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Aiyra Anahi: histórias indígenas para crianças

Published by wddessilva, 2023-06-10 19:02:31

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FÊNIX A COMPANHIA FÊNIX é uma editora que acredita na Ciência Aberta. Permitimos a leitura, download e/ou compartilhamento do conteúdo desta obra para qualquer meio ou formato, desde que os textos e seus autores sejam adequadamente referenciados. As informações publicadas são de inteira responsabilidade dos autores. Telefone para contato da editora: (86) 9 9547-2381. Todos os livros publicados pela editora FÊNIX estão sobre os direitos da Creative Commons 4.0 http://creativecommons.org/license/by/4.0/deedd.pt_BR. Direção Editorial: Cassio Rodrigues, Amanda Torres Direção de arte: Letícia Santos Coordenação de publicação: Cleidineyly Borges Diagramação: Wendson Sousa Imagem da Capa: Letícia Santos COMPANHIA FÊNIX Editora, Gráfica e Consultoria Ltda Av. Dom Severino,2270, Teresina-PI, Brasil. (86) 9 9547-2381 |www.editorafenix.com.br FICHA CATALOGRÁFICA Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) T693a TORRES, Amanda; RODRIGUES, Cassio; BORGES, Cleidineyly; SANTOS, Letícia; SOUSA, Wendson. Aiyra Anahi: histórias indígenas para crianças / Amanda Torres, Cassio Rodrigues, Claidineyly Borges, Letícia Santos, Wendson Sousa. Teresina: Fênix, 2023. 90p. online. ISBN: 958-56-57810-46-9 1. Histórias indígenas. 2. Literatura infantil. 3. Crianças. 4. Aiyra Anahi. I. TORRES, Amanda; RODRIGUES, Cassio; BORGES, Cleidineyly; SANTOS, Letícia; SOUSA, Wendson. II. Título. III. Fênix.

SUMÁRIO 1. A APROPRIAÇÃO DA CULTURA ESCRITA EM CRIANÇAS DO ENSINO FUNDAMENTAL: UM ESTUDO COM A CULTURA E A LITERATURA INFANTIL INDÍGENA------------------------9 2. A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA INFANTIL NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL NA EDUCAÇÃO INFANTIL------------------------------------------25 3. MITOS INDÍGENAS EM MACUNAÍMA, DE MÁRIO DE ANDRADE----------------------------------------------------------------------------------------------------------43 4. LITERATURA INFANTIL INDÍGENA CONTEMPORÂNEA: INDAGAÇÕES CONTEMPORARY INDIGENOUS CHILD LITERATURE: Q UEST IO NS-------------------------------------------------------------------------------------------------------58 5. LITERATURA INDÍGENA EM DEBATE: SUPERANDO O APAGAMENTO POR MEIO DO LET RAM ENT O LIT ERÁRIO ---------------------------------------------------------------------------------------------------------75

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A APROPRIAÇÃO DA CULTURA ESCRITA EM CRIANÇAS DO ENSINO FUNDAMENTAL: UM ESTUDO COM A CULTURA E A LITERATURA INFANTIL INDÍGENA Wendson Douglas de Sousa Silva¹ RESUMO: A situação vivida pelos indígenas brasileiros impulsionou-nos à problemática desta investigação: promover a empatia e a cultura escrita em crianças do ensino fundamental, recorrendo à literatura infantil indígena. Os objetivos do estudo eram: conhecer concepções e atitudes dos alunos relativamente aos indígenas; orientar uma intervenção pedagógico-didática, apoiada na literatura infantil indígena, que ajudasse a modificar concepções e atitudes de natureza discriminatória; analisar em que medida essa intervenção serviu para aprofundar o conhecimento dos alunos acerca da cultura indígena, promovendo a apropriação da cultura escrita. Optou-se por um estudo qualitativo, numa aproximação à metodologia da design research. Como instrumentos de recolha de dados, elegeu-se a entrevista, a observação e as notas de campo. A amostra era constituída por uma turma do ensino fundamental de uma escola urbana do estado do Pará, Brasil. Os resultados da investigação apontaram para uma identificação, receptividade e entusiasmo das crianças à cultura e à literatura indígenas. Palavras-chaves: Escola; leitura; cultura e literatura infantil indígena. ABSTRACT: The situation lived by Brazilian natives has led us to the problem of this research: to promote empathy and written culture in elementary school children, using indigenous children’s literature. The goals of the study were: to know the students’ conceptions and attitudes regarding the natives; to guide a pedagogical-didactic intervention, supported in the indigenous children’s literature, that helped to change conceptions and attitudes of a discriminatory nature; to analyze the extent to which this intervention served as a means to deepen the students’ knowledge about the indigenous culture, promoting the appropriation of written culture. We choose a qualitative study, in an approach to the methodology of design research. As instruments of data collection, the interview, the observation and the field notes were chosen. The sample was a class of elementary school from an urban school in the state of Pará, Brazil. The results of the research pointed to the children’s identification, receptivity and enthusiasm for indigenous culture and literature. Keywords: School; reading; indigenous culture and indigenous children’s literature. Introdução A lei 11645/2008 – que obriga o ensino, nas escolas brasileiras, de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena (BRASIL, 2008) – vem trazer a esperança de minorar o quadro de discriminação, no Brasil, contra indígenas. À vista disso, empenhamo-nos em utilizar a intervenção pedagógico-didática em sala de aula, através de oficinas, como meio de conhecimento da literatura infantil indígena para promover a formação de 9

leitores, a apropriação da cultura escrita, a educação multicultural e uma reflexão sobre tais temas na escola. Reconhecemos na educação multicultural bem como no poder da leitura e da literatura importantes caminhos para chegar ao Outro, ao mesmo tempo desenvolvendo no educando a consciência de mundo tão necessária à paz na escola e também na sociedade. Quanto mais nos aproximarmos desse Outro – que é indígena brasilei-ro – maior será a ocasião de desenvolver a empatia. A primeira etapa para se chegar à educação multicultural é promover o contato com outra cultura para desfazer os estereótipos que a cercam numa cortina de fumaça, impedindo o diálogo entre ambas. Nossa proposta foi levar às crianças do quarto ano da escola básica histórias que elas desconheciam e lhes proporcionar a descoberta desse Outro que é indígena. Partimos do pressuposto que a expressão literária indígena deve ser valorizada, por proporcionar ao leitor oportunidade de conhecer novos pensamentos e novos valores, configurando-se como veículo de conscientização e empatia e formando-o, simultaneamente, como leitor. Nossa pretensão foi levar à escola autores e narrativas quase desconhecidos do grande público a fim de minorar a lacuna que há ainda hoje em relação à literatura infantil indígena no Brasil. Nesse estudo, resultante de nossa Tese de Doutorado (SALES, 2019), na Universidade de Évora, Portugal, após expormos o referencial teórico, importante veículo de reflexão, destacamos inicialmente alguns aspectos da metodologia empreendida. Focamos, então, nas primeiras entrevistas semiestruturadas, seguidas de uma breve explanação de nossas oficinas, para depois expormos as segundas entrevistas semiestruturadas e, finalmente, concluir nosso estudo. Referencial teórico Inicialmente, nesse estudo, respaldamo-nos em Nussbaum (2005; 2015), Drobniewski (2012), Canclini (2015), Bhabha (2013), Freire (1987; 2016), Adorno (2000) ¹ Teste de diagramação, A apropriação da cultura escrita em crianças do ensino fundamental: um estudo com a cultura e a literatura infan l indígena, autor: Maria da Luz Lima Sales; Ângela Balça. Feito por Wendson Douglas de Sousa Silva, aluno do 5° bloco, graduando biblioteconomia (UESPI) E-mail: [email protected]: 0009-0000-8951-7070 10

e outros para, com seus pressupostos, refletirmos acerca de um pensamento com o qual compactuamos: a empatia para com o Outro. Tais autores nos pro- põem uma educação mais humanizada. Uns são mais explícitos, como é o caso de Nussbaum (2005; 2015), Drobniewski (2012) e Freire (1987; 2016); outros deixam, aqui e ali, traços de preocupação com os rumos que a escola segue presentemente e que nos levará, possivelmente, a um futuro incerto, conforme aponta Adorno (2000) em sua obra direcionada à educação. A questão da empatia se insere em nossos propósitos no que concerne aos indígenas brasileiros, uma vez que são ainda hoje marginalizados; eles, porém, possuem uma cultura antiga e diversificada, não obstante ignorada pelos próprios brasileiros. Uma das consequências de tal desconhecimento é a discriminação e o racismo contra os nativos, o que nos motivou à investigação da cultura e da literatura infantil indígena e divulgação às crianças de uma escola amazônica. O contexto atual vivido no país e em diversos pontos do globo exige dos cidadãos saírem de seu individualismo, olharem para o Outro e exercitarem a empatia. Algumas das ideias errôneas acerca dos povos indígenas foram fincadas em nossas mentes durante séculos e fizeram com que esquecêssemos que os autóctones constituem uma importante parte do povo brasileiro, assim como os afrodescendentes, que nos transmitiram sua cultura, legando-a como marca a fim de formarmos nossa identidade. Não só o povo português faz parte dessa história, muitos outros povos deram sua contribuição para construirmos o que hoje chamamos de Brasil. Os indígenas que aqui estavam no momento da chegada dos europeus nos deixaram uma das bases de nossa cultura, principalmente quando tratamos do Pará, da Amazônia e das crianças amazônicas. Em meio a um país tão multicultural quanto o Brasil, há necessidade de levar à escola outras perspectivas, de autores literários que o cânone negligência, mas que apresentam narrativas eternizadas por serem recontadas continuamente. Há, portanto, que se repensar a educação, refletindo os valores de igualdade e cidadania para todos. A construção de uma escola mais democrática se tornará viável mediante uma escola conscientizadora e humanizadora, empenhada na autonomia dos educandos (ADORNO, 2000; NUSSBAUM, 2005; FREIRE, 2016), lutando contra o preconceito e o racismo. A obra literária, através de debates e reflexões, constitui importante motor para a sensibilização das pessoas que formam a sociedade, equilibrando-a, segundo Candido 11

