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Contos Fantásticos, Amor e Morte, o Inefável Mistério dos Amantes (excerto)

Published by D'Almeida ©, 2017-06-22 02:52:41

Description: Editor: Apeiron Edições © * Autor: Teófilo Braga © * Capa: Gabriela Marques da Costa © * Tipografia de capa: D'Almeida Ateliê * Paginação e arte final: D'Almeida Ateliê

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Amor e Morte,o Inefável Mistério dos Amantes

TítuloContos Fantásticos– Amor e Morte, o inefável mistério dos amantes –Título OriginalContos FantásticosAutorTeófilo BragaCoordenação e revisãoEduardo AmaranteGrafismo, Paginação e Arte finalDiv'Almeida Atelier Gráficowww.divalmeida.comIlustração e Técnica da capaGabriela Marques da CostaArte Digital / Assemblage DigitalRomantismo Expectante – 2010gabriela.marques.costa@gmail.comwww.gabrielamarquescosta.wordpress.comwww.facebook.com/home.php?#!/pages/Gabriela-Marques-da-Costa/134735599901538+351 915960299Impressão e AcabamentoEspaço Gráfico, Lda.www.espacografico.ptDistribuiçãoCESODILIVROSGrupo Coimbra Editora, [email protected]ª edição – Novembro 2010ISBN 978-989-8447-04-3Depósito Legal nº 318339/10©Apeiron EdiçõesReservados todos os direitos de reprodução, total ou parcial, porqualquer meio, seja mecânico, electrónico ou fotográficosem a prévia autorização do editor.Projecto Apeiron, [email protected]

Teófilo Bragaapeiron edições



Contos FantásticosA LINGUAGEM SIMBÓLICA DAS ILUSTRAÇÕES DE CONTOS FANTÁSTICOS Gabriela Marques da Costa (a pintora) É uma capa muito poética, a apelar ao Amor, ao Amor ausente, à Saudade, aos De- samores, Beleza de rios, Paisagens poéticas... Amor shakespeariano bem como camoniano. As imagens são bem europeias e apelam à melancolia do Amor. Penso que a imagem re- vela bem o hino ao amor. A harmonia das nuances cromáticas são bastante românticas e suaves. Falando especificamente das cores das vestes das personagens, os tons pastel mis- turam-se com os azuis, rosas e vermelhos. Os poucos tons esverdeados (os da natureza) re-Pintura de Gabriela Marques da Costa presentam o amor esperançado; os azuis, a Capa e Contracapa aristocracia e nobreza das personagens, en- quanto os rosas a meninice e a inocência feliz que contrapõem com os vermelhos, represen- tando a paixão, o sangue e a morte; o branco a pureza; o cinza a tristeza, a melancolia e a pa- ragem no tempo. Optei por colocar em cenário de fundo folhas de papel antigas, pois simbo- licamente estão a representar as histórias de cada personagem e acima de tudo porque o título do livro fala em CONTOS Fantásticos. As flores tinham de aparecer pois o seu simbolismo está estritamente ligado ao amor/ desamor. Especificamente amores-perfeitos, rosas e violetas campestres. O amor-perfeito simbolicamente é dedicado à deusa Minerva e é também o símbolo da glorificação do trabalho,mas também está associado ao amor romântico duradouro - amor para toda avida. Quanto às rosas, no Ocidente é a flor que mais simbolismo tem; é uma florconsagrada a muitas deusas da mitologia; símbolo de Afrodite, Vénus, Ísis eLakshmi. A rosa representa o ápice da paixão, o sangue e a carne mas ao mesmotempo pureza e virgindade (Maria). Os botões de rosa simbolizam o segredo. Emrelação às violetas campestres, representam a tranquilidade da espera, o sossego 7Apeiron Edições |

