mim 98


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