(2004). A literatura se torna “fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade (...)” (CANDIDO, 2004, p. 174). É ainda esse intelectual que afirma: “a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela (...)” (CANDIDO, 2004, p. 174). Assim, a literatura é um agente da educação multicultural a propiciar a empatia (NUSSBAUM, 2005; 2015; LOBO, 2008; SEBASTIÁN; GUTIÉRREZ, 2008; MORGADO; PIRES, 2010; DROBNIEWSKI, 2012; BHABHA, 2013) porque oportuniza o contato do leitor com o Outro, fazendo-o sentir outros sentires, com personagens que vivem vidas diferenciadas da sua, daquela experimentada por quem lê a obra literária, alargando sua mundividência. Este estudo, portanto, apresentou e trabalhou as obras da literatura infantil e a cultura indígena em uma sala de aula, com crianças do ensino fundamental, a fim de se desfazerem conceitos equivocados sobre povos indígenas, promover a empatia e fomentar a apropriação da cultura escrita. Metodologia Com base em preocupações ligadas à questão dos povos indígenas no Brasil contemporâneo e à questão da apropriação da cultura escrita pelas crianças, apresentamos nossa questão inicial – de que modo a intervenção pedagógico-didática do professor, ancorada na exploração da leitura e da literatura infantil indígena, pode contribuir para um maior conhecimento e respeito aos povos indígenas e sua cultura e, consequentemente, amenizar processos de discriminação em sala de aula? Como objetivos do estudo buscamos: conhecer as atitudes e concepções das crianças relativamente às populações e culturas indígenas; preparar e orientar uma intervenção pedagógico-didática, apoiada principalmente na literatura infantil indígena, que ajudasse a modificar as concepções e atitudes, especialmente as que se revelassem de natureza discriminatória; e analisar em que medida essa intervenção na sala de aula serviu como meio de aprofundar o conhecimento dos discentes sobre essa cultura, promovendo a apropriação da cultura escrita pela criança leitora. Seguimos então a linha do estudo qualitativo, por investigar os discursos proferidos, indo ao lócus e averiguando com os sujeitos a compreensão da realidade através de suas representações, perscrutando sentimentos, inclinações, representações, 12

receios e até preconceitos dos falantes, fazendo-os aflorar, o que pode nos ajudar a compreender a sociedade. Por desenvolvermos experimentações em sala de aula usando metodologias inovadoras, adequando-nos e afinando-nos ao longo do processo, optou-se por uma aproximação à metodologia da Design Research (DR). A DR pressupõe a ação em um contexto com um problema detectado e o estuda com o intuito de aplicar intervenções para solucioná-lo (FREITAS JUNIOR; MACHADO; KLEIN; FREITAS, 2015). A recolha de dados se compôs de pesquisas em documentos, legislação brasileira, observações, notas de campo e entrevistas semiestruturadas. Oito foram as partes que compuseram a investigação: a) preparação do roteiro e da primeira entrevista semiestruturada, com sua aprovação; b) aplicação da entrevista; c) análise desta; d) elaboração dos planos das oficinas; e) intervenções na sala de aula (dez oficinas utilizando-se sempre a literatura infantil indígena e alguns artefatos desta cultura); f) preparação do roteiro e da segunda entrevista semiestruturada, com sua aprovação; g) aplicação da segunda entrevista; e h) análises dos dados. Utilizamos, inicialmente, como base de nossos estudos, leis como a Constituição de 1988; a lei 11645/2008, a qual torna obrigatório nas escolas básicas o ensino da cultura, da história indígena e afrodescendente; normatizações referentes à escola brasileira, a exemplo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, dos Parâmetros Curriculares Nacionais, da Base Nacional Comum Curricular e de políticas educacionais como o Programa Nacional Biblioteca Escolar, o Programa Nacional do Livro Didático e o Sistema Municipal de Biblioteca Escolar. Com a entrevista semiestruturada, vemos as marcas dos discursos hegemônicos incrustadas nas falas, suas subjetividades e fragilidades, ajudando-nos a enxergar e compreender tais representações. Em vista disso, elaboramos os roteiros para duas partes das entrevistas, uma antes da intervenção e outra logo em seguida a ela. Buscamos nossas respostas em alunos do quarto ano do Ensino Fundamental, na faixa etária de nove e dez anos, importante idade para alguns autores (KOEPKE, 2014), que a explicam como fase de início de uma compreensão maior dos fatos experienciados. A intervenção pedagógico-didática se sucedeu em quatro meses, de fevereiro a junho de 2017, com dez oficinas realizadas às quintas e sextas-feiras, de 7h30 às 9h30 da manhã, em uma sala de aula com 28 alunos. Porém, a amostra do nosso estudo foi constituída apenas por 17 crianças, por motivo de falta de assiduidade de algumas delas. 13

Resolvemos designar as sessões como oficinas para diferenciá-las das aulas comuns, dando-lhes uma configuração mais ativa da parte do alunado, com maior participação em atividades lúdicas. O corpus de nosso estudo e prática na escola se formou de histórias de autores indígenas, a exemplo de Daniel Munduruku (o escritor indígena brasileiro mais conhecido), Yaguarê Yamã e Kaká Jecupé; também compuseram esse rol escritores não indígenas, como Clarice Lispector, Ana Maria Machado, Juraci Siqueira e Marion Villas Boas, com fábulas ou histórias de animais, lendas, mitos e demais narrativas. Enumerando-as, utilizamos nas oficinas dez narrativas contadas pelos próprios escritores indígenas. De Kaká Werá Jecupé (2007): O buraco da onça, Iauaretê e a anta, O pajé e o ratinho e Iauaretê e o jabuti; de Daniel Munduruku (2001; 2006; 2009): Maracanã, O saber das avós, As serpentes que roubaram a noite; de Yaguarê Yamã (2001; 2014): Sobre a origem do mundo, Yaguarãboia, a mulher-onça e O fantasma da casa abandonada. E mais cinco recontadas por escritores não indígenas: Ana Maria Machado (2004): O Veado e a Onça (a mesma Iauaretê e a anta, de Kaká Werá Jecupé, com pequenas variações); Clarice Lispector (1999): O pássaro da sorte; Marion Villas Boas (2013): Jabuti e a anta e Jabuti e a onça; e Juraci Siqueira (2016): O mito da criação dos rios da Ilha de Marajó. As primeiras entrevistas nos serviram, entre outros objetivos, para observação da receptividade dos alunos acerca dos povos indígenas e de sua cultura. Em seguida a elas, analisamos os dados e continuamos com a intervenção pedagógico-didática realizada pela professora investigadora, enquanto fazíamos anotações do andamento de todas as oficinas. Tratava-se de observações e notas de campo feitas após cada oficina também pela investigadora. Em cada uma das sessões em sala de aula utilizamos histórias de livros de escritores indígenas e não indígenas que também contam histórias de nossos nativos. Depois da intervenção pedagógico-didática, demos prosseguimento para as segundas entrevistas, seguidas de sua análise de dados e comparação de ambas, para perceber se houve alguma modificação nas concepções e atitudes de natureza discriminatória da parte dos sujeitos-crianças, se houve um aprofundar de conhecimentos acerca da cultura indígena, promovendo a apropriação da cultura escrita pela criança. 14

Primeira entrevista A primeira entrevista semiestruturada continha 13 questões e pretendia identificar o nível de conhecimento das crianças acerca da cultura indígena, para posteriormente promover a leitura e a educação multicultural no meio escolar, estimulando maior respeito pelos povos indígenas e sua cultura. Cada uma foi designada com uma letra do alfabeto, de A a Q. Essa entrevista as encontrou inicialmente acanhadas, certamente por se tratar de um primeiro contato mais próximo, afinal, havíamos nos reunido apenas uma única vez antes, no dia em que nos apresentamos a elas. Ao estudar a criança de nove anos, Koepke (2014) acredita que esta não possui ainda a capacidade de abstração em profundidade, principalmente quando lida com problemas complexos. Por se tratar de entrevistas semiestruturadas, tais aspectos foram observados nas crianças ouvidas, pois esse tipo de entrevista proporciona maior liberdade às respostas propostas, sem seguir as questões rigidamente, deixando os falantes livres para falar abertamente. Precisamos saber de nossas crianças se elas conheciam algo da cultura indígena e se já haviam visto algum indígena antes; ao perguntarmos a uma delas o que pensava acerca destes, afirmou-nos que os “achava um pouco preguiçosos”. Outra, quando questionada como reagiria ao encontrar um indígena na rua, replicou: “Eu até o trataria bem”, levando-nos a supor que seria uma concessão tratar um indígena bem. Bakhtin (2000) nos fala de tais palavras ocultas ou semiocultas que o falante profere, “com graus diferentes de alteridade” (BAKHTIN, 2000, p. 318). É difícil ser empático com o outro quando ele é muito diferente de nós, ainda mais se não sabemos nada sobre ele antes. Ao fazer um apanhado dos termos utilizados pelos discentes na descrição acerca dos indígenas, obtivemos um resultado esperado. Clichês como: “sem roupa”, “pintados”, “com penas”, “palhas”, “flechas”, “eles comem eles mesmos”, “tatuagem”, “tem um negócio aqui grandão” (botoque), mostraram o desconhecimento que gera estereótipos, os quais formam o imaginário sobre indivíduos e cultura indígenas. Os entrevistados apresentaram ora uma visão romântica dos indígenas (“A pessoa [indígena] pode fazer tudo o que ela quer”, “são livres na vida deles, (...) podem fazer o que eles quiserem”) ora os relataram como selvagens, atrasados, seres que não têm nada a oferecer ou a ensinar a nossa sociedade: “para aprender a ler e escrever, falar com a gente, para ele conseguir passar de ano, pra ele saber como são as coisas”, “(...) 15

porque eles iam saber estudar”, “a gente pode ajudar melhor eles a terem mais amigos”, “porque eles estariam estudando, estariam aprendendo a ler”. Também alguns os ignoram completamente: “lá não tem escola”, “[o indígena] é negro”, “é negro, (...) cabelo enroladinho”, “ele é preto”, “loiros, os olhos podem ser azuis, verdes...”, “o olho azul”, “...ele usa tatuagem”. A maioria das crianças demonstrou ser receptiva para com os indígenas quando lhes foi perguntado se gostariam de conhecer uma aldeia indígena. Revelaram-se muito curiosas e interessadas em saber de sua cultura, sua habitação, seus costumes, sua vida mais livre, em contato com a natureza e os animais, daí por que se identificaram com os povos indígenas: “queria ver eles caçando”, “[vi] na TV e achei legal”, “gosto de saber o que eles fazem”, “eu queria ver como as casas são, como são as brincadeiras”. A criança é aberta ao novo e não demonstra preconceito ou racismo a não ser que tenha sido educada para rejeitar ou discriminar o Outro. Essa abertura podemos perceber nas falas: “porque ia poder tomar banho nos igarapés3 ”, “porque eu gosto do mato”, “lá [nas aldeias] é legal (...) dá pra brincar de qualquer coisa lá. Lá é maior.” Considerando que ainda não havíamos empreendido as oficinas, tais respostas nos serviram como indicadores de que as crianças necessitavam conhecer realmente a cultura indígena, e também de que a lei 11645/2008 precisa sair do papel e habitar as escolas brasileiras. As oficinas Iniciamos as intervenções pedagógico-didáticas, consubstanciadas em dez oficinas, após a primeira entrevista, já cientes de que os sujeitos de pesquisa, apesar de demonstrarem ignorância em relação à cultura indígena, achavam-se receptivos em relação a ela. Cada oficina foi elaborada de modo a apresentar atividades diferenciadas com recursos didáticos variados e muita leitura mediada, que promovesse a reflexão acerca da cultura e filosofia indígenas bem como a leitura e o conhecimento da literatura infantil indígena; enfim, a apropriação da cultura escrita. Nas oficinas, as práticas de caráter pedogógico-didático incorreram em leituras da literatura infantil indígena e dinâmicas ativas e inovadoras, sempre estimulando as crianças a participar delas bem como das reflexões baseadas nos temas, a partir do estudo das obras literárias. Empreendemos, outrossim: contação de histórias, 16

visionamento de vídeos, áudio de uma canção guarani com a cantoria das crianças, fabricação de objetos (casa de papel, animal de massinha), desenhos (de charges, história em quadrinhos), caça-palavras indígena, palavras cruzadas, um jogo de origem indígena, pintura corporal ou grafismo, dobradura de papel, contato com artefatos e adereços exclusivamente originários da cultura indígena. No momento inicial de cada sessão havia a contação de histórias promovida pela professora investigadora em determinadas ocasiões e, noutras, os alunos realizavam a leitura silenciosa ou oral. Esses momentos eram seguidos de discussão sobre aspectos das narrativas e os discentes contribuíam manifestando suas impressões acerca dos textos. Durante as oficinas houve alternância na apresentação de histórias contadas por escritores indígenas e não indígenas, como já relatado. No geral, eram feitas duas leituras em momentos diferentes de cada sessão, de modo que os alunos pudessem compreender e abstrair os elementos de cada texto antes que se iniciasse a contação da história seguinte. As atividades de cada dia eram feitas de acordo com o tema da oficina e diretamente relacionadas à narrativa apresentada naquela ocasião. Atividades lúdicas encerravam cada oficina para produzir nas crianças um efeito agradável, a fim de que elas voltassem na outra semana e vissem na escola bons momentos de aprendizado e lazer. Era um momento de descontração, pelo qual as crianças já esperavam entusiasmadas, pois se mostrou como rotineiro tornar a oficina mais divertida e desejada. Simpatizantes das ideias de Tolstói (2005), cuja pedagogia propiciava uma “aprendizagem participante e criativa” (TOLSTÓI, 2005, p. 16), entendemos que toda aula para crianças deve ser motivadora e oferecer a oportunidade para elas se descontraírem e aprenderem brincando. Ao final de cada oficina, sempre estimulávamos os alunos a buscarem na biblioteca da escola textos de literatura infantil indígena para serem lidos em casa e posteriormente comentados em sala de aula. Segunda entrevista A segunda parte das entrevistas se realizou após a intervenção pedagógico-didática e objetivava reconhecer o nível de conhecimento dos educandos no 17