Teófilo Bragae a calma. Simbolizam também a espiritualidade e intuição das personagens, masao mesmo tempo representa presságio e luto amoroso. A janela em forma de arcada representa os pensamentos e as vontades detodas as personagens que se encontram fora dela, e a imagem que se encontradentro da janela representa aquilo que elas desejam: atrair o amor para elasmesmas, mergulhar no sonho da alegria e felicidade conjugal. Criei a janela comduas arcadas representando assim o número DOIS. Este simboliza amor e com-preensão. Representa também a atenção do parceiro para com a sua amada. É onúmero da dualidade, do companheirismo e do amor mútuo. Falando especificamente num pormenor da contracapa, fiz de forma que aocolocar o texto parecesse o preenchimento da forma de um espelho imaginário. Outros elementos suplementares de interpretação (Dulce Leal Abalada) Esta obra tem a particularidade de ser muito rica pela quantidade de ele-mentos simbólicos que encontramos nas ilustrações. Desde o Cúpido que jun-tando o seu rosto ao ouvido de uma dama como que segreda os mistérios doAmor; ou não fosse ele o deus dessa dádiva que aquece os corações, corres-pondente ao Eros grego. De fundo, como também na contracapa, vemos o templode Deméter, a deusa da Natureza, símbolo da fertilidade e da protecção da Vida.Um outro símbolo encontramos tão antigo quanto a humanidade – a repre-sentação mítica dos Contos de Fadas de uma princesa que encontra o seupríncipe encantado que a desperta para a vida e vivem felizes para sempre. Porém,o corpus central das ilustrações na obra coloca-se nas várias representações demodelos femininos que constam na capa. Desde logo confere à obra o seu ca-rácter psicológico, dual, conflituoso, dramático. A mulher está representada nosseus vários matizes desde os tempos remotos, onde pela representação da duplajanela viajamos no tempo em que se banhava nas águas da mãe natureza, até àsmanifestações mais sofisticadas de poder de sedução sobre o homem. É certo quemuitas outras interpretações poderão ser extrapoladas destas imagens e, a essepropósito, não desejaria deixar de citar uma que pela sua pertinência retrata umaépoca que, se bem que estranha hoje, não é muito distante. Nesse sentido passoa citar a minha mãe, Esperança, que tendo sido há alguns anos monitora de arteda Universidade da Terceira Idade (U.I.T.I.) no Museu Calouste Gulbenkian, me fezver algumas características nesta capa sobre o papel que a mulher então detinhana sociedade do século passado, com todos os seus códigos e significados quefaziam parte do jogo amoroso. “Só o título desperta em nós recordações mais ou menos remotas - a idade dafantasia, do imaginário, do sobrenatural, que para nós na altura era natural; depois8 | Apeiron Edições

Contos Fantásticosas histórias, os contos que antigamente eram transmitidos na linguagem escrita, daía folha de papel antiga abrangendo toda a página, que nos dias de hoje se foiencurtando e actualmente sintetizando, através do telefone, telemóvel, SMS, e-mails... “E em histórias de amor é sempre a mulher a protagonista. Daí a representaçãode várias mulheres, através dos tempos e condições sociais, diferenciados pelas suasvestes, urbanas e rurais, inseridas nas paisagens bucólicas; e no tema do amor,todas as mulheres são iguais, qualquer que seja o seu nascimento. “Na contracapa, a mulher debruçada sobre o peitoril da janela em atitudesaudosa, lembrou-me os meus tempos de estudante de literatura –“as canções deamigo”: “Muito me tarda o meu amigo na Guarda” de que nós fazíamos estribilhopara disfarçarmos as saudades que sentíamos dos nossos namorados... Tambémmerece atenção a figura atenta e receptiva ao Deus Eros, ou ao Cupido dos Ro-manos. “O fundo atapetado de várias flores, cada uma com o seu significado, hojeapenas lembrado pelos mais idosos e que não merecia ser esquecido, embora naprática desnecessário, pois a oferta de uma flor em especial era testemunho dosentimento inspirado; era uma linguagem muda, mas simbólica. Lembro ainda, nãohá muitos anos, em certas aldeias de França, era tradição no 1º de Maio, os rapazespremiarem ou criticarem as raparigas da aldeia, depositando durante a noite, àporta de cada uma delas, uma flor (ou um cardo) que a dignificava ou penalizavasegundo os sentimentos que provocava neles. “Recordo-me das conversas da minha avó com as suas amigas, de certa maneirapassando-me testemunho da época, sobre a linguagem dos leques, um excelente meiode comunicação de coisas mais prosaicas que as flores, o modo como se davam asrespostas aos pretendentes, fossem do seu agrado ou não, ou marcação de encontros,à saída da missa ou uma ida à costureira, o leque, quer fosse pela sua posição querpelo manuseamento, tinha um papel preponderante. “Na capa, há um ser que se debruça, querendo como que penetrar no livro e emequilíbrio instável, certamente proporcional ao grau de curiosidade que o conteúdodo mesmo lhe desperta. Enquanto uma das heroínas parece escutar, talvez, “aspancadas de Molière, convidando à Função.” “Porque um bom livro é como um palco, onde se consegue ver e ouvir as per-sonagens.” 9Apeiron Edições |