tocante à cultura indígena e promover a educação multicultural com mais consideração pelo povo indígena. Foram um total de quinze perguntas, divididas novamente em dois blocos: a) conhecimento: aprofundar o conhecimento da cultura indígena; e b) respeito: possibilitar a educação multicultural com mais consideração pelo povo indígena e por sua cultura, de maneira que fosse possível esquematizar as respostas para posterior análise. Optamos novamente por utilizar o mesmo código alfabético da entrevista anterior com cada entrevistado. Iniciamos essa segunda rodada de perguntas desejando saber o que as crianças pensavam acerca de ideias que são divulgadas sobre os indígenas, como a de que eles se alimentam de carne humana ou são preguiçosos. A maioria dos discentes se posicionou por não concordar com tais ideias, embora alguns não tenham conseguido desenvolver um raciocínio claro sobre a questão, provavelmente em decorrência da imaturidade natural da idade. Ilustrando os cinco séculos de preconceitos ligados à cultura indígena, três alunos compactuaram com as ideias preconceituosas expostas na pergunta, certamente por ouvirem discursos tão veiculados na sociedade, que ainda associam o indígena ao canibalismo e à preguiça. Merecem destaque as respostas ao seguinte questionamento, o qual inquiria se a criança gostara de ter conhecido algo mais sobre a cultura indígena. Houve unanimidade na aceitação e satisfação em conhecer a cultura e literatura indígenas. Determinadas crianças manifestaram: “Ahã. Porque é legal. Tem gente que acha muito chato trabalhar com os índios, tem gente que gosta até de escravizar os índios. Mas tem gente que gosta deles”. Alguns alunos enfatizaram que gostaram de aprender sobre a cultura indígena. Um deles até destacou os detalhes mais significativos do aprendizado: “Sim, porque a gente aprendeu as palavras que eles usam. A gente aprendeu as palavras indígenas, a gente soube dos índios”. De modo geral, os discentes apontaram as oficinas como benéficas; nelas, obtiveram a oportunidade de conhecer novas palavras, narrativas diferenciadas, um jogo, brincadeiras divertidas – experiência considerável em sua formação como cidadãos. Uma de nossas questões fez referência ao conhecimento das crianças sobre a autoria dos textos indígenas. A maioria dos entrevistados (quatorze dos dezessete) admitiu ter conhecido; entretanto, alguns, provavelmente em virtude da complexidade das palavras indígenas, não conseguiram se lembrar dos nomes com exatidão. Outros, 18

apesar das dificuldades da nomenclatura dos escritores ameríndios, souberam citar com precisão o nome de Kaká Jecupé – autor de quatro das narrativas escolhidas para a oficina. Outro autor lembrado pelas crianças foi Daniel Munduruku. Os textos sobre onças foram os campeões no gosto dos alunos, que inclusive citaram os mais impactantes, lembrando-se da trama e dos nomes complexos de personagens como Iauaretê e Yaguarãboia. Entre os dezessete entrevistados, apenas três não se lembraram de nenhum texto, apesar da contação de histórias em sala de aula. Quando lhes foi indagado sobre o que pensavam da pintura corporal ou grafismo, a maior parte das crianças demonstrou empolgação em conhecer essa arte. Uma das respostas de um dos entrevistados a essa mesma questão se revelou bastante apreciável: “Eu gostei muito [ênfase]. Porque quando eu cheguei lá em casa, a mamãe disse que eu não ‘tava’ parecendo eu mesma, parecia que eu tinha ido na tribo do meu avô, e me pintaram todinha!”. Tal fato já fora detectado de antemão pela professora investigadora, uma vez que, durante a realização dessa atividade lúdica, os discentes se mostraram alegres e ansiosos para que chegasse logo o momento de ter os grafismos pintados em sua pele. Curiosamente, um aluno, que inicialmente não desejara participar desta atividade, ao observar a animação de seus colegas, mudou de opinião e teve o rosto pintado, assim como os demais. A penúltima pergunta indagava sobre a possibilidade de a criança se encontrar com um indígena. Dos dezessete entrevistados, a maioria respondeu positivamente, dizendo que tratariam o indígena bem. Não obstante, as justificativas foram as mais diversas, tais como a de um aluno, que afirmou desejar ser amigo deles, ensejando também ser um indígena. Outrem declarou que não devemos maltratá-los e ainda outro proferiu que lhes daria um presente. Os entrevistados demonstraram, explicitamente ou de modo velado, que admiram o estilo de vida indígena – ao respeitar os animais e a natureza, consideram positivamente os índios e reconhecem o seu direito de lutar por suas terras. Algumas crianças, que se mostraram mais empedernidas na visão estereotipada do indígena, em suas últimas respostas confirmaram a nós uma sensibilização pelos índios e sua cultura. 19

Conclusões Ao observar os objetivos das entrevistas junto às intervenções e tendo como norte a questão inicial de nossa investigação, isto é, um trabalho sistemático com aporte principal da literatura infantil indígena na escola básica, a fim de tornar a cultura indígena mais visível e promover a empatia nos discentes bem como a sua apropriação da cultura escrita, levamos à escola uma cultura que, apesar de ter seu valor, sofre processos de discriminação junto a povos que formaram a nação brasileira. Uma gama de autores nos fizeram crer que é possível uma educação mais humanizada, aqui também chamada de educação multicultural. Todos eles estão, de algum modo, comprometidos com uma educação diferenciada e conscientizadora, que possa dar conta do futuro que se espraia; para isso, no entanto, devemos plasmar nossas crianças com o barro da solidariedade e da cidadania. O papel da literatura é preponderante porque, com ela, podemos enxergar além das aparências e sair de nosso mundo cercado de conformismos. A reflexão vem da leitura atenta e da compreensão do que está escrito. Lemos no livro, no Outro e imediatamente comparamos com o que pensamos e vemos em nós e na sociedade. A leitura nos força a enxergar o que está encoberto. Confirmamos, em nossos estudos, com a primeira entrevista, haver um preconceito meio velado e um grande desconhecimento dos indígenas, nos discursos dos sujeitos entrevistados, mas verificamos também o desejo que nasce da curiosidade de conhecer algo mais desses povos, de sua cultura e a disposição de recebê-los bem. Os alunos não conheciam nenhum autor ou obra de literatura infantil indígena antes de nossa intervenção pedagógico-didática, porém, a partir do momento em que tiveram contato com essas histórias e as leram, notamos que as apreciaram; e mesmo em relação aos próprios indígenas, seu jeito de ser e de viver foi apreciado e admirado. Houve identificação; daí a boa recepção para com a cultura que lhes apresentamos, mostrando-se sensíveis aos dramas vividos pelos indígenas, como a luta pelos territórios e por sua cultura milenar. Mas o que mais ficou patente na preferência das crianças foram as narrativas indígenas, contadas ou lidas. A boa receptividade das oficinas foi perceptível, possivelmente por trazer elementos inéditos, como a literatura e os artefatos pertencentes à cultura indígena. A maior parte da turma se recordou das histórias lidas na aula anterior; houve evolução 20

também na leitura oral praticada pelos alunos, uma vez que, nas primeiras sessões, eles se mostravam titubeantes no momento de ler em voz alta e, posteriormente, apresentaram-se mais desenvoltos e empolgados na leitura compartilhada, o que solidificou em nós a crença de que tais atividades são essenciais para o desenvolvimento do potencial dos jovens leitores e precisam ser estimuladas continuamente na escola. Contrapondo as duas entrevistas e levando em consideração a importância das oficinas, constatamos que a intervenção pedagógico-didática foi profícua, haja vista que anteriormente os discentes demonstraram total ignorância com relação aos povos indígenas e sua cultura, mas, após as oficinas, puderam conhecer vocábulos, narrativas e instrumentos musicais, entre outros artefatos e aspectos da riqueza milenar desses povos. As expressões de carinho e de boa receptividade observadas nas segundas entrevistas suplantaram aquelas de caráter depreciativo detectadas nas primeiras entrevistas acerca dos indígenas. Tanto que as atividades lúdicas de culminância, sempre promovidas ao final de cada sessão, deixaram claro a participação total das crianças, comprovando o sucesso obtido na intervenção pedagógico-didática, leitmotiv principal de nossa investigação. Terminamos nosso estudo, novamente, com Candido (2004) e seu pensamento sobre o poder da literatura (e da cultura, acrescentamos nós) na luta contra a discriminação e o racismo: “a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual” (CANDIDO, 2004, p. 186). Acreditamos assim que os objetivos dessa investigação foram concretizados, contribuindo para a apropriação da cultura escrita, por parte das crianças, e para o seu conhecimento e modificação de algumas concepções e atitudes perante a cultura e perante os próprios povos indígenas. 21

Referências ADORNO, T. W. Educação e emancipação. Tradução de W. L. Maar. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2000. BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Tradução de P. Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BHABHA, H. O local da cultura. Tradução de M. Ávila, E. L. Reis, G. R. Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2013. BRASIL. Lei n. 11645/2008, de 10 de março de 2008. Altera a Lei n. 9394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei n. 10639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11/3/2008, Seção 1, p. 1. CANCLINI, N. G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da Modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015. CANDIDO, A. O direito à literatura. In: Candido, A. Vários Escritos. São Paulo, Brasil: Duas Cidades, 2004. p. 169-191. DROBNIEWSKI, H. M. La educabilidad de las emociones y su importancia para el desarrollo de un ethos democrático: La teoría de las emociones de Martha Nussbaum y su expansión a través del concepto de autorreflexión. Valencia: Universidad de Valencia, 2012. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1987. FREIRE, P. Conscientização. São Paulo: Cortez, 2016. FREITAS JUNIOR, J.; MACHADO, L.; KLEIN, A.; FREITAS, A. Design Research: Aplicações práticas e lições aprendidas. Revista de Administração FACES Journal, Belo Horizonte, MG, v. 14, n. 1, jan./mar. 2015, p. 95-116. Disponível em: http://www.fumec.br/revistas/facesp/article/ view/1999. Acesso em: 05 set. 2019. KOEPKE, H. A criança aos 9 anos: a queda do paraíso. Tradução de C. T. Bottura. São Paulo: Antroposófica, 2014. LOBO, I. T. Coordenadas teóricas y contextuales de la educación literaria ante el desafio intercultural. In: LOBO, I. T. (Org.). Leer la Interculturalidad. Santander: Universidad de Cantabria, 2008. p. 38-87. MORGADO, M.; PIRES, M. N. Educação Intercultural e Literatura Infantil: vivemos num mundo sem esconderijos. Lisboa: Colibri, 2010. NUSSBAUM, M. C. El cultivo de la humanidad: una defensa clásica de la reforma en la educación liberal. Barcelona: Paidós, 2005. NUSSBAUM, M. C. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. Tradução de F. Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2015. 22