Contos FantásticosÍNDICECarta a José Fontana (da 1ª edição)PreliminarAs Asas BrancasO VéuA Estrela d'Alva (conto marítimo do século XVI)Lava de um CrânioBeijos por Facadas (conto de uma serenata em Espanha)La Blanca Palomica (o desgosto de Lope de Vega)A Ogiva SombriaAs Águias do Norte (conto polaco) De um estudante da Lituânia ao Poeta anónimo da Polónia Fragmentos de uma elegia polacaO Relógio de Estrasburgo (conto de 1352)Um Erro no Calendário (episódio da história da inquisição em Espanha)A Adega de Funck (conto baseado nas notas de Hoffmann)Revelação de um CarácterO Sonho de EsmeraldaO Evangelho da DesgraçaAquela MáscaraA Rosa de Sáron (poema em prosa)Os Quatro filhos d'Aymon (conto do cerco do Porto)Ódio de Inglês (comentários ao conto de Teófilo Braga), de Gomes Leal 11Apeiron Edições |



Contos FantásticosCarta a José Fontana (da 1ª edição) Meu caro editor, Disse-me que esperava um prólogo, para começar a publicação dos Contos;lembrou-me escrever-lhe um capítulo de estética sobre esta forma literária. Opúblico não gosta de abstracções. Por minha vontade desistia do prometido;limito-me porém a algumas considerações históricas. A forma do conto é de origem oriental. As fábulas de Bidpaï foram o primeiroensaio para fazer sentir uma moralidade abstracta por meio de uma ficção in-teressante. É pelo século XII que esta criação do génio do Oriente aparece naEuropa, imitada na Disciplina clericalis de Moisés Sephardi, conhecido depois dasua conversão ao cristianismo com o nome de Petrus Alphonsus. A Disciplinaclericalis, escrita em latim bárbaro, para ensino dos clérigos, compõe-se de trintae sete contos e apotegmas1, que o autor imagina dados por um árabe a seu filhona hora da agonia. A popularidade do livro foi dispondo os ânimos para a culturadesta forma literária. O Conde de Lucanor de D. João Manuel, algumas das ficções do Gesta Ro-manorum, o Decameron de Boccacio, os Contos de Canterbury, ressentem-se bas-tante do livro do judeu convertido da Huesca. Uma criação do génio céltico e germânico é o mundo feérico; elaborada len-tamente na fantasia popular, animada nesses tipos de Melusina, Morgane e Ur-gante, dos trovadores da Idade Média, cantada depois nos galanteios de Boiardoe Ariosto, Spencer e Shakespeare, tornou-se o divertimento infantil dos Contesbleus, os contos de fadas, coligidos nas Notte piacevoli de Straparole, publicadasno século XVI, e no Pentamerone de Giambattista Basile em 1637. O conto é a forma literária da lenda. Boccacio no Decameron, naquelas tran-sições instantâneas do ridículo ao patético, revela uma face profunda da história,o estado dos espíritos na terrível peste de 1358. A imaginação era tão perigosacomo o contágio; a distracção calculada, o prazer egoísta dos jardins de Pam-pinea, a indiferença, o cepticismo que se desenvolve nas grandes calamidades,1 N. do R. – Dito breve e memorável de pessoa ilustre. In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. 13Apeiron edições |