SALES, M. L. A literatura infantil indígena como meio de promoção da educação multicultural. A intervenção didática em uma escola de Belém (Brasil). 2019. Tese (Doutoramento em Ciências da Educação) – Instituto de Investigação e Formação Avançada, Universidade de Évora, Évora, 2019. SEBASTIÁN, R. G.; GUTIÉRREZ, B. R. Aproximaciones y propuestas para una didática de los valores a través de las lecturas literarias. In: LOBO, I. T. (Org.). Leer la Interculturalidad. Santander: Universidad de Cantabria, 2008. p. 88-113. TOLSTÓI, L. Contos da nova cartilha: primeiro livro de leitura. Cotia: Ateliê Editorial, 2005. Sobre as autoras: Maria da Luz Lima Sales é graduada em Letras (Universidade Católica do Paraná), Mestre e Doutora em Ciências da Educação (Universidade de Évora, Portugal). É professora/pesquisadora no Instituto Federal do Pará. Tem expe- riência na área de Educação Literária, ensino de literatura brasileira, com pesquisa em literatura infantil, e literatura infantil indígena no grupo GELLA (Grupo de Estudos Literários e Linguísticos da Amazônia) pelo CNPq. E-mail: [email protected]. Ângela Balça é licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – Estudos Portugueses (Universidade Nova de Lisboa) e doutorada em Ciências da Educação (Universidade de Évora). É professora/pesquisadora na Universidade de Évora e na Universidade do Minho. Tem experiência na área de Educação Literária com pesquisa nos seguintes temas: Formação de Leitores Literatura Infantil e Ensino da Língua Materna. E-mail: [email protected]. Recebido em 02 de agosto de 2019 e aprovado em 25 de novembro de 2019. 23

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A contribuição da literatura infantil no processo de construção da identidade étnico-racial na educação infantil Cleidineyly de Sousa Borges Oliveira¹ RESUMO: Este trabalho objetiva analisar a contribuição da literatura infantil no processo de construção da identidade étnico-racial na educação infantil e discutir as representações de crianças negras nas histórias infantis. Pretendeu-se também discutir a importância de se trabalhar literatura com temáticas voltadas às relações étnico-raciais na educação infantil. A metodologia utilizada foi a análise cultural das obras literárias infantis “Betina” e “Makeba vai à escola” a partir da revisão bibliográfica de autoras negras, como: Nilma Lino Gomes e Ana Fátima Cruz dos Santos, que tratam das relações étnico-raciais representadas por personagens infantis. Referente à literatura infantil para as relações étnico-raciais, em sua maioria as negras e negros são representados de forma estereotipada. A lei 10.639/03, evidenciou a necessidade de se trabalhar a cultura da população negra e indígena na escola, estimulando a oferta de materiais que tratem desse tema. É importante que as crianças negras se vejam etnicamente representadas em obras literárias que lhes possibilite a construção de sua identidade e pertencimento. A análise dos dados nos permitiu reflexões e novos olhares voltados para a construção da identidade étnico-racial na educação infantil através da literatura infantil. Palavras-chaves: Literatura infantil; Identidade étnico-racial; Educação infantil. ABSTRACT : This project has a goal to analyze the contributions of children’s literature in the process of building an ethnic-racial identity on childhood education and discuss the representations of black children in children’s stories. It was also intended to discuss the importance of working literature with themes related to ethnic-racial relations in early childhood education. The methodology used was the cultural analysis in children’s literary work “Betina” and “Makeba vai à escola” from the bibliographical review of black authors as Nilma Lino Gomes and Ana Fátima Cruz dos Santos who deal with ethnic-racial relationships represented for children’s characters. Regarding children’s literature to the ethnic-racial relationships mostly black people are represented in a stereotyped way. The law 10.639/03 has shown the need to work the black and indigenous population culture in the school stimulate the offer of materials that deal with this theme. It’s important that the black children see themselves ethnically represented in literary works that enable them to build they identity and belonging. An analysis of the data allowed us reflections and new perspectives on the construction of ethnic-racial identity on childhood education throw children’s literature. Keywords: Children’s literature; Ethnic-racial identity; Childhood education. INTRODUÇÃO A literatura infantil é um recurso fundamental e significativo para a formação do sujeito uma vez que propõe indagações ao leitor, estimula a curiosidade, permite a produção de novos conhecimentos e é importante para o desenvolvimento de um leitor crítico, fluente e pensante. 25

O contato com a literatura infantil proporciona às crianças diferentes experiências, possibilitando o desenvolvimento linguístico, a imaginação, emoções e sentimentos de forma significativa, desenvolve também os aspectos emocionais, sociais e cognitivos, criando condições favoráveis para a aprendizagem. O encontro da criança com a obra literária geralmente estimula o gosto pela leitura e nesse contexto a literatura infantil torna-se importantíssima na educação infantil em suas várias possibilidades: divertindo, estimulando a imaginação, desenvolvendo o raciocínio e a compreensão de mundo. Na Literatura Infantil observa-se que o debate das diferenças na educação tem-se ampliado cada vez mais. Começou-se a incorporar em seus enredos e ilustrações temáticas, como gênero, etnia, raça, deficiência física, e muitos desses livros estão impregnados de uma perspectiva favorável ao discurso da diversidade e das diferenças. E onde os protagonistas deixam de ser os personagens brancos, tidos como belos, fortes, abrindo espaço para protagonistas negros, índios, excluídos, portadores de necessidades específica, dentre outros. Podemos considerar que paulatinamente, a partir do final da década de 90 do século XX, com grande participação dos movimentos sociais, ocorreu um aumento das ações e políticas governamentais de inclusão social no Brasil que impulsionou a tematização das diferenças no espaço escolar. Como marco dessas políticas, destaca-se a aprovação e implementação da Lei 10.639/2003 (alterada pela 11.645/2008) que incluiu no currículo oficial das escolas das redes de ensino público e privado, a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, que permitiu dar maior visibilidade ao debate, reflexão e ações sobre a história e a cultura da população negra e indígena do nosso país. Nessa perspectiva, faz-se necessário refletir: Qual a contribuição da Literatura Infantil no processo de construção da identidade étnico-racial em alunos e alunas da Educação Infantil? Esse estudo tem por objetivos analisar as contribuições da Literatura Infantil no processo de construção da identidade étnico-racial na Educação Infantil, bem como evidenciar as representações de crianças negras nas histórias infantis. Pretendeu-se também discutir a importância de se trabalhar literatura infantil com temáticas voltadas às relações étnico-raciais na educação pré-escolar. Para isso, a metodologia qualitativa escolhida foi à análise cultural de duas obras literárias infantis: Betina (2009) e Makeba vai à escola (2019) a partir da revisão bibliográfica de autoras negras que estudam a literatura infantil a exemplo de Nilma Lino Gomes (2009) e Ana Fátima Cruz dos Santos (2019), que tratam das relações étnico-raciais representadas por personagens infantis. 26

A escolha do tema se justifica em razão do contato com literatura infantil na infância e investigações na graduação, referente aos estudos das relações étnico-raciais, aprofundados na especialização em Educação e Diversidade Étnico-Cultural da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia despertou-me o interesse em pesquisar as contribuições da literatura infantil para a construção da identidade étnico-racial das crianças na Educação Infantil. Sabendo que a Literatura exerce um papel importante na vida de uma criança, podendo trazer transformações, foi fundamental nesta pesquisa, compreender a Literatura Infantil enquanto gênero literário em construção, que traz em suas narrativas, temáticas, discussões e representações culturais. No que se refere à literatura infantil para as relações étnico-raciais é fato que em sua maioria os negros e negras são simbolizados de forma estereotipada com um padrão ideológico que não os representa. Dessa maneira, destaca-se a importância de ofertar às crianças da Educação Infantil a possibilidade de se verem representadas em obras de literatura de forma significativa, buscando fomentar reflexões sobre a construção de sua identidade e concepções de pertencimento ao seu grupo social. O NEGRO NA LITERATURA INFANTIL Para Cademartori (1991), a palavra literatura é intransitiva e, independente do adjetivo que receba, é arte e objeto de deleite. O termo infantil associado à literatura não significa que ela tenha sido feita necessariamente para crianças. A literatura infantil acaba sendo aquela que corresponde de alguma maneira, aos anseios do leitor e que se identifique com ele. Em uma perspectiva europeizada, estudos literários relatam que a Literatura Infantil na Europa teve início no final do século XVII, quando, em 1697, Charles Perrault publicou seu livro “Contos da Mamãe Gansa”. No Brasil a Literatura Infantil surge muito tempo depois, no final do século XIX, de maneira isolada, como diz Lajolo e Zilbermam (2007, p. 21) quando foi “registrada daqui e ali, a notícia do aparecimento de uma ou de outra obra destinada às crianças”. O aumento da urbanização no Brasil entre o final do século XIX e início do XX, torna-se o momento ideal para o aparecimento da literatura infantil. Nesse momento tem “[...] os primeiros esforços para a formação de uma literatura infantil brasileira, esforços até certo ponto voluntários e conscientes.” (LAJOLO; ZILBERMAM, 2007, p. 25). 27

As adaptações da literatura infantil que chegavam ao Brasil nem sempre eram de contos de fada. A partir da República, a literatura, juntamente com a escola, foi imprescindível para a formação do cidadão, com obras literárias mais voltadas ao pedagógico, trazendo adaptações portuguesas que mostravam a dependência que existia entre as colônias. Zilberman (2005) destaca alguns autores importantes da história da literatura brasileira: Carl Jansen, Figueiredo Pimentel e Olavo Bilac são os desbravadores da literatura infantil brasileira. Sem eles, talvez os livros nacionais para as crianças demorassem a aparecer (ZILBERMAM, 2005, p. 19). Em 1942, Lourenço Filho faz um balanço da literatura infantil de seu tempo e chega à conclusão de que a quantidade de livros publicados não justificava entusiasmo, pois muitas dessas obras eram adaptações e traduções com pouca qualidade, tanto na concepção, quanto na estrutura e na linguagem. No que se refere à indústria do livro infantil, Lajolo e Zilbermam (2007) analisam, que mesmo a quantidade não conferindo qualidade, a indústria do livro para crianças se afirmara como conseqüência do trabalho da geração modernista. Para os autores novos, a tarefa não era mais a de conquistar um mercado, mas a de mantê-lo cativo e interessado (LAJOLO; ZILBERMAM, 2007, p. 82). As literaturas até os anos de 1950 abordavam o homem do campo, valorizavam a agricultura, muitas vezes como refúgio da vida urbana. O elogio do Brasil rural marcava claramente a maioria das histórias voltadas à infância. Já na década seguinte a vida urbana é destaque nas literaturas, muitas obras retratavam a realidade urbana e a marginalização econômica vivida por crianças e jovens Então, temas como pobreza, miséria, injustiça e marginalidade, o cenário urbano passam a ocupar o lugar central da narrativa infantil contemporânea. Os mistérios das florestas amazônicas muitas vezes com tendência escapista e a aventura eram recorrentes nas literaturas infantil e juvenil e escondiam a realidade da época, marcando assim o gênero desse período. Negavam as figuras originais como o negro e o índio. Em 1970, a literatura infantil passa por uma nova estruturação e, essas mudanças favoreceram para o reconhecimento desse gênero literário pela escola. Para Zilberman (2005, p. 52) a década de 70 do século passado, foi como se a literatura infantil brasileira começasse a recontar a história, rejeitando o que a antecedeu e recusando mecanismos simplórios de inserção e aceitação 28

social. Graças a essa empreitada arriscada, ela ganhou, sem barganhar, espaço na escola e junto ao público. A recompensa foi seu crescimento qualitativo, que a coloca num patamar invejável, mesmo se comparada ao que de melhor se faz para a criança em todo o planeta. Essa nova estruturação que acontece na literatura infantil nesse período, passa a ser positivo, traçando características com linguagem moderna e com temas atuais. Foram destaque daquela década autores como: Ana Maria Machado, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Maria José Dupré, Mário Quintana, Ruth Rocha, Vinícius de Morais e Ziraldo. Com a valorização dos livros infantis, cuidados maiores ao produzi-los foram considerados e eles ganharam mais espaço, humor e cor. Assim sendo, Lajolo e Zilberman (2007) concordam que tanto esses autores como as obras produzidas parecem indicar o encerramento de um ciclo em que a literatura infantil teve como característica a representação desmistificadora do real. Dessa forma, toda essa evolução da literatura infantil brasileira ocorreu, como mencionado no início, através da modernização do país, transformações que favoreceram diretamente esse tipo de literatura, uma vez que a indústria de livros se firmou e a escola se desenvolveu, fortalecendo o vínculo entre literatura e ensino, vínculo este, presente até os dias de hoje. Ao longo da história, percebem-se as mudanças com relação à literatura infantil, transformações que foram favoráveis a diversas linguagens, possibilitando busca de aprendizagens e descobertas que a tornaram relevante e importante na formação da criança. Marcado pela falta de oportunidades, a imagem do negro esteve sempre presente na literatura, mas, não existia a imagem positiva do negro nos livros, apenas os personagens brancos eram valorizados e considerados como padrão de beleza, de comportamento e de cultura. De acordo com Gouvêa (2004), somente na década de 1930 é que se consolida a presença dos personagens negros na produção literária infantil, sobretudo, como narradores, apresentando a forte presença de traços associados à cultura negra, como a oralidade, a transmissão de histórias de origem africana. Oliveira (2003) aponta que o modo como o branco vê o negro, até os dias atuais, foi moldado desde a infância pelas histórias nas quais a negritude era associada ao mal e quem fazia maldade eram negros. A reiteração feita pela autora é relevante, pois por muito tempo algumas cantigas e histórias eram contadas ou cantadas pelos adultos para assustar crianças (ou até como forma de ninar), como por exemplo, “Boi da cara preta”, “O homem da pasta preta”, entre outras. 29

Araújo (2018) enfatiza em seu artigo “As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil” onde trabalhou com pesquisas da pós-graduação em Educação, desenvolvidas entre os anos 2003 a 2014, ao analisar textos e autores de época, que os resultados sobre a literatura, apontam para mudanças, ainda que pequenas, na representação de personagens negras, com menos tendência a estereótipos raciais, e valorização da estética negra. No entanto, de modo geral, ainda se observa nos acervos analisados, a condição das personagens negras de sub-representação, com destaque ainda para personagens não negras. Na referida pesquisa Araújo (2018) também pôde observar, que quanto mais antiga seja a obra, maiores são as chances de conter caracterizações reducionistas, negativas e racismo implícito ou explícito, com representações estereotipadas associando as personagens à miséria, à violência, a contextos de humilhação por seus atributos físicos. Na atualidade a Literatura Infantil voltada às relações étnico-raciais busca a valorização do ser negro, retratando situações cotidianas, valorizando os costumes, as tradições e as culturas, transformando-se em um importante meio de preservação de suas tradições e construção de sua identidade. Graças ao vínculo da Literatura Infantil com valores pedagógicos, tornouse cada vez mais comum que esse gênero literário pudesse trabalhar com assuntos e valores considerados importantes e atuais para a formação das crianças. Nas últimas décadas, tem-se registrado um crescimento em relação à essa temática nas obras infantis, principalmente após a promulgação da Lei 10.639/2003, acrescentada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394 (20/12/1996) tornou obrigatório, o ensino da cultura e da história Afro-Brasileira e Africanas nas escolas. Desde final dos anos de 1990 e anos 2000, de acordo com Silveira et al. (2012, p. 20), as: temáticas ligadas às diferenças, como etnia, deficiência física e mental, gênero, orientação sexual, velhice, obesidade, passaram a constituir campo fértil para a literatura infantil, dada a quase consensual concepção - entre os educadores- de que a abordagem de temas por meio de produtos culturais de “entretenimento”, como livros de literatura infantil, filmes, desenhos animados, jogos, é sempre mais produtiva e fecunda. Com o objetivo de auxiliar os sistemas brasileiros de ensino e os educadores, nas questões referentes às propostas pedagógicas, com reflexões e discussões, surgiu em 2004 as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Sendo assim, conhecer a importância dos documentos legais como as Diretrizes Curriculares Nacionais para 30

Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, as Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Infantil e Base Nacional Comum Curricular pelos professores (até pelas famílias) a fim de garantir a todos o direito que lhes é próprio, se faz necessário desde a Educação Infantil, pois é preciso que o Brasil, país multi-étnico e pluricultural, de organizações escolares em que todos se vejam incluídos, em que lhes seja garantido o direito de aprender e de ampliar conhecimentos, sem ser obrigados a negar a si mesmos, ao grupo étnico/racial a que pertencem e a adotar costumes, idéias [sic.] e comportamentos que lhes são adversos. E estes, certamente, serão indicadores da qualidade da educação que estará sendo oferecida pelos estabelecimentos de ensino de diferentes níveis (BRASIL, 2004, p. 11). Deste modo, a escola tem o papel de combater o preconceito, cuidando em não reproduzir estereótipos que desqualifiquem grupos raciais e étnicos, sendo um espaço democrático onde todos possam ser iguais tendo os mesmos direitos. Conforme apresenta as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil o currículo deverá incluir: O reconhecimento, a valorização, o respeito e a interação das crianças com as histórias e as culturas africanas, afro-brasileiras, bem como o combate ao racismo e à discriminação (BRASIL, 2010). A influência das tematizações das diferenças e das relações étnico-raciais desde cedo na Educação Infantil favorece o trabalho pedagógico, ao passo de uma educação inclusiva e multicultural, pois possibilita a valorização da identidade e respeito às diferenças, oportuniza a construção dos diversos conhecimentos culturais e sociais, ajudando a criança no processo de construção de sua identidade. Sobre a educação das relações étnico-raciais, Passos (2012), afirma que a mesma exige: novas aprendizagens e novas sociabilidades para um projeto coletivo de uma Educação Infantil mais democrática, justa e plural, principalmente, se compreendemos que as crianças se constituem nas interações que lhes são propostas pelos adultos e nas que elas próprias estabelecem entre si em diferentes contextos. Interações essas permeadas por seus pertencimentos étnico-raciais, de gênero, de classe, de religiosidades, de localização geográfica, etc. São meninos e meninas constituídos por diferentes fatores socioculturais que os tornam singulares, mas também são parte de grupos sociais que em grande medida, são negligenciados e invisibilizados nas instituições educativas (PASSOS, 2012, p. 111). Desta maneira, pode-se afirmar que há uma relevante contribuição da Literatura Infantil na construção da identidade étnico-racial da criança no espaço escolar, pois as mesmas acabam se identificando com as personagens negras das histórias infantis. 31

CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL O processo de colonização no Brasil foi, por muito tempo, marcado pela escravização e, mesmo nos dias atuais, o racismo tem colocado o negro em condições hierarquicamente inferiorizadas socialmente, mesmo sendo o Brasil um país formado pela miscigenação de vários povos. Considerada pela elite branca como cultural e biologicamente inferior, acreditavam que o Brasil não teria condições de se desenvolver e progredir. Na afirmação de Castilho (2004, p. 106) o progresso brasileiro se daria com o branqueamento através da miscigenação com as “raças mais desenvolvidas” (os brancos europeus), até extinguir a “raça negra inferior”. No Brasil os maiores representantes desse pensamento foram Oliveira Viana e Nina Rodrigues (CASTILHO, 2004 p. 106). De acordo com Munanga (2008), a pluralidade racial nascida do processo colonial representava uma ameaça para a elite branca da época e vários intelectuais interessaram-se na formulação de uma teoria que definisse o brasileiro enquanto povo e o Brasil como nação. Destacamos: Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manuel Bonfim, Nina Rodrigues, João Batista Lacerda, Edgar Roquete Pinto, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, que de modo geral foram influenciados pelo pensamento do determinismo biológico do séc. XIX e meados do séc. XX e “acreditavam na inferioridade das raças não brancas, sobretudo a negra, e na degenerescência do mestiço” (MUNANGA, 2008, p. 52). Esses intelectuais pensavam em criar uma nova etnia e uma nova civilização brasileira, sem discutir a possibilidade de consolidação de uma sociedade plural, mesmo que o Brasil tenha nascido historicamente plural. Em contraposição, surgem nos anos 70 do século passado vários pesquisadores negros no Brasil e militantes das causas étnico-raciais discutindo e dando visibilidade às questões plurirracial e pluriétnica. Ao longo da história brasileira, a luta de combate ao racismo e das desigualdades raciais pelos movimentos negros possibilitou a inserção das questões étnico-raciais na educação brasileira, como a história do povo negro, valorização e respeito étnico, construção identitária, além da criação de políticas de promoção da igualdade racial. A ideia que um indivíduo faz de si mesmo, do seu “eu”, é intermediada pelo reconhecimento obtido dos outros em decorrência de sua ação. Nenhuma identidade é construída no isolamento, ao contrário, é negociada durante a vida toda por meio do 32

diálogo, parcialmente exterior, parcialmente interior, com os outros. Gomes (2008, p. 21), ressalta sobre a construção da (s) identidade(s) negra (s), para ela: No Brasil, a construção da(s) identidade(s) negra(s) passa por processos complexos e tensos. Essas identidades foram (e têm sido) ressignificadas, historicamente, desde o processo da escravidão até as formas mais sutis e explícitas de racismo, à construção da miscigenação racial e cultural e às muitas formas de resistência num processo [...] É nesse processo que o corpo se destaca como veículo de expressão e de resistência sociocultural, mas também de opressão e negação. Nesse sentido, é possível verificar, que referente à Literatura Infantil e a construção de identidade étnico-racial da criança, a presença positiva do negro no livro é muito importante, principalmente se este livro for acessado por crianças negras e não negras, nos diversos espaços sociais, possibilitando a interação do leitor com temáticas voltadas para as relações étnico-raciais, contribuindo para o respeito à diversidade e a tolerância/aceitação. A leitura de histórias na educação infantil tem ajudado a provocar de forma especial o conhecimento do mundo, que segundo o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI): é um momento em que a criança pode conhecer a forma de viver, pensar, agir e o universo de valores, costumes e comportamentos de outras culturas situadas em outros tempos e lugares que não o seu. A partir daí ela pode estabelecer relações com a sua forma de pensar e o modo de ser do grupo social ao qual pertence. (BRASIL, 1998, p. 143). Assim, escola se apresenta como um espaço privilegiado para a construção da identidade, que poderá levar a criança a entender o seu eu, diferenciando-se do outro, levando-a a conhecer a sua própria história e histórias de outras gerações, proporcionando a troca de conhecimentos, construindo assim a identidade pessoal e cultural em meio ao social. NARRATIVAS INFANTIS E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE Contar histórias é uma prática que existe desde tempos antigos, as narrativas eram transmitidas oralmente de geração em geração. A prática de contar histórias oralmente acompanha o homem desde seu surgimento no mundo, sendo presente nas mais diferentes culturas, construindo representações de mundo. Segundo Abramovich (1991), o primeiro contato da criança com um texto é realizado oralmente, tendo como narrador uma voz familiar, a autora destaca a importância de as crianças ouvirem histórias, pois: 33