Teófilo Bragasó podiam suspendê-la na exageração do terror. Nos contos da Idade Média háuma mistura de devoção e desenvoltura; no Heptameron da rainha de Navarra, asaventuras cavaleirescas, as intrigas de amor, os padres e monges seduzindo asnoviças, entretecem-se com reflexões morais, e de quelque leçon de la sainteÉcriture. É a mesma antítese fatal que parodia a exaltação religiosa nos ritosgrotescos da Igreja. A Idade Média retratou-se em todas as suas criações, mesmonos fabliaux e no conto. O conto é a passagem do fabulário para a linguagem da prosa, ingénua, rude,de uma franqueza maliciosa muitas vezes, e desenvolta. O conto era uma situ-ação inventada para aproveitar um dito feliz, um repente engenhoso dos serõesdas cortes e dos castelos; nasceu daquele génio primitivo, com que Froissartnarrava a história. Demogeot, na sua História da Literatura Francesa, considera os contos doséculo XVI como alheios ao desenvolvimento intelectual; é uma afirmação menosverdadeira por absoluta. A actividade deste período, a fecundidade e originalidadeverdadeiramente caóticas reproduzem-se em Rabelais, o criador de Gargântua ePantagruel. A Renascença com as ficções gregas e romanas desnaturara o conto. No sé-culo XVII ele torna-se volumoso, arrebicado de galanice e galantaria amaneirada.As atenções tinham refluído sobre os trabalhos filosóficos; ficaram as criaçõesimaginativas em poder das Gamberville, de Scudery, de La Calprenède e quejan-dos, que as alongaram fastidiosamente com pieguices sentimentais, por essasséries indefinidas de volumes da Polexandra, Caritea, Cytherca, Cassandra, Fa-remundo, Ibraim ou o ilustre Bassa, Artamene ou o grande Ciro, Clélia e Almahide.Os heróis apaixonados são Anacreonte conversando em amáveis versos, Bruto eLucrécia, Horácio Cocles e Clélia, movidos pelos interesses da sociedade moderna;a majestade escultural da antiguidade e da história em presença das pequeninasintrigas tocara o cúmulo do ridículo! O movimento, a convulsão filosófica doséculo XVIII aparece também no romance e no conto. Lesage escalpeliza a na-tureza humana, e o Gil Blas é a síntese das observações profundas; o abadePrévost analisa as paixões numa luta íntima, recôndita, e procura os sentimentosnovos que cintilam dos que se embatem e se destroem. Manon Lescaut é uma dasverdades eternas do sentimento humano, a contradição do que mais se aspira eidealiza, a vontade negando-se, mobilizando-se nos multíplices desejos que tu-multuam na alma. Voltaire filosofa também nos seus Contos. Diderot, sobretudo,a inteligência mais robusta do seu tempo, matemático, artista criador pela re-14 | Apeiron Edições