Escutá-las é o início da aprendizagem para ser um leitor, e ser leitor é ter um caminho absolutamente infinito de descoberta e de compreensão do mundo (ABRAMOVICH, 1991, p. 16). Na perspectiva de que a literatura pode, ao longo desse caminho, levar pequenos ouvintes/leitores a compreenderem o mundo ao seu redor e o seu lugar nesse mundo, logo, nota-se à importância de oferecer obras literárias que abordem temas étnico-raciais desde a Educação Infantil. Assim, essa pesquisa se propôs a analisar as obras “Betina” de Nilma Lino Gomes e “Makeba vai à escola” de Ana Fátima Cruz dos Santos. Nilma Lino Gomes (2009) em seu livro “Betina”, com ilustrações de Denise Nascimento, destaca o aspecto de que a oralidade não só é essencial para a conservação de tradições culturais, resgatando a história de um povo, processo voltado à construção da identidade negra na atualidade. A narrativa de “Betina” é sobre uma menina negra e seu convívio com a avó, que lhe transmiti conhecimentos, costumes, crenças e valores de várias gerações para a neta, enquanto trança os seus cabelos, pois: Enquanto trançava, avó e neta conversavam, cantavam e contavam histórias. Era tanta falação, tanta gargalhada que o tempo voava! E, no final o resultado era um conjunto de tranças tão artisticamente realizadas que mais parecia uma renda (GOMES, 2009, p. 6). A importância da transmissão oral de saberes de geração a geração é reforçada nas ilustrações. Além da avó e da menina, a figura da boneca, também negra e de cabelos trançados, vem mostrar o caminho da difusão de conhecimentos, experiências e tradições. Transmitir a habilidade de trançar cabelos é um modo de preservação da identidade negra, por parte da avó, e de construção ou afirmação dessa identidade do ponto de vista da criança. Os traços de Betina são cuidadosamente desenhados, tanto nas descrições, quanto nas ilustrações, com o objetivo, sem dúvidas, de valorizar as características negras, desde os contornos do rosto, boca e nariz até os detalhes dos cabelos, eixo central da narrativa: Quando a avó terminava o penteado, Betina dava um pulo e corria para o espelho. Ela sempre gostava do que via. Do outro lado do espelho, sorria para ela uma menina negra, com dois olhos grandes e pretos como jabuticabas, um rosto redondo e bochechas salientes, cheia de trancinhas com bolinhas coloridas nas pontas (GOMES, 2009, p. 8). Betina tinha a autoestima alta e não tinha vergonha de si: Na escola, a professora perguntava: - Uau! Já mudou de penteado de novo, Betina. Essa menina é mesmo impossível! Betina sorria com suas bochechas salientes e respondia, orgulhosa: - Foi minha avó quem fez (GOMES, 2009, p.10). 34

A menina orgulhava-se de suas tranças, de sua origem que a caracterizava como negra. Nota-se na história a liberdade da negritude, da consciência de si mesma e a fala da professora elogiando as tranças, sendo relevante para despertar a valorização da cultura negra nos alunos e alunas. A Literatura Infantil no espaço educacional abordando temáticas étnicoracial possibilita debates sobre esse tema, levando para a sala de aula novos perfis de personagens, como heróis e heroínas que retratem a diversidade racial e cultural dos vários povos, imprimindo valorização e pertença na criança negra. Demonstrando a pertinência de se ter material didático e literário que a diversidade racial fora dos padrões brancos que trazem em seus textos e imagens o falso conceito da superioridade racial branca e da inferioridade do negro. A ilustração final de Betina, adulta e cabeleireira, mantém os traços da mulher negra e, quando a mesma é convidada para falar a alunos da escola de sua infância, a personagem exercita o ato de contar uma história familiar: — É isso mesmo! Na história da minha família, a arte das tranças foi ensinada de mãe para filha, de tia para sobrinha, de avó para neta e assim por diante. Uma mulher foi ensinando para a outra até chegar a mim. Mas isso não aconteceu só na minha família. É uma forma muito comum de ensinar e aprender presente na história de muitas famílias brasileiras (e também de outros países), principalmente, as negras. Em nosso país, muito do que sabemos hoje, tem sido comunicado dessa maneira – explicou a cabeleireira, emocionada (GOMES, 2009, p. 22). Assim, de tanto conviver com a avó e aprender sobre a importância da cultura, do cuidar e pentear os cabelos, ao crescer Betina passa a arrumar o cabelo de outras pessoas, passando seus conhecimentos, o que a deixava feliz da mesma maneira quando seus cabelos eram arrumados por sua avó. Dentro da representação das personagens, destaca-se o cabelo como forma de representação de etnias. Trançar os cabelos corresponde às tramas da narrativa ao ato de contar histórias como prática cultural. Nos dias atuais o cabelo assume um grande padrão de beleza, que ajuda a embelezar as pessoas com penteados ou por sua beleza natural. Nas mulheres negras o cabelo é visto como valorização étnica e elemento identitário. Pensado nesse sentido, Gomes (2008, p. 22) afirma que \"para o negro, a intervenção no cabelo e no corpo é mais que uma questão de vaidade ou de tratamento estético. É identitária\". Esse aspecto é relevante porque o racismo “científico” e estrutural usa o cabelo e a cor da pele como critérios para classificar as pessoas das várias etnias existentes no Brasil. 35

O cabelo afro é um elemento de potência, símbolo de resistência e de fortalecimento da identidade negra na sociedade, já que a todo o tempo as crianças negras, especialmente as meninas, se deparam com os valores da cultura dominante, que desvalorizam suas características físicas, religiosidade e o seu cabelo em nome de um padrão europeizado de beleza e estética. Em “Makeba vai à escola” (Makeba goes to school), de Ana Fátima (ilustrações de Quezia Silveira e tradução para o inglês de Marieli de Jesus Pereira), é contada a história de uma criança negra de apenas três anos que se depara com a dificuldade de ir à escola pela primeira vez e que tem medo de não ser aceita pelos colegas. Makeba é uma linda menina negra que mora com o pai e adora, quando toda manhã, ele penteia e faz lindas tranças em seus cabelos negros. Mais uma vez a pertinência da discussão do cabelo crespo e do corpo negro, que: Juntos, eles possibilitam a construção social, cultural, política e ideológica de uma expressão criada no seio da comunidade negra: a beleza negra (GOMES,2008, p. 02). A narrativa já se inicia valorizando os traços da menina, a personagem principal da história. O papel do pai na criação de Makeba também é algo de destaque, é ele que penteia os cabelos da filha e faz as lindas tranças diariamente, a autora sai do tradicional papel que é quase sempre atribuído à mãe – pentear os cabelos das filhas. Essa quebra de papeis predeterminados de pai e mãe na família traz atualidade ao texto da autora e é mais um ponto a ser explorado em sala de aula por docentes, reafirmando a importância da literatura para a formação de consciência social nas crianças na escola. Ela tinha medo de como seria e se perguntava: — Será que os colegas também tinham tranças lindas como as dela? - E se na escola não existissem os livros divertidos que havia em sua casa? Lá não ia ter a vovó Cici para contar suas encantadoras histórias! — E se os colegas não gostassem de seus perfumados vestidos de chita tão rodados quanto a lua cheia em noite estrelada? (SANTOS, 2019, p.09). Seu contato com os livros já se inicia desde cedo, pois tinha uma biblioteca em casa, onde sua avó Cici contava-lhe histórias, diferente de grande parte das crianças que tem seu primeiro contato com a literatura somente no espaço escolar. Em relação ao vínculo familiar, o destaque é a relação afetiva com a avó Cici, percebe-se, então, nas duas histórias que as avós são presentes na maioria na vida crianças negras, com a função principal de passar conhecimentos, ensinar sobre os costumes, crenças e valores de suas origens. Desta forma, ao representar a personagem negra, o idoso é tomado na história como o guardador de memórias. 36

Com relação a professora de Makeba, a autora não nos dá qualquer descrição física, mas a apresenta como sendo: “carinhosa e tão encantadora com sua coroa de cachos que, ao balançá-los, preenchia a sala com um cheiro doce de alfazema como as flores que existiam no jardim da vovó”. (SANTOS, 2019, p.16). Aqui mais uma vez temos como referência a matriarca e as lembranças que Makeba tinha de sua avó. Da mesma forma que não há descrição física da professora de Makeba também não há de seus colegas de classe, só se sabe como são fisicamente pelas ilustrações. Esse tema nos livros de literatura na Educação Infantil contribui para uma prática mais diversificada e promotora de igualdade, pois é nesse nível escolar, que as crianças constroem suas identidades, convivem entre pares, vivenciando valores de respeito, solidariedade e afeto entre si. O preconceito não surge na criança do nada, ele pode ser imposto pelo adulto, pelos exemplos vivenciados principalmente no ambiente familiar e escolar. O processo de socialização estabelecido pelo ambiente escolar como um espaço de vivências da criança para além do ambiente familiar pode proporcionar o contato com diversas culturas e pessoas. A escola pode se transformar em um mundo de descobertas, ampliando o universo particular da criança. Podemos perceber isso nesse trecho da história: “A menina de olhos brilhantes e tranças cor da noite se sentia tão feliz que perguntava a si mesma, toda noite, na hora de dormir: por que eu não conheci a escola antes?” (SANTOS, 2019, p. 20). Assim ao longo da narrativa, a autora realiza algumas provocações para fazer com que as crianças possam refletir e se sentirem aceitas e confortáveis como Makeba diante do ambiente escolar. Nas duas obras aqui analisadas é importante ressaltar o papel das ilustrações nos livros de histórias infantis, pois as mesmas fazem parte da construção de sentido do texto. Faria (2004) frisa que as ilustrações nos livros infantis articulam o texto e a imagem contribuindo, por conseguinte, para a compreensão do texto narrativo. Ainda Faria (2004), agora citando Poslaniec, afirma que o livro ilustrado apresenta ao leitor dois textos, ora representado pelo texto em si e ora representado pelas imagens, pelas ilustrações. Acrescenta ainda que “A sequência de imagens proposta no livro ilustrado conta frequentemente uma história - cheia de ‘brancos’ entre cada imagem, que, o texto de um lado e o leitor cooperando, de outro, vão preencher” (POSLANIEC, apud, FARIA, 2004, p. 39). Assim, é preciso que o professor esteja preparado para explorar as imagens e narrativas do livro infantil em sala de aula e, também, rever suas práticas de modo a apontar sugestões voltadas às questões étnico-raciais entre os alunos. Um dos caminhos que pode 37

ser seguido por professoras e professores, com o objetivo de contribuir para a construção da identidade étnico-racial da criança na Educação Infantil é a literatura como nos fala Abramovich (1991, p. 17), para quem a literatura: É uma possibilidade de descobrir o mundo imenso dos conflitos, dos impasses, das soluções que todos vivemos e atravessamos - dum jeito ou de outro - através dos problemas que vão sendo defrontados, enfrentados (ou não), resolvidos (ou não) pelas personagens de cada história. Vale ressaltar, que as obras literárias infantis desenvolvem aspectos afetivos, cognitivos, reflexivos e sociais, fazendo com que as crianças, desde muito pequenas, compreendam e se envolvam conscientemente em ações que conheçam, reconheçam e valorizem a importância dos diferentes grupos étnicos. As crianças aprendem e conhecem diferentes realidades, descobrem que o mundo é constituído por histórias, grupos sociais e etnias diversas, podendo assim interagir com o meio em que vivem. Assim sendo, tal leitura não pode ser ignorada na fase da Educação Infantil. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse estudo procurou mostrar como a Literatura Infantil pode contribuir no processo de construção da identidade étnico-racial na Educação Infantil, considerando as diversas possibilidades de leituras que um livro pode oferecer. Lembrando que uma das mais importantes funções da literatura infantil, como já mencionado no decorrer deste trabalho, é a de possibilitar a compreensão de mundo, permitindo que a criança tenha uma visão mais ampla de tudo que está a sua volta, sendo mais reflexiva e crítica, desenvolvendo seu pensamento de forma organizada. Trabalhar a valorização das relações étnico-raciais através da literatura na Educação Infantil contribui para a construção de práticas educativas que promovam a igualdade racial, pois a Literatura Infantil é um recurso que pode ser utilizado para o reconhecimento das diversidades no cenário social brasileiro, dando lastro para afirmação de uma educação étnico-racial plural, onde crianças de diferentes pertencimentos possam ser representadas e respeitadas. Cabe à escola exercer o seu papel social na luta contra a discriminação, preconceito e racismo, pois é também nesse meio que se dá a construção da identidade infantil de maneira positiva ou não. Sendo assim, a Literatura Infantil vinculada ao discurso das diferenças, da diversidade e da valorização das relações étnico-raciais é uma importante ferramenta para o desenvolvimento e formação social da criança, representando um potente instrumento de desconstrução de estereótipos, combatendo o preconceito e a discriminação racial, 38

religiosa, de gênero, de classes e outras. É importante que se oferte às crianças negras da Educação Infantil, cujas identidades étnicas foram e ainda são desvalorizadas e invisibilizadas, a possibilidade de se verem representadas em obras de literatura de forma positivamente significativa buscando fomentar reflexões sobre a construção de sua identidade e concepções de pertencimento ao seu grupo social originário. REFERÊNCIAS ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. 2. ed. São Paulo: Scipione,1991. ARAÚJO, Débora Cristina de. As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 69, p. 61-76, maio/jun. 2018. Brasil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil / Secretaria de Educação Básica. – Brasília: MEC, SEB, 2010. BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das relações Étnico- Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro Brasileira e Africana. Parecer CNE/CP 3/2004, de 10 de março de 2004. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria da Educação Fundamental. Referencial curricular nacional para educação infantil. Brasília: MEC/ SEF, 1998. v.3. CADEMARTORI, Lígia. O que é literatura infantil. São Paulo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991. CASTILHO, Suely Dulce. A Representação do Negro na literatura Brasileira: novas perspectivas. Olhar de Professor, Ponta Grossa, v.7, n. 01, p.103-113, 2004. FARIA, Maria Alice. Como usar a literatura infantil na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004. GOMES, Nilma Lino. Betina. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2009. GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. GOUVEA, M. C. S. O mundo da criança: a construção do infantil na literatura brasileira. Bragança: São Francisco, 2004. LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: histórias e histórias. 6. ed. São Paulo: Ática, 2007. MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: Identidade nacional versus identidade negra. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. OLIVEIRA, Maria Anória de J. Negros personagens nas narrativas literárias infanto juvenis brasileiras: 1979-1989. 2003. Dissertação (Mestrado em Educação) – Departamento de Educação da UNEB, Salvador, 2003. PASSOS, Joana Célia dos. A educação para as relações étnico-raciais como política na Educação Infantil. In: VAZ, Alexandre Fernandes; MOMM, Caroline Machado (Orgs.). Educação infantil e sociedade: questões contemporâneas. Nova Petrópolis: Nova Harmonia, 2012. 39

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MITOS INDÍGENAS EM MACUNAÍMA, DE MÁRIO DE ANDRADE Antonia Amanda Rocha Torres1 RESUMO: Este artigo apresenta um estudo dos mitos indígenas presentes em Macunaíma, de Mário de Andrade, em sua articulação com a cultura brasileira. Primeiramente, uma visão abrangente dos vários conceitos de mitos será exposta com base em teorias de estudiosos do assunto, tais como Claude Lévi-Strauss, Ernest Cassirer, Joseph Campbell, Mircea Eliade, entre outros. Após uma breve explanação da evolução dos povos indígenas e a contribuição de suas diversificadas culturas para a formação da nação brasileira, serão então abordados aspectos literários acerca de Macunaíma; finalmente, analisam-se os mitos indígenas presentes em Macunaíma. Palavras-Chave: Macunaíma e cultura brasileira; Mitos indígenas; Mitocrítica. ABSTRACT: This article presents a study of the indigenous myths present in Macunaíma, by Mário de Andrade, in its articulation with the Brazilian culture. Firstly, an wide-ranging view of the several concepts of myths will be exposed based on theories of some studious of the subject, like Claude LéviStrauss, Ernest Cassirer, Joseph Campbell, Mircea Eliade, among others. After a short explanation of the evolution of the indigenous people and the contribution of its diverse culture for the formation of the Brazilian nation, then, they will be dealt literary aspects concerning Macunaíma. Finally, the indigenous myths present in Macunaíma are analyzed. KEYWORDS: Macunaíma and Brazilian culture. Indigenous myths. Mythocriticism CONSIDERAÇÕES INICIAIS As discussões envolvendo os diversos conceitos de mito se mostram cada vez mais intensas, haja vista as incessantes pesquisas de renomados estudiosos. Na verdade, os vários conceitos acerca de mito buscam defini-lo como parte da essência humana. O conjunto de todos os mitos de um povo ou de uma civilização forma a sua mitologia, sendo que a mais conhecida e estudada a nível mundial é a mitologia greco-latina. Entretanto, os mitos indígenas, africanos e de outros povos são interessantes também. Este trabalho será desenvolvido a partir do enfoque da mitologia indígena brasileira encontrada na obra Macunaíma. Antes, porém, será feita uma explanação a respeito dos conceitos de mito, da importância das culturas indígenas para a formação da nação brasileira e alguns aspectos teóricos acerca da obra a ser analisada. 1 (Org.) Antonia Amanda Rocha Torres, 5º Bloco. E-mailꓽ [email protected]. ORCIDꓽ 0009-0008-1503-1746. 43

MITOS E MITOLOGIA INDÍGENA NO BRASIL Faz parte da essência do ser humano querer saber, ao longo da vida, de onde veio, para onde vai, de onde surgiu a água, o fogo, a lua, o sol e, principalmente, qual é o sentido da vida. Neste ponto surgem os mitos, que são histórias, narrativas que tentam explicar esses antigos questionamentos do ser humano. O mito é uma forma de as sociedades espelharem suas contradições, dúvidas e inquietações e pode ser visto como uma possibilidade de refletir sobre a existência, o cosmos, as situações de “estar no mundo” (ROCHA, 2006, p. 7). É próprio do ser humano querer dar um sentido, uma justificativa para a vida, e os mitos vêm ao encontro desse desejo. Dessa forma, os mitos tentam explicar o surgimento do mundo e a forma como deuses e heróis o fizeram habitável para a humanidade. Em suas contundentes observações, Mindlin (2001) evidencia o raciocínio segundo o qual, [o]s mitos frequentemente falam de acontecimentos fantásticos, mágicos. É por isso que muita gente pensa e diz que mito é invenção, mentira, ficção; mas para os povos que os contam, donos das histórias, e para quem souber decifrar sua linguagem poética, os mitos são uma história verdadeira, uma explicação sobre o mundo, sobre o que é viver, sobre a origem da humanidade, sobre o aparecimento da agricultura, da caça, das plantas, das estrelas, do homem e da mulher, do fogo, do sol, da lua, de tudo o que se puder imaginar. Há histórias de fantasmas, de bichos que viram gente ou o contrário, de pedaços do corpo que voam e falam. São histórias sagradas, preciosas, respeitadas por todos (MINDLIN, 2001, pp. 7-8). Nessa perspectiva, Eliade (2006, p. 12) enfatiza a ideia de que “o mito é considerado uma história sagrada e, portanto, uma ‘história verdadeira’, porque sempre se refere a realidades”. Os mitos passam de geração para geração através dos séculos, refletindo pensamentos e a cultura de um povo, aspectos que, além de identificarem a sua maneira de ver a realidade e o mundo, ainda marcam a sua identidade. E essas histórias de heróis, deuses, bichos e monstros eram narradas pelos anciões da comunidade, as quais crianças e jovens escutavam atentamente e, aos poucos, a inexplicável, fantástica e misteriosa ordem do universo ia sendo descoberta. De acordo com as ideias de Ribeiro (1987), o mito caracteriza-se por um espaço físico não muito definido, e o tempo cronológico também costuma ser impreciso. É claro que, por exemplo, em relação aos mitos de criação o tempo seria identificado como parte dos primórdios, quando ainda não existia nada; entretanto, ainda assim não é totalmente 44

definido. Estas narrativas apresentam várias estruturas sendo que as mais comuns começam apresentando os personagens e também uma breve descrição do espaço, passando pela resolução de um conflito – com a presença de heróis, seres sobrenaturais, deuses... – até que, com a audácia do herói, tudo é resolvido e, como consequência, o mundo já não é mais o mesmo. Ainda segundo Ribeiro (1987), em tempos mais antigos, os mitos eram transmitidos de forma oral, e com o surgimento da escrita, eles passaram a ser registrados em pedras, em pergaminhos e, mais tarde, na folha impressa; com o avanço tecnológico os mitos também passaram a ser difundidos na televisão, na internet, no cinema, entre outros meios de comunicação. Nestes registros, os mitos costumam ser narrados em terceira pessoa, mas o diálogo entre personagens também pode ocorrer. Os mitos costumam resultar de autoria coletiva, fato que explica a existência de variadas versões de narrativas sobre o mesmo assunto. É por meio desses escritos que se pode estudar e conhecer um pouco mais sobre as mais diversas culturas. Em relação ao surgimento e evolução dos povos indígenas no Brasil, Oliveira (1990) menciona a possível origem asiática dos indígenas brasileiros, que migraram até o continente americano por meio do estreito de Bering. Na América do Sul, eles chegaram em torno de 40 mil anos atrás. Quando os indígenas chegaram no Brasil, primeiramente se fixaram no norte do país, mais precisamente na região da floresta Amazônica. Tempos depois, eles se dispersaram em torno daquele que viria a ser o futuro território brasileiro. A Pré-História do Brasil é dividida em três períodos, segundo relembra Oliveira (1990). O período paleo-índio vai de 35 mil a 9 mil anos atrás. As populações viviam em grutas e já tinham conhecimento para fabricar ferramentas – utilizando-se de lascas de pedras – e para sobreviver da caça de animais; também confeccionavam roupas feitas com couro. O período arcaico se estende de 9 mil a 4 mil anos atrás e é caracterizado como o período de maior aumento da população; em relação à fabricação das ferramentas para as atividades de caça, pode-se dizer que não houve tanto progresso como ocorreu em relação à alimentação, pois peixes de água doce e salgada passaram a fazer parte do cardápio indígena. E, por fim, o período horticultor, que compreende aproximadamente o tempo de 4 mil anos atrás. Nesse período, os indígenas trocaram as grutas por aldeias; a alimentação mais uma vez teve importante progresso: começou a ser adotada a prática do cultivo de milho, mandioca e algodão. 45