Contos Fantásticosflexão e inspiração, reduz ao interesse do conto, à peripécia da acção as verdadesmais abstractas. Na assombrosa maravilha de arte, o Neveu de Rameau, mostra amaldade disfarçada em virtude pelas conveniências; todos nos horrorizamos aover ali o nosso retrato; sentíamos aquilo, mas não tínhamos a coragem, a abne-gação para dizê-lo. O sobrinho de Rameau mostra-se infame, ao passo que é su-blime de razão, porque diz tudo o que pensa. Vê-se agitarem-se naquele cérebroem ebulição todos os processos intelectuais. Na Religiosa, Diderot evoca as dorescruciantes e desconhecidas, sofridas nas trevas por um coração ingénuo, que é oludíbrio do interesse egoísta, do fanatismo estúpido, e da superioridade brutal.Este conto por si é uma revolução latente. A análise delicadíssima dos pequenossentimentos que formam a grande luta na alma da Religiosa não é inferior aoquadro do quietismo de Michelet no processo da Cadière, e excede por muitasvezes a profundidade com que Manzoni no Promessi Sposi retrata as agonias dadesgraçada Genoveva no convento de Monza. Uma vez descobertos estes segredos do sentimento, o conto deixou de serindividual; o romance é o desenvolvimento de uma tese da vida na sociedade.Richardson é a admiração de Diderot; Goëthe descobre Diderot à Alemanha,traduzindo a sua obra-prima; ele mesmo isola os sentimentos do amor e o deverno Werther e chega pela arte à conclusão lógica do suicídio. Hoffmann, o caricaturista das paixões, de uma individualidade extravagante,nas criações abstractas daquela imaginação de hipocondríaco deixa-lhes o in-completo do maravilhoso; mais tarde os editores dão aos seus contos o nome defantásticos. Nos Contos de Hoffmann há uma série de observações psicológicas,de impressões instintivas que suprem a falta de imaginação; os seus contos são odiagnóstico de uma alma doente. É o lado que os torna apreciáveis, apesar docapricho e grotesco dos tipos a que a mente alucinada dá forma. Os Contos deEdgar Poë, a imaginação mais extraordinária da América, têm o fantástico dainsolubilidade dos problemas filosóficos que constituem a acção; tocam às vezesa alta metafísica. Tendo de transigir com as materialidades da vida, na esterilidadeda indigência pede a inspiração ao álcool; ele sente a excitação lúcida que lhe dá aforça espantosa da invenção, mas conhece já em si a tremulência, que é a de-composição inevitável, e exclama no meio da fadiga: Não há pior inimigo do que oálcool! Edgar Poë é a força da imaginação e do ideal suplantada pelo positivismode uma sociedade manufactureira e orgulhosa do seu carácter industrial; nos seusContos há a alucinação profética da doidice. 15Apeiron edições |

Teófilo Braga A forma do conto é estudada em todas as literaturas da Europa; trazendo alume este pequeno trabalho, só nos inspira a boa vontade de corresponder aomovimento que observamos lá fora. Que mais teríamos a dizer de um livro sim-ples que lhe não desnaturasse a intenção. Coimbra, 8 de Março de 1865 Teófilo de Braga16 | Apeiron Edições

Contos Fantásticos PRELIMINAR(Fevereiro de 1894 – Teófilo Braga) Vai para trinta anos que estão publicados os Contos Fantásticos. Em boaverdade, nunca mais passei os olhos por este livro, que me aparece agora comoobra de um estranho. Não tornei a ler esses contos, não por um afectado desdémpela minha obra, desdém que condeno em todo o escritor que se não preocupacom a coordenação definitiva dos seus trabalhos, mas porque este pobre livroficara ligado a impressões dolorosas cuja renovação evitava. Foram reunidos em volume em 1865 os Contos Fantásticos no meio das re-fregas da conhecida Questão de Coimbra; publicara a maior parte deles no Jornaldo Comércio, em cuja colaboração literária auferia uns tantos reis com que iaseguindo o meu curso na Universidade. De repente achei-me cercado de ódios. Cortaram-me os víveres na empresado jornal, nas aulas de Direito tiraram-me a mesquinha distinção académica, oscríticos espalmaram-me rudemente, os livreiros recusaram-se a dar publicidade aoque escrevia, e os patriarcas das letras com o peso da sua autoridade sorriam comequívocos sobre o meu valor intelectual, chegando a circularem lendas depres-sivas do meu carácter e costumes que só consegui desfazer com uma vida àsclaras e cheia de ignorados sacrifícios. Outro qualquer ter-se-ia rendido. Vi-me forçado a inverter as bases da minha existência, abandonando a Arteque me seduzia, porque me abandonara a serenidade contemplativa, e lancei-meà crítica, à erudição, à ciência, à filosofia. Neste campo os meus erros e exagerosbem merecem ser perdoados. Só muito tarde é que consegui conciliar em mimestas duas tendências do espírito; mas não pensava em reimprimir os ContosFantásticos, a não ser um dia numa colecção de coisas avulsas constituindo aingénua miscelânea das minhas Juvenilia. Uma carta do meu bom amigo António Maria Pereira surpreendeu-me, ma-nifestando o desejo de fazer uma nova edição destes Contos. Como recusar-me auma tão honrosa proposta? Ressalvei a condição de rever isso de que nem já formava ideia. Foi assim quetive de ler os Contos Fantásticos, do rapaz de vinte e dois anos que existiu emmim, e a frio pude julgar da impressão por eles produzida. 17Apeiron edições |