Assim, se torna perceptível a transformação da natureza, por parte do ser humano, que, tendo a capacidade de evoluir, consegue criar e fazer novas descobertas com o passar do tempo. Com relação a essa capacidade do ser humano, Oliveira (1990) afirma que [t]odas as vezes que o homem transforma o meio em que vive está fazendo cultura. Mas, ele não faz isto sozinho. É vivendo em grupo que consegue sobreviver. Isto é, criar seus modos de vida, as regras, as leis, os símbolos, as crenças, a religião e a política (OLIVEIRA, 1990, p. 24). Essa capacidade de transformação e evolução bem como todas as criações do ser humano são variáveis, ou seja, mudam de sociedade para sociedade: a cultura de um povo se difere da cultura de outro povo. Ainda segundo Oliveira (1990, p. 26), “é o bom entendimento dessas diferenças que possibilita a visão real sobre os diferentes povos”. A nação brasileira é formada por uma grande diversidade de grupos étnicos que se distinguem por sua história, seus costumes, sua língua. Os povos indígenas, da mesma forma que qualquer outro grupo étnico, desempenham um importante papel no conjunto de experiências históricas e sociais do Brasil. Os povos indígenas são detentores de saberes e responsáveis por criações como, por exemplo, a música, a culinária, a arte. Cada um dos diferentes povos indígenas é possuidor de cultura própria, e as suas formas, as suas originalidades merecem ser consideradas como patrimônio pela sociedade. Entretanto, de acordo com Durhan (1983), uma parte do povo brasileiro, ainda aparenta ignorar os direitos dos povos indígenas, em nome de uma pretensa unidade nacional de dimensão política, cultural e étnica. A imagem do indígena, ainda segundo Durhan (1983, p. 12), “é exaltada ou denegrida, servindo, simultaneamente, como metáfora da liberdade natural e como protótipo do atraso a ser superado no processo civilizatório de construção da nação”. Ora, muitas das lendas e mitos de cunho indígena acabaram sendo incorporados e bem aceitos pela nação brasileira. Os mitos indígenas podem discorrer sobre os mais variados temas. Ribeiro (1987) explicita a ideia de que esses mitos relatam as relações dos seres humanos com os animais, num tempo em que eles conversavam e se entendiam, bem como o seu modo de conviver em sociedade, de seus rituais de caça, pesca, religião e tantos outros valores de caráter essencial para a vida. Também explicam – cada povo indígena do seu modo – a origem do fogo, da luz, das cores dos animais, da lua, do sol, da noite, de alguns alimentos, entre outros tantos. 46

Os indígenas veem seus mitos não como algo fantástico, mas como portadores da verdadeira história do mundo: “A mitologia é uma necessidade inerente à linguagem”, segundo Cassirer (2006, p. 19). Nas culturas indígenas, a mitologia ainda se mantém viva em talvez todos os povos, transmitida de geração para geração. Uma das várias teorias dos mitos em voga é a de Claude Lévi-Strauss (2003), o qual sustenta que a importância do mito não está em seu conteúdo, mas em sua estrutura, uma vez que revela processos mentais universais. Para Vico (1984), o mito representa um caráter próprio da atividade de fantasia que nada tem de bizarro ou de absurdo, e que deve ser entendido em suas leis imanentes. O mito é o responsável por manter na lembrança situações que poderiam ser esquecidas. As análises de Lévi-Strauss (2003) apontam a coerência e a racionalidade particular da linguagem lúdica do mito. Os povos indígenas, assim como outros grupos étnicos, transmitem suas experiências através dos mitos, mas o interessante é que os mitos passam por variações quando contados ao modo de cada povo indígena, sendo que no Brasil há mais de 230 povos. Há muitas variações de mito sobre um mesmo tema, visto que os mitos são criações originais de cada povo, articulam-se com sua cultura, seus pensamentos. Campbell (2007) conclui que a mitologia é um conjunto de histórias sobre “a sabedoria da vida” (p. 58). MACUNAÍMA: ASPECTOS LITERÁRIOS Mário Raul de Morais Andrade nasceu em São Paulo em 1893 e faleceu em 1945. Escreveu romances e poesias; foi compositor, tocando e lecionando piano, e destacou-se também como crítico literário. Seu livro de estreia, Há uma Gota de Sangue em cada Poema, foi publicado em 1917. Entre os vários livros do autor, Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, publicado em 1928, é considerado uma das mais importantes obras da literatura brasileira. O livro, escrito em apenas seis dias, narra as aventuras do personagem Macunaíma, que nasce no interior da selva amazônica; de cor negra, acaba virando branco; tendo perdido a sua preciosa pedra muiraquitã que ganhara de sua mulher, parte para São Paulo na companhia de seus irmãos Jinguê e Maanape, que vivem várias aventuras até finalmente tomar posse do amuleto que estava com Venceslau Pietro Pietra; retornando novamente para a Amazônia, Macunaíma, se sentindo desiludido pela Uiara e sozinho, por conta da morte dos irmãos, decide ir para o céu e fazer parte da constelação da Ursa Maior. 47

Para escrever este livro, o autor empenhou anos de pesquisas sobre lendas, mitos indígenas e folclóricos, superstições, ditados populares, anedotas, paródias, provérbios, evocações históricas, etc., utilizando a linguagem popular de várias regiões do Brasil. Por fim, reuniu todos os elementos de seu estudo em Macunaíma, nome originário de um mito indígena. Daí vem o fato de o autor chamar a sua obra de rapsódia, nome que designa uma composição musical que envolve uma grande variedade de motivos populares. Souza (1979) relembra que [u]ma análise um pouco mais atenta [de Macunaíma] mostra que ele foi construído a partir de uma combinação de uma infinidade de textos preexistentes elaborados pela tradição oral ou escrita, popular ou erudita, europeia ou brasileira (SOUZA, 1979, p. 10). O autor da obra faz uso da linguagem oral e popular – um estilo presente em outros de seus livros também –, ao mesmo tempo em que mescla folclore, lendas, mitos e manifestações religiosas existentes nos vários recantos do Brasil. O autor também inventa outros, de maneira irônica e até zombeteira como, por exemplo, a criação do futebol, do truco e de termos como “vá tomar banho” (ANDRADE, 2007, p. 87). Segundo Faria (2006), muito da riqueza literária de Macunaíma vem sem dúvida desse tipo de ambiguidade, entre a invenção literária e a pesquisa científica, entre a criação lúdica e a interpretação da realidade nacional. Neste sentido, “narrado como uma viagem em sentido contrário à maioria dos périplos românticos, estes indo da civilização à natureza, a rapsódia de Mário de Andrade nem por isso se torna um relato originário, vindo diretamente do mato virgem” (FARIA, 2006, p. 273). A obra, escrita em 1928, inscreve-se no período Modernista e traz um novo conceito de “herói” brasileiro – a identidade nacional é um dos temas mais difundidos neste período, que pretende criar uma arte que revele a brasilidade, em seus temas e tipos –, que vive em constantes transformações. Claro que esse “herói” por vezes se mostra um anti-herói ou apenas trapalhão, como no dia em que faz um estardalhaço, só porque a água para o banho estava fria: “[o] herói depois de muitos gritos por causa do frio da água entrou na cova e se lavou inteirinho” (ANDRADE, 2007, pp. 49-50). A identidade nacional se constrói através das várias feições dos personagens, representantes dos diferentes grupos étnicos que deram origem ao povo brasileiro; sobretudo o indígena, o europeu e o negro. Apesar de diferentes, são irmãos: Macunaíma é branco, Jinguê é negro e Maanape é indígena. Nesse sentido, a identidade dos personagens é corrediça em função de influências culturais diversas que se somam no conjunto da própria cultura brasileira. 48

O personagem principal está sempre envolto em transformações envolvendo a aparência física – por vezes fazendo parte delas ou apenas relatando-as –, tanto no plano do real, quanto no do imaginário. Essas transformações ocorrem no âmbito das várias aventuras do personagem que, dependendo da situação, podem resultar em uma mudança de aparência para melhor ou pior. Uma mudança que ocorre com o próprio Macunaíma se dá quando, ao passear com a cunhada, perde a aparência de menino: “assim que [Sofará] deitou o curumim nas tiriricas, tajás e trapoerabas da serrapilheira, ele botou corpo num átimo e ficou um príncipe lindo” (ANDRADE, 2007, p. 14). Os animais também são vitimas das transformações. Um dia Macunaíma soltou um berro tão forte, que “muitos pássaros caíram de susto no chão e se transformaram em pedra” (ANDRADE, 2007, p. 14). Alguns seres humanos também se transformam; Ci – ou Mãe do Mato – ao morrer o filho que teve com Macunaíma, decide ir para o céu, “[é] lá que Ci vive agora nos trinques passeando [...], toda enfeitada de luz, virada numa estrela. É a Beta do Centauro” (Ibid., p. 35). O autor também se vale de elementos mágicos e fantasiosos para caracterizar seres, objetos, etc, como a “água encantada” (ANDRADE, 2007, p. 50) na qual Macunaíma toma banho e fica branco. Outra característica do Modernismo que se faz presente na obra é que, em alguns trechos, a escrita formal é substituída por uma escrita que obedece a fala coloquial, utilizandose de vocábulos bem próximos da linguagem cotidiana, como “nam sculhamba”, “milhor”, “nóis”, fio, entre outros. Também são utilizados registros populares e regionais da língua e trechos sem pontuação, em total desacordo com a gramática normativa, como pode ser observado no trecho “[e] eram muitos mosquitos, piuns maruins arurus tatuquiras muriçocas meruanhas mariguis borrachudos varejas, toda essa mosquitada” (ANDRADE, 2007, p. 22). Em relação à língua, também se observa a presença de vocábulos africanos, indígenas, gírias, provérbios e expressões populares. O autor não se mostra interessado nem em demarcar os limites geográficos, nem em especificar a que regiões pertencem os mitos, lendas, etc, formando no leitor a impressão de fazer parte não apenas de seu local de origem, mas, sim, de um imenso Brasil, com uma diversidade cultural ainda por explorar. Na obra, além do cruzamento entre elementos regionais e culturais, também se encontram representações alegóricas, como a do surgimento das etnias: 49

Quando o herói saiu do banho estava branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. [...] Nem bem Jiguê percebeu o milagre, se atirou na marca do pezão do Sumé. Porém a água já estava muito suja da negrura do herói e por mais que Jiguê esfregasse feito maluco atirando água pra todos os lados só conseguiu ficar da cor do bronze novo. [...] Maanape então é que foi se lavar, mas Jiguê esborrifara toda a água encantada pra fora da cova. Tinha só um bocado lá no fundo e Maanape conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos. Por isso ficou negro [...] [com] as palmas das mãos e dos pés [...] vermelhas [...] (ANDRADE, 2007, pp. 49-50). Na composição de Macunaíma, Mário de Andrade nunca ocultou o fato de ter se inspirado nas obras de outros escritores como do alemão Theodor Koch-Grünberg, de Capistrano de Abreu, de Couto Magalhães, de Pereira da Costa, etc. O escritor também confirma que não apenas copiou os etnógrafos e textos ameríndios, como também, no capítulo “Carta pras Icamiabas”, utilizou frases inteiras de Rui Barbosa, O autor também utilizou a intertextualidade ao modificar textos como, por exemplo, o Padre-Nosso, que deixou de ter cunho religioso e passou a ser profano, quando rezado por Macunaíma em uma macumba: Na macumba [... ] a reza do Padre Nosso Exu, era assim: – Padre Exu achado nosso que vós estais no trezeno inferno da esquerda de baixo, nóis te quereremo muito, nóis tudo! – Quereremos! Quereremos! – ...O pai nosso Exu de cada dia nos dai hoje, seja feita vossa vontade assim também no terreiro da sanzala que pertence pro nosso padre Exu, por todo o sempre que assim seja, amém!... (ANDRADE, 2007, p. 83). Outro recurso de intertextualidade utilizado na obra pode ser observado em uma frase que Macunaíma retoma amiúde: “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são”. O personagem contraiu malária, tema atual, visto que uma parcela da população brasileira ainda sofre com esse mal. Este slogan recupera um poema de Gregório de Matos (1636-1695), em que o poeta satiriza a situação do Brasil, tendo como refrão o verso “Milagres do Brasil são”. Relembra também uma frase do cronista Saint-Hilaire: “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”. O personagem principal é retratado por meio de traços que distinguem o perfil do brasileiro fora da lei, o preguiçoso, o desordeiro, de caráter suspeito. Em suas observações, Souza (2008) faz uma interessante análise do personagem central: 50


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