Teófilo Braga Achei ali uma fraca penetração do mundo subjectivo ou moral, encobertacom o esforço das comparações poéticas e dos epítetos; desgostou-me o estiloem que a prosa se confunde com o verso, apresentando ainda a falta de nitidez dequem não pensa com segurança. E quanto ao drama da vida, que é o tema eternodas obras de arte, notei também pouco movimento, as situações são narradas emvez de sucedidas. O que salva então o livro? Uma pequena coisa, que é tudo: a paixão. Ao fim de trinta anos ainda acheiali calor, a ardência de um organismo que se queima, a vibração sensorial de umamocidade plena que se lança de peito aberto ao combate da vida. Foi esta paixão flagrante que fez com que esses Contos não ficassem es-quecidos no Jornal do Comércio de 1865. Voltando então de umas férias paraCoimbra, felicitou-me Eça de Queiroz, afirmando-me que nos cafés em Lisboacortavam-se os folhetins, quando traziam algum conto meu. Nesse mesmo anoJosé Fontana quis publicá-los num livro, que seguiu o seu fadário, sendo o maisglorioso o andar na algibeira do célebre engenheiro João Evangelista, que morreudevorado por uma violenta paixão amorosa. O pequeno livro estava na mesmaafinação da sua alma. Cartas, que ainda guardo, me falaram da impressão de umou outro conto, por esse tempo. Tudo isto me lembrou ao sentir que efectivamente o fogo que há nessesmesquinhos quadros se comunica. E neste dilema dos dois amores, em que aindase debate o espírito, atraído para a arte e seduzido pela ciência, hoje repassandoas páginas deste livro, é com uma certa piedade saudosa que o deixo reviver napublicidade, e lhe inscrevo com a frieza do qualificador inquisitorial: feitas asemendas necessárias pode correr.18 | Apeiron Edições

Contos FantásticosAS ASAS BRANCAS Sempre o mesmo olhar doloroso! Uma constante expressão de mágoa, esseabandono, que é o tédio da vida! Porque é que na flor dos anos, quando a exis-tência se purpúrea com todas as graças que se entrevêem apenas em sonho e seveste das alegrias que a rodeiam, como uma criança enfeitando-se distraída comas florinhas espontâneas, tu, bela, sentida, deixas reflectir pela transparência datua face pura um clarão pálido e incerto como de agonias e desespero, como afosforescência de um grande mar que estua? Diante de ti sente-se uma opressãoestranha, a mudez sagrada de uma grande floresta, o terror gélido, de quem entrana caverna de uma sibila. Porque é que os teus vinte anos, as formas arreba-tadoras do teu flexuoso corpo de sílfide, que verga pela dor, mais lânguido egentil do que a palmeira solitária embalada nas bafagens mornas vindas da am-plidão remota do deserto, como é que toda esta adolescência, que te cinge comoauréola de encanto e atractivos, me faz ter medo de ti, me prende a voz temerosae balbuciante, que ousa às vezes perguntar-te: – Donde vieste? Em que cismas? Que véu te acena e está chamando de lon-ge? Porque te escondes dos olhos que choram de ver-te assim desolada, naconsternação de uma angústia intraduzível por palavras humanas? Porque nãofalas, e nos contas o que sofres? Porque te deixas ficar horas esquecidas com amão firmada ao rosto, suspensa numa contemplação divina, irradiante, de ummodo, que ninguém ousa dizer se és da terra, se és a incarnação de alguma es-sência arcangélica que anda errante no mundo a santificar o amor no sofrimento? 19Apeiron edições |


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